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GIOVANA OLIVEIRA DE RUSSI - PósDefesa

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GIOVANA OLIVEIRA DE RUSSI

MOVIMENTO #METOO E A NARRATIVA DA VIOLÊNCIA

INENARRÁVEL: movimentos digitais, luto, luta e testemunho

Dissertação apresentada à Universidade de

Franca, como exigência para obtenção de título

de Mestre em Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Aline Fernandes de

Azevedo Bocchi.

FRANCA

2021


GIOVANA OLIVEIRA DE RUSSI

MOVIMENTO #METOO E A NARRATIVA DA VIOLÊNCIA

INENARRÁVEL: movimentos digitais, luto, luta e testemunho

COMISSÃO JULGADORA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM LINGUÍSTICA

Presidente: Profa. Dra. Aline Fernandes de Azevedo Bocchi

Universidade de Franca

Titular 1: Profa. Dra. Dantielli Assumpção Garcia

Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)

Titular 2: Profa. Dra. Luciana Carmona Garcia Manzano

Universidade de Franca

Franca, 10/03/2021


DEDICO este trabalho aos meus pais por nunca terem me limitado a

estereótipos de gênero e por me incentivarem em tudo que fiz e quis

fazer. Ao meu marido por ser meu companheiro de aventuras e grande

incentivador do meu crescimento. À minha irmã, minha primeira e mais

resiliente amiga, obrigada por toda a ajuda, sempre. A todas as

mulheres, sobreviventes ou não, de atos de violência, silenciamentos e

apagamentos, vocês são fonte de força e resiliência.


AGRADECIMENTOS

Aos meus pais pelo apoio e incentivo constante na minha vida e na minha

educação, meus primeiros professores. Meus profundos agradecimentos por terem me

proporcionado a melhor educação disponível e acreditarem em mim sempre. Obrigada por

serem meu porto seguro em momentos de insegurança;

À minha irmã pelas infinitas conversas, risadas e paciência. Por ter sido meu

melhor presente. Obrigada por ter me ajudado nessa etapa e em toda minha vida;

Ao meu marido por todo o amor incondicional, pela infinita paciência e

constante apoio. Obrigada por me carregar quando não pude andar sozinha e ter me dado forças

para continuar;

Aos meus avós que sempre lutaram pela minha educação e pavimentaram um

caminho difícil e árduo para que eu pudesse desfrutar de um caminho mais fácil. Sem vocês,

nada disso seria possível;

À Camilla Fernandes e Gabriela Moreira Buranelli, maiores presentes que o

mestrado me trouxe, amigas pra toda e qualquer hora. Razões pelas quais eu não desisti.

Agradeço por cada brigadeiro que comemos juntas (ou separadas), por todos os sorvetes e

infinitas conversas. Obrigada por terem segurado minha mão nesse caminho tão complicado e

por vezes, doloroso;

À Profa. Dra. Marília Giselda Rodrigues, minha primeira orientadora e razão do

meu ingresso no programa, minha amiga de coração e alma, minha maior saudade. Obrigada

por ter me ensinado tanto não só sobre a academia, mas sobre a vida;

À Ana Clara Rezende que me faz crescer diariamente, sempre compartilhando

as dores, amores e conhecimentos. Meu agradecimento por ter te encontrado em um lugar que

nunca imaginei e por ter sido uma constante em meio a tantas incertezas, por me ensinar coisas

novas todos os dias e por ser uma amiga pra vida toda;

À Nathalia Soares, amiga que a Unifran me deu anos atrás e que faz parte de

tantas etapas da minha vida que já não me imagino sem sua presença;

À Thais Fanan, por todos os dias de muitas risadas, piadas, choros e apoio. Por

ir ao correio e ao cartório comigo, por me aguentar insuportável, por carregar minha muleta e


minha bolsa, por me defender. Por ser uma amiga pra todas as horas e lugares. Por ser uma

mulher maravilhosa, que enfrenta tudo que a vida lhe joga e não deixa se calar. E à Fabiana

Fanan, por todas as comidas deliciosas. Por ser uma mulher incrível e batalhadora.

