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GIOVANA OLIVEIRA DE RUSSI
MOVIMENTO #METOO E A NARRATIVA DA VIOLÊNCIA
INENARRÁVEL: movimentos digitais, luto, luta e testemunho
Dissertação apresentada à Universidade de
Franca, como exigência para obtenção de título
de Mestre em Linguística.
Orientadora: Profa. Dra. Aline Fernandes de
Azevedo Bocchi.
FRANCA
2021
GIOVANA OLIVEIRA DE RUSSI
MOVIMENTO #METOO E A NARRATIVA DA VIOLÊNCIA
INENARRÁVEL: movimentos digitais, luto, luta e testemunho
COMISSÃO JULGADORA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM LINGUÍSTICA
Presidente: Profa. Dra. Aline Fernandes de Azevedo Bocchi
Universidade de Franca
Titular 1: Profa. Dra. Dantielli Assumpção Garcia
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
Titular 2: Profa. Dra. Luciana Carmona Garcia Manzano
Universidade de Franca
Franca, 10/03/2021
DEDICO este trabalho aos meus pais por nunca terem me limitado a
estereótipos de gênero e por me incentivarem em tudo que fiz e quis
fazer. Ao meu marido por ser meu companheiro de aventuras e grande
incentivador do meu crescimento. À minha irmã, minha primeira e mais
resiliente amiga, obrigada por toda a ajuda, sempre. A todas as
mulheres, sobreviventes ou não, de atos de violência, silenciamentos e
apagamentos, vocês são fonte de força e resiliência.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais pelo apoio e incentivo constante na minha vida e na minha
educação, meus primeiros professores. Meus profundos agradecimentos por terem me
proporcionado a melhor educação disponível e acreditarem em mim sempre. Obrigada por
serem meu porto seguro em momentos de insegurança;
À minha irmã pelas infinitas conversas, risadas e paciência. Por ter sido meu
melhor presente. Obrigada por ter me ajudado nessa etapa e em toda minha vida;
Ao meu marido por todo o amor incondicional, pela infinita paciência e
constante apoio. Obrigada por me carregar quando não pude andar sozinha e ter me dado forças
para continuar;
Aos meus avós que sempre lutaram pela minha educação e pavimentaram um
caminho difícil e árduo para que eu pudesse desfrutar de um caminho mais fácil. Sem vocês,
nada disso seria possível;
À Camilla Fernandes e Gabriela Moreira Buranelli, maiores presentes que o
mestrado me trouxe, amigas pra toda e qualquer hora. Razões pelas quais eu não desisti.
Agradeço por cada brigadeiro que comemos juntas (ou separadas), por todos os sorvetes e
infinitas conversas. Obrigada por terem segurado minha mão nesse caminho tão complicado e
por vezes, doloroso;
À Profa. Dra. Marília Giselda Rodrigues, minha primeira orientadora e razão do
meu ingresso no programa, minha amiga de coração e alma, minha maior saudade. Obrigada
por ter me ensinado tanto não só sobre a academia, mas sobre a vida;
À Ana Clara Rezende que me faz crescer diariamente, sempre compartilhando
as dores, amores e conhecimentos. Meu agradecimento por ter te encontrado em um lugar que
nunca imaginei e por ter sido uma constante em meio a tantas incertezas, por me ensinar coisas
novas todos os dias e por ser uma amiga pra vida toda;
À Nathalia Soares, amiga que a Unifran me deu anos atrás e que faz parte de
tantas etapas da minha vida que já não me imagino sem sua presença;
À Thais Fanan, por todos os dias de muitas risadas, piadas, choros e apoio. Por
ir ao correio e ao cartório comigo, por me aguentar insuportável, por carregar minha muleta e
minha bolsa, por me defender. Por ser uma amiga pra todas as horas e lugares. Por ser uma
mulher maravilhosa, que enfrenta tudo que a vida lhe joga e não deixa se calar. E à Fabiana
Fanan, por todas as comidas deliciosas. Por ser uma mulher incrível e batalhadora.
Aos meus amigos que tiveram a paciência e compreensão nesse momento, que
me ouviram reclamar e falar infinitamente da minha pesquisa e do mestrado;
À Glenda Melo, amiga de longa data que me deu grandes oportunidades e
sempre confiou no meu trabalho. Meus profundos agradecimentos por me ensinar tanto e me
fazer crescer sempre, em todas as instâncias da minha vida, em cada conversa que temos;
À Profa. Dra. Aline Fernandes de Azevedo Bocchi, orientadora que me acolheu
e possibilitou não somente a escrita dessa dissertação, mas também do meu primeiro artigo;
À Profa. Dra. Dantielli Assumpção Garcia, pelo tempo desprendido em ler
minha dissertação e tecer comentários tão proveitosos, colaborando para meu crescimento
acadêmico e pessoal;
À CAPES por financiar essa etapa;
A todos os profissionais da saúde que estão na linha de frente de combate a
pandemia de covid-19, em especial àqueles que se arriscam diariamente para proteger a
população mais vulnerável, abandonada pela necropolítica. Os meus sinceros sentimentos a
todas as famílias, em especial à da Eneida Nalini, que perderam entes queridos para uma doença
desoladora, meus profundos sentimentos. Minha eterna saudade ao Mateus Barbosa de Oliveira,
grande professor, patrão e amigo, que a covid-19 levou sem permitir despedidas, vai ficar a
saudade dos nossos cafés e de seus ensinamentos.
Agora
não é hora
de fazer silêncio
ou pedir espaço
porque a gente nunca teve espaço para nada
agora
é a nossa hora
de abrir bem a boca
falar mais alto do que nunca
até que ouçam
Rupi Kaur
RESUMO
RUSSI, Giovana Oliveira de. MOVIMENTO #METOO E A NARRATIVA DA
VIOLÊNCIA INENARRÁVEL: movimentos digitais, luto, luta e testemunho. Orientadora:
Aline Fernandes de Azevedo Bocchi. 2021. 106 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) –
Universidade de Franca, Franca.
A pesquisa aqui apresentada pretende analisar um extenso material heterogêneo, analisado a
partir da noção de percurso temático (GUILHAUMOU; MALDIDIER, 2010), a fim de entender
o funcionamento discursivo do Movimento Metoo e determinar se ele pode ou não ser definido
como acontecimento discursivo (PÊCHEUX, 2008). Para tal, nos debruçamos sobre o
arcabouço teórico da Análise de Discurso de linha francesa, em especial nos conceitos de
Michel Pêcheux. Apesar de ter sido fundado em 2006 pela ativista negra Tarana Burke, o
Movimento Metoo ganha novos contornos com o tweet convocatório de Alyssa Milano em
2017, seguindo as denúncias de abuso e assédio sexual contra o magnata hollywoodiano Harvey
Weinstein. Nos valendo de um extenso arquivo criado ao longo da pesquisa, buscamos entender
como o digital modifica a constituição, formação e circulação da hashtag #metoo e como essa
modificação proporciona novos rituais enunciativos e lugares de enunciação (ZOPPI-
FONTANA, 2002). Assim, nos valeremos ainda dos conceitos de memória metálica
(ORLANDI, 2007a) e memória digital (DIAS, 2016). Objetiva-se contribuir para a discussão
do discurso digital em Análise do Discurso, através de apontamentos do funcionamento
discursivo da hashtag. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento
001.
Palavras-chave: Hashtag; Análise do Discurso; Discurso Digital, Movimento Metoo; #metoo.
ABSTRACT
RUSSI, Giovana Oliveira de. MOVIMENTO #METOO E A NARRATIVA DA
VIOLÊNCIA INENARRÁVEL: movimentos digitais, luto, luta e testemunho. Orientadora:
Aline Fernandes de Azevedo Bocchi. 2021. 106 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) –
Universidade de Franca, Franca.
The research presented here intends to analyze an extensive heterogeneous material in order to
understand the discursive functioning of the Metoo Movement and to determine whether or not
it can be defined as a discursive event (PÊCHEUX, 2008). To this end, we focus on the
theoretical framework of Discourse Analysis of the French line, especially on Michel Pêcheux's
concepts. Despite being founded in 2006 by black activist Tarana Burke, the Metoo Movement
takes on new shapes with Alyssa Milano's summoning tweet in 2017, following allegations of
abuse and sexual harassment against Hollywood tycoon Harvey Weinstein. Using an extensive
archive created throughout the research, we seek to understand how digital modifies the
constitution, formation and circulation of the hashtag #metoo and how this modification
provides new enunciative rituals and enunciation places (ZOPPI-FONTANA, 2002). Thus, we
will also use the concepts of metallic memory (ORLANDI, 2007a) and digital memory (DIAS,
2016). The objective is to contribute to the discussion of digital discourse in Discourse Analysis,
through notes on the discursive functioning of the hashtag. This work was carried out with the
support of the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brazil (CAPES)
- Financing Code 001.
Keywords: Hashtag; Discourse Analysis; Digital Discourse; Metoo Movement; #metoo.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Capa da revista Times 29
Figura 2 – Tweet de Alyssa Milano 33
Figura 3 – Twitter de Randall G. Arnold 50
Figura 4 – Mensagem da Kate no colchão 51
Figura 5 – Mensagem da primeira amiga escrita no colchão 53
Figura 6 – Mensagem da segunda amiga escrita no colchão 53
Figura 7 – Fio do Twitter 58
Figura 8 – Mensagem de relato direto escrita no colchão 59
Figura 9 – Mensagem de relato indireto escrita no colchão 60
Figura 10 – Mensagem de relato direto escrita no colchão 61
Figura 11 – Mensagem de relato direto escrita no colchão 62
Figura 12 – Mensagem escrita no colchão 64
Figura 13 – Tweet relato de Simone Biles 70
Figura 14 – Melody Posthum 71
Figura 15 – Taylor Livingston 72
Figura 16 – Testemunho de Kate 77
Figura 17 – Testemunho de Rachel Denhollander 82
Figura 18 – Testemunho de Jamie Dantzscher 85
Figura 19 – Sobrevivente chorando 88
Figura 20 – Angela e Rachael se abraçando 89
Figura 21 – Rachael sorrindo 90
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
1 O ACONTECIMENTO #METOO E OS NOVOS RITUAIS ENUNCIATIVOS ......... 21
1.1 A #METOO ENTRE MEMÓRIAS E SILENCIAMENTOS........................................ 24
1.1.1 Filiações de memória acerca do movimento #metoo ...................................................... 27
1.2 O ACONTECIMENTO #METOO E A EMERGÊNCIA DE NOVOS RITUAIS
ENUNCIATIVOS .................................................................................................................... 33
1.3 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO ........................................................................................ 38
1.3.1 Condições políticas de emergência da #metoo................................................................ 39
1.3.2 A marcha das mulheres e os movimentos ciberativistas ................................................. 41
1.4 LUGAR DE ENUNCIAÇÃO E RITUAL ENUNCIATIVO ............................................. 44
2 MODOS DE CONSTITUIÇÃO, FORMULAÇÃO E CIRCULAÇÃO DE SENTIDOS
EM THIS IS MY ASSAULT STORY #METOO.................................................................... 47
2.1 INTERPELAÇÃO E PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO EM “ESSA É A MINHA
HISTÓRIA DE ESTUPRO #METOO” ................................................................................... 51
2.1.1 A hashtag: do funcionamento técnico ao discursivo ....................................................... 56
2.2 UMA ESCRITA TODA NOSSA ....................................................................................... 59
2.2.1 Corpografia: escrita e corpo no digital ............................................................................ 63
2.3 MEMÓRIA METÁLICA E MEMÓRIA DIGITAL .......................................................... 64
3 A TRANSFORMAÇÃO DO LUTO EM LUTA ............................................................... 67
3.1 A INSTÂNCIA DO LUTO ................................................................................................ 67
3.1.1 Disenfranchised Grief ...................................................................................................... 73
3.2 A INSTÂNCIA DO TRAUMA E DO TESTEMUNHO ................................................... 76
3.2.1 O Documentário como acontecimento discursivo ........................................................... 81
3.2.2 O Jurídico ........................................................................................................................ 83
3.3 O CORPO ........................................................................................................................... 88
3.4 IMPACTO NO REAL DA HISTÓRIA.............................................................................. 92
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 96
REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 99
ANEXOS................................................................................................................................ 106
12
INTRODUÇÃO
Fundado em 2006 pela ativista negra Tarana Burke, o Movimento Metoo ganhou
novos contornos a partir de um tweet da atriz estadunidense Alyssa Milano em 2017, no qual
ela convoca todas as mulheres já assediadas a usarem a hashtag #metoo. O tweet surge em
resposta às denúncias feitas pelo jornal The New York Times contra o produtor hollywoodiano
Harvey Weinstein, acusado de assediar dezenas de mulheres. O que dá seguimento às denúncias
e o tweet da atriz é algo nunca antes visto, uma grande onda de acusações de assédio contra
homens poderosos. As antigas estruturas aparentemente inabaláveis que sustentavam as
produções cinematográficas hollywoodianas começam a ruir. Ninguém estava imune.
Produtores, atores, fotógrafos, CEOs, o título não importava mais, as denúncias não iriam parar.
As mulheres não iriam mais se calar. Carreiras renomadas foram parcialmente enterradas, como
as de Bill Cosby e Kevin Spacey 1 . Dizemos parcialmente pois, em diversos casos, apesar de
processos judiciais e acusações públicas, a carreira do acusado sofre um desgaste, mas continua,
como os diretores Roman Polanski e Woody Allen. 2 É nesse tsunami de denúncias que a
presente pesquisa nasce.
Pretendemos nesta pesquisa analisar um material heterogêneo, formado de
filmes, séries, documentários, livros e diversas materialidades, através do arcabouço teórico da
Análise do Discurso de linha francesa, a fim de constatarmos se o Movimento #metoo pode ser
considerado um acontecimento discursivo. Por se tratar de um material heterogêneo, o percurso
1
Bill Cosby foi condenado em 2018 por três acusações de crime de abuso sexual cometidos em 2004. Kevin
Spacey perdeu contrato com a Netflix em 2018, com a interrupção da série House of Cards que seguiu sem o ator
e o filme Gore, que não foi lançado, um total de US$39 milhões. Após as denúncias contra Spacey, o ator não teve
mais produções lançadas e nem novos contratos assinados, chegando a ser substituído pelo ator Christopher
Plummer no filme Todo o Dinheiro do Mundo, que já estava praticamente finalizado quando o diretor Ridley Scott
decidiu pela substituição.
2
Roman Polanski, famoso diretor e produtor francês, é considerado fugitivo pela justiça estadunidense desde 1978
quando, após pagar fiança por ter sido preso em flagrante pelo estupro da modelo Samantha Geimer, de 13 anos,
fugiu para a Europa antes de nova prisão, nunca tendo sido julgado pelo caso. Apesar de ter sido preso em Zurique
em 2009, a justiça suíça negou sua extradição por falta de provas. Ainda assim, ganhou diversos prêmios após
1978, com destaque para o de melhor diretor em 2020 no Prêmio César, uma espécie de Oscar francês. Várias
atrizes se retiraram da cerimônia em forma de protesto e o debate “artista vs. obra” se reacendeu. Woody Allen,
diretor estadunidense, é acusado pela filha adotiva Dylan Farrow de tê-la abusado sexualmente aos 7 anos de idade.
A carta enviada ao The New York Times em 2014 detalha os acontecimentos. Mesmo assim, o diretor foi
considerado inocente em investigações em 1994. Em 2014 o diretor ganhou um prêmio honorário Cecil B.
DeMillie do Globo de Ouro, que premia anualmente alguém que contribuiu significativamente, ao longo de sua
carreira, para o mundo do entretenimento.
13
temático foi norteador e possibilitou a escolha do material de forma a integrar as análises.
Segundo Guilhaumou e Maldidier,
[...] a análise de um trajeto temático remete ao conhecimento de tradições retóricas,
de formas escrita, de uso da linguagem, mas sobretudo, interessa-se pelo novo no
interior da repetição. Esse tipo de análise não se restringe aos limites da escrita, de um
gênero, de uma série: ela reconstrói os caminhos daquilo que produz o acontecimento
da linguagem. [...] a análise do trajeto temático fundamenta-se em um vaivém de atos
linguageiros de uma grande diversidade e atos de linguagem que podemos analisar
linguisticamente e nos quais os sujeitos podem ser específicos (GUILHAUMOU e
MALDIDIER, 2010, p. 165).
Para orientar a constituição do corpus de análise a partir de uma temática
depreendida do nosso arquivo, composto por discursos sobre o movimento #metoo, e em
consonância com a visão de trajeto temático de Guilhaumou e Maldidier, “a distinção entre ‘o
horizonte de expectativas’ – o conjunto de possibilidades atestadas em uma situação histórica
dada – e o acontecimento discursivo que realiza uma dessas possibilidades” (2010, p. 164), não
pressupomos a existência de um referencial fixo do qual se baseia nosso material, mas temos
como foco os efeitos de sentido e o acontecimento discursivo produzidos a despeito disso, nos
momentos históricos analisados. Para os autores, o acontecimento discursivo “é apreendido na
consistência de enunciados que se entrecruzam em um momento dado” (2010, p. 164).
Tendo isso em vista e para a realização das análises, mobilizaremos conceitos
como acontecimento discursivo (PÊCHEUX, 2008), memória metálica (ORLANDI, 2007a),
memória digital (DIAS, 2016), rituais enunciativos e lugar de enunciação (ZOPPI-FONTANA,
2002), entre outros.
Constituída sob um tripé, a Análise do Discurso é uma disciplina de entremeio
(ORLANDI, 2007a, p. 23), o que significa que ela não concentra simplesmente os saberes das
disciplinas que a constituem, a Linguística, a Psicanálise e o Marxismo, mas “discute seus
pressupostos continuamente”, se fazendo na “contradição da relação entre as outras”
(ORLANDI, 2007a, p. 23 – grifo da autora). Contudo, falar de Análise do Discurso
simplesmente é algo amplo, como aponta Mussalim (2001), então os valeremos do arcabouço
teórico da teoria originada na França na década de 1960 por Jean Dubois e Michel Pêcheux e
que, no contexto específico do Brasil, segue na direção dos estudos de Eni Orlandi, pioneira e
até hoje principal tradutora e colaboradora de Pêcheux, sendo este o teórico norteador da
pesquisa aqui apresentada.
Por ser uma disciplina de entremeio, a Análise de Discurso (doravante AD)
trabalha com a região que Maingueneau (1997, p. 11-12) chamou de região de contornos
14
instáveis, ou seja, a região que “se refere à linguagem apenas à medida que esta faz sentido para
sujeitos inscritos (...) em posições sociais ou em conjunturas históricas”, assim, não é possível
fazer AD sem que se considere a ideologia e as condições sócio-históricas de produção. Isso
implica considerarmos o percurso histórico da posição social da mulher em nossa pesquisa,
mesmo que não o exploremos profundamente, a fim de entendermos as condições de
emergência do levante do Movimento #metoo aqui estudado.
No século XIX a posição da mulher era de tal modo subalterna que os atos de
violência contra elas eram fortemente naturalizados. Significada como propriedade – do pai,
marido, filho, irmãos –, ela muitas vezes servia de álibi para os erros masculinos, e qualquer
transgressão sua era considerada algo que “[...] manchava a reputação dos homens a quem ela
pertencia – filho, marido, irmãos – até que a mancha fosse apagada, por intermédio da agressão”
(GAY, 1995, p. 120 apud PUGA, 2015, p. 716). No Brasil, até 2005, havia a prerrogativa de
inocentar estupradores caso se cassassem com a vítima e, até 2009, o estupro era considerado
crime contra os costumes. Em 2017, a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a
absolvição de um réu confesso de ter matado a esposa a facadas sob defesa de “legítima defesa
da honra 3 ”, defesa que ficou nacionalmente conhecida no caso do assassinato de Ângela Diniz
pelo então namorado, Doca Street, em 1976 4 . Além disso, o estupro de mulheres é conhecida
arma de guerra, que demarca a soberania sobre o território conquistado pela aniquilação da
subjetividade dos indivíduos, desestabilização social e genocídio, sendo a inseminação de
mulheres por estupro, uma maneira de “limpeza étnica”, além de uma forma de “profanação
pública; muitas vezes uma tentativa deliberada de humilhar os homens inimigos por não
conseguirem proteger ‘suas’ mulheres” (BOURKE, 2014, p. 19).
A violência se naturaliza por meio de processos que reduzem a mulher a um
objeto. No campo da AD, entende-se que essa naturalização é efeito do funcionamento da
ideologia, que se realiza por meio de práticas e incide sobre os sujeitos, interpelando-os. As
mulheres são, portanto, subjetivadas por práticas violentas, a partir das quais constituem-se
como sujeitos, em processos de identificação (BOCCHI, 2017). Segundo Saffioti (2004), a
violência é definida como “[...] ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade
3
No dia 12 de março de 2021, o STF decidiu, por unanimidade, que a tese de legítima defesa da honra não pode
ser aplicada em julgamentos nos tribunais do júri como argumentação de defesa em casos de feminicídio. Segundo
o ministro Dias Toffoli, relator do caso, “Para além de um argumento atécnico e extrajurídico, a legítima defesa
da honra é estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida e
totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do
feminicídio no país”. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/03/13/stf-proibe-porunanimidade-uso-do-argumento-da-legitima-defesa-da-honra-por-reus-por-feminicidio.ghtml.
Acesso em: 12
mar. 2021.
4
Ver: Podcast – Praia dos Ossos, disponível no Spotify.
15
física, integridade psíquica, integridade sexual, integridade moral.” (p. 17). Há aqui uma
problemática importante, integridade física e sexual são palpáveis, passíveis de constatação
visual na maioria das vezes, mas as outras duas nem sempre são e é aqui que o problema se
apresenta, visto estarem mais sujeitas à interpretação médica, judicial etc.
Para elucidar essa dependência interpretativa, muitas vezes feita por homens,
evocamos o caso da operadora de emergência, Patricia Brooks, mostrado no documentário
Nevertheless (2020). Em 1996, enquanto atendia um chamado de socorro, teve seus seios
apalpados por debaixo da blusa por um colega. O caso foi arquivado sob alegação de não haver
provas contundentes de assédio grave ou generalizado, tendo ocorrido apenas uma vez. O caso
de Brooks serviu de molde para luta pela mudança da lei na Califórnia (EUA) e pela melhor
definição do que constitui violência e assédio.
Todo e qualquer ato de violência é algo a ser denunciado e combatido. Contudo,
a violência contra a mulher sempre foi velada, e, em muitos casos, permitida. A partir do
momento em que as mulheres passam a romper com a objetificação e lutam contra saberes e
poderes constitutivos de práticas que as interditam e violentam, práticas essas que as mantêm
refém de uma sociedade patriarcal e machista, emerge, desde novos rituais enunciativos,
posições-sujeito outras e novos lugares de enunciação (ZOPPI-FONTANA, 2002; 2017). O
ritual enunciativo inaugurado pelos feminismos permite lugares de enunciação cujo mote é a
reinvindicação de direitos, como direito de voto, direito a emprego, controle de natalidade,
aborto, entre outros. A voz feminina foi ganhando coro e passa a ser cada vez mais ouvida. A
violência passa a ser cada vez menos aceita.
Entretanto, as lutas contra a violência e as opressões mostram-se ainda
necessárias. Segundo Márcia Tiburi,
perceber a função dessas categorias [sexo, capital, Deus e poder] em nossas vidas é o
caminho da nossa libertação de dominações e violências que são impostas. Aquilo que
é tratado pelo senso comum ou pelas instituições de maneira fundamentalista deve ser
sempre investigado criticamente. A pergunta que podemos nos colocar, portanto, diz
respeito ao que essas categorias têm a nos dizer quando somos corpos viventes e
sobreviventes que lutam contra opressões em nome de direitos básicos, tais como
simplesmente existir (2018, p. 18).
Tiburi achata as categorias sociais desconsiderando as desigualdades existentes
dentro da luta contra a violência, colocando, por exemplo, mulheres brancas e mulheres negras
numa mesma posição de luta pela libertação contra a violência, sem considerar que, apesar do
gênero delas ser o mesmo, a categoria raça é determinante e dita uma discrepância gritante na
luta contra qualquer tipo de violência. Segundo o IPEA, as mulheres negras representam 68%
16
das mulheres assassinadas no Brasil em 2018, quase o dobro se comparado às mulheres nãonegras
5 . Não é nossa intenção diminuir a fala da escritora, mas é de suma importância para
nosso trabalho marcarmos a esfera racial e coloca-la em debate por entendermos sua relevância
e para não apagarmos e silenciarmos a criadora do movimento #metoo, Tarana Burke, mulher
negra e ativista.
A ONU (apud SOARES, 2015, [n.p.]) alerta que 7 em cada 10 mulheres no
mundo já foram ou serão violentadas em algum momento da vida por um parceiro e 35% das
mulheres já foram ou serão violentadas por um estranho, sem especificar raça, classe social,
escolaridade ou lugar no mundo.
Em 2019, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicou a segunda edição
do mapa “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, onde 37,1% das mulheres
com 16 anos ou mais relataram terem sofrido assédio dos mais variados tipos nos últimos 12
meses: 32,1% receberam comentários desrespeitosos ao andar na rua (19 milhões de mulheres);
7,8% foram assediadas fisicamente em transporte público (3,9 milhões) e 5% foram agarradas
ou beijadas sem consentimento (2,3 milhões). Além disso, 66% de mulheres entre 16 e 24 anos
sofreram algum tipo de assédio em 2019.
Os números ficam ainda mais alarmantes na pesquisa sobre violência contra
mulher no ambiente universitário realizada pelo Instituto Avon em 2015: 56% das mulheres
entrevistadas relataram já terem sofrido assédio sexual; 28% sofreram violência sexual; 18%
sofreram algum tipo de coerção; 10% sofreram violência física e 49% sofreram desqualificação
intelectual. Contudo, o mais preocupante desta pesquisa são os casos que ainda não são
reconhecidos como violência por parte dos homens: 27% não consideram violência abusar da
mulher embriagada; 35% não consideram violência coagir uma mulher a participar de
atividades degradantes como desfiles e leilões e 31% não consideram violência repassar fotos
ou vídeos das colegas sem a autorização delas. As mulheres negras são maior índice de
vitimização, representando 28,4% das mulheres vítimas de violência física, além de serem
40,5% das mulheres vítimas de assédio (DATAFOLHA; FÓRUM BRASILEIRO DE
SEGURANÇA PÚBLICA, 2019).
Em 2017, nos EUA a atriz Alyssa Milano publica um tweet convocando
mulheres a contarem suas histórias de assédio usando a hashtag #metoo. Milano foi interpelada
pela reportagem do jornal The New York Times publicada dias antes, expondo décadas de
abusos e assédios por parte do magnata Harvey Weinstein. Apesar de Metoo já existir
5
A pesquisa considera como mulheres não-negras as mulheres pardas, indígenas e brancas (IPEA, 2019).
17
previamente, tendo sido um movimento fundado pela ativista negra Tarana Burke em 2006, o
tweet inaugura um lugar de enunciação que, através de novos rituais enunciativos, proporciona
uma maior possibilidade de escuta, impactando o silenciamento da violência (sem
necessariamente rompê-lo) e dando lugar a processos de ressignificação.
É importante fundamentarmos o que aqui chamamos de “movimento”, para tal
lançaremos mão de Orlandi (2011b), que distingue “movimento social” de “movimento da
sociedade”, sendo este inevitável, parte da materialidade, do real, já aquele diz respeito a
“organizações que se formam, em certos momentos, visando certos objetivos, bem
determinados na sociedade e na história” (p. 4). Assim sendo, consideramos o #metoo como
um movimento da sociedade, pois se constitui de modo espontâneo através de ações no real da
história procurando produzir, através de novos lugares de enunciação, outros espaços sociais.
Já o Movimento fundado por Burke consiste em um movimento social, uma vez que é uma
organização formal com um objetivo estabelecido, acolher crianças e adolescentes em situação
de vulnerabilidade.
É dentro desse cenário de inquietação que esta pesquisa começa a nascer. Num
primeiro momento, a ideia era realizar um estudo sobre a midiatização da violência de gênero
e sobre como a mídia permite a perpetuação dessa violência, através de análises de manchetes
de jornais, notas de desculpas e tweets que retratassem essa violência. Contudo, por fatores
externos, houve uma mudança de foco, que passa a ser o Movimento #metoo e seu levante.
