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instáveis, ou seja, a região que “se refere à linguagem apenas à medida que esta faz sentido para
sujeitos inscritos (...) em posições sociais ou em conjunturas históricas”, assim, não é possível
fazer AD sem que se considere a ideologia e as condições sócio-históricas de produção. Isso
implica considerarmos o percurso histórico da posição social da mulher em nossa pesquisa,
mesmo que não o exploremos profundamente, a fim de entendermos as condições de
emergência do levante do Movimento #metoo aqui estudado.
No século XIX a posição da mulher era de tal modo subalterna que os atos de
violência contra elas eram fortemente naturalizados. Significada como propriedade – do pai,
marido, filho, irmãos –, ela muitas vezes servia de álibi para os erros masculinos, e qualquer
transgressão sua era considerada algo que “[...] manchava a reputação dos homens a quem ela
pertencia – filho, marido, irmãos – até que a mancha fosse apagada, por intermédio da agressão”
(GAY, 1995, p. 120 apud PUGA, 2015, p. 716). No Brasil, até 2005, havia a prerrogativa de
inocentar estupradores caso se cassassem com a vítima e, até 2009, o estupro era considerado
crime contra os costumes. Em 2017, a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a
absolvição de um réu confesso de ter matado a esposa a facadas sob defesa de “legítima defesa
da honra 3 ”, defesa que ficou nacionalmente conhecida no caso do assassinato de Ângela Diniz
pelo então namorado, Doca Street, em 1976 4 . Além disso, o estupro de mulheres é conhecida
arma de guerra, que demarca a soberania sobre o território conquistado pela aniquilação da
subjetividade dos indivíduos, desestabilização social e genocídio, sendo a inseminação de
mulheres por estupro, uma maneira de “limpeza étnica”, além de uma forma de “profanação
pública; muitas vezes uma tentativa deliberada de humilhar os homens inimigos por não
conseguirem proteger ‘suas’ mulheres” (BOURKE, 2014, p. 19).
A violência se naturaliza por meio de processos que reduzem a mulher a um
objeto. No campo da AD, entende-se que essa naturalização é efeito do funcionamento da
ideologia, que se realiza por meio de práticas e incide sobre os sujeitos, interpelando-os. As
mulheres são, portanto, subjetivadas por práticas violentas, a partir das quais constituem-se
como sujeitos, em processos de identificação (BOCCHI, 2017). Segundo Saffioti (2004), a
violência é definida como “[...] ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade
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No dia 12 de março de 2021, o STF decidiu, por unanimidade, que a tese de legítima defesa da honra não pode
ser aplicada em julgamentos nos tribunais do júri como argumentação de defesa em casos de feminicídio. Segundo
o ministro Dias Toffoli, relator do caso, “Para além de um argumento atécnico e extrajurídico, a legítima defesa
da honra é estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida e
totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do
feminicídio no país”. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/03/13/stf-proibe-porunanimidade-uso-do-argumento-da-legitima-defesa-da-honra-por-reus-por-feminicidio.ghtml.
Acesso em: 12
mar. 2021.
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Ver: Podcast – Praia dos Ossos, disponível no Spotify.