Aos meus amigos que tiveram a paciência e compreensão nesse momento, que

me ouviram reclamar e falar infinitamente da minha pesquisa e do mestrado;

À Glenda Melo, amiga de longa data que me deu grandes oportunidades e

sempre confiou no meu trabalho. Meus profundos agradecimentos por me ensinar tanto e me

fazer crescer sempre, em todas as instâncias da minha vida, em cada conversa que temos;

À Profa. Dra. Aline Fernandes de Azevedo Bocchi, orientadora que me acolheu

e possibilitou não somente a escrita dessa dissertação, mas também do meu primeiro artigo;

À Profa. Dra. Dantielli Assumpção Garcia, pelo tempo desprendido em ler

minha dissertação e tecer comentários tão proveitosos, colaborando para meu crescimento

acadêmico e pessoal;

À CAPES por financiar essa etapa;

A todos os profissionais da saúde que estão na linha de frente de combate a

pandemia de covid-19, em especial àqueles que se arriscam diariamente para proteger a

população mais vulnerável, abandonada pela necropolítica. Os meus sinceros sentimentos a

todas as famílias, em especial à da Eneida Nalini, que perderam entes queridos para uma doença

desoladora, meus profundos sentimentos. Minha eterna saudade ao Mateus Barbosa de Oliveira,

grande professor, patrão e amigo, que a covid-19 levou sem permitir despedidas, vai ficar a

saudade dos nossos cafés e de seus ensinamentos.


Agora

não é hora

de fazer silêncio

ou pedir espaço

porque a gente nunca teve espaço para nada

agora

é a nossa hora

de abrir bem a boca

falar mais alto do que nunca

até que ouçam

Rupi Kaur


RESUMO

RUSSI, Giovana Oliveira de. MOVIMENTO #METOO E A NARRATIVA DA

VIOLÊNCIA INENARRÁVEL: movimentos digitais, luto, luta e testemunho. Orientadora:

Aline Fernandes de Azevedo Bocchi. 2021. 106 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) –

Universidade de Franca, Franca.

A pesquisa aqui apresentada pretende analisar um extenso material heterogêneo, analisado a

partir da noção de percurso temático (GUILHAUMOU; MALDIDIER, 2010), a fim de entender

o funcionamento discursivo do Movimento Metoo e determinar se ele pode ou não ser definido

como acontecimento discursivo (PÊCHEUX, 2008). Para tal, nos debruçamos sobre o

arcabouço teórico da Análise de Discurso de linha francesa, em especial nos conceitos de

Michel Pêcheux. Apesar de ter sido fundado em 2006 pela ativista negra Tarana Burke, o

Movimento Metoo ganha novos contornos com o tweet convocatório de Alyssa Milano em

2017, seguindo as denúncias de abuso e assédio sexual contra o magnata hollywoodiano Harvey

Weinstein. Nos valendo de um extenso arquivo criado ao longo da pesquisa, buscamos entender

como o digital modifica a constituição, formação e circulação da hashtag #metoo e como essa

modificação proporciona novos rituais enunciativos e lugares de enunciação (ZOPPI-

FONTANA, 2002). Assim, nos valeremos ainda dos conceitos de memória metálica

(ORLANDI, 2007a) e memória digital (DIAS, 2016). Objetiva-se contribuir para a discussão

do discurso digital em Análise do Discurso, através de apontamentos do funcionamento

discursivo da hashtag. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento

001.

Palavras-chave: Hashtag; Análise do Discurso; Discurso Digital, Movimento Metoo; #metoo.


ABSTRACT

RUSSI, Giovana Oliveira de. MOVIMENTO #METOO E A NARRATIVA DA

VIOLÊNCIA INENARRÁVEL: movimentos digitais, luto, luta e testemunho. Orientadora:

Aline Fernandes de Azevedo Bocchi. 2021. 106 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) –

Universidade de Franca, Franca.

The research presented here intends to analyze an extensive heterogeneous material in order to

understand the discursive functioning of the Metoo Movement and to determine whether or not

it can be defined as a discursive event (PÊCHEUX, 2008). To this end, we focus on the

theoretical framework of Discourse Analysis of the French line, especially on Michel Pêcheux's

concepts. Despite being founded in 2006 by black activist Tarana Burke, the Metoo Movement

takes on new shapes with Alyssa Milano's summoning tweet in 2017, following allegations of

abuse and sexual harassment against Hollywood tycoon Harvey Weinstein. Using an extensive

archive created throughout the research, we seek to understand how digital modifies the

constitution, formation and circulation of the hashtag #metoo and how this modification

provides new enunciative rituals and enunciation places (ZOPPI-FONTANA, 2002). Thus, we

will also use the concepts of metallic memory (ORLANDI, 2007a) and digital memory (DIAS,

2016). The objective is to contribute to the discussion of digital discourse in Discourse Analysis,

through notes on the discursive functioning of the hashtag. This work was carried out with the

support of the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brazil (CAPES)

- Financing Code 001.