Poderia ele ser um acontecimento discursivo? Temos aqui nossa pergunta de pesquisa que, para
ser respondida, demandou a montagem de um arquivo, dispositivo de AD. O arquivo não é algo
fixo, pré determinado e imutável, e considerar sua materialidade é, segundo Dias (2015, p. 973),
encontrar o momento da interpretação em oposição ao momento da descrição, numa alternância
entre eles como disse Pêcheux (2008, p. 54). Ainda,
[...] a descrição instala o real da língua (equívoco, falha, elipse, etc.), a interpretação
instala o real da história (contradição), um alternando-se ao outro na própria
complexidade do arquivo, tomado em redes de memória, pondo assim em relação
língua e história (DIAS, 2015, p. 973).
Contudo, não estamos falando de uma identificação puramente institucional do
arquivo, o que Guilhaumou e Maldidier (1994) consideram insuficiente para defini-lo, já que
ela diz pouco sobre o funcionamento dos discursos.
[...] O arquivo nunca é dado a priori, e em uma primeira leitura, seu funcionamento é
opaco. [...] o arquivo não é o reflexo passivo de uma realidade institucional, ele é,
dentro de sua materialidade e diversidade, ordenado por sua abrangência social. O
arquivo não é um simples documento no qual se encontram referências; ele permite
18
uma leitura que traz à tona dispositivos e configuração significantes
(GUILHAUMOU; MALDIDIER, 2010, p. 162).
De forma prática, o arquivo foi constituído e se mostrou, nesta pesquisa, como
heterogêneo, constituído de diversos mídium, e marcado justamente pela abrangência social e
uma leitura plural. Com relação à leitura, Pêcheux (1981 apud DIAS, 2015, p. 973) nos alerta
que não há apenas uma maneira de leitura, muito pelo contrário, há uma pluralidade de gestos
de leitura e tampouco trata-se de uma leitura literal, trata-se de “adicionar sistematicamente a
leitura à fragmentação espontânea das sequências para liberar completamente a matéria verbal
[ou não verbal] dos restos de sentido que ainda a aderem [...]”, o que Cristiane Dias (2015, p.
973) explanou como “tirar a leitura de qualquer relação com a evidência”.
O arquivo foi construído por documentários como The Hunting Ground;
Untouchable; Nevertheless; Feministas: o que elas estavam pensando?; Miss Representation;
Rede de abuso, Atleta A e No coração do ouro: o escândalo da seleção americana de ginástica.
Filmes, séries e miniseries: Patriot Act; Jeffrey Epstein: poder e perversão; O homem invisível;
I may destroy you; The Handmaid’s Tale, Inacreditável e Nanette. Além do livro Ela disse.
A partir do arquivo, começamos a seleção dos recortes que iriam figurar no
corpus de análise, composto por (i) um vídeo do canal estadunidense As/Is sobre uma história
de estupro apresentada pela própria vítima, (ii) diversos tweets retirados diretamente de contas
do Twitter de atrizes, ginastas e anônimas e (iii) dois documentários que abordam o julgamento
do médico olímpico Larry Nassar, a fim de elucidar e responder à pergunta de pesquisa.
A decisão de analisar o vídeo This Is My Assault Story #metoo veio após assistir
o vídeo derivado dele, publicado pela página brasileira Quebrando o Tabu no Twitter e
Facebook. Começamos a análise pelo vídeo original, com vistas a compreender seus modos de
significação, dos quais destaca-se a circulação de sentidos, com efeitos nos sentidos produzidos.
A construção da dissertação se deu a partir disso e foi progredindo conforme o próprio material
pedia novos rumos e conceitos.
No percurso desta pesquisa, entendemos que o vídeo This Is My Assault Story
nos permite sustentar uma compreensão da hashtag #metoo enquanto acontecimento
discursivo, conforme o objetivo principal proposto. Situamos, deste modo, a hashtag #metoo
no encontro entre uma memória e uma atualidade, procurando abarcar seu funcionamento
discursivo, ou seja, seus modos de formulação, constituição e, principalmente, circulação, posto
que a circulação tem um lugar privilegiado quando se pensa a produção de sentidos no digital:
[...] a maneira de circular altera o sentido da arte e sua função social. Trata-se de uma
circulação por reprodução. É a circulação que produz mudanças no modo de
19
formulação. [...] Formula-se para circular de maneira produtiva, em quantidade. [...]
o que sustenta a formulação dos dizeres no digital é a sua própria circulação [...]
(DIAS, 2018, p. 34).
Assim, o aqui e o agora da própria circulação não se separam da circunstância
da enunciação no digital. “[...] as formas de circulação e replicação no meio digital são o próprio
aqui e agora, singulares em sua aparição” (DIAS, 2018, p. 34).
Partindo da questão de pesquisa definida para este estudo, traçamos o objetivo
principal, qual seja, compreender a #metoo como um acontecimento discursivo. Tendo em vista
os documentos de arquivo de que dispomos, nossa aposta é que a #metoo possa ser considerada
um acontecimento discursivo posto que, através de novos rituais enunciativos, deslocam-se
cristalizações anteriores possibilitando sentidos outros, por meio de processos que envolvem o
testemunho, o luto e a ressignificação do trauma. Além disso, graças a esses sentidos outros, há
ressignificação de discursos de assédio, o que passa a possibilitar movimentos no
silenciamentos impostos às mulheres há séculos.
Para responder tal pergunta, os capítulos foram estruturados com perguntas
norteadoras que, de certa forma, servem também como objetivos específicos. O primeiro
capítulo busca compreender a #metoo como acontecimento discursivo, apresentando o conceito
não apenas de acontecimento discursivo para Pêcheux, mas também de ritual enunciativo
(ZOPPI-FONTANA, 2002; 2017) e lugar de enunciação (ZOPPI-FONTANA, 2002). Faz-se
também um percurso pelas condições de produção, com exposição e análise do cenário político
dos EUA, dando destaque ao ciberfeminismo e à marcha das mulheres. Neste capítulo, o
objetivo é mostrar como, através de uma organização ciberativista, a #metoo emerge em um
cenário de profundo silenciamento, Hollywood, e pode se configurar como acontecimento
discursivo.
Já no segundo capítulo, pretendemos compreender os modos de construção,
formulação e circulação dos sentidos para a #metoo através de análise do vídeo This is my
assault story #metoo, relato de uma sobrevivente que, interpelada pelo Movimento, passa a
ressignificar sua história e incentiva outras mulheres à ressignificação. Explicamos o
funcionamento tecnológico e discursivo da hashtag e mostramos filiações de memória nos
discursos de sobreviventes e apoiadores do Movimento.
O terceiro e último capítulo visa analisar os modos de transformação do luto da
violência sofrida em luta e resistência, através de testemunhos dados em um julgamento e
abordado em dois documentários distintos, No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção
Americana de Ginástica e Atleta A. E, por fim, os impactos no real da história que o Movimento
20
#metoo causou. Elencamos casos como o da China, que mudou o código civil, incluindo pela
primeira vez em sua história, uma definição para assédio sexual, diretrizes explícitas da não
permissividade de assédio por parte dos empregadores às funcionárias e a possibilidade de
processar por assédio sexual e discriminação de gênero. Outros casos, como Índia, Austrália e
Brasil também serão expostos.
Esta dissertação busca, também, contribuir de maneira sistemática para o campo
da Análise de Discurso mostrando como movimentos ciberativistas podem se constituir como
acontecimentos discursivos. Além disso, acreditamos também que esta pesquisa teve, entre suas
justificativas e relevância, aquilo que é da contribuição política das pesquisas acadêmicas, posto
que há relevância sócio-histórica em tratar de assédio contra as mulheres em um momento que
o Brasil é governado por um presidente, o supremo chefe político da nação, que destila
estereótipos misóginos e faz constantes apologias à violência contra mulher. Não obstante,
buscamos contribuir para os estudos sobre as novas tecnologias de informação, comunicação e
circulação de dizeres no interior da AD, mostrando seu funcionamento discursivo e relevância
sócio-histórica, sendo terreno fértil para futuras análises uma vez que cada dia se renovam tais
tecnologias.
21
1 O ACONTECIMENTO #METOO E OS NOVOS RITUAIS ENUNCIATIVOS
There are mountains growing beneath our feet that
cannot be contained
All we’ve endured has prepared us for this
Bring your hammers and fists, we have a glass
ceiling to shatter
Rupi Kaur 6
Os movimentos sociais têm ganhado força na atualidade graças, principalmente,
à sua circulação no ciberespaço e às novas relações com o tempo e com o espaço por ele
possibilitadas. Segundo Costa (2018), o movimento feminista ou ciberfeminismo vem se
apropriando das ferramentas virtuais disponíveis, entre elas da hashtag, definida por Paveau
(2017) como uma tecnopalavra que estabelece pontos de ancoragem do debate público sobre
determinado tema. Para Paveau, a hashtag pode ser compreendida enquanto
[...] segmento de linguagem precedido do símbolo #, utilizado originalmente na rede
Twitter, mas adaptado a outras plataformas, como o Facebook. Essa associação faz
com que se torne uma tag clicável, inserida manualmente no Twitter que permite
acessar um fio que reúne o conjunto dos enunciados que contém a hashtag [...]
(PAVEAU, 2017, p. 196).
O ciberespaço funciona como amplificador das causas debatidas offline; ele
possibilita a circulação de sentidos e a proliferação das manifestações relacionadas aos
movimentos sociais. Para Costa (2018), o ciberativismo, definido como “processos de
adaptação dos movimentos sociais às novas tecnologias”, tem contribuído na divulgação das
causas sociais, políticas, econômicas e, sobretudo, “na própria determinação destes movimentos
reivindicatórios” (p. 40).
O combate ao assédio faz parte da agenda feminista há tempos, acompanhado de
questões acerca do corpo feminino (liberdade de escolha, direitos reprodutivos, discriminação,
aborto etc.), cidadania, gênero, disparidades e luta por equidade no mercado de trabalho,
desigualdade na educação, trabalho doméstico e, claro, violência contra a mulher e de gênero.
6
tem montanhas que crescem / debaixo do nosso pé / isso ninguém controla /tudo que enfrentamos / nos preparou
para esse momento / venham com martelos e punhos / temos um teto de vidro a quebrar
(- vamos arrancar esse telhado. Rupi Kaur. O que o sol faz com as flores, p. 262)
22
Ao trabalharmos, neste estudo, com o assédio e a violência sexual discursivizados por meio da
#metoo, colocamos em evidência um movimento cuja história se inicia anos antes do tweet de
Alyssa Milano, embora ele tenha configurado novos modos de formulação e circulação
possibilitados, principalmente, pelo funcionamento do digital.
Partindo deste ponto, dedicamos este capítulo à problematização da #metoo
como um acontecimento discursivo. Interessa-nos investigar se esse movimento integra um
acontecimento midiático ou se ele pode também ser considerado um acontecimento discursivo.
Tentamos aqui cunhar o termo acontecimento midiático, a partir do “acontecimento
jornalístico” explorado por Dela-Silva,
[...] um fato, uma ocorrência no mundo; mas um fato que gera uma notícia, que por
sua relevância perante a avaliação dos jornalistas do que se constitui como interesse
público, merece estar presente nas edições diárias dos noticiários impressos ou
eletrônicos. Trata-se de um acontecimento enquanto referente, com uma existência
material no mundo; um acontecimento enquanto um fato que se inscreve na história
do dia-a-dia, que o jornal e os jornalistas se propõem a escrever (DELA-SILVA, 2008,
p. 27).
E ainda
Os meios de comunicação gozam do poder e detêm espaço privilegiado para interpelar
sujeitos através da circulação de seus discursos pelos jornais, pela TV, mesmo pelas
novas mídias digitais, produzindo sentidos fortes o suficiente para que, também,
orientem a política (ALMEIDA; AMARAL, 2020, p. 451).
Entendemos assim, que os meios de comunicação, a mídia, têm a capacidade e
o espaço que orientam o político, não somente a política, e podem estar diretamente
relacionados ao texto de Hanisch (1969), “O pessoal é político”, em que a autora postula que
determinadas ocorrências da espera pessoal devem ser colocadas numa esfera mais ampla, na
midiática. Segundo Guimarães (2001, p. 14 apud DELA SILVA, 2008, p. 16) “o acontecimento,
enquanto acontecimento para a mídia, diz respeito a uma relação da mídia, a partir da qual ela
enuncia, com os eventos do mundo social e político”. Os acontecimentos midiáticos são,
portanto, aqueles acontecimentos mais amplos, não necessariamente jornalísticos, aqueles que
ocorrem na mídia, acontecimentos de grande impacto, com massiva veiculação, extensa
duração e, porque não, extenso alcance. São aqueles que transitam entre os diferentes suportes
midiáticos, encontrando eco neles para reverberarem. Contudo, os efeitos de sentidos são muito
próximos aos do acontecimento jornalístico, como efeito de realidade, efeito de verdade,
universalidade, observação e denúncia da realidade social.
Nesta direção, apresentaremos, nas páginas que se seguem, um percurso teórico
23
de compreensão da relação entre memória e acontecimento nos processos de significação, ou
seja, colocamos em pauta sentidos que atualizam modos de dizer a violência, inaugurando
rituais enunciativos e lugares de enunciação até então impossibilitados por uma história
machista e patriarcal de opressão e violência às mulheres.
Para tanto, mobilizamos teoria e análise conjuntamente, embora não de forma
indistinta. Isso porque a própria especificidade da AD é ser uma disciplina analítica, de
interpretação, cujos conceitos e noções não comportam uma aplicabilidade. Segundo Orlandi
(2007a), a AD é uma disciplina de entremeio não positiva, ou seja, ela não acumula
conhecimentos, posto que discute constantemente seus pressupostos. Trabalhando no entremeio
da Linguística, da Psicanálise e do Materialismo histórico, campos aos quais Pêcheux recorreu
para elaborar sua teoria dos processos de significação, a AD se interessa pela linguagem tomada
como prática, na relação com a historicidade. As análises comparecem no texto visando os
objetivos de pesquisa e podem permitir uma leitura mais fluida e uma compreensão mais apurada
da discursividade ora investigada.
Como ser de linguagem, constituído pelo simbólico, o homem não é indiferente
aos processos de significação por meio dos quais ele se significa e significa o mundo. Para
Orlandi:
Como os sentidos não são indiferentes à matéria significante, a relação do homem
com os sentidos se exerce em diferentes materialidades, em processos de significação
diversos: pintura, imagem, música, escrita, etc. a matéria significante e/ou a sua
percepção – afeta o gesto de interpretação, dá uma forma a ele (ORLANDI, 2007a, p.
12).
Isso quer dizer que os sujeitos se significam também pelo gesto de compartilhar
uma história de abuso por meio de um tweet. Ao analisarmos nossos objetos simbólicos,
produzimos gestos de análise que visam a compreensão de como eles funcionam produzindo
sentidos e sujeitos, na relação com a língua e a historicidade. A língua tem aí um lugar
privilegiado uma vez que, segundo Orlandi (2012, p. 83 – grifos meus), “a materialidade
específica da ideologia é o discurso e a materialidade específica do discurso é a língua.”.
Em uma nota de rodapé presente em Discurso em Análise, a autora explica a
utilização da palavra “específica”. Segundo ela, não se deve reduzir o discurso apenas a
materialidade da língua, “tampouco se pode reduzir a importância, dada à língua, como
materialidade específica de efeitos de sentidos dos processos discursivos” (ORLANDI, 2012,
p. 83). Ela remete à Pêcheux (2008) e ao enunciado “on a gagné”, que se desloca do político
para o esportivo e “reverte em materialidades significantes diferentes entonações”, ou seja,
24
remete-se à língua no conjunto das condições materiais básicas para desdobramentos dos
processos discursivos (ORLANDI, 2012).
Ainda segundo Orlandi (2007a, p. 28), “do ponto de vista discursivo, sujeito e
sentido não podem ser tratados como já existentes em si, como a priori, pois é pelo efeito
ideológico elementar que eles funcionam, como se eles estivessem sempre lá”. Além disso, a
AD vai reunir “essa forma de conhecimento em que se inscreve na relação do mundo com a
linguagem a noção de ideologia [...] como condição para essa relação”, através da noção de
discurso (ORLANDI, 2007a, p. 28).
De maneira geral, podemos considerar que, em seus processos discursivos, as
hashtags demonstram movimentos de identificação e/ou contraidentificação dos sujeitos que
constituem posições subjetivas frente à violência. Postulamos que cada nova utilização da
#metoo nos apresenta uma função-autor 7 constitutiva do gesto interpretativo, que deriva de uma
relação com a memória. O que faz do sujeito “uma posição na filiação de sentidos, nas relações
de sentidos que vão se constituindo historicamente e que vão formando redes que constituem a
possibilidade de interpretação” (ORLANDI, 2007a, p. 15). Ou seja, ao mobilizar formulações
utilizando a hashtag, o sujeito inscreve uma posição-sujeito, coloca-se na origem dos dizeres
que enuncia.
1.1 A #METOO ENTRE MEMÓRIAS E SILENCIAMENTOS
A AD trabalha com o linguístico e com o ideológico no processo de
produção/interpretação do sujeito e dos sentidos que o significam e que ele significa. Nessa
perspectiva, o sujeito não é um indivíduo corpóreo, empírico, é um lugar de significação
ideologicamente constituído, uma posição-sujeito, isto é, um sujeito que se materializa no
entrecruzamento de diferentes discursos e se manifesta no texto pela relação a uma formação
discursiva (PÊCHEUX, 1997a apud MARQUEZAN, 2008, p. 467). As formações discursivas,
para Pêcheux e Fuchs:
determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um
sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.), a partir de uma
dada posição em uma conjuntura; dito de outra forma, em uma certa relação de
7
Segundo Orlandi (2008, [n.p.]), “a função autor se dá quando o sujeito se coloca – no imaginário constituído pelo
que Michel Pêcheux (1975) chama ‘esquecimento número 1’ – na origem do que diz. Este gesto o constitui em
autor ao mesmo tempo em que constitui o texto como unidade de sentidos em relação à situação.”
25
lugares no interior de um aparelho ideológico e inscrito em uma relação de classes.
Diremos daqui por diante que toda formação discursiva depende de condições de
produção específicas, identificáveis a partir do que acabamos de expor (PÊCHEUX;
FUCHS, 1975, p. 11 apud COURTINE, 2020, p. 61).
O sujeito em AD é interpelado pelo ideológico, pelo simbólico e precisa se
submeter à língua para ser sujeito; é no processo de identificação com os sentidos de uma
formação discursiva que sentidos e sujeitos se constituem. A língua, por sua vez, irá inscreverse
na história para significar, o que acaba por constituir a materialidade discursiva, que é
linguístico-histórica (ORLANDI, 1999, p. 60-61).
Se pensarmos discursivamente, sentidos e sujeitos têm sua materialidade, e faz parte
da materialidade do sujeito a inscrição de seu corpo em seu processo de significação,
em sua constituição, do sujeito e do corpo. E esta inscrição se dá, como resultado do
modo como o sujeito, tendo sido constituído pela interpelação ideológica, é
individuado e se identifica ao se inscrever em uma formação discursiva e não outra
(ORLANDI, 2014, p. 7).
Portanto, o sujeito aqui apresentado é, ainda segundo Orlandi (1999), o resultado
de processos de identificação e individuação, constituído ao mesmo tempo que o sentido, “na
articulação da língua com a história, em que entram o imaginário e a ideologia” (p. 11).
Ainda, no campo teórico da AD, trabalhamos com a memória discursiva ou
interdiscurso. Orlandi (1999, p. 64) explica que “A memória – o interdiscurso, como definimos
na análise de discurso – é o saber discursivo que faz com que, ao falarmos, nossas palavras
façam sentido. Ela se constitui pelo já-dito que possibilita todo dizer.” Segundo a autora, a
memória está sujeita a falhas, silenciamentos, apagamentos, equívocos, regularizações e
censuras. Já o esquecimento é constitutivo da memória. Aliás, Orlandi destaca, tendo em vista
as teorizações de Pêcheux, que a memória discursiva
[...] é estruturada pelo esquecimento. É quando esquecemos como um sentido se
constituiu em nós que ele passa a produzir seus efeitos, entre eles, o principal, de que
estes sentidos, quando falamos, nascem em nós, quando, na realidade para significar
é preciso que as palavras, expressões, proposições já signifiquem (ORLANDI, 2014,
p. 6).
Consideramos que a hashtag #metoo apresenta a capacidade de conferir ao quadro
da história a força da memória, constituindo um registro da relação social e histórica. Seu
funcionamento tem consequências no que diz respeito à memória histórica e à memória social,
atreladas à memória constitutiva do digital da qual trataremos mais adiante; neste estudo,
procuramos sustentar que a hashtag constitui um acontecimento que desestabiliza processos de
26
significação da violência sofrida por mulheres, pois possibilita a inscrição do sujeito em posições
de denúncia, rompendo com o silenciamento historicamente imposto.
Com efeito, não é possível falar de memória sem falar de silêncios, silenciamentos,
esquecimentos, não-ditos, sentidos interditados, etc. Para Orlandi (1999, p. 61-62) “falar é esquecer.
Esquecer para que surjam novos sentidos, mas também esquecer para apagar os novos sentidos que
já foram possíveis, mas foram estancados em um processo histórico-político silenciador. São
sentidos que são evitados, de-significados”. Sentidos de-significados são, portanto, aqueles que
deixaram de significar, que foram silenciados na memória, “Está fora da memória, como uma sua
margem que nos aprisiona nos limites desses sentidos. O que está fora da memória não está nem
esquecido nem foi trabalhado, metaforizado, transferido” (ORLANDI, 1999, p. 66). Esse lugar
de de-significação não é um vazio, é um espaço que vai sendo preenchido por um discurso que
naturaliza práticas violentas. Temos aqui também o que Orlandi nomeia como faltas e não falhas,
discursos silenciados que não fazem sentido, “colocando fora do discurso o que poderia ser
significado a partir deles e do esquecimento produzido por eles para que novos sentidos aí
significassem” (ORLANDI, 1999, p. 65). Ou seja, são aqueles sentidos que foram silenciados e
ocasionam furos na memória, causados por interdição, precisamente o que ocorre nos processos
de silenciamento da violência e que, por meio da #metoo, encontra uma maneira de se resignificar.
Uma vez que os sentidos não são únicos e nem exclusivos, quando o dito é
repetido ele pode, ao mesmo tempo, produzir novos sentidos por efeito das condições de
produção. Tal noção de repetição/renovação, segundo Marquezan (2008, p. 468), é empregada
no nível discursivo porque considera as suas condições sócio-históricas e ideológicas de
produção. Assim, todo discurso é produto de uma memória, de uma retomada e atualização,
tornando a estruturação de um dizer uma questão social e histórica, fazendo com que os sentidos
produzidos sejam produzidos na/pela circulação social. A própria estruturação discursiva vai
produzir a materialidade dessa memória. Os discursos, assim, funcionam a partir de uma
memória discursiva.
Como dissemos previamente, os discursos são constituídos também de silêncios
e silenciamentos, assim, é preciso especificar o que entendemos como silêncio. Orlandi (2007b)
postula que, como no discurso sujeito e sentido se constituem concomitantemente, o silêncio, a
não possibilidade de dizer, a interdição de sentidos em detrimento de outros, “proíbe ao sujeito
ocupar certos ‘lugares’, ou melhor, proíbem-se certas ‘posições’ do sujeito” (p. 76). Silêncios,
silenciamentos são os não-ditos necessariamente excluídos. Os sentidos que se querem evitar,
as denúncias, por exemplo, que poderiam instaurar sentidos outros, são interditados.
27
1.1.1 Filiações de memória acerca do movimento #metoo
Apesar de se utilizar do mote metoo, não é Alyssa Milano que o cria, tendo ele
já sido usado anteriormente para nomear uma instituição que acolhe meninas abusadas. A
história remonta ao ano de 1997, quando a ativista negra Tarana Burke ouviu relatos de uma
menina negra de 13 anos que fora abusada sexualmente pelo namorado da mãe e, na ocasião,
não soube como reagir. Passada quase uma década, sem esquecer o caso, Burke continuava
arrependida de não ter dito “eu também” (me too) naquele momento, sendo ela própria
sobrevivente de abuso sexual. Em 2006, fundou a Just Be Inc., uma organização sem fins
lucrativos que ajuda meninas em situação de risco de 12 a 18 anos vítimas de abuso sexual e
estupro. Assim, numa tentativa de criar um movimento de empatia entre as vítimas de assédio,
Burke passou a utilizar o mote Me Too. A organização passou a ser ponto de acolhimento para
essas meninas e mulheres, embora não fosse mundialmente conhecida, o que iria mudar mais
de uma década depois.
Em 5 de outubro de 2017, as jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey do New
York Times expuseram anos de assédio cometidos pelo então poderoso produtor hollywoodiano
Harvey Weinstein. Após uma delicada e longa pesquisa, as jornalistas conseguiram finalmente
revelar não somente os casos de assédio, mas a maneira como, através de advogados poderosos,
ameaças e artifícios dignos de um filme hollywoodiano, o produtor foi capaz de comprar e
manter o silêncio de suas vítimas por anos.
Dezenas de mulheres acusavam o produtor de diversos crimes sexuais, entre eles,
obriga-las a massageá-lo e vê-lo nu, fazer o “teste do sofá” 8 , fazer sexo e, também, de estupralas
em troca de impulsionar suas carreiras. Comprovou-se com acordos judiciais, entrevistas,
memorandos e e-mails cerca de três décadas de abuso cometido pelo produtor e uma onda de
denúncias foi criada, não somente contra o magnata, mas contra várias celebridades e pessoas
em cargos de chefia que usavam dessas posições para “ganharem e concederem favores”.
Fotógrafos, cineastas, CEOs, músicos, celebridades, ninguém mais estava imune às denúncias.
Várias mulheres se posicionaram condenando as atitudes denunciadas e
8
O teste do sofá é um conhecido eufemismo para a troca de favores sexuais entre uma pessoa em condição
aspirante, aprendiz ou subordinado, e alguém que lhe seja hierarquicamente superior. Segundo Melissa Hope
Ditmore, em A Enciclopédia da Prostituição e profissionais do sexo, “Hollywood distorce ainda mais a noção do
‘teste de sofá’, o lugar onde mulheres trocam sexo por papéis em filmes ou trabalhos como modelos. Atrizes e
modelos são acusadas de terem feito o teste do sofá quando, de fato, não o fizeram e, em contra partida, mulheres
que não se consideravam prostitutas, de fato dormiram com diretores e produtores para avançarem suas carreiras”
(2006, p. 260 – tradução minha).
28
inúmeras famosas, como Gwyneth Paltrow e Angelina Jolie, relataram seus casos de abuso
sofridos nas mãos do produtor hollywoodiano ainda no início de suas carreiras.
A reportagem publicada no New York Times foi apenas a ponta do iceberg.
Lançado em setembro de 2019, o livro “Ela disse”, das mesmas jornalistas, mostra a dura
trajetória para conseguirem as entrevistas de atrizes e mulheres que haviam sofrido na mão do
produtor. A trama parece de filme, envolvendo segredos, encontros em bares distantes e
escuros, empresas internacionais usadas para vigiar as envolvidas, atores contratados para tentar
descobrir o que o jornal já tinha, jornalistas sendo perseguidas e vítimas silenciadas. Contudo,
é preciso observar que há um apagamento da história original do metoo quando Hollywood se
apropria do mote, principalmente em se tratando da questão racial, uma vez que, no primeiro
momento, quem o cria e o utiliza é a ativista negra Tarana Burke. Com a apropriação
hollywoodiana o movimento se torna, em sua maioria, branco.
A apropriação do mote por Milano faz parecer que a campanha se deu de forma
espontânea e se originou na atriz, além de adicionar para a invisibilização das mulheres negras
por não assinalar que o mote foi criado por uma mulher negra que anos antes fundara uma ONG
para combater o assédio e ajudar sobreviventes. Pode-se observar o apagamento de Burke na
capa da revista Time (Fig. 01), que apresenta apenas uma mulher negra, a lobista Adama Iwu –
em primeiro plano cercada de brancas. Essa prática é o que Stephanie Ribeiro chama de uma
“ilha cercada de brancos”. A jornalista também alerta para o protagonismo de mulheres que já
foram conhecidamente racistas em outras ocasiões, como Taylor Swift.
Quando estou diante daquela capa, só penso nas inúmeras vezes que até mesmos
feministas, por serem brancas, me usaram de objeto para suas campanhas e circulação
de seus projetos, mas nunca estiveram do meu lado na luta no combate antirracista.
Mesmo que o assédio para mulheres negras esteja também relacionado com o racismo,
afinal não é só mero destino negras jovens terem 3 vezes mais chances de serem
estupradas no Brasil. É racismo e machismo (RIBEIRO, 2017, [n.p.]).
Essa prática é comum na branquitude,
[...] um local de vantagem estrutural, de privilégio racial. Além disso, é um "ponto de
vista", um lugar do qual as pessoas brancas olham para nós mesmos, para os outros e
para a sociedade. Ainda, ‘Branquitude’ refere-se a um conjunto de práticas culturais
que são geralmente invisíveis e anônimas (FRANKENBERG, 1993, p. 1 apud
DIANGELO, 2018, p. 39).
É preciso destacar que, quando o movimento foi criado por Burke, seu intuito
era lidar com “mulheres de minorias étnicas, frequentemente em posições desprivilegiadas nas
sociedades e cujas vozes são historicamente invisibilizadas”, pretendendo fornecer um “um
29
espaço seguro de partilha de histórias, com o objetivo final da necessária transformação dos
valores culturais que permitem que situações de assédio continuem a ser aceitáveis”
(ALMEIDA, 2019, p. 5). As mulheres negras experienciam uma forma interseccional de
opressão estrutural que sobrepõe efeitos tanto racistas quando sexistas. (BROCK, KVASNY,
HALES, 2010; CRESNSHAW, 2017 apud SOBANDE, FEARFULL, BROWNLIE, 2019, p.
413). Assim, “a apropriação cultural reflete uma estrutura racista que não permite acesso e
visibilidade a grupos inferiorizados e, mais grave, promove muitas vezes o silenciamento ou
apagamento de suas manifestações, esvaziando de significados os elementos de sua tradição”
(RODNEY, 2019, p. 54). No caso do #metoo, não há somente um esvaziamento de significados,
mas também um preenchimento de significados outros, que tiram as minorias étnicas do
protagonismo, substituindo-as por mulheres brancas, famosas e heterossexuais.
Figura 1 – capa da revista Time de 2017
Fonte: Time, 2017 9 .
9
Disponível em: https://time.com/5793798/the-silence-breakers-100-women-of-the-year/. Acesso em: 16 jan.
2021.
30
A capa consiste em cinco mulheres, todas vestidas de preto. Cinco mulheres que
têm marcadores discursivos e corpóreos que se interseccionam 10 : mulheres (denunciantes e
sobreviventes), sendo quatro mulheres brancas e uma negra. Contudo, considerando o histórico
social colonial em que estamos, encontrar uma mulher negra, mesmo que em posição de poder
como ocupa Adama Iwu, ainda é destoante e causa surpresa. Não só por ser maioria étnica e
minoria na representatividade, mas por carregar em si uma representação de opressão e não
padronagem, uma vez que o padrão eurocêntrico cria a expectativa de ver representada na capa
uma hegemonia branca, cisheteropatriarcal (AKOTIRENE, 2019).
Em primeiro plano, a diretora Sênior de relações locais e governamentais da
Visa, Adama Iwu, que foi assediada sexualmente por um colega de trabalho num evento político
em Sacramento e, como forma de lidar com a situação, informou seus chefes e enviou uma carta
para o Los Angeles Times com 147 assinaturas. Junto de colegas, ela fundou We said Enough,
uma plataforma que angaria fundos para vítimas e sobreviventes, além de prover
aconselhamento legal gratuito.
Na linha acima de Adama, temos à esquerda Isabel Pascual, um pseudônimo,
mulher mexicana que trabalha colhendo morangos, foi perseguida e abusada, além de ter o filho
ameaçado caso falasse sobre o assunto. À direita, Susan Fowler, antiga engenheira da Uber, que
expôs em seu blog como foi assediada e teve o RH da empresa se recusando a tomar
providências contra seu antigo gerente que constantemente fazia propostas sexuais a ela.
Por fim, temos a atriz estadunidense Ashley Judd, famosa por filmes como Risco
Duplo e Beijos que Matam, vítima de investidas do magnata Harvey Weinstein, tendo perdido
um papel na trilogia mundialmente famosa O Senhor dos Anéis. A atriz nunca se calou e foi
uma das primeiras a relatar os encontros com o produtor para o The New York Times. E a cantora
pop Taylor Swift, que denunciou o DJ David Muller de uma rádio de Denver por ter colocado
a mão dentro de sua saia e pegado sua bunda. O DJ entrou com processo contra a cantora e o
julgamento teve perguntas como “como você se sentiu?”, “você se sentiu mal por ele ter sido
demitido?”, o que fez com Swift se sentisse ainda mais indignada e passasse a falar
publicamente sobre o acontecido.
O nome de Burke não é nem ao menos mencionado na reportagem introdutória
10
“A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do
racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado - produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são
repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais.
Segundo Kimberlé Crenshaw, a interseccionalidade permite-nos enxergar a colisão das estruturas, a interação
simultânea das avenidas identitárias, além do fracasso do feminismo em contemplar mulheres negras, já que
reproduz o racismo. Igualmente, o movimento negro falha pelo caráter machista, oferece ferramentas
metodológicas reservadas às experiências apenas do homem negro” (AKOTIRENE, 2019, p. 14).
31
do vídeo que acompanha a capa 11 . No vídeo promocional da edição, Tarana aparece após 3:30
e 4:30 e fala por aproximadamente 7s cada vez. Na reportagem oficial da revista 12 , aparece em
uma das fotos e sua história é contada brevemente, sem ocupar ao menos um parágrafo inteiro.
É revelado que a amiga de Milano tirou um print do mote de Burke e o enviou para a atriz, sem
dar detalhes de onde a frase estaria. Há sim participação de mulheres negras de Hollywood no
movimento, como Oprah Winfrey, Kerry Washington e Viola Davis. Além de outras mulheres
que representam minorias, como Sandra Oh (asiática), Priyanka Chopra (indiana), Penelope
Cruz (espanhola), Karla Souza (mexicana), Eva Longoria (mexicana), entre outras. Contudo,
mulheres negras nos EUA sofrem mais violência que as brancas, sendo 40% das sobreviventes
de tráfico sexual. De todas as mulheres negras nos EUA, 20% são vítimas de estupro e 30% das
que sofreram abuso na infância apresentam história de estupro quando adultas. Mulheres
Negras são 2,5 vezes mais prováveis de serem assassinadas por homens. E mais de 9 em 10
mulheres assassinadas em 2015 conheciam seu assassino (THE NATIONAL CENTER ON
VIOLENCE AGAINST WOMEN IN THE BLACK COMMUNITY, 2018).
No Brasil os índices se assemelham, sendo as mulheres negras 66,6% dos casos
de feminicídios de 2020 (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020), 50,9%
dos casos violência sexual (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019),
32% dos casos de assédio (31% são pardas) (DEDIHC, 2017). E ainda assim são minoria em
questão de representatividade, ponto que o Movimento #metoo falhou em problematizar, e
acabou por ratificar, o apagamento histórico das mulheres negras.
No entanto, não foi possível calar as jornalistas ou impedir as reportagens que
viriam a seguir, como a de Ronan Farrow para a revista New Yorker, em 10 de outubro do
mesmo ano. Intitulada “De propostas agressivas a assédio sexual: as acusadoras de Harvey
Weinstein contam suas histórias” 13 , a matéria conta os tipos apurados de histórias, de atrizes,
assistentes e pessoas ao redor do magnata, além de três mulheres que detalhadamente
descreveram seus encontros, expondo os horrores sofridos e suas consequências. Nota-se que
em crimes de abuso sexual, importunação sexual e assédio sexual 14 , a própria mulher é a prova,
11
Disponível em: https://time.com/5793798/the-silence-breakers-100-women-of-the-year/. Acesso em: 20 mai.
2019.
12
Disponível em: https://time.com/time-person-of-the-year-2017-silence-breakers/. Acesso em: 18 abr. 2019.
13
Tradução livre. Título original “From Aggressive Overtures to Sexual Assault: Harvey Weinstein’s Accusers
Tell Their Stories”. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/news-desk/from-aggressive-overtures-tosexual-assault-harvey-weinsteins-accusers-tell-their-stories.
Acesso em: 15 jun. 2019.
14
Violência sexual ou abuso sexual não se configura apenas como estupro, mas pode ser: induzir a vítima a
comercializar ou utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade; impedir de usar qualquer método contraceptivo;
forçar, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação, matrimônio, gravidez, aborto ou prostituição;
limitar ou anular o exercício de direitos sexuais e reprodutivos da mulher; e provocar aborto sem o consentimento
32
no entanto, ela acaba tendo que prover outras provas, fazendo exame de corpo de delito,
apresentado testemunhas, vídeos, fotos, prints, qualquer coisa que não apenas sua palavra, que
geralmente não é ouvida e nem tida como crível.
As reportagens passaram a circular e ganhar notoriedade internacionalmente, até
que, em 12 de outubro de 2017, a atriz americana Rose McGowan postou um tweet misterioso
que parecia apontar o produtor como seu estuprador. Lia-se: “Eu disse ao presidente do
estúdio 15 que HW havia me estuprado. Eu disse, de novo e de novo. Ele disse que não havia
sido provado. Eu disse que eu era a prova.” 16 Podemos perceber que o lugar de enunciação da
mulher é silenciado e marcado pelo descaso; a formulação “eu disse, de novo e de novo”, dá a
ver que não adiantou denunciar apenas uma vez, foi preciso repetir inúmeras vezes e mesmo
assim ela não foi ouvida. Não há legitimidade nesse lugar de enunciação, somente
silenciamento e interdições 17 .
Interpelada pela reportagem, três dias depois, a atriz Alyssa Milano pede em sua
conta pessoal do Twtitter que todos aqueles que já haviam sido assediados ou abusados
sexualmente respondessem usando a hashtag #metoo (Fig.2). Uma amiga da atriz a interroga
“se todas as mulheres que já foram sexualmente assediadas ou abusadas escrevessem “eu
também” em seus status, nós poderíamos dar uma ideia da magnitude do problema às pessoas”.
No dia seguinte o tweet já contava com mais de 30 mil pessoas usando a hashtag. A postagem
contava com 63,4 mil respostas, 22,6 mil compartilhamentos e 50,9 mil curtidas. 18 . A atriz
da gestante. (FEITOSA, Bianca Lisboa. Isso é violência sexual! 27 nov. 2020. Instagram @biancalisboafeitosa.
Disponível em: https://www.instagram.com/p/CIGaUsAB1GM/. Acesso em: 22 jan. 2021).
Importunação sexual se configura por meio da prática de atos libidinosos na presença de alguém e sem o seu
consentimento com o objetivo de satisfazer o próprio prazer sexual ou o de terceiros. Esse crime segue os mesmos
traços do crime de assédio sexual, entretanto, nesse tipo penal não se tem a hierarquia entre o agressor e a vítima.
Também é importante destacar que nesse crime, não se força com violência ou ameaça a vítima a participar do ato
libidinoso. (FEITOSA, Bianca Lisboa. O que é importunação sexual?? 10 dez. 2020. Instagram
@biancalisboafeitosa. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CInjTIOh6kk/. Acesso em: 22 jan. 2021).
O assédio sexual se configura através do constrangimento à vítima, por parte de um superior hierárquico, para
obter favorecimentos sexuais. O agente pode usar de sua posição para obter tais vantagens sexuais insinuando
melhores cargos e privilégios no emprego e, da mesma forma, caso a vítima não aceite as investidas, o agressor
também pode impedir que a vítima alcance seus objetivos profissionais. (FEITOSA, Bianca Lisboa. O que é
assédio sexual??? 9 dez. 2020. Instagram @biancalisboafeitosa. Disponível em:
https://www.instagram.com/p/CImHPd9h740/. Acesso em: 22 jan. 2021).
15
A atriz se refere ao estúdio Amazon.
16
Tradução livre. Tweet original: “I told the head of your studio that HW raped me. Over & over I said it. He said
it hadn’t been proven. I said I was the proof.” O tweet original não pode ser encontrado, tendo sido apagado,
apresentamos aqui a transcrição conseguida na internet.
17
A conceituada revista norte-americana Time elegeu como personalidade do ano de 2017 “The Silence Breakers”
(os quebradores do silêncio, em tradução livre), uma denominação da revista às pessoas que, naquele ano,
incentivados pelo levante do Movimento #metoo, denunciaram inúmeros casos de assédio sexual no ambiente de
trabalho e fora dele, quebrando um silêncio por vezes de anos, um exemplo de como movimentos da sociedade
podem ultrapassar as fronteiras do digital.
18
Dado da postagem em fevereiro de 2020.
33
relata que caiu no choro 19 , o que nos mostra o que ter sua fala e existência reconhecidas pode
fazer.
Figura 2 – Tweet de Alyssa Milano
Fonte: Twitter pessoal da atriz, 2017 20 .
Segundo Butler, “O #MeToo é, está bem claro, uma impressionante série de
histórias que apontam para a estrutura generalizada de discriminação, assédio e agressão”
(BUTLER, 2020, [n.p]). É possível, através da leitura dos relatos, acompanhar uma construção
sistêmica e muito bem desenhada e delimitada de séculos de opressão à mulher e ao feminino,
marcada pelos mais diferentes tipos de violências. Violências essas que podem ser de cunho
verbal, psicológico ou até mesmo sexual, que durante todo esse tempo calou e negou às vítimas
o reconhecimento/validação da própria história.
1.2 O ACONTECIMENTO #METOO E A EMERGÊNCIA DE NOVOS RITUAIS
ENUNCIATIVOS
Consideramos que a fala de Alyssa Milano inaugura um lugar de enunciação
19
Reportagem da TIME – Person of the year 2017 – The Silence Breakers. Disponível em: https://time.com/timeperson-of-the-year-2017-silence-breakers/.
Acesso em: 18 mar. 2020.
20
Disponível em: https://twitter.com/alyssa_milano/status/919659438700670976. Acesso em: 13 jun. 2019.
34
(ZOPPI-FONTANA, 2017), ao convocar todas aquelas que já passaram por situações de assédio
no passado, e que se mobilizam, por meio de processos de identificação, para contar suas
histórias. Tal lugar de enunciação desloca pré-construídos por atualizar uma memória de
assédio sexual sofrido por mulheres há anos, memória estabilizada historicamente por meio de
práticas sexistas, racistas e misóginas, e que encontram formas para serem finalmente
enunciadas.
Interpretamos a #metoo como um acontecimento que interpela o leitor a ocupar
uma posição de contraidentificação com a ideologia machista e denunciar a violência. Em Papel
da Memória (1999), Pêcheux coloca o acontecimento como descontinuidade da memória que
seria eternizada através do interdiscurso, nascendo do choque da atualidade com a memória que
não produz repetição, mas sim ressignificação. A regularização discursiva, tentada pela
memória, é passível de
ruir sob o peso do acontecimento discursivo novo, que vem perturbar a memória: a
memória tende a absorver o acontecimento, [...] mas o acontecimento discursivo,
provocando interrupção, pode desmanchar essa ‘regularização’ e produzir
retrospectivamente uma outra série sob a primeira, desmascarar o aparecimento de
uma nova série que não estava constituída enquanto tal que é assim o produto do
acontecimento; o acontecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos
associados ao sistema de regularização anterior (PÊCHEUX, 1999, p. 52).
O acontecimento discursivo é aquele que irrompe das cristalizações e ganha
contornos e sentidos outros, absorvendo os anteriores, através de ressignificações,
deslizamentos. Assim, Pêcheux situa o acontecimento discursivo “no ponto de encontro de uma
atualidade e uma memória”, colocando-o em relação com “[...] (o fato novo, as cifras, as
primeiras declarações) em seu contexto de atualidade e no espaço de memória que ele convoca
e que já começa a reorganizar [...]” (PÊCHEUX, 2008, p. 17-19).
Segundo Guilhamou e Maldidier (1993, p. 166) o acontecimento discursivo [...]
“é apreendido na consistência de enunciados que se entrecruzam em um momento dado”. Ou
seja, é o lugar de convergência de uma memória e uma atualidade a partir da qual se
reestruturam as práticas discursivas (GARCIA e SOUSA, 2015, p. 51). Para Orlandi (2014, p.
3), o acontecimento nos mostra que “há sempre (outros) sentidos possíveis”, o acontecimento
não para nunca de “produzir sentidos”.
Nesta direção, a #metoo inaugura um “lugar de enunciação” (ZOPPI-
FONTANA, 1997) para dizer da violência vivenciada, com efeitos sociais importantes. Para
Zoppi-Fontana, o acontecimento discursivo funciona na quebra de rituais enunciativos:
a ruptura de uma prática discursiva pela transformação dos rituais enunciativos que a
35
definem; a interrupção de um processo de reformulação parafrástica de sentidos pela
mudança das condições de produção; enfim, a emergência de um enunciado ou de
uma posição enunciativa novos que reconfiguram o discurso, e através deste
participam do processo de produção do real histórico (ZOPPI-FONTANA, 1997, p.
51).
Desse modo, interpretamos a hashtag como acontecimento que dá a ver
transformações dos rituais enunciativos; nas atuais condições de produção dos discursos, ela
possibilita a sujeitos historicamente silenciados ocuparem posições de denúncia da violência.
O digital, em sua articulação com as condições históricas, permite às mulheres emanciparemse
da ideologia patriarcal, inaugurando rituais enunciativos improváveis há 20 anos. Nesta
direção, o caso da roteirista estadunidense Amaani Lyle é modelar, pois escancara o
funcionamento da ideologia patriarcal e machista e suas práticas de silenciamento. Ela se
tornaria a primeira mulher negra roteirista a integrar uma sitcom 21 mundialmente famosa, se
não tivesse sido demitida em 1999.
A série estadunidense FRIENDS se tornou internacionalmente conhecida na
década de 1990, quebrando todos os recordes de audiência e pagamentos já vistos. Contudo, o
que poucas pessoas sabem é que uma das roteiristas da 6ª temporada, Amaani Lyle foi demitida
por denunciar casos de abuso nas salas de roteiro. De acordo com a reportagem do jornal online
Bustle, “A ‘Friends’ Lawsuit set back #metoo by year”, de Kelsey Miller, o trabalho primário
da roteirista era anotar absolutamente tudo que era dito durante as sessões de brainstorming 22
da equipe de roteirista, composta majoritariamente por homens brancos. Apesar de ter sido
avisada na entrevista de contratação que as conversas poderiam ser meio chulas, ela conta que
não poderia imaginar o quão baixas e asquerosas elas poderiam se tornar. Segundo as
declarações de Lyle, as sessões de brainstorming não eram apenas momentos de discussões
sobre possíveis histórias para o seriado, mas sim homens falando mal de mulheres porque
podiam, contando suas experiências sexuais e até mesmo falando em estuprar as atrizes do
seriado. “[Esse tipo de comportamento] estava tão arraigado e onipresente na época que
ninguém fazia nada a respeito” (LYLE, 2018, [n.p.] – tradução e adaptação minhas).
Nessa fala de Lyle temos uma filiação de memória importante, o comportamento
masculino tido como típico, boys will be boys ou, em português, garotos serão garotos,
21
Sitcom, do inglês situation comedy, comédia situacional, é um tipo de seriado televisivo que acompanha um
grupo de personagens em situações cotidianas, que frequentam os mesmos ambientes e se envolvem em situações
cômicas. Geralmente é gravada com uma plateia. Os episódios são curtos, de até 30 minutos.
22
Conhecida técnica de dinâmica em grupo que busca o desenvolvimento da potencialidade criativa dos
envolvidos, a partir de contribuições espontâneas dos participantes. Conhecido também como tempestade de
ideias.
36
enunciado usado para desculpar condutas tidas como masculinas e imutáveis, muitas vezes
violentas e não saudáveis, chegando até mesmo a infantilizar homens adultos, minimizando
atitudes como falta de maturidade. Essa naturalização comportamental como algo violento, viril
e imutável perpetua uma formação discursiva dominante. A noção de formação discursiva, a
qual abordaremos mais adiante, é fundamental para o entendimento desses processos pois
ancora essa conduta em processo histórico de naturalização, ditando o que pode ou não ser dito
da perspectiva “cisheteropatriarcal branca e de base europeia” (AKOTIRENE, 2019, p. 11).
Retomando o caso, em outubro de 1999, a roteirista foi demitida por baixa
performance no trabalho. Os chefes alegavam que ela digitava muito devagar. Na reunião de
demissão, foi advertida para “não causar problemas” pelo desligamento para que não fosse
enterrada e nunca mais trabalhasse no ramo. Apesar da ameaça, Lyle fez uma reclamação
formal ao departamento de RH, que nunca foi investigada. Posteriormente, moveu um processo
judicial contra a Warner Brothers e perdeu, sendo alegada necessidade criativa como decisão.
É esse o motivo pelo qual a manchete da reportagem é “processo judicial atrasa #metoo em
anos”. Com o precedente legal, necessidade criativa passou a ser a arma de advogados de defesa
em casos de assédio no ambiente de trabalho, praticamente garantindo causa ganha. Temos aqui
uma filiação a uma rede de memória que evoca e sustenta a ideia de que homens têm
“necessidades sexuais” que precisam não só ser toleradas, mas protegidas. “É da natureza do
homem” trair, abusar, ser violento, ser possessivo, ser dominante, ser superior, enunciados que
evocam essa rede de memória. Safiotti postula a construção social dessa filiação:
Potencialmente, todo homem é violento à medida que é incentivado, cotidianamente
a ser valente, a mostrar que é macho, masculinidade sendo sinônimo de transformação
da agressividade em agressão. [...] Ademais, a violência não existe apenas como fato
concreto, mas também como ameaça (SAFIOTTI, 1994, p. 460).
Segundo a reportagem, quando as primeiras acusações contra Weinstein
começaram a surgir, não houve muita esperança da parte da roteirista, mas, após atrizes
consagradas começarem a se envolver, Lyle conta que pensou “uau, isso não vai desaparecer”.
Para Amaani, o Movimento #metoo trouxe importantes mudanças e permitiu que mulheres não
se silenciassem ou fossem silenciadas e pudessem lutar por seus direitos e empregos, não
precisando se calar frente a assédios, abusos e outros tipos de crime. Ela acredita que, apesar
de não crer que a indústria tenha mudado, ainda assim há maneiras diferentes de comportamento
uma vez que o mundo todo pode estar observando o que antes era privado.
Os 18 anos que separam a história de Amaani Lyle e o tweet de Alyssa Milano,
responsável por internacionalizar a #metoo, são significativos do ponto de vista analítico, pois
37
reforçam a importância das condições de produção na construção do dispositivo de análise
discursiva. Em 1999, graças às condições de produção, não era possível um movimento que
mobilizasse estrelas hollywoodianas e milhões de pessoas ao redor do globo para lutar contra
abuso, sexismo, machismo e violência de gênero. Nem era Amaani Lyle capaz de provocar tal
movimento, por ser uma mulher negra, desconhecida e subordinada na sitcom de maior sucesso
da época. Isso porque em 1999 a rede social Twitter não havia sido criada ainda, não
possibilitando o compartilhamento de hashtags, a criação deste novo ritual enunciativo que
mencionamos, os movimentos ciberativistas não tinham a força que ganharam após os anos
2000 23 . Assim, nem ao menos Tarana Burke, que já havia fundado sua corporação nessa época,
poderia por si só, por ser como Lyle, uma mulher negra, desconhecida mundialmente, mobilizar
todas as ferramentas para a criação deste novo lugar de enunciação, pois ela própria enuncia de
um lugar que não permite o alcance da enunciação em patamar global. É somente através do
novo ritual enunciativo #metoo, inscrito por Milano em novas condições de produção, que
novos lugares de enunciação que passam a proporcionar o aparecimento de enunciados outros.
A memória histórica social atual de um movimento que busca não só igualdade,
mas equidade 24 de gênero, é latente e não pode ser desatrelada de um pré-construído, uma
memória de violência que mulheres sofrem há anos por meio de perseguições, condenações,
violências dos mais variados tipos e até morte, pelo simples fato de não serem o gênero
dominante. Aqui se faz necessário esclarecer que a dominância de um sob outro, masculino
sobre feminino, não se faz pelo quantitativo e sim pelo exercício das relações de poder que se
pautam no social.
Nos primórdios civilizatórios, a mulher é a dominante da sociedade por ser capaz
de gerar vida (SAFFIOTI, 2004). Essa condição se modifica quando há a constatação da
necessidade masculina para a reprodução. Saffioti (2004) postula que talvez a necessidade
masculina de mostrar força física e superioridade venha do fato de que, apesar de serem
necessários à reprodução, não são capazes de dar à luz e são, notoriamente, mais fracos para
23
“Em 2004, as irmãs feministas norte-americanas Jessica e Vanessa Valenti criaram o site feminista Feministing
com o objetivo de conectar uma gama diversificada de feministas e vozes feministas. [...] O Feministing ajudou a
tornar visíveis as questões feministas. A internet permitiu maior acessibilidade e reuniu um público de origens
diferentes, vindo de diferentes partes do mundo. [...] De acordo com um perfil de Jessica Valenti na lista das Cem
Mulheres Mais Importantes do jornal britânico The Guardian, ela foi responsável por digitalizar o feminismo. A
partir do Feministing, incontáveis exemplos de ativismo feminista vêm se materializando pela internet.”
(MCCANN, Hannah et al. Talvez a quarta onda seja feminista. In: MCCANN, Hannah et al. Trad. de Ana
Rodrigues. O livro do feminismo. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019, p. 294-297).
24
Tomamos por igualdade o conceito de dar condições iguais às pessoas sem distinção de gênero, raça,
sexualidade, etc. Igualdade salarial entre os gêneros, por exemplo. Já por equidade entendemos um aspecto
reparador histórico social, que visa não só a igualdade social, mas maneiras de reparar danos passados através de
condições adequadas às diferenças sociais.
38
suportarem dores físicas. O que a autora irá chamar adiante de “força de ordem masculina”
entendemos como força física e demonstrações de violência típicas de uma masculinidade
tóxica e impositiva que busca, através da agressividade, se mostrar superior. Citando Bourdieu,
diz com ele a autora:
A força da ordem masculina pode ser aferida pelo fato de que ela não precisa de
justificação: a visão androcêntrica se impõe como neutra e não tem necessidade de se
enunciar, visando sua legitimação. A ordem social funciona como uma imensa
máquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação masculina na qual se funda: é a
divisão social do trabalho, distribuição muito restrita das atividades atribuídas a cada
um dos dois sexos, de seu lugar, seu momento, seus instrumentos [...] (BOURDIEU,
1998, p. 15 apud SAFFIOTI, 2001, p. 118).
Há a perpetuação e manutenção de uma ordem patriarcal, machista e
heteronormativa, promovida não somente pelos integrantes sociais, mas também pelo Estado.
Althusser (1970) afirma que “[...] a classe dominante, para manter sua dominação, gera
mecanismos que perpetuam e reproduzem as condições materiais, ideológicas e políticas de
exploração [...]”, dentre eles estão os aparelhos ideológicos de Estado, que retomaremos mais
adiante.
Na esteira de Pêcheux, podemos afirmar que é através de processos de
identificação ou contraidentificação e práticas sociais que sujeitos constituem e retomam
memórias e, ao mesmo tempo, se reapropriam da história. E é justamente esse movimento que
irá romper um status quo, construindo um acontecimento. Retomando o exemplo da roteirista,
podemos considerar que no momento de sua demissão os sentidos encontravam-se de tal modo
cristalizados que nada do que ela dissesse seria capaz de desregular os implícitos. Contudo, em
2017 as condições de produção instalam novos rituais enunciativos que possibilitam um abalo
na rede de memória que, perturbada pela força do acontecimento, faz surgir sentidos outros,
rompendo silenciamentos.
1.3 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO
A noção de condições de produção cunhada por Pêcheux ([1969] 1997) é
fundamental para a AD. O autor propõe uma abordagem fundamentada na teoria da
materialidade discursiva, “cujo percurso permite compreender as condições (históricas) da
produção e circulação de um discurso pensando que é no momento em que a língua se oferece
39
ao equívoco que os gestos ideológicos de produção de sentidos transbordam” (MEDEIROS,
2008, p. 49). Assim, temos sujeitos (não empíricos) determinados por uma formação social que
se constrói pelo/no discurso. Para Orlandi (2005, p. 30) há duas possibilidades de se considerar
as condições de produção: estrito e amplo. Na primeira, é o contexto imediato do discurso, já a
segunda inclui “o contexto sócio-histórico, o ideológico” (ORLANDI, 2005, p. 30). No caso
desta pesquisa, além de um contexto sócio-histórico e cultural, é preciso considerar o
surgimento de novos lugares de enunciação através de um novo ritual enunciativo (a hashtag),
que proporciona uma forma narrativa distinta, atrelada a um contexto digital.