Keywords: Hashtag; Discourse Analysis; Digital Discourse; Metoo Movement; #metoo.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Capa da revista Times 29

Figura 2 – Tweet de Alyssa Milano 33

Figura 3 – Twitter de Randall G. Arnold 50

Figura 4 – Mensagem da Kate no colchão 51

Figura 5 – Mensagem da primeira amiga escrita no colchão 53

Figura 6 – Mensagem da segunda amiga escrita no colchão 53

Figura 7 – Fio do Twitter 58

Figura 8 – Mensagem de relato direto escrita no colchão 59

Figura 9 – Mensagem de relato indireto escrita no colchão 60

Figura 10 – Mensagem de relato direto escrita no colchão 61

Figura 11 – Mensagem de relato direto escrita no colchão 62

Figura 12 – Mensagem escrita no colchão 64

Figura 13 – Tweet relato de Simone Biles 70

Figura 14 – Melody Posthum 71

Figura 15 – Taylor Livingston 72

Figura 16 – Testemunho de Kate 77

Figura 17 – Testemunho de Rachel Denhollander 82

Figura 18 – Testemunho de Jamie Dantzscher 85

Figura 19 – Sobrevivente chorando 88

Figura 20 – Angela e Rachael se abraçando 89

Figura 21 – Rachael sorrindo 90


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12

1 O ACONTECIMENTO #METOO E OS NOVOS RITUAIS ENUNCIATIVOS ......... 21

1.1 A #METOO ENTRE MEMÓRIAS E SILENCIAMENTOS........................................ 24

1.1.1 Filiações de memória acerca do movimento #metoo ...................................................... 27

1.2 O ACONTECIMENTO #METOO E A EMERGÊNCIA DE NOVOS RITUAIS

ENUNCIATIVOS .................................................................................................................... 33

1.3 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO ........................................................................................ 38

1.3.1 Condições políticas de emergência da #metoo................................................................ 39

1.3.2 A marcha das mulheres e os movimentos ciberativistas ................................................. 41

1.4 LUGAR DE ENUNCIAÇÃO E RITUAL ENUNCIATIVO ............................................. 44

2 MODOS DE CONSTITUIÇÃO, FORMULAÇÃO E CIRCULAÇÃO DE SENTIDOS

EM THIS IS MY ASSAULT STORY #METOO.................................................................... 47

2.1 INTERPELAÇÃO E PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO EM “ESSA É A MINHA

HISTÓRIA DE ESTUPRO #METOO” ................................................................................... 51

2.1.1 A hashtag: do funcionamento técnico ao discursivo ....................................................... 56

2.2 UMA ESCRITA TODA NOSSA ....................................................................................... 59

2.2.1 Corpografia: escrita e corpo no digital ............................................................................ 63

2.3 MEMÓRIA METÁLICA E MEMÓRIA DIGITAL .......................................................... 64

3 A TRANSFORMAÇÃO DO LUTO EM LUTA ............................................................... 67

3.1 A INSTÂNCIA DO LUTO ................................................................................................ 67

3.1.1 Disenfranchised Grief ...................................................................................................... 73

3.2 A INSTÂNCIA DO TRAUMA E DO TESTEMUNHO ................................................... 76

3.2.1 O Documentário como acontecimento discursivo ........................................................... 81

3.2.2 O Jurídico ........................................................................................................................ 83

3.3 O CORPO ........................................................................................................................... 88

3.4 IMPACTO NO REAL DA HISTÓRIA.............................................................................. 92

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 96

REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 99


ANEXOS................................................................................................................................ 106


12

INTRODUÇÃO

Fundado em 2006 pela ativista negra Tarana Burke, o Movimento Metoo ganhou

novos contornos a partir de um tweet da atriz estadunidense Alyssa Milano em 2017, no qual

ela convoca todas as mulheres já assediadas a usarem a hashtag #metoo. O tweet surge em

resposta às denúncias feitas pelo jornal The New York Times contra o produtor hollywoodiano

Harvey Weinstein, acusado de assediar dezenas de mulheres. O que dá seguimento às denúncias

e o tweet da atriz é algo nunca antes visto, uma grande onda de acusações de assédio contra

homens poderosos. As antigas estruturas aparentemente inabaláveis que sustentavam as

produções cinematográficas hollywoodianas começam a ruir. Ninguém estava imune.

Produtores, atores, fotógrafos, CEOs, o título não importava mais, as denúncias não iriam parar.