1.3.1 Condições políticas de emergência da #metoo
No final de 2016, em 8 de novembro, ocorreram as eleições presidenciais dos
Estados Unidos da América. O processo eleitoral foi fortemente marcado pela disputa entre
republicanos, representados por Donald Trump, e democratas, representados pela ex-primeira
dama Hillary Clinton. A ascensão de um republicano empresário ao poder, depois do primeiro
democrata negro ocupar a cadeira presidencial, causou duras mudanças políticas e sociais no
país.
Durante o processo eleitoral, áudios do então candidato surgiram escancarando
a misoginia e sexismo em sua fala:
Eu dei em cima dela como uma puta. Mas eu não consegui fechar o negócio. E ela era
casada. Então, do nada, eu a vejo e ela tem esses peitões cafonas e tudo mais. Ela
mudou completamente a aparência.
[...]
[…] eu comece a beijá-la. Você sabe, eu sou automaticamente atraído pela beleza –
eu simplesmente começo a beijá-la. É como um imã. Só beijo. Eu nem espero. E
quando você é uma estrela, elas deixam você fazê-lo. Você pode fazer qualquer coisa.
[...]
Pegue-as pela buceta. Você pode fazer qualquer coisa (TRUMP, 2015, [n.p.]). 25
Em inglês puta é bitch, palavra usada para se referir a cadelas. Podemos ver que
na escolha lexical já ocorre uma animalização da mulher, que nesse processo discursivo não é
25
Excertos retirados e traduzidos da transcrição feita pelo The New York Times de áudio vazado da conversa entre
Donald J. Trump e Billy Bush no set de Days of our lives. Os dizeres originais e transcrição completa estão
disponíveis em: https://www.nytimes.com/2016/10/08/us/donald-trump-tape-transcript.html. Acesso em: 27 out.
2020.
40
considerada um ser humano, mas um animal, ser inferior.
Trump dizer que a mulher era casada tem mais de uma relevância para nós,
podendo indicar uma espécie de camaradagem entre homens, o que teria feito com que ele não
insistisse mais e nem se chateasse tanto com a cantada fracassada. Mas também pode indicar que
a mulher é sempre vista como propriedade pertencente a outrem, nunca a ela mesma.
A parte mais execrável da fala é a última, que reduz a mulher a uma parte de seu
corpo, chamada pelo candidato de pussy, o que mostra novamente a animalização feminina,
uma vez que o léxico também se refere a gatinho. Temos aqui, novamente, a mulher reduzida,
objetificada. Um objeto de dar prazer ao homem, independentemente da situação, ocasião ou
vontade. Bulter (1997) postula que só há sujeito através da linguagem; a partir do momento que
se nomeia algo, ele passa a existir e é através da fala que há sujeito, ou seja, “[...] ser nomeado
é também uma das condições pelas quais o sujeito é constituído na linguagem [...]” (BUTLER,
1997, p. 2 – tradução minha). A autora também mostra a importância das filiações de memória,
principalmente no discurso injurioso:
O sujeito que diz as palavras socialmente injuriosas é mobilizado por aquele longo fio
de interpelações injuriosas: o sujeito atinge um estado temporário de citar esse dizer,
em performar a si mesmo como origem desse dizer (BUTLER, 1997, p. 50 – tradução
minha).
[...] nenhum termo ou declaração pode funcionar permanentemente sem a
acumuladora e dissimuladora historicidade de força. Quando um termo injurioso
machuca [...], machuca justamente através do acúmulo e dissimulação de sua força. O
sujeito que diz a calúnia, está citando-a, fazendo comunidade linguística com a
história dos falantes (BUTLER, 1997, p. 51-52 – tradução e adaptação minhas).
Assim sendo, podemos entender que ao nomear a mulher como um animal,
Trump faz dela um objeto, e isso é possível graças a uma rede de memória que sustenta e
legitima essa posição ideológica patriarcal machista no discurso.
Após o vazamento do áudio, mais de 20 mulheres procuraram jornais com
denúncias de assédio sexual contra o presidenciável. Em um vídeo, Trump assume o que disse
e pede desculpas se ofendeu alguém. Muito comum em pedidos de desculpas, “desculpa se
alguém se sentiu ofendido”, não é um pedido sincero uma vez que não assume o próprio erro e
sim terceiriza a culpa para aquele que se sentiu ofendido dizendo, em outras palavras, que o
erro é de quem se ofende por um motivo ou por outro, e não de quem diz a ofensa em si.
Para além disso, ele também chega a dizer que suas palavras “bobas” são muito
41
diferentes das palavras e ações de Bill Clinton 26 , que ele acusa de abusar de mulheres, e acusa
Hillary Clinton de proteger o ex-marido. Isso porque, na década de 1990, o então presidente
dos EUA, Bill Clinton, foi acusado de ter relações sexuais com uma estagiária de 22 anos na
Casa Branca. O caso teve repercussão mundial e levou à destituição do cargo de presidente.
Percebe-se que, ao usar o caso de Clinton como pior que o seu, Trump tenta se escusar das
acusações, como se as dele não fossem relevantes uma vez que alguém que já cometeu atos
bem piores já esteve na presidência. Além disso, acusa Hillary de acobertar o marido, a
colocando como “guardiã do marido”, reforçando o que Gay (1995) diz sobre a mulher ainda
ser usada como álibi masculino.
É interessante notar, ainda sobre o escândalo de Bill Clinton, que o
acontecimento leva o sobrenome da estagiária, Escândalo Lewinsky. Uma mulher jovem,
bonita, trabalhando em seu primeiro emprego, na Casa Branca, se envolve com um homem
mais velho e casado. O caso ganha o nome dela, nos mostrando como a mulher é colocada como
pivô de separações mesmo não sendo ela a comprometida ou responsável direta pelo divórcio.
Ela é sempre o objeto. O fato de Trump ter sido eleito após o vazamento dos áudios reforça
ainda mais a supremacia masculina e seu poder.
1.3.2 A marcha das mulheres e os movimentos ciberativistas
O pré e pós eleições de 2016 foram marcados por intensos protestos e
manifestações, principalmente, contra Trump. A mais famosa foi, de acordo com reportagem
da BBC, a Marcha das Mulheres em 21 de janeiro, que contou com mais de 200 mil pessoas. O
movimento nasceu na internet como reação à vitória do republicano e foi crescendo até se
organizar na marcha que foi até Washington em defesa dos direitos das mulheres, justiça social
e direitos humanos. 27 Concomitantemente, a Marcha das Mulheres de Portland contou com
mais de 100 mil pessoas e se tornou um dos maiores protestos públicos do estado de Oregon.
Os dois eventos ilustram como movimentos feministas se organizam, hoje pela internet, e
mostram força em suas reinvindicações. Podemos observar que, mesmo movimentos
26
Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/estados-unidos/caso-lewinsky-ha-15-anos-escandaloquase-derrubou-clinton,019897e31a04c310VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html.
Acesso em: 04 nov. 2020.
27
Posse de Trump deve ter protesto com 'maconhaço' e apoio de motoqueiros. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38575291. Acesso em: 04 nov. 2020.
42
ciberativistas podem ter forças reais e impactar o real, o que os tornam movimentos da
sociedade (ORLANDI, 2011b).
Para além das eleições e declarações controversas do atual presidente
estadunidense, temos vários refugiados de guerra buscando exílio em diversos países europeus
que nem sempre se mostram abertos a isso, havendo relatos de abusos sexuais por parte de
oficiais dos países de exílio, trocando sexo por comida, por exemplo 28 . A Coréia do Norte
ameaça bombardear os EUA. A relação Israel – Palestina está cada vez mais frágil graças ao
presidente americano e suas declarações. É nesse cenário de conflitos, que o Movimento Metoo
irá ressurgir e se re-significar.
Contudo, não apenas de contexto sócio-histórico se fazem as condições de
produção. A tecnologia digital é fundamental em nossas análises e, apesar de não nos
aprofundarmos na discussão para definir o termo como o faz Cristiane Dias no capítulo Da
circulação do sentido de tecnologia e seus efeitos na relação linguagem-sujeito-mundo 29 , ela
precisa ser levada em conta como uma das condições relevantes para a produção dos discursos
aqui analisados.
Segundo Dias (2018), há hoje uma inversão na situação história-tecnologia em
que se tem considerado a primeira como produto da segunda e não o contrário, o que se dá
graças ao “sentido de transparência da tecnologia. E dele o sentido do desaparecimento do
sujeito mediante a máquina.” (p. 44). Não iremos apreender tecnologia em sua forma empírica,
mas sim em sua forma material, que
coloca o sentido em relação com a memória, o sujeito e com as condições de produção,
nos possibilitando compreender o processo de produção dos sentidos, a significação
material do discurso nos dizeres e objetos que compõem o nosso cotidiano (DIAS,
2018, p. 39-40).
Uma vez que,
[...] a tecnologia tem efeitos no processo de interpelação em sujeito do indivíduo biopsico,
intervindo no funcionamento espontâneo da forma sujeito histórica pelas duas
propriedades da forma sujeito: o esquecimento e a identificação (PECHÊUX, 1995,
p. 163 apud DIAS, 2018, p. 49-50).
Com os adventos tecnológicos e o avanço da internet, temos a criação de espaços
28
Ver: https://noticias.r7.com/internacional/menina-de-quatro-anos-e-estuprada-em-campo-de-refugiados-dagrecia-em-meio-a-onda-de-agressoes-sexuais-22042017.
29
DIAS, Cristiane. Análise do discurso digital: sujeito, espaço, memória e arquivo. Campinas: Pontes Editores,
2018.
43
de interação virtuais mediados pela máquina e que permitem uma dissipação mais rápida e
democrática dos dizeres e saberes. Se antes dependíamos de veículos oficiais de divulgação de
notícias ou mídia impressa, agora a informação se encontra ao toque de dedos de qualquer
pessoa que tenha acesso à rede de internet. Tal democratização possibilitou o surgimento do
chamado ciberfeminismo, a quarta onda feminista, pautado pela defesa de identidade e do papel
social feminino de acordo com novos paradigmas.
Segundo Costa,
Analisar a produção discursiva do ciberfeminismo permite vislumbrar o modo como
as novas relações sociais estão sendo erigidas por meio da linguagem, pois, pelas redes
sociais, as mulheres (re)constroem e defendem seus espaços no “mundo público”,
anteriormente a elas negado. A internet dissolve algumas barreiras e permite um modo
de expressão feminista menos limitado (COSTA, 2019, p. 1310).
É através da internet que as mulheres do século XXI passam a se organizar. O
número de sites e blogs feministas aumenta e se tornam recorrentes meios de reinvindicação
das pautas da 4ª onda. Em 2012, a feminista britânica Laura Bates cria o projeto Everyday
Sexism, um fórum on-line em que mulheres relatam suas experiências diárias de sexismo.
Surgem campanhas com ativismo usando hashtags como #BringBackOurGirls,
#WhyWomenDontReport, #meuamigosecreto, #meuprimeiroassedio.
Contudo, espaços digitais como o Twitter nem sempre foram espaços de
ciberativismo e resistência. No documentário Rede de Abusos, a blogueira criminalista
Alexandria Goddard conta como utilizou a rede social para traçar uma linha do tempo do caso
de abuso de Steubenville, em que dois jogadores de futebol de colegial sequestraram e
estupraram uma menor de idade 30 . Os tweets serviram de guia para a blogueira traçar a noite da
garota, começando com animação para a festa que ocorreria na noite e passando a falar do
estupro, com os dizeres “há um cadáver em Steubenville”, “você não dorme enquanto tem um
pau no seu rabo”, “é o que eu sempre digo, você não precisa de muitas preliminares com uma
menina morta”. Nota-se que não apenas os discursos são afetados pelas condições de produção,
mas até mesmo os suportes podem sofrer alterações e serem ressignificados a depender do
contexto sócio-histórico.
Após a pouca repercussão local e nenhuma ação efetiva dos órgãos responsáveis,
o grupo ciberativista Anonymous se envolveu e divulgou um vídeo gravado entre os dois
acusados e mais alguns garotos que comentam o estupro, inclusive fazendo uso da palavra
30
Após investigações, outra vítima, também menor de idade, foi identificada.
44
estupro. É a partir desse envolvimento do grupo que podemos notar uma modificação no suporte
digital, que passa de entretenimento a resistência/denúncia.
1.4 LUGAR DE ENUNCIAÇÃO E RITUAL ENUNCIATIVO
Zoppi-Fontana (2002; 2017) propõe a noção de lugar de enunciação para “pensar
a articulação entre os processos de subjetivação e as formas históricas de enunciação política,
para melhor compreender a relação entre o discurso, a prática política e a constituição de novos
sujeitos/movimentos sociais” (2017, p. 66). Segundo a autora,
Do ponto de vista teórico trata-se da relação entre acontecimento discursivo, memória
discursiva e enunciação na sua reflexividade performativa. Se é a posição-sujeito que
determina os sentidos dos enunciados a partir do funcionamento da memória
discursiva, é na enunciação de um sujeito em determinadas condições de produção
que esse dizer poderá ser reconhecido como legítimo relativamente a um determinado
lugar enunciativo (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 66).
É preciso lembrar aqui esse sujeito como interpelado ideologicamente e é isso
que nos permite usar lugar de enunciação ao invés do conhecido lugar de fala 31 (BORGES,
2017), que a autora ressalta como sendo “sobredeterminado pela ideologia, a língua e o
inconsciente, o ‘lugar de fala’ se mostra, no seu funcionamento enunciativo, sustentado em
processos metonímicos” (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 70). Entendemos que lugar de fala se
trata, comumente, mais de uma identificação pessoal com experiências, identificação essa que
autoriza um sujeito a dizer ou não de algo, que o permite compartilhar de/sobre sua vivência.
No entanto, a autora define lugar de fala como aqueles legitimados por processos metonímicos
que o ratificam a partir de uma experiência vivida de um sujeito que se identifica com outro:
[...] ao transformar relações de classe, gênero e segregação racial em relações morais
intersubjetivas entre indivíduos humanos, as lutas pelo reconhecimento enunciadas a
partir de um lugar de fala legitimado metonimicamente podem deslizar
inadvertidamente para o apaziguamento do conflito, dadas as condições de produção
da formação social [...] (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 69 – grifos da autora).
Contudo, lugar de enunciação poderia ser definido como “uma reflexão sobre a
31
Borges postula que lugar de fala “é a posição de onde olho para o mundo para então intervir nele” (2017, [n.p.]).
Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-é-‘lugar-de-fala’-e-como-ele-éaplicado-no-debate-público.
Acesso em: 03 nov. 2020.
45
divisão social do direito de enunciar e a eficácia dessa divisão e da linguagem em termos da
produção de efeitos de legitimidade, verdade, credibilidade, autoria, circulação, identificação,
na sociedade” (ZOPPI-FONTANA, 1999, p. 16 – grifos da autora).
todo ato de enunciação realizado por um sujeito enunciador deve ser entendido como
manifestação da regularidade de uma prática discursiva configurada por determinados
rituais enunciativos [...]. Através desses rituais enunciativos se estabelecem relações
de continuidade entre os diversos efeitos de sentido produzidos no mesmo discurso
ou em discursos diferentes. Assim, delimitam-se regiões (ou estados) de discurso
definidas pela repetição, pela reformulação de sentidos, pela continuidade de rituais
enunciativos que estabilizam os processos de produção de sentido através do
funcionamento discursivo da paráfrase (ZOPPI-FONTANA, 1994, p. 48).
Por fim, “os lugares de enunciação, por presença ou ausência, configuram um
modo de dizer (sua circulação, sua legitimidade, sua organização enunciativa) e são diretamente
afetados pelos processos históricos de silenciamento” (ZOPPI-FONTANA, 2011, p. 64).
No caso da nossa pesquisa, a noção de lugar de enunciação permite
problematizar uma posição historicamente silenciada que colocou (e ainda coloca) mulheres à
margem da sociedade. A interdição de um lugar de enunciação pode produzir o que Orlandi
(1999) chamou de de-significação, o esvaziamento, ou até mesmo a interdição de dizeres, a
censura. Faz parte das condições de produção o rompimento do silenciamento, a quebra de um
lugar para o surgimento de outros. Uma reconfiguração da sociedade patriarcal permite que
hoje certos discursos possam ser ditos, discursos esses que antes não eram possíveis. Há novos
lugares de enunciação.
A primeira onda feminista trouxe várias conquistas importantes para o
movimento feminista, porém a segunda onda 32 precisa ser melhor exposta aqui por, depois da
II Guerra Mundial e durante a Guerra Fria e Guerra do Vietnam, a sociedade estadunidense
contar com uma maior participação feminina na sociedade, o que acaba por aumentar também
as reinvindicações das mulheres. A preocupação dessa onda foi responder o que é ser mulher e
porque as mulheres, apesar de garantidas de direitos, ainda não usufruem deles. É na segunda
onda que a ativista, jornalista e fundadora do Feminismo Radical, Carol Hanisch escreve o
artigo “O pessoal é político 33 ”.
O artigo nasce de uma observação da escritora em suas participações dos
chamados “grupos de terapia”, compostos exclusivamente por mulheres. Seu argumento
principal é que as opressões sofridas pelas mulheres na vida privada eram muito similares com
32
Período compreendido entre as décadas de 1930 e 1980.
33
“The personal is political” publicado pela primeira vez no livro Notes from the Second Year: Women’s
Liberation – Major Writings of Radical Feminists (New York: Pamphlet, 1970) – sem tradução para o português.
46
aquelas sofridas na vida pública, o que justificaria a estagnação pessoal de algumas delas e, ao
mesmo tempo, mostrava a necessidade da organização de um movimento feminino que lutasse
pelas causas múltiplas das mulheres. Com a maior participação feminina no mercado de
trabalho, surgem questionamentos sobre igualdade salarial, matrimônio, controle de natalidade
e posições de trabalho. A sociedade patriarcal começa a sofrer mudanças significativas em sua
estrutura.
Na esteira de Pêcheux (1884), Zoppi-Fontana (1994) explana que, através do que
este chamou de rituais discursivos de assujeitamento, o sujeito irá se constituir numa relação de
identificação (ou contra-identificação) com a formação discursiva que o afeta. São regras
anônimas historicamente determinadas, num tempo e espaço dado, que determinam as
condições de produção. São os rituais enunciativos que estabilizam os processos de produção
de sentido através de paráfrases.
O acontecimento discursivo funciona como o ponto de quebra desses rituais
enunciativos, como o lugar material onde o real da língua (o lapso, o ato falho, o
equívoco, a elipse, a falta, todas as formas de irrupção da lalangue) e o real do discurso
(a sua historicidade, a determinação do sentido e do sujeito por FDs inscritas num
complexo de formações ideológicas) se encontram, produzindo uma ruptura, uma
interrupção e uma emergência (Pêcheux et al., 1981) nas relações de continuidade
definidas pelos rituais (ZOPPI-FONTANA, 1994, p. 49).
Enquanto acontecimento discursivo, o funcionamento da #metoo permite o
aparecimento de novos lugares de enunciação diretamente ligados ao “original”, o que também
possibilita diferentes e novos gestos de interpretação, novas posições-sujeito, que apresentam
formações discursivas outras, diferentes associações de memória e distintas relações com a
exterioridade. Ponto este, para Orlandi (2007a, p. 14), “crucial: a ligação da materialidade do
texto e exterioridade (memória).”
O ritual enunciativo está, aqui, diretamente ligado à prática enunciativa e ao
digital, ou seja, ele estabelece uma nova prática discursiva, uma forma diversa de dizer e
circular dizeres que não eram possíveis em outro momento histórico. Novamente, temos aqui
um dos elementos que participam das condições de produção que possibilitaram o levante do
Movimento. Os rituais enunciativos irão delimitar as práticas discursivas através de práticas de
subjetivação, organizadas na linguagem e atravessadas por mecanismos ideológicos que se
dissipam para o sujeito (MARIANI, 1999, p. 48 apud PERON, 2007, p. 45). O ritual
enunciativo-discursivo que se estabelece na situação de interlocução gerada no ambiente
digital, define tanto a instituição quanto aos sujeitos que a ocupam social e discursivamente.
(PERON, 2007, p. 66).
47
2 MODOS DE CONSTITUIÇÃO, FORMULAÇÃO E CIRCULAÇÃO DE SENTIDOS
EM THIS IS MY ASSAULT STORY #METOO
Women are born with pain built in, it’s our physical
destiny: period pains, sore boobs, childbirth, you know.
We carry it within ourselves throughout our lives, men
don’t. They have to seek it out, they invent all these gods
and demons and things just so they can feel guilty about
things, which is something we do very well on our own.
And then they create wars so they can feel things and
touch each other and when there aren’t any wars they
can play rugby. We have it all going on in here inside, we
have pain on a cycle for years and years and years [...]
Fleabag 34
Neste capítulo pretende-se não só compreender os modos de constituição,
formulação e circulação de sentidos (ORLANDI, 2001) da #metoo, mas também apreender
como tais processos se estabelecem como memória através dos conceitos de memória metálica
(ORLANDI, 2007a) e memória digital (DIAS, 2016), tendo em vista que, segundo Costa
(2018), o funcionamento da #metoo mobiliza uma memória discursiva do assédio ou da
tentativa de seu apagamento. Para tanto, serão analisados recortes do vídeo que passa a circular
em resposta ao tweet de Alyssa Milano, intitulado This Is My Assault Story #metoo.
Orlandi (2012, p. 70) aponta que há “rupturas que reorganizam o trabalho
intelectual, a relação entre os homens e suas práticas sociais, os seus modos de vida” nos
diferentes momentos históricos, considerados a materialidade da escrita. Isso quer dizer que,
em se tratando do digital, a repetição e a reprodução são aspectos constantes “nesse trajeto
histórico-social da relação do homem com o simbólico e o político” (ORLANDI, 2012, p. 70).
A autora faz um percurso passando pela materialidade, mais especificamente o materialismo
histórico, que define como “o que permite observar a relação do real com o imaginário, ou seja,
a ideologia, que funciona pelo inconsciente: a materialidade específica da ideologia é o discurso
e a materialidade específica do discurso é a língua, diz M. Pêcheux (1975)” (ORLANDI, 2012,
34
As mulheres nascem com dor embutida. É nosso destino físico. Cólicas, seios doloridos, parto, você sabe.
Carregamos a dor dentro de nós durante nossas vidas. Homens não. Eles têm que procurar. Inventam todos esses
deuses e demônios e coisas só para que se sintam culpados pelas coisas, o que é algo que também fazemos por
conta própria. E então eles criam guerras para que possam sentir as coisas e para se tocarem, e quando não há
guerras eles podem jogar rugby. E nós temos tudo acontecendo aqui dentro. Nós temos dores em um ciclo por
anos e anos e anos (...). Ver: Fleabg – Amazon Prime.
48
p. 72).
Assim, a autora coloca em perspectiva que o caráter material se encontra na
organização do homem em sociedade para (re)produção da vida e o caráter histórico está em
como ele se organiza no decorrer da história.
[...] no nosso caso, o da falha pensando o digital, por um intrincado processo de
memória, é um repetível que mostra sua cara ao romper o círculo da repetição. Um
repetível outro. De um outro funcionamento da memória. [...] Expõe o sujeito a seu
próprio dizer, ao seu próprio olhar. [...] (ORLANDI, 2012, p. 77).
Orlandi teoriza ainda que há três relações entre sujeito e significação,
importantes pra a discussão posteriormente desenvolvida, a constituição, a formulação e a
circulação. Partindo do princípio de que a relação existente entre enunciado e enunciação são
constitutivas do discurso, a
enunciação corresponde a sua "horizontalidade", enquanto que o enunciado
dimensiona o discurso na "verticalidade" (interdiscurso). É à verticalidade do discurso
que se pode atribuir o domínio do repetível, onde se trama a constituição do dizer
(exterior ao sujeito) (ORLANDI, 2008, p. 111).
Apesar de instâncias distintas, constituição (interdiscurso) e formulação
(intradiscurso), são inseparáveis, sendo assim que o sujeito interfere no repetível e o repetível
se inscreve nele. Ou seja, “o interdiscurso (o repetível) está no intradiscurso (seqüência
lingüística específica)” (ORLANDI, 2008, p. 111). É dessa relação que se produz a
historicidade, a realidade do discurso. Ainda,
o repetível, na ordem do discurso, se instala como uma das dimensões da
historicidade, da relação com a formação discursiva e com o seu domínio de saber: o
enunciável. [...] É na relação com a memória, assim concebida, enquanto espaço de
recorrência das formulações na relação com a ideologia, que os objetos do discurso
adquirem sua estabilidade referencial.
[...]
O interdiscurso fornece os objetos do discurso de que a enunciação se sustenta, ao
mesmo tempo que organiza o ajuste enunciativo que constitui a formulação pelo
sujeito (ORLANDI, 2008, p. 111-112).
É esse ajuste que causa a sensação no sujeito de ser origem do seu dizer, e isso
diz respeito à eficácia do assujeitamento. Os sentidos são sócio historicamente determinados e
estão ligados aos sujeitos que são constituídos por suas relações com as formações discursivas.
É através desse reconhecimento que o interdiscurso produz o efeito de estabilidade referencial
(ORLANDI, 2008, p. 116).
Em seus modos de constituição de sentidos, a #metoo funciona a partir da
mobilização de uma memória discursiva, definida por Costa (2018) como “específica e atual –
49
as denúncias que circularam na web em torno dos casos de Hollywood – e uma memória
discursiva mais ampla e histórica”, que segundo a autora diz respeito ao “assédio sofrido pelas
mulheres devido à desigualdade de gênero e dominação masculina” (COSTA, 2018, p. 47). Em
termos de formulação, observa-se que a referida hashtag funciona a partir de uma elipse.
“Implicitamente ao enunciado da hashtag, ‘eu também’ (#metoo), que condensa: ‘eu também
sofri assédio ou fui agredida’, ou ainda ‘eu também apoio a causa’, está a temática mais ampla
do assédio sofrido pelas mulheres ao longo da história” (COSTA, 2018, p. 47).
De acordo com Haroche (1992, p. 117), a elipse se configura como “Enunciado
fortemente incompleto, mas do qual a lingüística pressupõe o caráter acabado do ponto de vista
do sentido, a elipse é o ponto em que se encontram lingüística e ideologia”, assim, mesmo que
não tenhamos o enunciado completo “eu também fui assediada/agredida”, é possível seu
entendimento através do implícito que a elipse coloca.
Além de implícitos, constitutivos da elipse, temos o equívoco como parte
constituinte do discurso. Não há língua sem falhas e sem equívocos e, através da repetição
histórica que “desloca, a que permite o movimento porque historiciza, nos seus percursos,
trabalhando o equívoco, a falha, atravessando as evidências do imaginário e fazendo o
irrealizado irromper no já estabelecido” (ORLANDI, p. 54), temos aqui um enunciado que
possibilita não apenas o posicionamento de mulheres através da hashtag, mas também que
outros grupos minoritários se identifiquem com ele. Ainda, “a relação da língua com a história
não é perfeitamente articulada”, uma vez que “o texto vai-se abrir para as diferentes
possibilidades de leitura que mostram que o processo de textualização do discurso se faz com
‘falhas’, com ‘defeitos’” (ORLANDI, 2001, p. 62 apud DIAS, 2019, p. 59). Há no enunciado
#metoo uma equivocidade que abre espaço para um processo de significação e potencializa os
efeitos identificatórios.
Essa equivocidade é marcada pelo uso do pronome objeto de primeira pessoa do
singular “me” em língua inglesa, referente ao pronome pessoal de primeira pessoa do singular
do caso reto em português, “eu”. Não sendo marcado por gênero, ao se dizer #metoo
(#eutambém) não há restrições de gênero impostas pelo léxico, o que permite que não somente
mulheres compartilhem suas histórias de abuso e assédio.
Ainda que se recupere o tweet original de Alyssa Milano, If you’ve been sexually
harassed or assaulted write ‘me too’ as a reply to this tweet, não é possível encontrarmos
marcadores de gênero uma vez que o pronome pessoal you em inglês é neutro podendo,
inclusive, ser usado no singular ou no plural. A equivocidade é retomada na imagem que
interpelou a atriz a twitar, em que se lê “If all the women [...]”, havendo claramente uma
50
convocação do feminino a se mobilizar, se identificar e responder ao tweet. Contudo, essa
convocação é esquecida, aspecto fundamental da materialidade da hashtag, uma vez que a
corrente se cria, se replicando através da hashtag #metoo e não necessariamente conectada ao
tweet original, criando o que Dias (2019) coloca como textualidades seriadas, que trataremos
mais a diante de forma detalhada. Há também a possibilidade de identificação de grupos não
convocados, como na figura abaixo, em que um homem se identifica com a convocação e faz
uso do espaço digital para compartilhar sua história. É relevante notar que também existe a
possibilidade de compartilhamento e identificação sem que necessariamente se use a hashtag,
o que também se mostra como específico da materialidade e funcionamento da mesma.