As mulheres não iriam mais se calar. Carreiras renomadas foram parcialmente enterradas, como

as de Bill Cosby e Kevin Spacey 1 . Dizemos parcialmente pois, em diversos casos, apesar de

processos judiciais e acusações públicas, a carreira do acusado sofre um desgaste, mas continua,

como os diretores Roman Polanski e Woody Allen. 2 É nesse tsunami de denúncias que a

presente pesquisa nasce.

Pretendemos nesta pesquisa analisar um material heterogêneo, formado de

filmes, séries, documentários, livros e diversas materialidades, através do arcabouço teórico da

Análise do Discurso de linha francesa, a fim de constatarmos se o Movimento #metoo pode ser

considerado um acontecimento discursivo. Por se tratar de um material heterogêneo, o percurso

1

Bill Cosby foi condenado em 2018 por três acusações de crime de abuso sexual cometidos em 2004. Kevin

Spacey perdeu contrato com a Netflix em 2018, com a interrupção da série House of Cards que seguiu sem o ator

e o filme Gore, que não foi lançado, um total de US$39 milhões. Após as denúncias contra Spacey, o ator não teve

mais produções lançadas e nem novos contratos assinados, chegando a ser substituído pelo ator Christopher

Plummer no filme Todo o Dinheiro do Mundo, que já estava praticamente finalizado quando o diretor Ridley Scott

decidiu pela substituição.

2

Roman Polanski, famoso diretor e produtor francês, é considerado fugitivo pela justiça estadunidense desde 1978

quando, após pagar fiança por ter sido preso em flagrante pelo estupro da modelo Samantha Geimer, de 13 anos,

fugiu para a Europa antes de nova prisão, nunca tendo sido julgado pelo caso. Apesar de ter sido preso em Zurique

em 2009, a justiça suíça negou sua extradição por falta de provas. Ainda assim, ganhou diversos prêmios após

1978, com destaque para o de melhor diretor em 2020 no Prêmio César, uma espécie de Oscar francês. Várias

atrizes se retiraram da cerimônia em forma de protesto e o debate “artista vs. obra” se reacendeu. Woody Allen,

diretor estadunidense, é acusado pela filha adotiva Dylan Farrow de tê-la abusado sexualmente aos 7 anos de idade.

A carta enviada ao The New York Times em 2014 detalha os acontecimentos. Mesmo assim, o diretor foi

considerado inocente em investigações em 1994. Em 2014 o diretor ganhou um prêmio honorário Cecil B.

DeMillie do Globo de Ouro, que premia anualmente alguém que contribuiu significativamente, ao longo de sua

carreira, para o mundo do entretenimento.


13

temático foi norteador e possibilitou a escolha do material de forma a integrar as análises.

Segundo Guilhaumou e Maldidier,

[...] a análise de um trajeto temático remete ao conhecimento de tradições retóricas,

de formas escrita, de uso da linguagem, mas sobretudo, interessa-se pelo novo no

interior da repetição. Esse tipo de análise não se restringe aos limites da escrita, de um

gênero, de uma série: ela reconstrói os caminhos daquilo que produz o acontecimento

da linguagem. [...] a análise do trajeto temático fundamenta-se em um vaivém de atos

linguageiros de uma grande diversidade e atos de linguagem que podemos analisar

linguisticamente e nos quais os sujeitos podem ser específicos (GUILHAUMOU e

MALDIDIER, 2010, p. 165).

Para orientar a constituição do corpus de análise a partir de uma temática

depreendida do nosso arquivo, composto por discursos sobre o movimento #metoo, e em

consonância com a visão de trajeto temático de Guilhaumou e Maldidier, “a distinção entre ‘o

horizonte de expectativas’ – o conjunto de possibilidades atestadas em uma situação histórica

dada – e o acontecimento discursivo que realiza uma dessas possibilidades” (2010, p. 164), não

pressupomos a existência de um referencial fixo do qual se baseia nosso material, mas temos

como foco os efeitos de sentido e o acontecimento discursivo produzidos a despeito disso, nos

momentos históricos analisados. Para os autores, o acontecimento discursivo “é apreendido na

consistência de enunciados que se entrecruzam em um momento dado” (2010, p. 164).

Tendo isso em vista e para a realização das análises, mobilizaremos conceitos

como acontecimento discursivo (PÊCHEUX, 2008), memória metálica (ORLANDI, 2007a),

memória digital (DIAS, 2016), rituais enunciativos e lugar de enunciação (ZOPPI-FONTANA,

2002), entre outros.