Figura 3 – Twitter de Randall G. Arnold.
Fonte: Tweet resposta à Alyssa Milano, 2017 35 .
Outro aspecto que se apresenta na equivocidade é que há ainda a história
determinando esses processos, o que significa que nem toda mulher irá se identificar com a
hashtag ou com o movimento. Prova disso é o Manifesto das artistas francesas, assinado por
Catherine Deneuve e dezenas de outras francesas, que faz frente ao #metoo alegando que
[...] a sedução insistente ou desajeitada não é um crime nem o galanteio uma agressão
machista [...] Essa justiça expeditiva já fez suas vítimas, homens castigados no
exercício de sua profissão, forçados a se demitir, etc., quando seu único erro foi ter
tocado um joelho, tentado roubar um beijo, falar sobre coisas “íntimas” em um jantar
profissional ou ter mandado mensagens com conotação sexual a uma mulher cuja
atração não era recíproca. (MANIFESTO, [n.p.]).
Apesar de não nos estendermos em análise do manifesto por se tratar de um
deslizamento que não nos interessa aqui, ele pode ser lido na íntegra no ANEXO A.
35
Randall G. Arnold: não sou uma mulher, mas eu também, no ambiente de trabalho.
51
2.1 INTERPELAÇÃO E PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO EM “ESSA É A MINHA
HISTÓRIA DE ESTUPRO #METOO”
Em 20 de outubro de 2017, o canal do YouTube As/Is publicou um vídeo relato
intitulado This Is My Assault Story #metoo 36 ou “Essa é a minha história de estupro #metoo”,
numa tradução livre. O vídeo conta com mais de 603 mil visualizações em setembro de 2020.
Figura 4 – Mensagem da Kate escrita no colchão.
Fonte: vídeo Youtube, 2017, 2:58 37 .
Uma mulher que se identifica como Kate segura uma câmera e fala diretamente
ao espectador. Um box e colchão estão na sala e ela explica que estão ali há seis meses e que
pensou em doá-los, nas possibilidades de como destruí-los e em simplesmente jogá-los fora,
contudo acabou se decidindo por participar do Movimento #MeToo. Kate conta rapidamente a
história do movimento iniciado por Tarana Burke e retomado no Twitter por Alyssa Milano,
passando assim a contar a sua própria história, mas sem entrar em detalhes. Segundo Bocchi
(2017, p. 61) “o processo discursivo (PÊCHEUX, 2010) apreendido no funcionamento dos
discursos de militância desenham processos de interpelação nos quais a prática testemunhal
ocupa um lugar privilegiado.” Ainda segundo a autora, é nesse processo de testemunho que o
sujeito reivindica “o olhar e a cumplicidade de seu interlocutor, [...] por meio de um dizer que
não silencia, mas delata, acusa, revela” (BOCCHI, 2017, p. 62). Justamente o que observamos
no vídeo aqui analisado e também nos dizeres escritos no colchão.
36
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jzc2lfxU_S0. Acesso em: 09 out. 2020.
37
Ibidem.
52
Kate então coloca o colchão na frente da sua casa com os dizeres “me too, on
this bed, in my house, on a second date” (eu também, nessa cama, na minha casa, no segundo
encontro) escritos nele e deixa algumas canetas, tintas e alguns bilhetes incentivando outras
pessoas a escreverem suas histórias ou mostrarem apoio. No final do dia, ela volta para casa e
checa o colchão. Para sua surpresa, o colchão está cheio de mensagens – mensagens relatando
abusos e mensagens de apoio aos sobreviventes.
Observa-se aqui como o acontecimento discursivo #metoo é capaz de extrapolar
as fronteiras do digital. No vídeo, a hashtag é inscrita em um suporte não convencional, o
colchão, um objeto privado, de aconchego e descanso (ou de violência e estupro...),
transformado em suporte de inscrição de dizeres que denunciam a violência sofrida pela mulher
e buscam a ressignificação através desse novo ritual enunciativo.
Temos também uma ressignificação presente nessa troca de suporte, que sai do
digital e passa, nesse caso, para o colchão (no real). Quando deixa de ser um hiperlink clicável,
a hashtag não pode construir uma rede de significação análoga à que constrói no Twitter.
Contudo, há uma relação interdiscursiva e esses processos de ressignificação precisam ser
esclarecidos:
a partir da invenção de Chris Messina, os usos da hashtag no Twitter se diversificaram,
e vão igualmente chegar a outros ecossistemas. [...] Encontramos as hashtags em um
e-mail ou um texto, ou em alguns sites, nos quais eles são integrados linguisticamente
nos enunciados, sem sua função hipertextual. Constatamos que a forma migrou para
contextos em que ela não funciona como uma tecnopalavra; ela possui então outra
função, que será preciso determinar (PAVEAU, 2013, p. 14-15 apud SILVEIRA,
2015, p. 69).
Em sua tese de doutorado, Juliana da Silveira (2015) destaca:
Os diferentes usos das hashtags modificam suas características digitais, pois ao
circular em meios que não suportam a linguagem digital, ela deixa de ser um hiperlink
e, portanto, não pode construir uma rede de significação nos mesmos moldes que
ocorre com sua circulação no Twitter. Por outro lado, mesmo circulando em outros
meios, como os impressos, elas podem estabelecer uma ligação interdiscursiva com
as formulações e proposições baseadas em sua circulação no digital (SILVEIRA,
2015, p. 69).
Essa ligação interdiscursiva que a autora menciona pode ser constatada pelo uso
da hashtag no colchão que, mesmo em suporte diferente, não convencional e não digital,
carrega a memória discursiva do assédio e possibilita o compartilhamento de relatos de
violência. É o digital incidindo fora dele, com efeitos no real histórico.
Retomando o vídeo, Kate volta do trabalho e, acompanhada de duas amigas, o
53
choque é claro ao ver o colchão, pois há nele diversas mensagens, inclusive de suas amigas,
que também escrevem nele. A mensagem da primeira amiga diz “#metoo summer before my
senior year of college” (#eutambém verão antes do meu último ano de faculdade) (Fig. 4), já a
segunda escreve “Every woman I know has a story. Mine started at 14 and ends today because
I am no longer silente. xo" (Toda mulher que eu conheço tem uma história. A minha começou
aos 14 e termina hoje porque eu não estou mais em silêncio. Beijo e abraço) (Fig. 5).
Figura 5 – Mensagem da primeira amiga escrita no colchão.
Fonte: vídeo Youtube, 2017, 4:40 38 .
Figura 6 – Mensagem da segunda amiga escrita no colchão.
Fonte: vídeo Youtube, 2017, 4:42 39
Na mensagem da segunda amiga (Fig. 6) podemos verificar o uso de every
woman, “toda mulher”, o que se mostrará um sema recorrente em nossas análises, evidenciando
38
Ibidem.
39
Ibidem.
54
que os processos identificatórios são esperados das mulheres graças a uma memória. Há um
efeito de universalidade e “a coesão é produzida como efeito imaginário, justamente por meio
dessa voz universalizante, dissimulando as diferenças sob [...]” (BOCCHI, 2017, p. 63) uma
mesma hashtag que se refere a violência.
Para além disso, temos “não estou mais silenciada”. O silêncio tem, para Orlandi
(2011a, p. 29), significância própria, “é garantia do movimento de sentidos” (ORLANDI,
2011a, p. 23).
Ele é, sim, a possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradição constitutiva, a
que o situa na relação do "um" com o "múltiplo", a que aceita a reduplicação e o
deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso
que lhe dá realidade significativa (ORLANDI, 2011a, p. 24).
A autora fala ainda da instância política do silêncio, o silenciamento, podendo
ser parte da opressão ou da resistência. Nessa perspectiva, temos na mensagem “não estou mais
silenciada” um movimento que sai da opressão, da posição de subjugada, para resistência em
forma de discurso, empoderamento e coletividade. Através da identificação, proporcionada por
esse ritual enunciativo, o lugar de enunciação se desloca proporcionando um efeito de
emancipação do sujeito que coloca em evidência o que Hanisch diz em 1970, “o pessoal é
político”. O que queremos dizer é que a utilização da hashtag, seja em ambiente digital ou não,
proporciona ao sujeito sua inscrição num movimento emancipatório que rompe o silenciamento
(político), abrindo os processos de significação a efeitos de resistência.
Pode-se ponderar que Kate se mobiliza a partir do momento que é interpelada
pelo Movimento #metoo. Antes disso, ela encontrava-se inerte, com o colchão a mostra na sala
de sua casa como um lembrete do abuso sofrido, sem poder sequer falar sobre a violência, em
um processo semelhante ao enlutamento. Ao ser indagada pela #metoo, ela responde ao abuso
ao assumir uma posição materializada em ato; é através dessa interpelação que Kate inscreve
um movimento subjetivo com efeitos coletivos, pois outras mulheres acabam por fazerem o
mesmo, indiciando processos de identificação.
Há aqui algo interessante a se observar: não apenas o Movimento #metoo sai do
digital e passa a circular também fora dele, mas também a própria utilização do recurso gráfico
#, de circulação específica nas redes digitais e ambientes web, passam à rua, num movimento
que vai das telas à circulação na cidade. Por meio desse traço significante característico do
digital, mulheres se posicionam face à violência, instituindo um novo ritual enunciativo; elas
passam a ocupar lugares outros de enunciação, abandonando uma posição de silenciamento: “A
55
minha começou aos 14 e termina hoje porque eu não estou mais em silêncio” (Fig. 5).
Temos um duplo movimento de (de)significação, em outras palavras, há sentidos
interditados, de-significados, por meio de censura, opressão e poder, que passam a se
ressignificar a partir do novo lugar de enunciação inaugurado pela #metoo e encontram um
lugar de ressonância na sociedade.
Um exemplo do silenciamento que sobrepõe discursos outros aos femininos, é o
caso de Marie Adler 40 , personagem fictícia baseada em uma vítima real de estupro que, ao
denunciar, foi desacreditada pelos policiais e pressionada a dizer que a violência não havia
acontecido. Ao coagirem a vítima, os detetives silenciam sua violência, saturando os sentidos
possíveis e fixando uma possibilidade única. Ou seja, a de que não houve violência contra a
vítima, o que se configura como outro tipo de violência.
A violência é uma maneira de silenciar as pessoas, de negar-lhes a voz e a
credibilidade, de afirmar que o direito de alguém de controlar vale mais do que o
direito delas de existir, de viver. [...] a violência é, antes de qualquer coisa, autoritária.
Ela começa com esta premissa: “Eu tenho o direito de controlar você”. [...] o desejo
de controlar provém de uma raiva que a obediência não consegue mitigar (SOLNIT,
2017, p. 17, p. 40).
Nesse sentido, e pensando nos processos de subjetivação, resgatamos a fala do
Procurador-Geral de Ohio, Mike Dewine no documentário Rede de Abuso, “Nós tínhamos
adultos que estavam francamente mais preocupados em proteger uma instituição e proteger
alguns jovens e não preocupados com a vítima.” (tradução e adaptação minhas), a vida da
mulher é subalterna não somente a vida masculina, mas às instituições e reputações, o que nos
faz evocar Butler (2015) em seu questionamento sobre enquadramentos seletivos e
diferenciados da violência. Embora a autora trate, em seu livro Quadros de Guerra, de
situações de conflito armado, nos interessa sua reflexão sobre quais vidas são mais vulneráveis
à violência e menos passíveis de luto. Para a autora (2015, p. 14) “[...] as molduras pelas quais
apreendemos ou, na verdade, não conseguimos apreender a vida dos outros como perdida ou
lesada (suscetível de ser perdida ou lesada) estão politicamente saturadas. Elas são em si
mesmas operações de poder.”. Conforme sustenta a autora, para Hegel e Klein, é possível que
“(...) a apreensão da precariedade conduza a uma potencialização da violência, a uma percepção
da vulnerabilidade física de certo grupo de pessoas que incita o desejo de destruí-las”
(BUTLER, 2015, p. 15).
Nota-se, na fala do procurador geral, que a vida da vítima a qual ele se refere é
40
Ver: Inacreditável – Netflix, 2019.
56
precária, uma vida que não vale a pena ser vivida e, por consequência, não sofre perdas, uma
vez que se protege a reputação e vida dos atletas em detrimento a vida da vítima.
2.1.1 A hashtag: do funcionamento técnico ao discursivo
Antes de seguirmos, é importante entendermos o funcionamento da chamada
hashtag. O símbolo # era utilizado em programação para outros fins, como marcar o início de
um número ou presença de uma constante octal 41 no nome de arquivo ou extensão. Ou até
mesmo em usos de telefonia na época de linhas fixas.
A mudança entre programação e ambiente de redes sociais se deu em 2007,
quando foi sugerido que o símbolo fosse utilizado no Twitter 42 como indexador de canais.
Apesar dos executivos da empresa não aderirem à ideia inicialmente, o uso se popularizou em
outubro do mesmo ano com o uso da #sandiegofire com o intuito de propagar notícias sobre o
incêndio que tomava o estado norte americano. Com a popularização, o recurso foi incorporado
pela rede social e passou a ser um de seus traços marcantes.
O uso de hashtags cria pequenos hiperlinks que permitem o agrupamento de
postagens com as mesmas marcações em um só lugar, criando assim comunidades discursivas,
o que Maingueneau (1997, p. 56) define como “o grupo ou a organização de grupos no interior
dos quais são produzidos, gerados os textos que dependem da formação discursiva.”, ou seja,
“designa os grupos que existem somente na e pela enunciação de textos que eles produzem e
fazer circular” (RODRIGUES, 2013, p. 40). Acerca disso, Costa (2019, p. 1314) afirma que “A
hashtag funda uma comunidade discursiva e delimita a defesa de determinada visão de mundo,
na mesma medida em que se abre ao diálogo e à polêmica”. Ao se clicar em uma dada hashtag,
o usuário será levado a publicações que também contém a marcação, o que torna possível filtrar
o que se consome, fazer pesquisas, etc. É importante ressaltar aqui que não há limitação de
lugares ideológicos nas marcações, o que significa que nem todas as postagens serão positivas
com coniventes com a postagem original ou com a intensão inicial daquele que a criou.
Com essa utilização, as postagens não ficam restritas a um único lugar ou
41
Constante não decimal que costuma aparecer em programação C.
42
Rede social criada em meados 2006 e 2007, pelos norte-americanos Jack Dorsey, Evan Williams e Biz Stone.
O nome se dá pelo inglês “tweet” – pio de pássaros (inspiração para a logo da marca) e uma pequena explosão de
informações inconsequentes. Até novembro de 2017, era possível escrever pequenas postagens de até 140
caracteres, número que duplicou após a data.
57
comunidade, passando a possibilitar o compartilhamento mundial, o que acabou por criar os
chamados trending topics, os assuntos mais discutidos, ou seja, mais marcados, do momento
no mundo. A #metoo se tornou trending topic no mundo todo com traduções como #eutambém,
no Brasil e variações, como #BalanceTonPorc 43 na França. Segundo a BBC Brasil (2017),
apenas dois dias após ser lançada, a hashtag já contava com mais de 200 mil
compartilhamentos.
Diante disso, observa-se que as diferentes formas de utilização da hashtag
evidenciam seu forte potencial discursivo, pois, mesmo que na superfície do digital elas
remetam a um caráter hipertextual, “elas indicam a existência de uma estrutura que relaciona de
modo complexo o arquivo e memória discursiva [...]” (SILVEIRA, 2015, p. 70).
Nossos traços digitais tornam nosso discurso investigável, o que lhe confere uma
dimensão linguística inédita: a memória discursiva, a intertextualidade, a
interdiscursividade, a polifonia e o dialogismo, que os linguistas devem às vezes
buscar interpretativamente nas camadas invisíveis do discurso, se tornam visíveis e
explícitas, e fora da construção do analista-intérprete. Isso deve transformar os
procedimentos da análise do discurso (PAVEAU, 2013, p. 6 apud SILVEIRA, 2015,
p. 70).
Em suma, a análise discursiva da hashtag #metoo permite pensarmos a relação
entre língua e sujeito e língua e ideologia, através do ritual enunciativo que se inaugura. Ao
fazer uso da hashtag #metoo, o sujeito inscreve seu discurso na memória discursiva do assédio
e a referida hashtag produz “um elo de memória na medida em que insere os discursos que a
mobilizam no fio determinado pela história da temática do assédio” (COSTA, 2019, p. 1317).
É importante considerarmos também a textualidade seriada (DIAS, 2019) que o
uso da hashtag produz e como isso impacta a circulação e o funcionamento discursivo dos
dizeres. Para além de uma circulação convencional digital, em que se clica num link ou se entra
diretamente num site, a hashtag cria um efeito cascata, em série, em que é possível acompanhar
um fio (Fig. 7). Como podemos observar na figura 5, a resposta pode ser ligada diretamente ao
tweet original, como em 1, ou a respostas derivadas de outras respostas, como em 2. Essa
serialização permite uma leitura em sequência, em fio, como é conhecida na comunidade. Dias
aponta ainda para um desdobramento no campo da interpretação e da leitura com o digital.
Segundo a autora, há processos “que fazem parte da materialidade do texto no digital, como o
da quantidade (viralização, compartilhamento) e o da plataforma (Youtube, Netflix, Facebook,
etc.)” (DIAS, 2019, p. 59).
43
Denuncie o seu porco – numa tradução livre.
58
Figura 7 – Fio Twitter.
1
2
Fonte: Perfil pessoal de Alyssa Milano, 2017 44 .
“O texto, redefinido, deve ser então considerado como o lugar material em que
a relação com a exterioridade produz seus efeitos, apresentando-se imaginariamente como uma
unidade na relação entre os sujeitos e os sentidos” (ORLANDI, 2011, p. 86). Assim, segundo
Dias (2020), a textualidade seriada é a unidade imaginária na qual a relação sujeito e sentido,
linguagem e exterioridade produzem os efeitos da tecnologia na sociedade.
Assim,
Uma textualidade se constitui por uma sequência de textualidades dispersas, mas
ligadas por um traço em comum, que faz série. Esse traço pode ser linguístico,
temático, imagético, de formato, performático, icônico (hashtag), técnico (thread) etc.
A série pode ser aberta ou fechada. Na fechada, algo marca o fim da série. Já a série
aberta é aquela que não tem essa marcação. Ambas se constituem por uma
textualidade sempre a ser expandida, mas que se encerra em si mesma, podendo ser
lida individualmente. Não há necessidade de ser “completada”, a incompletude
constitui textualidade no âmbito da série (DIAS, 2020, [n.p.]).
44
Disponível em: https://twitter.com/alyssa_milano/status/919659438700670976. Acesso em: 24 nov. 2020.
59
Essa incompletude de que fala Dias, não quer dizer que a série não possa ser
entendida ou interpretada, uma vez que há efeito de completude. O sujeito, ao se inscrever na
função-autor, confere esse efeito de completude para o texto, o que possibilita o entendimento
e a compreensão, mesmo que constitutivamente o discurso seja inacabado. É o que temos nesses
tweets, uma sequência de textualidade dispersa, ligada por um traço icônico e aberta.
2.2 UMA ESCRITA TODA NOSSA
Consideramos a escrita como um gesto de reinvenção dessa história/testemunho
de luta e luto. O gesto, na perspectiva da Análise de Discurso, é considerado um “ato em nível
simbólico”. Carrenho (2019) postula que o contar é paralelo ao processo de textualizar, “ao
produzir dizeres sobre um acontecimento, de maneira a estabelecer relações de causa,
consequência, protagonismo, ações, estados, temporalidade, entre outras, ao narrá-lo.”
(CARRENHO, 2019, p. 45).
A autora aponta ainda para duas instâncias do contar analisadas em sua
dissertação que são análogas as nossas análises: a persistência de um silêncio e o momento de
quebra desse silêncio, (CARRENHO, 2019, p. 48) sendo que ambos podem ser observados nas
figuras 6 e 8.
Figura 8 – Mensagem relato direto escrita no colchão.
Fonte: vídeo Youtube, 2017, 5:08. 45
Especificamente na figura 8, em que se lê “#eutambém molestada sexualmente
45
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jzc2lfxU_S0. Acesso em: 09 out. 2020.
60
e mandada me calar quando eu tinha 5 anos”, podemos observar a interdição do dizer quando
o abusador manda a vítima shut up, literalmente, calar-se. É possível perceber que o
silenciamento se dá em várias instâncias. Na figura, pelo uso do poder, e no caso de Lyle,
anteriormente analisado, pela ameaça e por sansões jurídicas. Há casos em que o aspecto moral
também é silenciador, como o de Steubenville, em que a idoneidade das garotas foi colocada
em xeque, sendo retratadas como gross (nojenta), whore (puta), cho cho (onomatopeia de trem,
faz referência a trenzinho, prática sexual em que homens revezam a mesma mulher. Usado tanto
em casos de estupro coletivo como em casos consensuais). O caráter moral do silenciamento é
velho conhecido das vítimas de assédio e abuso, das mulheres em geral, uma vez que casos de
estupro são, por exemplo, o único crime em que a vítima é colocada como foco do julgamento,
tendo que provar sua inocência. O caráter persecutório de denúncias sexuais é claro e pode ser
analisado em diversos exemplos, como o de Brooks, que precisou se demitir e procurar outro
emprego, enquanto seu abusador seguiu em sua função.
Várias outras mensagens podem ser lidas no colchão, mas para propósito de
análise separamos mais 4. A figura 9 nos interessa por mostrar um relato indireto, alguém conta
a história da irmã e da mãe.
Figura 9 – Mensagem relato indireto escrita no colchão.
Fonte: vídeo Youtube, 2017, 4:53 46
O que queremos apontar com essa imagem é que a escrita não serve apenas para
a ressignificação de si, de uma história própria, podendo ser usada também para reescrever a
história de outros. É importante também dizer que quando falamos de abusos e assédios, na
maioria das vezes, não apenas a vítima sofre. Há casos em que até mesmo pessoas que nem ao
46
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jzc2lfxU_S0. Acesso em: 09 out. 2020.
61
menos conhecem a vítima passam a se identificar e simpatizar com a sua situação, o que pode
ser elucidado pelo caso da modelo Mariana Ferrer, virgem, dopada e estuprada por André
Aranha. Antes mesmo de vídeos do julgamento do empresário vazarem, em que Mariana é
claramente colocada como ré e psicologicamente torturada por advogado, promotor, defensor
e juiz, a hashtag #justiçapormariferrer (e derivados) já estava nos trend topics do Twitter em
setembro, tendo retornado em 3 outubro de 2020 com novas informações do caso divulgadas
pelo The Intercept 47 . Não há nos tweets que usam a hashtag apenas mensagens de apoio a
modelo, é possível ler também mensagens de identificação como “A derrota de Mariana Ferrer
é uma derrota para TODAS AS MULHERES! 48 ”, mensagens que identificam e nomeiam todos
os homens envolvidos no vídeo e mensagens de mobilização social convidando para protestos.
Por conseguinte, vê-se que, com o advento do digital, a circulação permite processos de
identificação múltiplos, não restritos à geografia por exemplo. Iremos elucidar melhor como
esse digital afeta os modos de construção, formulação e circulação dos sentidos no capítulo
seguinte.
Figura 10 – Mensagem relato direto escrita no colchão.
Fonte: vídeo Youtube, 2017, 4:49. 49
Na figura 10 temos uma manifestação de corpografia, “O sujeito manifesta-se
corporalmente” através do uso “[d]os recursos oferecidos pelo programa do chat ou dos
recursos do próprio teclado [...]” (DIAS, 2004, p. 141), o interessante é que aqui não há mais a
presença do digital, se escreve de próprio punho no colchão, mas ainda assim se faz uso de
47
Caso Mariana Ferrer e o inédito estupro culposo. Disponível em:
https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/. Acesso em: 05 nov. 2020.
48
Disponível em: https://twitter.com/FuracaoLGBTQ/status/1323749379782643712. Acesso em: 05 nov. 2020.
49
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jzc2lfxU_S0. Acesso em: 09 out. 2020.
62
recursos tecnológicos, como o @ para substituir o at. Em inglês, os dois semas são homófonos,
ou seja, ambos são pronunciados da mesma maneira, assim a preposição “at” (no, na, em – em
português) pode ser substituída pelo “@”. A frase lê-se “at volleyball practice” - no treino de
vôlei.
Na figura 11 nos interessa “I h8”, outra substituição que classifica corpografia.
O numeral 8 em inglês é foneticamente /eɪt/, o que, acrescido do fonema /h/ corresponde a
pronuncia de hate (odeio, ódio) /heɪt/. Ou seja, o escrito I h8 no colchão, lê-se I hate, eu odeio.
Figura 11 – Mensagem relato direto escrita no colchão.
Fonte: vídeo Youtube, 2017, 4:49. 50
Essa maneira de grafar as palavras surgiu com os adventos tecnológicos, mais
especificamente com a internet, em que a velocidade é primordial para a comunicação. Num
sistema que em segundos apresenta milhões de resultados para pesquisas globais, os jovens
(principalmente) passam a usar supressões, trocas, inversões, substituições, etc. tudo para
aumentar a velocidade de comunicação. Entendemos que a velocidade não é o único fator
implicado nesse processo, mas não nos interessa aqui aprofundarmos essa discussão. Nos
interessa que, ao nos apropriarmos dessa língua, nos apropriamos também de um espaço de
criação que é a internet, mas não somente, e a partir dela criamos um mundo de condições para
que esse processo criativo ganhe forma. Dias (2009, p. 906) aponta que, “grafar uma palavra
de determinado modo dá corpo ao sentido do que se quer dizer”, o que ela chama em seus
estudos e pesquisas de corpografia.
50
Ibidem.
63
2.2.1 Corpografia: escrita e corpo no digital
Para compreendermos a noção de corpografia cunhada por Cristiane Dias
(2004), é preciso antes entendermos o que a autora entende por língua e o que a internet traz de
diferente para a discussão. A AD entende língua enquanto materialidade e diretamente
relacionada com a exterioridade. Para ter sentido, é necessário que seja atravessada pela
história, “pelo equívoco, pela opacidade, pela espessura material do significante” (ORLANDI,
1999, p. 47). Partindo dessa noção, Dias (2008) pauta seu conceito no simulacro da língua na
escrita digital e
propõe em seus traços uma forma corpográfica do pensamento. Isso porque pretende
descrever o modo como o corpo se inscreve materialmente na língua, pela composição
do impossível do corpo e do impossível da língua. O impossível é, portanto, o lugar
de encontro entre língua e corpo, no qual ancoro a concepção de corpografia, tomando
a língua como simulacro do corpo e não apenas como representação do pensamento
(DIAS, 2008, p. 12).
Através do teclar, digitar, inscrevemos o corpo, “o sujeito deixa vestígios de si
mesmo, de suas sensações e sentimentos, no corpo das palavras” (DIAS, 2004, p. 141). É
imprescindível “compreender o modo de constituição do sujeito no espaço específico da
Internet, o sujeito experimentando a si mesmo nesse espaço constituído de territórios fluidos”
(DIAS, 2008, p. 12), criando, através da escrita, elos de pertencimento a uma comunidade,
cultura, sociedade etc.
É fundamental que se leve em consideração as condições de produção que
atravessam a língua em sua constituição, além do suporte onde se encontra tal utilização.
Explico. A depender do suporte, como por exemplo o Twitter, há limitações específicas da
própria plataforma, como por exemplo a impossibilidade de utilização de mais de 280 caracteres
por tweet. Algumas redes sociais não permitem o envio de gifs, vídeos, etc. O uso de emoticons,
linguagem abreviada, substituição e supressão de letras, uso de figurinhas, gifs etc., são próprios
da linguagem digital da internet, que já não se limita mais à linguagem da programação.
“O que define particularmente a corpografia é que ela não representa nem imita
uma emoção, mas ela cria essa emoção, nas condições de produção muito específicas do uso
do computador” (DIAS, 2008, p. 20). Dias continua, “o que tenho chamado corpografia, é,
portanto, essa textualização do corpo na letra.”
Essa noção é relevante para nossas análises por ser o digital nosso suporte e meio
64
de formulação e circulação. É através desse novo gesto de escrita que os corpos silenciados por
abusos e assédios irão buscar a ressignificação e ocuparem um lugar outro de enunciação.
Figura 12 – Mensagem escrita no colchão.
Fonte: vídeo Youtube, 2017, 5:12 51
“Assim, ao inventar uma grafia, o sujeito deixa vestígios de si mesmo, de suas
sensações e sentimentos, no corpo das palavras” (DIAS, 2004, p. 141). Isso pode ser observado
não somente na figura 12 com as carinhas de feliz, :) ou ainda *--*, mas também nas figuras
anteriores (Fig. 10 e 11), em que a substituição de letras por caracteres digitais pode ser vista
como uma forma de inscrever o corpo na materialidade, “como define Paveau (2015) 52 ,
produzindo uma digitalidade do sentido, pela escrita corpográfica. Uma inscritura do sujeito”
(DIAS, 2019, p. 69)
2.3 MEMÓRIA METÁLICA E MEMÓRIA DIGITAL
Segundo Cristiane Dias (2018), “[...] o que sustenta a formulação dos dizeres no
digital é a sua própria circulação [...]”, sendo “[...] as formas de circulação e replicação no meio
digital [...] o próprio aqui e agora, singulares em sua aparição” (DIAS, 2018, p. 34). Para
discorrer sobre isso, abordamos o conceito de memória metálica para, na sequência, lançar um
olhar para a noção de memória digital, elaborada por Dias (2018), procurando estabelecer uma
51
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jzc2lfxU_S0. Acesso em: 09 out. 2020.
52
PAVEAU, Marie-Anne A. Linguagem e Moral. Trad. Ivone Benedetti. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.
65
relação entre a memória digital e os modos de circulação dos sentidos no digital.
O conceito de memória metálica apresentado por Orlandi (1996) para denominar
a memória produzida pela informatização dos arquivos, ou seja, por novas tecnologias digitais
como a internet, é essencial para o desenvolvimento dessa pesquisa não apenas por si só, mas
por dar origem ao conceito memória digital, cunhado por Cristiane Dias.
Para problematizar as tecnologias informacionais e digitais, temos a memória
metálica, “a da informatização, a digital, a da informação de massa: a que serializa, repete na
horizontalidade, sem se historicizar. Memória descartável” (ORLANDI, 2014, p. 6). Para a
autora, a não distinção de posições pela linearização do interdiscurso, sem que se considere a
forma material dos dizeres, dos sentidos e das palavras é o que produz “o efeito de onipotência
do autor e a sensação do deslimite dos meios” (ORLANDI, 2007a, p. 16).
Essa ideia de onipotência se dá, de acordo com a autora, graças ao capitalismo,
no que denomina domínio pessoal através do “se eu quiser, eu posso tudo”, ou através do
coletivo “juntos podemos tudo”. Segundo a autora (2012), “esquecendo o real e o
atravessamento do poder (a força) e o atravessamento do sentido (a ideologia, o equívoco),
sugerem que quando se quer se pode tudo fazer” (ORLANDI, 2012, p. 213).
Para a autora, os processos de informatização modificam de fato a relação autorescrita
em função da modificação da materialidade da memória discursiva, que passa a ser
algoritmizada. Segundo Dias (2016), o termo teria sido cunhado pra dar conta teoricamente
desta “ilusão da memória infalível da informatização dos arquivos”, evidenciada tecnicamente
pela aparente infalibilidade e infinitas possiblidades físicas (DIAS, 2016, p. 12).
A diversificação dos meios de fato acontece pela informatização e pela mídia,
contudo há uma homogeneização dos efeitos que acabam por levar à sensação de “deslimitada
produção do mesmo, pelo esvaziamento, pela estabilização dos percursos” (ORLANDI, 2007a,
p. 16). A autora postula que, apesar da aparente “não falha” e infinita possibilidade de expansão,
a memória metálica “só produz o mesmo em sua variação, em suas combinatórias” (ORLANDI,
2007a, p. 16), uma memória ideologicamente transparente, infalível e ilimitada.
Retomando o que falamos anteriormente sobre sujeito e materialidade, é
importante ressaltarmos que
A informatização, a prática da escrita de textos no computador, assim como os modos
de ler, transforma efetivamente a relação do sujeito, do autor com a escrita e com o
que é ler, em função da mudança da materialidade da memória (arquivo),
algoritmizada, nesse caso, e da relação com a exterioridade do dizer. E aí se inauguram
outras formas de pensar e compreender a linguagem (ORLANDI, 2009, p. 66).
66
Dias cunha, pois, outro termo para complementar o de Orlandi, memória digital,
aquele “resíduo que escapa à estrutura totalizante da máquina e se inscreve já no funcionamento
digital, pelo trabalho do interdiscurso” (DIAS, 2016, p. 12), aquilo que foge, “que atualiza o
mesmo em sua variedade e se inscreve no funcionamento do discurso digital. Estaria aí a
possibilidade de deslocamento do sentido” (DIAS, 2019, p. 72).
É a memória que pode vir a escapulir dos dispositivos informatizados,
dispositivos esses responsáveis pela aplicatização da memória 53 , “pensada como um resíduo
da própria repetição, reformulação, numerização, se inscreve como possibilidade de
desregulação da reformulação do sentido superficial.” (DIAS, 2019, p. 71). A memória digital
é, então, aquela que atualiza o já-dito em sua variedade e se inscreve no funcionamento do
discurso digital.
Destarte, as análises aqui apresentadas englobam elementos diretamente
dependentes da memória digital, como o mote me too, que é atualizado para #metoo e ganha
novos contornos, lugares e rituais através do discurso digital e seu funcionamento.
53
Ver: TORRES, Cleyton Carlos. Aplicatização da memória: memória plástica digital. In: Entremeios, v. 15, jul.-
dez. 2017, p. 357-367.
67
3 A TRANSFORMAÇÃO DO LUTO EM LUTA
Although our world is full of suffering,
it is full also of the overcoming of it.
Helen Keller 54
No subcapítulo 2.1 Interpelação e processos de identificação em “Essa é minha
história de estupro #metoo” conhecemos Kate, sua história e seu colchão, objeto que ela usa
como forma de interpelar outras mulheres a ressignificarem suas histórias de violência, depois
que ela mesma é interpelada pelo Movimento Metoo. Kate encerra seu luto e convida outras a
fazer o mesmo. Contudo, o que entendemos como luto? O que são processos de enlutamento?
Quando eles aparecem? E mais importante, quando podem aparecer e serem vividos? E trauma?
Onde o trauma entra nos processos de enlutamento? É possível dissociá-los? E o que esses dois
têm a ver com processos de ressignificação? Essas perguntas traçam um panorama norteador
para as questões e análises abordadas nesse capítulo.
3.1 A INSTÂNCIA DO LUTO
A priori, o luto é um conceito psicanalítico e, segundo Freud (1917, p. 249), “é
a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um
ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém.” Assim, o luto é a reação a uma
perda, não necessariamente de alguém, uma perda de algo significativo, perdido de forma
natural ou violenta, indaga Dunker: “O que é que foi que foi perdido nessa perda? Bom, talvez
a gente jamais vá saber exatamente o quê.” (2019, p. 32). O autor continua, “o luto não é só um
evento, o luto é um modo de subjetivação, é um modo de relação com o outro permanente.”
Ancorado em Freud, o pesquisador afirma que “cada estrutura vai viver o luto com os recursos
que ela possui e com as dificuldades que ela possui” (DUNKER, 2019, p. 38). E agora, o luto
54
Apesar de nosso mundo estar cheio de dor, está também cheio de superação. (Helen Keller)
68
é coletivo ou individual? Pode ou não ser vivido? Quando deve ser vivido?
Essas perguntas não são fáceis de serem respondidas e talvez nem possam, mas
faremos um esforço para abordar todas elas e tentar, à luz de nossas análises, respondê-las.
Dunker nos ensina que o luto é algo coletivo por envolver uma instância social, pois “pessoas
desencaminhadas no seu luto são pessoas perigosas” (p. 38), pessoas enlutadas precisam ser
acolhidas e cuidadas para que não se tornem violentas e um perigo para a sociedade, precisam
ser entendidas. Quando o autor diz que as pessoas desencaminhadas no seu luto são perigosas,
não se refere somente a instância física, como exemplifica com o caso do tiroteio de Suzano 55 ,
mas a um perigo de si, um perigo de adoecimento, como relata Penna (2015) sobre os
sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, que adoeceram 15 ou 20 anos após a guerra por um
luto silenciado. O luto precisa ser tratado como instância coletiva para que possa ser vivido e
termine. Para o Dunker, o “luto é complicado, porque ele nos coloca nessa dimensão do infinito.
O luto de um, vira o luto de todos nós, dos que já foram, dos que estão e dos que virão.” (p. 39).
Contudo, não é esse tipo de rito de luto que nossa sociedade promove. O que temos é um luto
privado, relegado ao indivíduo, um rito individual em que cada um escolhe o que fazer com seu
sofrimento e dor. Um rito que, do ponto de vista social, tem que acabar logo, porque a vida
precisa continuar. Sete dias de folga se um dos pais morre, nenhum dia de folga se o cachorro
morre. As leis sociais vão moldando o prazo do luto e o luto em si. Quem são as pessoas
autorizadas a passar pelo luto? Quem são as pessoas autorizadas a serem enlutadas?
Butler vai afirmar que a instância social é um dos determinantes da precariedade
da vida. A autora teoriza que algumas vidas são “consideradas vivíveis e passíveis de luto”
(2015, p. 252) e há aquelas que são tão precárias que nem são consideradas vidas, portanto, não
são vivas e nem podem morrer, não sendo passíveis de luto. “Afirmar que a vida é precária é
afirmar que a possibilidade de sua manutenção depende, fundamentalmente, das condições
sociais e políticas, e não somente de um impulso interno para viver” (BUTLER, 2015, p. 36).
Não basta que o indivíduo queira viver ou que a sociedade queira que ele viva, é preciso que
haja condições de vida e manutenção dessa vida. Não há regras evidentes que coloquem em
xeque quais são as vidas vivíveis e as precárias, apesar de termos uma ideia disso a partir de
um ponto de vista sócio-histórico. Retomando o exemplo do documentário Rede de Abusos e a
fala do Procurador-Geral de Ohio, Mike Dewine, “Nós tínhamos adultos que estavam
55
O Massacre de Suzano ocorreu em 13 de março de 2019. Luiz Henrique de Castro (25 anos) e Guilherme Taucci
Monteiro (17 anos) invadiram a Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano - SP, armados de um revólver, uma
machadinha, uma besta com dardos, coquetéis molotov e bombas falsas. Os dois mataram 10 pessoas e feriram
outras 11. Após o massacre, Guilherme matou o comparsa e, em seguida, cometeu suicídio.
69
francamente mais preocupados em proteger uma instituição e proteger alguns jovens e não
preocupados com a vítima.”, ou seja, as vidas dos atletas (abusadores) eram vidas vivíveis, que
valiam a pena ser protegidas, até a mesmo a reputação das universidades deveria ser cuidada e
protegida de escândalos, já as vidas das mulheres (sobreviventes) eram precárias, não passíveis
de proteção e nem de luto, em nenhuma instância.
Butler nos diz que,
aquele que decide ou assegura direitos à proteção o faz no contexto de normas sociais
e políticas que enquadram o processo de tomada de decisão, e em contextos
presumidos nos quais a afirmação de direitos possa ser reconhecida. Em outras
palavras, as decisões são práticas sociais, e a afirmação de direitos surge precisamente
onde as condições de interlocução podem ser pressupostas ou minimamente invocadas
e incitadas quando ainda não estão institucionalizadas (BUTLER, 2015, p. 36).
Isso evidencia uma vertente política não somente nessas decisões, mas também
no luto em si. Segundo a filósofa, “somos constituídos politicamente em parte pela
vulnerabilidade social dos nossos corpos – como um local de desejo e de vulnerabilidade física,
como um local de exposição pública ao mesmo tempo assertivo e desprotegido.” (2019, p. 28)
“Essa vulnerabilidade, no entanto, torna-se altamente exacerbada sob certas condições sociais
e políticas, especialmente aquelas em que a violência é um modo de vida e os meios para
garantir a autodefesa são limitados.” (2019, p. 35).
Em Quadros de Guerra, Butler vai argumentar, como fizeram Hegel e Klein, que
a percepção da precariedade conduz à potencialização da violência, um entender que, graças à
vulnerabilidade física de certo grupo, eleve o desejo de outrem em destruí-los. Não seria isso a
violência contra mulheres? Destruí-las parece excessivo, mas talvez não seja.
Pensemos nos seis casos de feminicídio que fizeram manchetes no natal de
2020 56 : Viviane Vieira do Amaral, juíza, 45 anos; Thalia Ferraz, 23; Evelaine Aparecida
Ricardo, 29; Loni Priebe de Almeida, 74; Anna Paula Porfírio dos Santos, 45; e Aline Arns, 38.
As seis mulheres foram mortas pelos companheiros ou ex-companheiros. Simplesmente por
serem mulheres. Tiros e facadas têm esse intuito, se não matar, mas ferir profundamente.
Poderíamos dizer o mesmo para outros casos de violência? Destruir alguém se resume apenas
à morte?
Essa destruição está intimamente ligada à misoginia, que coloca a mulher como
o outro, inferior, indesejável, ameaçador e que deve ser eliminado. Um ódio ao feminino que
56
Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/no-periodo-de-natal-pelo-menos-seis-mulheres-foramvitimas-de-feminicidio-no-pais-24813436.html.
Acesso em: 01 fev. 2021.
70
se concretiza em violência.
O mundo programado da desigualdade demora a assimilar cada novo sujeito que
chega e reage a isso. No caso das mulheres, a reação advém não apenas dos homens,
indivíduos concretos, mas de todo um conjunto fundado em valores materiais e
simbólicos resultantes da “valência diferencial dos sexos” – termo cunhado pela
antropóloga feminista francesa Françoise Heritier –, que significa que a mulher vale
menos que o homem no todo social.
Assim sendo, todos somos socializados com este “molde mental” que tem efeitos na
subjetividade de homens e de mulheres. Quando a situação das mulheres se modifica,
ela afeta o conjunto das relações sociais, desestabilizando certezas prévias e
deslocando posições de poder e prestígio; com isto, elas se tornam sujeitos de suas
próprias biografias e sujeitas, também, aos riscos, o que inclui os diversos tipos de
violências [...] (GONÇALVES e BORGES, 2011, [n.p.]).
Como já dissemos, os homens são moldados por comportamentos encorajados
de violência. Em contraste, as mulheres são colocadas como seres delicados, que devem ser
cuidados, “vistos mas não ouvidos”, seres objetos que devem ter medo e serem passivos. E isso
mina a capacidade da mulher em reagir à violência, relegando-a ao lugar de silêncio. Elaine
Gonçalves e Lenise Borges (2011) afirmam que “a crença na passividade das mulheres, na
impunidade dos homens e na inviolabilidade da família ajuda a alimentar o pacto de silêncio e
o ciclo perverso da violência”, o que pode ser observado a seguir.
O documentário No Coração do Ouro - O Escândalo da Seleção Americana de
Ginástica 57 , expõe a rede de abusos que ocorria na seleção olímpica de ginastas estadunidenses
de 1997 até o ano de 2018, quando o médico Larry Nassar foi preso e condenado a 360 anos de
prisão por abusar de mais de 260 mulheres. A primeira mulher a abertamente nomear Nassar
como seu agressor foi Rachel Denhollander, uma ginasta inspirada por uma série produzida
pelo The Indianapolis Star, um jornal diário publicado desde 1903. A ginasta leu a reportagem
sobre abusos cometidos pela comissão, sem que o nome do médico fosse mencionado, e
resolveu ligar para o jornal e contar sua história. Em setembro de 2016, Nassar se declarou
culpado de posse de pornografia infantil, mas em setembro de 2017 ele ainda enfrentava 25
acusações de abuso sexual. Foi nessa época que o caso Harvey Weinstein e a #metoo vieram à
tona, o que fez com que mais atletas viessem a público, inclusive ginastas medalhistas olímpicas
como Aly Raisman, McKayla Maroney e Simone Biles. Biles postou sua história no Twitter
com os dizeres “Feelings... #metoo” (sentimentos... #eu também) e seu relato, (Fig. 13).
Biles relata:
A maioria de vocês me conhece como uma garota feliz, energética e risonha, mas
57
Disponível na HBO.
71
ultimamente... eu tenho me sentindo um pouco quebrada e quanto mais eu tento calar
a voz em minha cabeça, mais alto ela grita. Eu não tenho mais medo de contar minha
história. [...] (2018 – tradução minha).
Figura 13 – Tweet relato Simone Biles
Fonte: Conta pessoal da atleta, 2018 58 - adaptado.
A postagem de Biles conta atualmente com 19,9 mil retweets, 2.380 comentários
e 98,1 mil curtidas 59 . Temos novamente a importância da circulação digital, com efeito no real
da história, uma vez que, através das novas denúncias que circularam no Twitter ou em outras
mídias, novas vítimas foram adicionadas ao processo judicial e contribuíram para a condenação
do médico. Iremos abordar a juridicização mais à frente, com a abordagem de Shoshana Felman
que afirma haver “uma relação fundamental, do direito com o amplo fenômeno do trauma
cultural ou coletivo” (2014, p. 92).
Retomando o questionamento “destruir é apenas matar?”, evocamos o relato de
Kyle Stephens, já no julgamento de Nassar, relatando o relacionamento dela com o pai, após
contar, aos 12 anos, que era abusada pelo médico desde os 6:
[...] Para o meu pai, alguém que faz acusações falsas e tão hediondas é o pior tipo de
pessoa. Sua crença de que eu mentira se infiltrou na fundação do nosso
relacionamento. Toda vez que brigávamos, ele dizia: “você precisa de desculpar com
Larry”. Não foi até que eu estava prestes a ir embora para a faculdade que tentei
novamente limpar meu nome. As ações de Larry Nassar já haviam me causado
angústia significativa, mas eu machuquei ainda mais quando vi meu pai perceber o
que havia me feito passar. Meu pai e eu fizemos o nosso melhor para consertar nosso
relacionamento esfarrapado antes que ele cometesse suicídio em 2016.
58
Disponível em: https://twitter.com/simone_biles/status/953014513837715457. Acesso em: 02 fev. 2021.
59
Dados de 04 fev. 2021.
72
É interessante notar que, além da vida da atleta, a vida do pai também foi
destruída quando se suicida pela dor que causou à filha. No depoimento a atleta chora e treme,
seu corpo fala, externaliza a dor que sente e sentiu.
Assim, temos a violência que não somente destrói seu objeto direto, mas vai aos
poucos corroendo tudo que toca, tudo ao seu redor, tendo causado dor tamanha que somente a
morte é capaz de cessar sua latência.
A próxima fala que pretendemos analisar é de Melody Posthuma, uma ex
dançarina que relata, junto a outras ginastas, sua relação com Larry e os tratamentos médicos
que recebia (Fig. 14).
Figura 14 - Melody Posthum
Fonte: No Coração do Ouro - O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 21:29, 2019.
Você sempre escuta de treinadores e professores “sem dor, sem ganho”, então quando
algo é doloroso, você está pensando “isto está me ajudando e eu estou melhorando
por causa disso”. Eu me lembro de pensar “Posso sobreviver a isso por mais dois
minutos?” Olhando o relógio do meu celular, esperando cinco minutos passar, dez
minutos passar até 45 minutos ou uma hora. Então suas consultas eram de duas horas
de duração. Minha análise é de que uma hora era médica, profissional e a segunda
metade era sexual.
Melody Posthum busca no relógio o refúgio mental contra a violência, vendo os
ponteiros passarem e se perguntando “posso sobreviver a isso por mais dois minutos?”.
Crianças, adolescentes, mulheres vítimas de uma violência tão brutal que a dormência e o
refúgio mental são os únicos aliados para conseguirem sobreviver. Elas não são viventes, são
sobreviventes. Seria destruir relegar mulheres a um lugar particular de fuga dentro de si mesma
para que o tempo passe?
Taylor Livingston, ex-ginasta diz: “a razão pela qual Larry era um médico tão
bom, era porque você não sentia nada depois, não apenas física, mas emocional e mentalmente.
73
Você tinha que bloquear. Você tinha ou você vai desmoronar” (Fig. 15). A atleta usa bloquear
em sua descrição, é preciso bloquear o que estava acontecendo, o que aconteceu, pois, sentir e
reconhecer o abuso, iria lhe desmontar, “você vai desmoronar”, cair em pedaços. O
reconhecimento do abuso, do trauma é também uma forma de reconhecimento da própria dor.
Seria relega-las à dormência de si próprias para que pudessem aguentar?
Figura 15 – Taylor Livingston
Fonte: No Coração do Ouro - O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 25:45, 2019.
No documentário Atleta A, que aborda o mesmo escândalo dando ênfase às
reportagens e implicações posteriores ao julgamento, o advogado John Manly diz: “foi isso que
ele fez, ele roubou essa parte delas e elas estão lutando para recuperá-la”. Destruí-las pode ser
interpretado com roubar parte de alguém e relegar essa pessoa ao sofrimento sem
reconhecimento, um sofrimento privado que a sociedade nem ao mesmo reconhece.
3.1.1 Disenfranchised Grief
Analisando o que vimos até aqui, em especial o luto e a vida precária,
gostaríamos de introduzir um conceito que se relaciona diretamente aos dois: disenfranchised
grief. Kenneth Doka que cunha o termo (2002) 60 para se referir ao luto que não tem permissão
60
Apesar do site Descritores em Ciências da Saúde trazer a tradução do termo como “luto contido”, optamos aqui
por não o traduzi-lo por entendermos que o processo de luto é algo pessoal e não necessariamente contido,
relegando a cada pessoa/situação a forma de enlutamento possível. Não é possível que generalizemos
disengranfrased grief como contido, podendo ele assumir diversas formas. Portanto, levaremos em conta como
um luto privado de reconhecimento, precário, uma face política, análoga à definição de Butler (2015) de vida
precária.
74
de ser sentido, vivido. Segundo os descritores em ciências da saúde (1987), luto “refere-se ao
processo completo de pesar e luto e está associado a um sentimento profundo de perda e
tristeza”, ou seja, o conceito não carrega em si a descrição de quem, por quem e por quanto
tempo deve-se ou pode-se sentir luto. No entanto, há lutos mais passíveis de serem vividos,
análogos a “vida precária” de Butler.
O conceito de disenfranchised grief reconhece que sociedades têm conjuntos de
normas – efetivamente, “normas para o luto” – que tentam especificar quem, quando,
onde, como, por quanto tempo e por quem as pessoas deveriam se enlutar. Essas regras
de enlutamento podem se codificar como políticas de pessoal. Por exemplo, um
trabalhador pode ter uma semana de folga pela morte de seu cônjuge ou filho, três dias
pela perda de um parente ou irmão. Tais políticas refletem o fato de que cada
sociedade define quem tem o legítimo direito de enlutar-se, e esses direitos
correspondem a relacionamentos, primordialmente familiares, que são socialmente
reconhecidos e sancionados.
Contudo, essas normas de enlutamento podem não corresponder à natureza da ligação,
ao sentido de perda, ou aos sentimentos de sobreviventes logo, é disenfranchised grief.
(DOKA, 1999, p. 37 – tradução e grifos meus).
Assim,
Disenfranchised grief pode ser definido como o luto experenciado por aqueles que
sofrem uma perda que não é, ou não pode ser, abertamente reconhecida, publicamente
chorada ou socialmente suportada. Isolado em privação, pode ser muito mais difícil
sofrer e reações são frequentemente complicadas (DOKA, 1999, p. 37 – tradução e
grifo meus).
Observamos que a fala do autor também judicializa o luto, face que ainda iremos
abordar, mas compreendemos que há uma outra face dessa judicialização que nos interessa por
ter relação direta com o a precariedade da vida, conforme Butler (2015). Explica Bocchi que
é possível considerar que essas imagens-testemunho se constituem, então, a partir de
um anseio por justiça e se encontram ancoradas nas histórias vivenciadas por sujeitos
garantidos por sua identidade social e seu estatuto jurídico. Em outras palavras, tratase
de discursos nos quais a forma-sujeito de direito e a evidência lógico-jurídica
(PÊCHEUX, 2009) se produzem, em um funcionamento que explicita um processo
de judicialização do trauma, amparado na crença de que a não violência pode ser
assegurada pela esfera jurídica. Um desejo de justiça que, nesses recortes, produz
efeitos de denúncia de uma realidade de violência e busca por reparação, tecendo-se,
então, numa certa relação com o político (2019, p. 24-25).
Butler (2015) postula que todas as vidas são precárias por serem dependentes de
aparatos sociais e umas das outras, e que é necessário
[...] considerar a condição precária como uma condição existente e promissora para
mudanças em coligações. Para que as populações se tornem lamentáveis, não é
necessário conhecer a singularidade de cada pessoa que está em risco ou que, na
realidade, já foi submetida ao risco. Na verdade, quer dizer que a política precisa
75
compreender a precariedade como uma condição compartilhada, e a condição precária
como a condição politicamente induzida que negaria uma igual exposição através da
distribuição radicalmente desigual da riqueza e das maneiras diferenciais de expor
determinadas populações, conceitualizadas de um ponto de vista racial e nacional, a
uma maior violência (BUTLER, 2015, p. 50).
Se, dentro de uma sociedade, vidas são precárias e lutos não podem ser vividos,
a ideia de coletividade se mostra falha e
Uma vez que o estado da consciência humana e o estado das forças sociais de
produção abandonaram essas ideias coletivas, essas mesmas ideias adquirem
qualidades repressoras e violentas. [...] é essa violência e esse mal que colocam os
costumes em conflito com a moralidade [...] (ADORNO, 2001, p. 17 apud BUTLER,
2015, p. 14).
Para elucidar esse tipo de luto, evocamos a fala de Tarana Burke em uma palestra
TED 61 : “Tenho viajado por todo o mundo dando palestras, e, frequentemente, depois de cada
evento, algumas pessoas me abordam para conversar comigo em particular.” Em particular esse
luto pode ser vivido, narrado. Mas só em particular. Butler (2020) diz que “uma forma
puramente privada de luto é possível, mas não pode amenizar o grito que deseja que o mundo
testemunhe a perda.” A impossibilidade de um luto público significa vivenciar e decifrar a perda
de outros (sejam pessoas ou coisas) de uma maneira diferente daquela que nos permite marcar,
registar e compartilhar o luto. Apesar de a internet ter reivindicado esse lugar de “nova esfera
pública, como marca a autora, o espaço digital não supri os rituais de enlutamento coletivos que
se mostram faltantes em situações como as de violência contra a mulher.
Ao refletir sobre o luto em tempos de pandemia da covid-19 62 , Butler pondera
sobre algo que nos é caro também aqui.
Aprender a enlutar-se pelas mortes em massa significa marcar a perda de alguém cujo
nome você não sabe, cuja língua você talvez não fale, que vive a uma distância
intransponível de onde você mora.
Não é preciso conhecer a pessoa perdida para afirmar que isso era uma vida. O que se
lamenta é a vida interrompida, a vida que deveria ter tido a chance de viver mais, o
valor que a pessoa carrega agora na vida dos outros, a ferida que transforma
permanentemente aqueles que sobrevivem. O sofrimento de um outro não é o seu
próprio, mas a perda que o estranho suporta atravessa a perda pessoal que sente,
potencialmente conectando estranhos em luto (BUTLER, 2020, [n.p.] – grifos meus).
Não estamos valorando vidas perdidas na pandemia do novo coronavírus na
61
Disponível em: https://www.ted.com/talks/tarana_burke_me_too_is_a_movement_not_a_moment. Acesso em:
10 fev. 2021.
62
A pandemia de covid-19 teve início em 2019 na China com uma nova variante de coronavírus, assolando o
mundo, tendo matado até o presente momento (24 mar. 2021) 2.736.298 pessoas no mundo todo.
76
mesma medida que a violência sofrida pelas mulheres e analisada nessa pesquisa, mas podemos
entender de forma similar a perda sofrida por essas mulheres e o luto que não pode ser vivido
por elas. A ferida que transforma permanentemente aqueles que sobrevivem. Há algo marcado
nas sobreviventes, uma cicatriz invisível de uma violência que a sociedade muitas vezes se
recusa a enxergar.
3.2 A INSTÂNCIA DO TRAUMA E DO TESTEMUNHO
Eu jurei não me calar frente à tortura, à barbárie.
Então, estive por trás de denúncias públicas, de
falar publicamente, de dizer a minha verdade.
Rigoberta Menchú
O trauma, assim como o luto, é um conceito psicanalítico e, segundo Penna, “é
muito difícil falar de luto e perda sem relacioná-los com o trauma, pois em uma dada dimensão
toda perda é traumática” (2015, p. 11). Para a autora, “o entorpecimento e o bloqueio afetivo
sentido, aliviavam os efeitos dolorosos da angústia excessiva” (2015, p. 15), como vemos na
fala de Melody Posthum (Fig. 14) “Eu me lembro de pensar ‘Posso sobreviver a isso por mais
dois minutos?’ Olhando o relógio do meu celular, esperando cinco minutos passar, dez minutos
passar até 45 minutos ou uma hora”. Há um entorpecimento, uma fuga, como se olhar fixamente
para o relógio e ver a hora passar tornasse a situação de violência tolerável.
O que acontece no trauma é um registro “literal” do evento traumático, dissociado dos
processos cognitivos habituais que não pode ser conhecido, nem tampouco
representado, retornando de forma repetida e reencenada na forma de flashbacks,
pesadelos e repetições. No trauma, ocorre um “colapso da representação performática
da linguagem” (CARUTH, 1995, p. 12) similar a uma morte e assim um deathlike
break (CARUTH, 1995, p. 14) passa a residir no coração do trauma (PENNA, 2015,
p. 15-16).
Já Carrenho (2019) ancorada em Levi (2014), Agamben (2008), Felman (2014)
e Mariani (2016), fala sobre a dimensão do trauma, uma dimensão que “barra a possibilidade
de entrada da experiência no âmbito do vivido e do reconhecido/reconhecível, fazendo
permanecer para o sujeito justamente o impossível da experiência, o impossível de significála.”
(p. 50),
77
Assim, não é possível chegarmos a uma definição concreta e fixada do que é ou
não uma experiência traumática pois, como problematiza Carrenho,
primeiro lugar, ser o que foge à estrutura, ao mesmo tempo em que é
fundamentalmente relativa a essa estrutura que, como proposto, jamais podemos
delimitar em totalidade, pois no preciso momento em que pensamos tê-lo feito ela já
se reorganizou, já se tornou outra. Em segundo lugar, o sujeito só significa a
experiência como traumática no depois, de forma que o trauma é produzido
retroativamente (CARRENHO, 2019, p. 52).
Contudo, apesar de não haver uma definição fixada para trauma, é nas sutilezas
dos movimentos de (re)significação de eventos traumáticos a partir de processos de
identificação, como o uso da #metoo, que evidenciamos a existência dos mesmos.
Um testemunho de vida não é simplesmente um testemunho de uma vida privada, mas
um ponto de confluência entre texto e vida, um testemunho textual que pode nos
penetrar realmente como uma vida. (...) E ainda, ao passo que testemunhar é,
paradoxalmente suficiente, uma nomeação para transgredir os limites desse
isolamento, de falar por outros e para outros (FELMAN, 1992, p. 2-3 - grifos da
autora, tradução minha).
Trabalhamos até aqui com a análise da figura 14, contudo, com a fala de Felman
“de falar por outros e para outros”, podemos retomar a figura 9, já analisada, em que alguém
escreve por sua mãe e sua irmã, “Minha mãe, também, andando pela rua / Minha irmã, também,
no meu casamento”. O testemunho que quebra o isolamento não precisa ser de si, mas de outras,
um poder de fala que rompe com o silenciamento. Ou quando se escolhe falar através do outro,
como é o caso da ginasta estadunidense Maggie Nichols. Nichols era chamada de Atleta A nos
autos do processo contra o médico Larry Nassar e só decidiu se identificar no julgamento,
através de uma declaração lida por sua mãe. É a mãe de Maggie, Gina Nichols quem lê a
declaração no julgamento frente a Nassar.
Felman vai, em O Inconsciente Jurídico (2014), trazer a fala de Hanna Arendt
sobre trauma, “é algo que não pode mesmo ser adequadamente representado, tanto em termos
jurídicos quanto em termos políticos” (ARENDT, 1960, p. 417 apud FELMAN, 2014, p. 99).
E continua,
o abuso de poder está inscrito na cultura como trauma. [...] trauma é precisamente o
que não pode ser visto; é algo que inerente, política e psicanaliticamente derrota a
vista, mesmo quando esta entra em contato com as regras de evidência e com a
investigação jurídica do julgamento por visibilidade. Assim, o político está
essencialmente ligado à estrutura do trauma (FELMAN, 2014, p. 116 – grifos da
autora).
78
Para os tribunais, a prova mais importante é aquilo que se vê, a testemunha
ocular, o objeto, mas o trauma é justamente essa instância que não pode ser vista ou mensurada,
ainda que constitua a prova mais contundente. A autora argumenta que nos tribunais e vereditos,
“entre fatos contraditórios e entre versões conflitantes da verdade, veredictos são decisões em
torno do que admitir na memória coletiva e do que transmitir da memória coletiva. A lei é, nesse
sentido, uma força organizadora da significação histórica” (2014, p. 117). E isso só ocorre, nos
casos analisados, através do testemunho.
Contudo, o testemunho nem sempre ocorre na espera jurídica, de maneira formal
e buscando uma decisão. O testemunho pode ser simplesmente o ato de narrar o evento
traumatizante para alguém. Escrever sua história como fez Primo Levi (1947, p. 6), “a
necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou entre nós, antes
e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento [...]”. Ou escrever cartas, como
fizeram os prisioneiros de Guantánamo, a quem Judith Butler se refere em Quadros de Guerra
(2015). Ele pode ser uma frase em um colchão.
Ao final do vídeo Kate (Fig. 16) diz, com lágrima nos olhos, “parece um pouco
louco, mas é tão empoderador. E ainda que não passe, há esperança. É tipo um alívio. Eu nunca
achei que fosse fazer algo assim. É bem incrível o impacto que uma pessoa pode ter sobre outra,
que importa ser ouvida.” (tradução e grifo meus). Destaca-se, em seus dizeres, a importância
do endereçamento na inscrição do testemunho e a potência de cura implicada na fala, em falar
e escrever para os outros, compartilhar histórias de violências. Com Bocchi (2017),
entendemos que a perspectiva do endereçamento determina o testemunho na relação com algo
que não se pode calar. Como entende a pesquisadora, as análises ora realizadas também nos
mostram que os testemunhos adquirem “um sentido forte, político, de engajamento crítico na
mudança, e não um sentido meramente positivista que reafirma o poder da esfera jurídica” (p.
1812). Observa-se aqui que os testemunhos, amplificados pela circulação de seus sentidos no
digital, constituem narrativas de violência que excedem o que seria da ordem do singular,
configurando um “trauma social e coletivo” (BOCCHI, 2017, p. 1818). Felman (2014, p. 98)
vai apontar a importância do julgamento/veredito para o trauma social e coletivo, dizendo que
“inadvertidamente participa de um trauma que é não apenas individual, mas está inscrito na
história [...] e cuja queixa individual ou reclamação agora ganhou significado histórico,
cumulativo, coletivo, jurídico” (grifos da autora).
79
Figura 16 – Testemunho de Kate
Fonte: vídeo Youtube, 2017, 5:54 63
Para Yerushalmi (1998 apud MARIANI, 2016, p. 52), em testemunhos como os
do Holocausto, o “antônimo de esquecimento não seria memória, mas sim justiça”. Sem fazer
juízo de valor ou comparar uma violência a outra, podemos estender essa afirmação também às
vítimas de abusos e agressões, vítimas de violência.
O medo de que o destino ataque novamente é crucial para a memória do trauma, e
para a inabilidade de falar a respeito. Ao se quebrar o silêncio interno, o Holocausto
de que se está fugindo, pode voltar à vida e mais uma vez ser vivido; mas desta vez,
pode-se não ser poupado ou não ter o poder de suportar. O ato de contar pode se tornar,
em si mesmo, severamente traumatizante, se o preço de falar é reviver; não alívio,
mas retraumatização adicional. [...] Além disso, se se fala do trauma sem ser realmente
ouvido ou escutado, o contar pode ser em si mesmo vivido como trauma – uma
reexperimentação do evento em si (FELMAN; LAUB, 1992, p. 67 – tradução minha;
grifos das autoras).
Felman e Laub trabalham nesse texto também os traumas e testemunhos de
sobreviventes do Holocausto. Apesar da abordagem das autoras e suas considerações serem
acerca deste acontecimento histórico, muito da análise do trauma pode ser transposto para
nossas análises. As autoras argumentam que a dificuldade de se narrar um acontecimento
traumático se encontra na incapacidade do sujeito de narrativizar completamente tal
experiência. Há sempre algo que escapa e não pode ser totalmente compreendido e colocado
em palavras. A narrativa do trauma é um trauma em si mesma, narrar a experiência é revivê-la,
o que nem todas as pessoas estão dispostas a fazer ou tem condições de fazer.
63
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jzc2lfxU_S0. Acesso em: 09 out. 2020.
80
As autoras compreendem que o testemunho é “composto por pedaços de
memórias que foram sobrecarregadas com ocorrências que não se estabeleceram no
entendimento”, revivendo traumas que são “atos que não podem ser construídos como
conhecimento nem assimilados completamente, eventos que excedem nossos quadros de
referência”. Mas a necessidade de se falar do trauma, o testemunho, é mais do que contar sua
história e tê-la ouvida, “consiste na experiência do impossível”, sendo a sua função “fazer falar
a dor, o sofrimento e o desamparo”. O testemunho é forma de reescrita de uma memória de
violência, “mas também de resistência, pelo trabalho de luto que o testemunho possibilita”
(BOCCHI, p. 1814). É através da reescrita, do testemunho, que o sujeito irá se colocar
novamente, bordejando o real da história, ressignificando sua história de trauma, em resistência.
Ainda, para Felman, o testemunho tem caráter de promessa; testemunhar é produz o próprio
discurso como evidência material da verdade. O testemunho é uma prática discursiva, um ato
performativo de fala; ele “endereça o que na história é ação que excede qualquer significância
substancializada”, e produz “impacto que dinamicamente explode qualquer reificação
conceitual e qualquer delimitação constativa” (FELMAN; LAUB, 1992, p. 5).
Ainda na esteira deste impossível, temos o esquecimento, instância estruturante
da memória discursiva, “introdução do nada como força do significar” (ORLANDI, 2014, p.
6). Mariani (2016, p. 52) vai tratar do esquecimento pela “impossibilidade de um tudo lembrarse
que está no cerne da constituição do sujeito.” Um furo na memória que não encontra eco
para se significar, o que Pêcheux (1988, p. 183) chamou de “o acobertamento da causa do
sujeito no próprio interior de seu efeito”. Para Mariani (2016, p. 55) narrar, testemunhar “é
deparar-se também com o esquecimento, logo, com o real que sinaliza no campo da fala e da
linguagem, a impotência das palavras e um indizível na/da apreensão dos objetos.”
Contudo, Felman (1992, p. 68) destaca a importância de um ouvinte empático
ou de um “outro endereçável, um outro que pode ouvir a angústia das memórias e, assim,
afirmar e reconhecer sua realidade”, sem o qual a história é aniquilada, e é justamente essa
aniquilação que faz com que a narrativa do trauma “não possa ser ouvida ou que uma história
não possa ser testemunhada”.
Mariani vai lembrar Agamben e os termos testis e supertes. “1. Testis (o que se
põe como terceiro) em um processo entre dois contendores; 2. Supertes, aquele que viveu algo,
atravessou até o final um evento e pode dar testemunho disso” (2008, p. 35 apud MARIANI,
2016, p. 55). Ou seja, nas análises aqui apresentadas temos supertes, alguém que passou por
uma experiência traumática e que, através do relato do acontecimento, “pode dar um
testemunho, ou seja, transmitir aos outros o que foi passado por essa experiência” (MARIANI,
81
2016, p. 55). A autora vai apontar a insuficiência da linguagem em falar de um “todo vivido”,
ela irá apenas fazer “borda na tentativa de dar conta do real da experiência, ou evento, ou
acontecimento que mergulha com violência o sujeito”. Há nessa posição de superstes a marca
da insistência do testemunho, de contar para “os que sabiam”, para “os que não queriam saber”,
para os “indiferentes”, para os que querem saber, o que se viveu (MARIANI, 2016, p. 55). É se
fazer ouvir. E temos também testis, “a imagem-depoimento que, como efeito, produz a si
mesma como comprovação da violência, torna-se prova dentro de um dispositivo de verificação
ameaçado constantemente pela possibilidade de perjúrio e infidelidade” (BOOCHI, 2019, p.
24), é o momento do julgamento, do testemunho no julgamento em que o narrar testemunha
uma violência passada e coloca em xeque o real da história, o esquecimento e a linguagem.
3.2.1 O Documentário como acontecimento discursivo
E a natureza do material significante é importante
na maneira como construímos nosso dispositivo
analítico. Faz parte da relação entre o dispositivo
teórico e o analítico refletir sobre a natureza do
material analisado.
Eni Orlandi 64
Boa parte do nosso material de análise provém de documentários ou séries
documentais, como: The Hunting Ground, No coração do Ouro: o escândalo da seleção
americana de ginástica, Nevertheless, Rede de Abusos, Jeffrey Epstein: poder e perversão,
Atleta A, dentre tantos outros. Por isso, nos parece fundamental discorrermos sobre o gênero
documentário, um tipo de discurso que Orlandi (2012) chamou de “o discurso do
documentário”, “um objeto de arte”, “um objeto memorial”. Para a autora, “O documentário
fala de um acontecimento que se torna, por assim dizer, político, para além da ‘intenção’
declarada de seus participantes” (p. 55). Todos os documentários supracitados apresentam a
mesma temática: abuso de mulheres nas mais diferentes esferas sociais e o desdobramento das
denúncias feitas pelas sobreviventes.
É de suma importância compreendermos que o documentário é em si um
64
ORLANDI, 2012, p. 56.
82
acontecimento discursivo constituído de diversas materialidades e é atravessado por uma
memória discursiva, “irrepresentável”. Assim, quando o documentário “recorta, sem saber, essa
memória em algum ponto, produzindo um acontecimento, não ‘representa’, produz um efeito,
inserindo por seu gesto a memória em uma atualidade” (2012, p. 57). Atualidade essa que
Orlandi chamou de “uma formulação”.
Consequentemente, o documentário produz um recorte do real que é tomado
como um acontecimento, produzindo um efeito de memória e mexendo diretamente com o
esquecimento. Orlandi afirma que “no documentário, as coisas-a-saber são tomadas em redes
de memória dando lugar a filiações identificatórias e não a aprendizagens por interação.”
Há nos documentários uma presentificação de um passado, atualizando-o,
(re)criando-o e retomando-o. “A meu ver, para significar o acontecimento, o documentário põe
em contradição o que se esquece e o que não é para se esquecer” (ORLANDI, 2012, p. 59). O
documentário é uma maneira de burlar o esquecimento e registrar o real da história.
Contudo, nosso material de análise é heterogêneo em sua materialidade, como
já mencionamos, assim, evocamos Lagazzi (2017, p. 36) em sua pergunta “qual a materialidade
do discurso se falamos de objetos simbólicos materialmente heterogêneos?”. Por realizarmos
análises de diversos discursos que se materializam heterogeamente, o discurso também irá se
materializar em outras relações que não somente verbais, como através do corpo. Pois, “a
materialidade do discurso é a linguagem em duas diferentes materialidades significantes, quais
sejam [...], diferentes relações estruturais simbolicamente elaboradas pela intervenção do
sujeito.” A autora ressalta que essa materialidade significante nos remete a um suporte que
permita a produção de sentidos para os sujeitos.
Trata-se de considerar o modo de estruturação dos matérias tomados para análise, o
modo como materializam discursos. Trata-se, enfim, da formulação discursiva. [...]
Devemos nos perguntar quais materialidades significantes compõem esses materiais
passíveis de análise e nos permitem chegar a regularidades significantes de um
funcionamento discursivo que se quer compreender (LAGAZZI, 2017, p. 36).
Em seu texto, Lagazzi analisa do filme Moonlight, e, através de recortes
fílmicos, diferentes modos de formulação imbicados das diferentes materialidades significantes
no percurso de identificação do sujeito. O que tentamos fazer aqui também. Diferentes
materialidades significantes se compondo na eloquência do testemunho, do corpo, do choro, da
voz, do engasgar, do colchão... dos silêncios.
83
3.2.2 O Jurídico
Um julgamento sexual é o desenvolvimento
deliberado de uma imoralidade individual em
direção a uma imoralidade generalizada, contra
[seu] o pano de fundo escuro, a culpa comprovada
do acusado destaca-se luminosamente.
Walter Benjamin, Karl Kraus 65
Em outros momentos desta dissertação nos esbarramos no jurídico e não seria
possível ignorá-lo. A esfera jurídica se apresenta em nosso material nos testemunhos das
ginastas e outras mulheres vítimas do médico olímpico Larry Nassar, nas denúncias contra
Harvey Weinstein, no julgamento dos atletas de Steubenville e em tantos outros momentos que
não entraram em nossas análises. Um julgamento “é uma busca por uma decisão, e assim, em
essência, ele não busca simplesmente a verdade, mas uma finalidade: uma força de resolução”
(FELMAN, 2014, p. 90).
Contudo, não é apenas por se apresentar em nossos recortes que a face jurídica
se faz relevante. Felman (2014) vai argumentar, quando compara “o julgamento do século (O.
J. Simpson) com a obra A Sonata a Kreutzer, de Tolstói,” que a luta de gênero envolve uma
dimensão política “maior que a lei” e há uma convergência crítica indispensável, entre o reino
do jurídico e o reino da política. É nessa convergência entre o político e o jurídico que, sem
ferramentas próprias, tenta-se, através do julgamento (única ferramenta à mão) “julgar e
sentenciar sobre algo que não pode mesmo ser adequadamente representado, tanto em termos
jurídicos quando em termos políticos” (ARENDT, 1960 apud FELMAN, 2014, p. 99 – grifo da
autora).
Ou seja, há uma “tentativa de definir juridicamente algo que não é reduzível a
conceitos jurídicos” (p. 95). Para Felman,
A memória jurídica é constituída, na verdade, não apenas pela “cadeia do direito” e
pela repetição consciente de precedentes, mas também por uma cadeia esquecida de
feridas culturais e por compulsivas ou inconscientes repetições jurídicas [...] expõem
na arena histórica o inconsciente político do direito [...] (FELMAN, 2014, p. 92).
O que quer dizer que todo julgamento “[...] envolve essencialmente ‘algo maior
do que o direito’. Em todo grande julgamento, e certamente em todo julgamento de significado
65
FELMAN, 2014, p. 102.
84
político ou histórico, algo que difere da lei é abordado [...]”, o julgamento é usado de forma
pedagógica, como diz Felman, como veículo de uma mensagem.
Figura 17 – Testemunho de Rachael Denhollander
Fonte: Atleta A, 2020, 1:27:00 66 .
Em seu testemunho no julgamento do médico olímpico Larry Nassar, a exginasta
Rachael Denhollander diz (fig. 17):
Há dois grandes objetivos no nosso sistema criminal, Meritíssima. A busca por justiça
e a proteção de inocentes. Nenhum deles pode ser cumprido se a pena máxima
disponível no acordo [de se declarar culpado] não for imposta a Larry por seus crimes.
Então eu pergunto: quanta prioridade deve ser dada à comunicação de que o poder
máximo da lei será usado para proteger outra criança inocente da devastação
incomparável causada pelo assédio sexual? Eu lhes digo, essas crianças merecem
tudo. Merecem toda a proteção que a lei pode oferecer. Merecem a sentença máxima.
(grifo e adaptação minha).
A súplica de Rachael continua e pode ser vista em outro documentário, No
coração do ouro: o escândalo da seleção americana de ginástica.
Eu peço que você entregue uma sentença que nos diga que o que foi feito contra nós
importa. [...] É isso que precisamos aprender. Olhe ao redor do tribunal, lembre-se do
que você testemunhou nos últimos sete dias, e que seja um aviso para todos nós.
Quando os adultos em cargos de autoridade não respondem adequadamente às
revelações de agressão sexual, quando as instituições criam uma cultura em que um
predador pode florescer sem medo, é assim que se parece, um tribunal cheio de
sobreviventes que carregam feridas profundas. Mulheres e meninas que carregam
cicatrizes que nunca se cicatrizarão por completo, mas que se uniram para lutar por si
mesmas porque ninguém mais o faria. Mulheres e meninas que fizeram a escolha de
colocar a culpa e vergonha na única pessoa a quem pertencem, no agressor. Mas que
o horror expresso nesse tribunal nos últimos sete dias, seja motivação para que
qualquer um e todos, não importa o contexto, assuma a responsabilidade se erraram
66
Disponível em: Netflix – Atleta A.
85
em proteger uma criança. Para entender as incríveis falhas que levaram a essa semana.
E fazer melhor da próxima vez. Porque tudo é o que essas sobreviventes valem.
Como dissemos antes, o julgamento é uma busca por uma decisão e a súplica de
Rachael mostra tal constatação ao dizer “entregue uma sentença que nos diga que o que foi feito
contra nós importa.” De maneira que somente através de uma sentença máxima e que “manda
um recado”, o trauma sofrido por essas mulheres fosse verdadeiramente reconhecido e, mais
que isso, que pudesse assim ser trabalhado e superado, findando o processo de luto.
Felman sustenta que “a lei é uma força organizadora da significação da história”
e que os vereditos são “decisões em torno do que admitir na memória coletiva e do que
transmitir da memória coletiva” (2014, p. 117). Será, através do veredito da condenação de
Larry Nassar que “a mensagem” será admitida na memória coletiva. Apesar de Nassar ter se
declarado culpado das acusações de agressões sexuais e, por isso, não enfrentou julgamento, a
juíza do caso, Rosemarie Aquilina, determinou que o réu deveria ouvir todas as mulheres que
escolhessem depor. De início, foram 88 que declararam a vontade de falar formalmente,
contudo, no decorrer dos dias, mais mulheres se apresentaram e, no final do processo, 156
mulheres depuseram. Para além disso, o julgamento irá se mostrar aqui como uma forma de
significação das vítimas, de seus traumas, de seus lutos e de si mesmas. Explico. Quando
Denhollander diz “entregue uma sentença que nos diga que o que foi feito contra nós importa”
sua súplica não é apenas para que o trauma dela e das outros mulheres seja reconhecido e o
médico condenado, mas também que o trauma seja ressignificado e sirva de mensagem para a
sociedade e todas as pessoas, o abuso não é mais tolerável e nem será velado e silenciado, será
condenado e passível de pena. Parece utópico pensar dessa maneira e sabemos que mudanças
realmente significativas num sistema judicial que é se estruturado e beneficia homens brancos
em sua constituição, não é algo que ocorre com um único julgamento e uma única sentença.
Ainda assim, é imprescindível que vereditos como esse aconteçam e suas mensagens sejam
transmitidas para a memória coletiva.
O julgamento de Nassar foi transmitido por streaming 67 e pôde ser acompanhado
na íntegra online, o que significa que os sentidos ali produzidos passaram a circular além do
ambiente físico do julgamento e para as pessoas presentes no local. Segundo Aquilina, “o
67
Streaming é um tipo de serviço de transmissão de dados via internet que permite que conteúdos sejam
transmitidos sem a necessidade de download. O usuário/espectador pode assistir a transmissão através da internet
em sua própria casa através da transmissão do dono do conteúdo. Plataformas como Netflix, Spotify e GloboPlay
fornecem conteúdos de forma paga ou gratuita, através de uma assinatura, mas plataformas como YouTube
também sustentam esse tipo de transmissão e permitiram que vários conteúdos pudessem ser transmitidos. O
julgamento de Nassar foi transmitido via streaming pelo site Law and Crime.
86
mundo inteiro está ouvindo vocês” em um momento de encorajamento às mulheres. E essa fala
pode muito bem ser verdadeira.
Ao se declarar culpado, Nassar busca a interdição dos depoimentos das vítimas
e, novamente, seus silenciamentos. Segundo Felman (2014, p. 130) “a confissão deseja conferir
ao discurso o mais elevado valor moral e a mais elevada responsabilidade epistemológica: a de
acessar a verdade [...]”. Ou seja, ao se declarar culpado das acusações, Nassar tenta impor uma
verdade e impossibilitar sentidos outros de serem produzidos no julgamento. E Aquilina, ao
impor a obrigatoriedade de o médico escutar os testemunhos dessas mulheres, uma mensagem
também foi fixada na memória coletiva, “não seremos silenciadas”. De acordo com reportagem
no El País 68 , várias mulheres declararam que o processo as fortaleceu e foi terapêutico.
Felman argumenta, nos dois casos que analisa, que
tudo o que o julgamento é capaz de provar, portanto, é a não localizabilidade, a
invisibilidade constitutiva da lesão, traumática impossibilidade de se fazer justiça à
agressão. Tudo que o julgamento faz é, portanto, repetir o trauma ao produzir, mais
uma vez, sua invisibilidade recalcitrante e ao mostrar como o poder do trauma de
anular a visão infiltra-se nas próprias operações do processo legal, e insidiosamente
apodera-se da própria estrutura do julgamento (2014, p. 118).
Contudo, é justamente aqui que o julgamento de Nassar se diferencia do de O. J.
Simpson e da literatura de Tolstói. Quando Aquilina impõe ao médico que ouça os testemunhos
de suas vítimas, ela constrói uma ponte para o que Felman chamou de abismo, “a realidade
concreta de uma brecha traumática” (p. 123), “aquilo que não podemos apreender e que não
compreendemos” (p. 127). O abismo entre o gênero e o jurídico, que não enxerga as agressões.
A juíza ainda chegou a responder a Nassar em suas reinvindicações de que o julgamento seria
“um circo midiático” e de que seria muito doloroso para ele ouvir as vítimas por quatro dias,
dizendo “Passar quatro ou cinco dias a ouvi-las é algo menor, em relação às horas de prazer que
o senhor teve à custa delas e que lhes arruinou a vida.” A juíza pondera que, independentemente
do desconforto do médico e suas reclamações em carta endereçada à juíza, o réu tinha, como o
mínimo de obrigação, ouvir suas vítimas. Em outra fala, agora dirigida a uma das vítimas, a
juíza endereça a dor das sobreviventes – “Deixe a sua dor aqui. Depois saia e faça coisas
maravilhosas”.
O “abismo” se fecha um pouco quando Aquilina empodera 69 as vítimas e lhes dá
68
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/26/internacional/1516971445_612553.html. Acesso
em: 15 fev. 2021.
69
Compreendemos empoderamento como “um centralizador de processos contínuos intencionais na comunidade
local, envolvendo respeito mútuo, reflexões críticas, cuidados e participação grupal, por meio das quais pessoas
enfraquecidas possam se valer da distribuição igualitária de recursos necessários, tendo facilitado o acesso e
87
espaço de fala e testemunho.
Figura 18 – Testemunho de Jamie Dantzscher
Fonte: Atleta A, 2020, 1:23:35 70 .
Jamie Dantzscher, ex-atleta olímpica, diz em seu testemunho “[...] ao invés de
proteger as crianças e denunciar as agressões que viu, você usou a sua posição de poder para
manipular e agredir também. Você sabia que eu era indefesa. Eu estou aqui hoje, com todas
essas mulheres, não vítimas, mas sobreviventes, para falar diretamente a você que seus dias de
manipulação acabaram. Nós temos uma voz agora. Nós temos o poder agora.”. A ex-ginasta
ainda diz, no documentário Atleta A, que finalmente se sente orgulhosa de ser uma atleta
olímpica ao poder dizer “você não me controla mais” e que “tem sido muito difícil se sentir
orgulhosa de algo. Então, dizer isso, para mim, é tipo: ‘tudo bem. Acho que estou melhorando.
Já sinto orgulho de algo.” (Fig. 18)
O jurídico, através da decisão da juíza Aquilina, passa a empoderar as
sobreviventes, lhes concedendo voz e fazendo com que suas histórias fossem ouvidas, não
somente pelo agressor, mas “por todo o mundo”.
Rachael Denhollander volta a falar para o documentário Atleta A sobre os efeitos
do julgamento:
Toda vez que a Angela 71 se levantava e dizia “A sobrevivente XYZ vai depor, e
decidiu falar publicamente...” Era sempre uma declaração muito poderosa. Pois
significava que elas se sentiam seguras o suficiente. E significava que elas conseguiam
se livrar da vergonha e passá-la pro agressor.
controle sobre esses recursos” (Cornell Empowerment Group, 1989), ou simplesmente um processo pelo qual as
pessoas têm controle sobre suas vidas (Rappaport, 1987), participações democráticas na vida de sua comunidade
e uma compreensão crítica do meio que as cerca (PERKINS e ZIMMERMAN, 1995 p. 570 apud BERTH, 2019,
p. 25).
70
Disponível em: Netflix – Atleta A.
71
Angela Povilaitis, procuradora geral assistente de Michigan no caso Larry Nassar.
88
E esse empoderamento pode ser visto nos números de sobreviventes que iriam
depor inicialmente, 88, e o número final de depoimentos, mais de 150. Nas palavras de Felman,
o julgamento tem
[...] uma proposta consciente e deliberada de transformar uma massa incoerente de
traumas privados (os secretos, escondidos e silenciados traumas individuais dos
sobreviventes) em um trauma coletivo, nacional e público, e então fornecer uma cena
pública para uma coleção de abusos individuais e traumas privados; tornar público e
transformar politicamente em público abusos que foram vividos como privados e
ocultados pelos sujeitos individuais traumatizados, que se tornaram, em suas próprias
percepções, os “portadores do silêncio” (FELMAN, 2014, p. 26-27).
Apesar da autora estar falando do julgamento de Eichmann 72 , tenente-coronel do
regime nazista, um dos principais organizadores do Holocausto, suas colocações podem ser
transpostas para o julgamento de Nassar e o trauma das sobreviventes, que por anos foram
“portadoras do silêncio”, mesmo quando escolhiam falar a respeito, eram silenciadas. Fato
mostrado pelo testemunho de Kyle Stephens, que foi desacredita pelo pai quando contou aos
12 anos que sofria abusos desde os 6. “[...] Para o meu pai, alguém que faz acusações falsas e
tão hediondas é o pior tipo de pessoa. Sua crença de que eu mentira se infiltrou na fundação do
nosso relacionamento.”
3.3 O CORPO
[...] o corpo da testemunha é o mais conclusivo local
de memória do trauma individual e coletivo – é
porque o trauma torna o corpo relevante e porque o
corpo, testemunhando o trauma, torna-se relevante
no tribunal de uma maneira nova [...]
Shoshana Felman, 2014, p. 29.
Ao analisar o caso do julgamento de Eichmann, Felman observa o incidente que
ocorre durante um dos depoimentos. Uma das vítimas, K-Zetnik, conhecido escritor que
produziu densa literatura sobre Auschwitz, colapsa no julgamento e entra em coma. Para a
autora, o colapso pode ser compreendido como “uma parábola ao colapso da linguagem no
encontro entre direito e trauma” e que isso revela a “profunda falência das palavras, a
72
O tenente-coronel foi sequestrado por agentes do Mossad em 1960 e levado para Jerusalém para julgamento,
sendo condenado em 1961 a morte por enforcamento.
89
importância do corpo da testemunha no tribunal.” (2014, p. 29). As palavras não dão conta do
trauma e da dor.
Aqui é preciso discordarmos de Felman quando diz que o “trauma é
precisamente o que não pode ser visto” (2014, p. 116), porque através do corpo, o trauma se
apresenta e é colocado em tela. Lágrimas, sorrisos nervosos, tremores, suspiros, pausas,
abraços, soluçõs, a impossibilidade de dizer. Tudo isso é o trauma se mostrando através do
corpo, podendo ser visto.
No epílogo de The scandal of the speaking body: Don Juan with J. L. Austin or
seduction in two languages 73 de Shoshana Felman (2003), Judith Butler postula que não há ato
de fala sem o corpo, não somente pelo corpo representar o meio pelo qual se fala, com seu
aparato físico, mas porque “o corpo significa o que não é intencional, o que não é admitido no
domínio da ‘intenção’, o desejo primário, o inconsciente e seus objetivos” (p. 119 – tradução
minha, grifos da autora). Segundo Bocchi (2019, p. 23), Felman irá estabelecer uma articulação
entre teoria do ato de fala e a psicanálise, “lançando mão da sedução constitutiva da complexa
e escandalosa relação entre corpo e linguagem: o ato de fala, enquanto ato de um corpo falante,
é sempre desconhecedor daquilo que produz, pois, sujeito às determinações inconscientes.”
Dessa maneira, a concepção de Felman para sujeito se assemelha com a posição da AD em
conceituar o sujeito discursivo. Contudo, nesse momento, nos interessa manter nosso foco no
corpo como aquilo que fala além das palavras, que fala quando as palavras já não são suficientes
para exprimir sentidos.
Butler vai sustentar que quando corpos se juntam em espaços públicos, incluindo
os virtuais, estão
exercitando um direito plural e performativo de aparecer, um direito que afirma e
instaura o corpo no meio do campo político e que, em sua função expressiva e
significativa, transmite uma exigência corpórea por um conjunto mais suportável de
condições econômicas, sociais e políticas, não mais afetadas pelas formas induzidas
de condição precária (2018, p. 11-12).
Na análise da autora, os corpos que se juntam estão em assembleias,
manifestações e protestos, contudo, se pensarmos no Movimento #metoo e em suas implicações
no real da história, temos corpos que se juntam com um propósito único: terem voz e barrarem
o assédio. O mesmo ocorre no julgamento. As sobreviventes se juntam, dando forças umas às
outras para testemunharem e contarem suas histórias. Os corpos se juntam pra denunciar a
73
Livro ainda sem tradução para o português. Numa tradução livre: O escândalo do corpo falante: Don Juan com
J. Austin ou sedução em duas línguas.
90
própria precariedade e reivindicar condições melhores de vida, de serem vividos.
“Ações corporificadas de diversos tipos significam, de uma forma que não são,
estritamente falando, nem discursivas nem pré-discursivas” (BUTLER, 2018, p. 11). Já vimos
isso acontecer quando falamos de corpografia, no item 2.2.1, em que o corpo se inscreve no
colchão, como nas figuras 10 e 11. No entanto, podemos evocar outros momentos em que o
corpo fala, como no julgamento de Larry Nassar, onde as sobreviventes podem ser vistas
chorando, tremendo, perdendo a voz, engasgando. As palavras cessam ou faltam, o corpo toma
pra si a obrigação de falar. E ele diz, com soluços, lágrimas, palavras entrecortadas, vaias,
aplausos, ombros encolhidos, suspiros...
Evocamos um primeiro momento em que o corpo fala com dor, pesar, que
extravasa o lugar de ouvinte do julgamento e gera movimento, lágrima, palma, vaia (Fig. 18).
A advogada de defesa Shannon Smith relata no documentário “No coração do ouro: o escândalo
da seleção americana de ginástica” o clima do julgamento. “Normalmente, não há pessoas
aplaudindo. Pessoas vaiando os advogados de defesa. [...] É quase como se esse tipo de explosão
fosse inevitável”. A juíza Rosemarie Aquilina também falou a respeito “Foi muito doloroso.
Você podia ver em seus rostos. As pessoas estavam tremendo, chorando... apenas em ver
Nassar.”
Essa explosão de que fala Smith lembra a fala de Primo Levi (1947, p. 6), “a
necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou entre nós, antes
e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento [...]”. Essa violência, explosão
que sai em forma de vaias, choros e gritos, é o corpo falante, falando tudo aquilo que as palavras
não são capazes de expressar.
Figura 19 – Sobrevivente chorando
Fonte: No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 2019, 1:03:13 74 .
74
Disponível em: HBO.
91
Mas nem só por/de dor se expressa o corpo. Em outros momentos, como na
figura 19, podemos ver as sobreviventes se abraçando, como que num ato de consolo e
congratulação pela força do outro e própria. Um abraço que parece tirar um peso que há anos
era carregado. Um abraço de alívio. Um abraço de luta. Um abraço de resistência.
Figura 20 – Angela e Rachael se abraçando.
Fonte: No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 2019, 1:15:06 75 .
Aquilina vai, ao final do testemunho de Rachael lhe dizer: “Obrigada. Você
construiu um exército de sobreviventes e é uma general de cinco estrelas. Você fez tudo isso
acontecer. Você fez todas essas vozes importarem.” É muito expressivo que a juíza use uma
analogia armamentista para falar do grupo sobreviventes, uma vez que exércitos são, em sua
maioria, compostos por homens e vistos como símbolo de virilidade. Ao atribuir às
sobreviventes esse status, Aquilina mostra que a “batalha” foi ganha, elas venceram a luta com
seu exército. Coroa Rachael com a mais alta parente do Exército dos EUA, general de 5 estrelas.
E isso aparece estampado no rosto de Rachael, que sorri (Fig. 21).
75
Disponível em: HBO.
92
Figura 21 –Rachael sorrindo.
Fonte: No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 2019, 1:14:48 76 .
O sorriso da sobrevivente e a fala da juíza percorrem o cômodo e há uma salva
de palmas. Os testemunhos terminaram. As sobreviventes ganharam voz. Nesse dia, o abismo
tinha uma ponte.
3.4 IMPACTO NO REAL DA HISTÓRIA
As análises se focam nos EUA porque foi onde o Movimento surgiu, mas isso
não significa que ele não tenha ressoado pelo mundo e causado deslocamentos no real da
história, saindo do digital e irrompendo barreiras globais. Para Marci Hamilton, diretora da
CHILD USA 77 , “o Movimento #metoo será bem sucedido se se transformar em mudanças
sociais e legais. E isso pode ser visto ao redor do mundo. Buscamos aqui reunir uma pequena
porção desse impacto, destacando os que vemos como mais relevantes e que têm direta conexão
com a pesquisa apresentada.
O Google criou o projeto “Me Too Rising”, uma página com um globo em que é
possível navegar pelos países e dias vendo quais as notícias mais lidas e procuradas sobre o
movimento. Há uma barra na parte inferior que mostra do dia 01 de outubro de 2017 até o dia
atual a interação de usuários com o mote. 78
76
Disponível em: HBO.
77
Grupo de ideias sem fins lucrativos dedicado à pesquisa interdisciplinar para melhoria de leis e políticas públicas
a fim de acabar com o abuso e negligência infantil.
78
Ver: https://metoorising.withgoogle.com/
93
Na China 79 , o Partido Comunista Chinês impõe um sistema draconiano de
censura, que dita o que a população pode pesquisar e acessar. Redes sociais como Facebook,
Twitter, Instagram e até mesmo Youtube não estão disponíveis no país. A censura chega até
mesmo a bloquear conteúdos históricos do próprio país, como a Praça da Paz Celestial que não
pode ser ensinado nas escolas e nem encontrado na internet na China. Contudo, não é como se
os chineses não tivessem suas redes correspondentes. Há redes como Baidu, Weibo e Wechat,
que são todos controlados rigidamente pelo governo. Com controle tão severo parece
impossível qualquer tipo de ciberativismo, uma vez que palavras e frases são rapidamente
bloqueadas e proibidas. No entanto, o Movimento #metoo penetrou as barreiras da censura e,
liderado por alunas universitárias, e se mostra um problema singular para o Partido Comunista,
uma vez que este é baseado em princípios de igualdade. O movimento começou formalmente
em 1º de janeiro de 2018, quando Luo Xixi, uma ex-aluna de doutorado, publicou sua história
alegando ter sido agredida sexualmente em 2004 por seu orientador. Pouco depois, a censura
entrou vigor e tirou do ar a maioria dos compartilhamentos e postagens sobre o movimento.
Contudo, as mulheres começaram a usar palavras que soassem similares a metoo, como arroz
/mǐ/ mais coelho /tù/ criando a hashtag coelhinhas de arroz, numa tradução livre. As ativistas
passaram também a postar fotos rotacionadas de mensagens relato para dificultar a censura.
Após a história de Luo Xixi viralizar, milhares de alunos peticionaram suas universidades para
a criação de medidas contra o assédio. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Centro de
Estudos de Gênero de Guangzhou em 2018, 70% das alunas já sofreu assédio sexual, tendo
apenas 4% denunciado às autoridades. A porcentagem tão baixa de denúncias se dá ao fato de
não haverem leis e nem ao menos a definição de agressão sexual nas leis do país. Graças ao
Movimento #metoo, o novo código civil chinês explicita que empregadores não podem assediar
funcionárias, e é possível agora processar por assédio sexual e discriminação de gênero. Houve
a adição de uma definição para assédio sexual no código do país e a Suprema Corte diz que,
pela primeira na história chinesa, é possível processar alguém por assédio sexual.
Na Índia 80 , sob a hashtag #metoo e perfil @IndiaMeToo criado pela repórter
Rituparna Chatterjee, as mulheres começaram a narrar suas histórias de assédio, em sua maioria,
cometidos por homens conhecidos que as estupraram em encontros, as molestaram enquanto
dormiam, as beijaram forçadamente, fingiam não entender consentimento e abusavam delas
79
Ver: The Patriot Act, temporada 2, episódio 1.
80
Ver: BOOMERANG NEWS. How the #metoo cases that shook India have played out. 11 out. 2020. Disponível
em: https://www.bloomberg.com/news/features/2019-10-12/-metoo-in-india-one-year-later-how-cases-playedout-for-accusers.
Acesso em: 29 nov. 2020.
94
psicologicamente. Algumas histórias se destacaram com mulheres acusando jornalistas
famosos, repórteres, políticos e homens influentes no país. Contudo, dois anos após o
movimento irromper em 2018, o que podemos ver é uma conduta bem diferente do que
aconteceu nos EUA, com homens processando mulheres por difamação, vítimas buscando
exílio nos EUA, e muitos homens permanecendo em seus cargos. Não é possível dizer que não
houve mudanças, segundo Karuna Nundy, advogada da Suprema Corte Indiana, “#metoo
ajudou algumas pessoas a perceberem o quão espalhado assédio e agressão são [...] são essas
intervenções que mudam não só a vida de indivíduos, mas também o sistema para todo mundo”.
Na Austrália 81 não há leis que protegem liberdade de imprensa e liberdade de
expressão, então alguns acusados de condutas impróprias, como os atores Geoffrey Rush e
Craig McLachlan processaram jornais por difamação após notícias de processos contra eles
serem divulgados por emissoras. Rush ganhou a causa e recebeu 2,9 milhões de dólares
australianos em recompensa. Isso provocou um efeito negativo nas denúncias, fazendo com que
mulheres tivessem medo de denunciar. Quando o Movimento irrompeu, era ilegal na Tasmânia
e no Território do Norte que vítimas de assédio sexual se identificassem na mídia, até mesmo
jornalistas que identificassem sobreviventes poderiam ser indiciados. Em resposta, a hashtag
#LetHerSpeak foi criada pela organização voluntária End Rape On Campus Australia e o
conglomerado de mídia News Corp, advogando pela mudança de leis no país. Agora a Tasmânia
reformulou a chamada gag law (lei da mordaça) e o Território do Norte elaborou propostas de
legislações para concertar o problema.
Voltando aos EUA, um ano após o Movimento irromper, a Comissão pela
igualdade trabalhista dos EUA reportou aumento de 50% de processos de assédio sexual em
relação ao ano anterior. A Time’s Up criou um fundo de defesa legal para ajudar mulheres em
situação de vulnerabilidade e, de acordo com o The New York Time, já atendeu mais de 3.500
pessoas nos 50 estados estadunidenses. Harvey Weinstein, acuso de abuso por mais de 100
mulheres, foi julgado e condenado a 23 anos de prisão. O magnata foi expulso da Academia de
Artes e Ciências Cenográficas, demitido da Weinstein Company e sua esposa o deixou. Larry
Nassar foi condenado a até 175 anos de prisão e as pessoas envolvidas no caso, que tentaram
abafar as denúncias, também foram punidas. Como a ex-treinadora Kathie Klages que
testemunhou não saber dos abusos do médico, tendo sido contradita após denúncias serem
entregues ao tribunal. O famoso rancho de treinamento olímpico Karolyis foi fechado. Os dois
81
Ver: WASHINGTON POST STAFF. Opinion #metoo is at a crossroad in America. Around the world, it’s just
beginning. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/opinions/2020/05/08/metoo-around-theworld/?arc404=true.
Acesso em: 29 nov. 2020.
95
atletas envolvidos no estupro de Steubenville foram condenados à prisão.
No Brasil, em 2020 foi fundado o Me Too Brasil, um movimento busca ser uma
voz importante no país contra o assédio sexual. A iniciativa conta com o envolvimento do
Projeto Justiceiras, da Agência Model Brasil e tem apoio da Comissão da Diversidade Sexual
e de Gênero da OAB-SP. De acordo com o site Deutsche Welle (DW), há mais de 3.600
voluntárias, entre advogadas, psicólogas e assistentes sociais, estão à disposição para atender
vítimas.
É justamente através desse deslocamento para além das fronteiras do digital que
a #metoo passa a afetar o real da história; ela revela o Movimento #metoo como acontecimento
discursivo. Há uma desestabilização de uma série de enunciados sobre a violência sexual contra
mulher, um deslocamento da naturalização dessa violência, que passam a ser interditados e
sentidos outros passam a surgir, através de novos lugares de enunciação e novos rituais
enunciativos, por meio de testemunhos de práticas misóginas e sexistas.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tomando como aporte teórico a Análise de Discurso de linha francesa, a presente
pesquisa buscou analisar a #metoo como acontecimento discursivo. Para tal, foi preciso
retroceder na história e contar como o Movimento surgiu, em 2006, com a ativista negra Tarana
Burke e o que fez com que, em 2017, houve uma nova circulação de sentidos para ele.
Compreendemos que, graças às condições de produção da época e o próprio lugar de
enunciação de Burke, o Movimento só encontrou voz de maneira global em 2017 com um tweet
de Alyssa Milano.
No primeiro capítulo buscamos centrar o leitor no percurso que faremos e dar
uma ideia geral do que seria desenvolvido no decorrer da dissertação. O aporte teórico foi sendo
introduzido aos poucos, tendo os conceitos basilares da AD, como sujeito, discurso e
acontecimento discursivo, apresentados. Passamos então à memória, conceito fundamental para
fundarmos nosso percurso de análise, tendo abordado memória discursiva, memória metálica e
memória digital. Com Orlandi (1999), pudemos dizer que a hashtag #metoo apresenta a
capacidade de conferir ao quadro da história a força da memória, constituindo um registro da
relação social e histórica. E tendo seu funcionamento consequências no que concerne à memória
histórica e à memória social, atreladas à memória digital.
Não é possível falarmos de memória sem que o silêncio seja abordado uma vez
que a memória se constitui de silêncios. E esse silencio será várias vezes trazido à tona em
nossas análises, através de testemunhos e análises de tweets. Sendo também reconhecido no
apagamento de Burke na revista Time.
Ao abordarmos as condições de produção em que o Movimento (re)surge,
analisamos diversas falas do ex-presidente estadunidense Donald Trump, o efeito das marchar
e movimentos ciberativistas e o caso Steubenville, que se materializa em tweets de agressores
e testemunhas, e permitiu que os culpados pelo estupro de uma menor pudessem ser julgados.
Com Zoppi-Fontana (2017) reconhecemos que Milano inaugura um novo ritual
enunciativo com a hashtag e através de meios de identificação que interpelam outras mulheres
a contarem suas histórias, agora através de um advento digital, tecnológico. Evocamos também
a noção de lugar de enunciação que permite problematizar uma posição historicamente
silenciada que colocou (e ainda coloca) mulheres à margem da sociedade. É na articulação
97
entre o digital, o novo ritual enunciativo e as condições de produção, que os testemunhos de
sobreviventes passam a circular, dentro e fora desse digital, inaugurando novos lugares de
enunciação.
Enquanto acontecimento discursivo, o funcionamento da hashtag #metoo
permite o aparecimento de novos lugares de enunciação diretamente ligados ao “original”, o
que também possibilita diferentes e novos gestos de interpretação, novas posições-sujeito, que
apresentam formações discursivas outras, diferentes associações de memória e distintas
relações com a exterioridade. O ritual enunciativo está, aqui, diretamente ligado à prática
enunciativa e ao digital, ou seja, ele estabelece uma nova prática discursiva, uma forma outra
de dizer e circular dizeres que não eram possíveis em um momento histórico distinto.
É nesse momento de nossas análises que buscamos, na esteira de Dela-Silva
(2008), cunhar o termo acontecimento midiático, similar ao acontecimento jornalístico da
autora, mas que entende olha para aqueles acontecimentos mais amplos, não necessariamente
jornalísticos, aqueles que ocorrem na mídia, de grande impacto, massiva veiculação, extensa
duração e, porque não, extenso alcance. São aqueles que transitam entre os diferentes suportes
midiáticos, encontrando eco neles para reverberarem. E, apesar de conceituarmos como algo
distinto, o acontecimento midiático tem os mesmos efeitos de sentidos do jornalístico, como
efeito de realidade, efeito de verdade, universalidade, observação e denúncia da realidade
social.
No segundo capítulo buscamos analisar o vídeo This is mt assault story #metoo,
que acompanha uma mulher chamada Kate que conta, em primeira pessoa, como foi interpelada
pelo Movimento e interpelou outras. É neste capítulo também que abordaremos de forma mais
aprofundada as formas de constituição, formulação e circulação de sentidos no digital, lançando
mão de Orlandi e Dias.
Os processos de identificação que ocorrem no vídeo são fulcrais para
entendermos o funcionamento discursivo do Movimento. Evidenciamos que os processos de
identificação ultrapassam a marca de gênero na convocação original de Milano, “Se todas as
mulheres [...]”, e proporcionam a identificação de homens também com o mote.
Passamos então a análise das frases escritas no colchão que Kate coloca no
jardim, o mesmo colchão em que ela fora estuprada e manteve em sua sala de jantar até ser
interpelada pelo Movimento e, com frases encorajadoras como “sinta-se livre para
compartilhar”, interpela outras a compartilharem suas próprias histórias de violência e
silenciamento.
Foi de extrema importância, antes de seguirmos, abordamos o funcionamento do
98
Twitter, rede social ímpar para nossas análises, e da hashtag como instrumento tecnológico.
Não é somente por Milano ter usado a rede social para lançar o mote, mas porque através da
plataforma, as pessoas foram interpeladas e milhões de testemunhos compartilhados. O uso do
advento conferiu ao mote uma circulação mundial e quebrou o silenciamento de milhares de
mulheres que puderam contar suas histórias e, mais importante, serem ouvidas.
Em nosso percurso passamos pelos conceitos de serialização e corpografia,
ambos de Cristiane Dias. Ao chegarmos nos conceitos de memória metálica, de Orlandi (2014)
e memória digital, de Dias (2018) nossa abordagem se aprofunda em entender como esses dois
conceitos funcionam e se relacionam entre si e com nosso material de análise.
No último capítulo abordamos a instância do luto que se transformam em luta
através da resistência e dos testemunhos. Os testemunhos se mostram ferramenta importante
para perpassar o trauma sofrido pelas sobreviventes do médico Larry Nassar, objeto de análise
neste momento da dissertação. Ao analisarmos os testemunhos das sobreviventes, observamos
o corpo falante que se inscreve no discurso.
Os testemunhos puxam a instância do jurídico para as análises e mostram a
dimensão dessa face na memória coletiva e como o coletivo é impactado pelos vereditos, que
são “decisões em torno do que admitir na memória coletiva e do que transmitir da memória
coletiva” (FELMAN, 2014, p. 117).
99
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2020.
106
ANEXOS
ANEXO A – Manifesto Das Francesas
O estupro é crime. Mas a paquera insistente ou desajeitada não é crime, nem o
galanteio é uma agressão machista. Depois do caso Weinstein, houve uma legítima tomada de
consciência a respeito da violência sexual exercida contra as mulheres, especialmente no
ambiente profissional onde alguns homens abusam do seu poder. Ela era necessária. Mas essa
libertação da palavra se volta hoje em seu contrário: somos intimadas a falar como se deve, a
calar o que incomoda e aquelas que se recusam a se curvar a tais injunções são consideradas
traidoras, cúmplices! Mas essa é uma característica do puritanismo: emprestar, em nome de um
suposto bem geral, os argumentos da proteção das mulheres e de sua emancipação para melhor
acorrentá-las a um estatuto de eternas vítimas, de pobres coisinhas sob o domínio dos falocratas
demônios, como nos bons e velhos tempos da feitiçaria. Na verdade, o #metoo provocou na
imprensa e nas redes sociais uma campanha de denúncia e de acusação pública de indivíduos
que, sem que lhes tenha sido dada a oportunidade de responder ou de se defender, foram
colocados exatamente no mesmo nível que os agressores sexuais. Essa justiça expeditiva já fez
suas vítimas, homens castigados no exercício de sua profissão, forçados a se demitir, etc.,
quando seu único erro foi ter tocado um joelho, tentado roubar um beijo, falar sobre coisas
“íntimas” em um jantar profissional ou ter mandado mensagens com conotação sexual a uma
mulher cuja atração não era recíproca. Essa febre para mandar os “porcos” ao matadouro, longe
de ajudar as mulheres a conquistar sua autonomia, serve na verdade aos interesses dos inimigos
da liberdade sexual, dos extremistas religiosos, dos piores reacionários e daqueles que
acreditam, em nome de uma concepção substancial do bem e da moral vitoriana que os envolve,
que as mulheres são seres “à parte”, crianças com rosto de adultos, que pedem para ser
protegidas. Diante delas, os homens são instados a fazer seu mea culpa e a encontrar, no fundo
de sua consciência retrospectiva, um “comportamento deslocado” que poderiam ter tido dez,
vinte ou trinta anos atrás, e do qual deveriam se arrepender. A confissão pública, a incursão de
autoproclamados promotores na esfera privada, eis o que instala um clima de sociedade
totalitária.
A onda expiatória parece não ter limites. Aqui, censuramos um nu de Egon
Schiele em um cartaz; ali, pedimos a retirada de um quadro de Balthus de um museu alegando
107
que seria uma apologia da pedofilia; na confusão entre o homem e a obra, pedimos a proibição
da retrospectiva de filmes de Roman Polanski na Cinemateca e conseguimos o adiamento
daquela dedicada a Jean-Claude Brisseau. Uma universitária considera Blow Up, o filme de
Michelangelo Antonioni, “misógino” e “inaceitável”. À luz desse revisionismo, John Ford
(Rastros de Ódio), e até mesmo Nicolas Poussin (O Rapto das Sabinas) ficam numa situação
delicada.
Os editores já estão pedindo a algumas de nós para tornarmos nossos
personagens masculinos “menos sexistas”, para falar sobre sexualidade e amor com menos
desmedida ou ainda para fazer com que os “traumas sofridos pelos personagens femininos”
sejam deixados mais evidentes! À beira do ridículo, um projeto de lei na Suécia quer impor um
consentimento expressamente notificado a todo candidato a uma relação sexual! Com um pouco
mais de esforço, dois adultos com vontade de se deitar juntos terão de assinalar com
antecedência, por meio de um “aplicativo” de seu telefone celular, as práticas que aceitam e
aquelas que recusam, devidamente listadas em um documento.
Ruwen Ogien defendia uma liberdade de ofender indispensável à criação
artística. Do mesmo modo, nós defendemos uma liberdade de importunar, indispensável à
liberdade sexual. Hoje estamos suficientemente avisadas para admitir que a pulsão sexual é por
natureza ofensiva e selvagem, mas também somos suficientemente clarividentes para não
confundir paquera desajeitada com agressão sexual. Acima de tudo, estamos conscientes de que
a pessoa humana não é monolítica: uma mulher pode, no mesmo dia, dirigir uma equipe
profissional e desfrutar de ser o objeto sexual de um homem, sem ser uma “vagabunda” ou uma
cúmplice vil do patriarcado.
Ela pode zelar para que seu salário seja igual ao de um homem, mas não pode se
sentir traumatizada para sempre por que alguém se esfregou nela no metrô, embora isso seja
considerado crime. Ela pode até considerar isso como expressão de uma grande miséria sexual,
ou como um não-acontecimento.
Como mulheres, não nos reconhecemos nesse feminismo que, para além da
denúncia do abuso de poder, assume as feições do ódio contra os homens e a sexualidade. Nós
acreditamos que a liberdade de dizer não a uma proposta sexual não existe sem a liberdade de
importunar. E consideramos que é preciso saber responder a essa liberdade de importunar de
outra maneira que não seja se fechar no papel de presa. Para aquelas dentre nós que escolheram
ter filhos, pensamos que é melhor criar nossas filhas de modo que sejam informadas e
conscientes o suficiente para poderem viver plenamente suas vidas sem se deixar intimidar ou
culpar. Os acidentes que podem afetar o corpo de uma mulher não necessariamente atingem sua
108
dignidade, e não devem, por mais difíceis que às vezes possam ser, necessariamente fazer dela
uma vítima perpétua. Porque não somos redutíveis ao nosso corpo. Nossa liberdade interior é
inviolável. E essa liberdade que apreciamos não existe sem riscos ou responsabilidades.
Fonte: EL PAÍS. A íntegra do manifesto assinado por Catherine Deneuve. 12 jan. 2018. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/12/opinion/1515792486_891199.html. Acesso em: 26 nov. 2020.