Constituída sob um tripé, a Análise do Discurso é uma disciplina de entremeio

(ORLANDI, 2007a, p. 23), o que significa que ela não concentra simplesmente os saberes das

disciplinas que a constituem, a Linguística, a Psicanálise e o Marxismo, mas “discute seus

pressupostos continuamente”, se fazendo na “contradição da relação entre as outras”

(ORLANDI, 2007a, p. 23 – grifo da autora). Contudo, falar de Análise do Discurso

simplesmente é algo amplo, como aponta Mussalim (2001), então os valeremos do arcabouço

teórico da teoria originada na França na década de 1960 por Jean Dubois e Michel Pêcheux e

que, no contexto específico do Brasil, segue na direção dos estudos de Eni Orlandi, pioneira e

até hoje principal tradutora e colaboradora de Pêcheux, sendo este o teórico norteador da

pesquisa aqui apresentada.

Por ser uma disciplina de entremeio, a Análise de Discurso (doravante AD)

trabalha com a região que Maingueneau (1997, p. 11-12) chamou de região de contornos


14

instáveis, ou seja, a região que “se refere à linguagem apenas à medida que esta faz sentido para

sujeitos inscritos (...) em posições sociais ou em conjunturas históricas”, assim, não é possível

fazer AD sem que se considere a ideologia e as condições sócio-históricas de produção. Isso

implica considerarmos o percurso histórico da posição social da mulher em nossa pesquisa,

mesmo que não o exploremos profundamente, a fim de entendermos as condições de

emergência do levante do Movimento #metoo aqui estudado.

No século XIX a posição da mulher era de tal modo subalterna que os atos de

violência contra elas eram fortemente naturalizados. Significada como propriedade – do pai,

marido, filho, irmãos –, ela muitas vezes servia de álibi para os erros masculinos, e qualquer

transgressão sua era considerada algo que “[...] manchava a reputação dos homens a quem ela

pertencia – filho, marido, irmãos – até que a mancha fosse apagada, por intermédio da agressão”

(GAY, 1995, p. 120 apud PUGA, 2015, p. 716). No Brasil, até 2005, havia a prerrogativa de

inocentar estupradores caso se cassassem com a vítima e, até 2009, o estupro era considerado

crime contra os costumes. Em 2017, a 1ª turma do Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a

absolvição de um réu confesso de ter matado a esposa a facadas sob defesa de “legítima defesa

da honra 3 ”, defesa que ficou nacionalmente conhecida no caso do assassinato de Ângela Diniz

pelo então namorado, Doca Street, em 1976 4 . Além disso, o estupro de mulheres é conhecida

arma de guerra, que demarca a soberania sobre o território conquistado pela aniquilação da

subjetividade dos indivíduos, desestabilização social e genocídio, sendo a inseminação de

mulheres por estupro, uma maneira de “limpeza étnica”, além de uma forma de “profanação

pública; muitas vezes uma tentativa deliberada de humilhar os homens inimigos por não

conseguirem proteger ‘suas’ mulheres” (BOURKE, 2014, p. 19).

A violência se naturaliza por meio de processos que reduzem a mulher a um

objeto. No campo da AD, entende-se que essa naturalização é efeito do funcionamento da

ideologia, que se realiza por meio de práticas e incide sobre os sujeitos, interpelando-os. As

mulheres são, portanto, subjetivadas por práticas violentas, a partir das quais constituem-se

como sujeitos, em processos de identificação (BOCCHI, 2017). Segundo Saffioti (2004), a

violência é definida como “[...] ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade

3

No dia 12 de março de 2021, o STF decidiu, por unanimidade, que a tese de legítima defesa da honra não pode

ser aplicada em julgamentos nos tribunais do júri como argumentação de defesa em casos de feminicídio. Segundo

o ministro Dias Toffoli, relator do caso, “Para além de um argumento atécnico e extrajurídico, a legítima defesa

da honra é estratagema cruel, subversivo da dignidade da pessoa humana e dos direitos à igualdade e à vida e

totalmente discriminatória contra a mulher, por contribuir com a perpetuação da violência doméstica e do

feminicídio no país”. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/03/13/stf-proibe-porunanimidade-uso-do-argumento-da-legitima-defesa-da-honra-por-reus-por-feminicidio.ghtml.

Acesso em: 12

mar. 2021.

4

Ver: Podcast – Praia dos Ossos, disponível no Spotify.


15

física, integridade psíquica, integridade sexual, integridade moral.” (p. 17). Há aqui uma

problemática importante, integridade física e sexual são palpáveis, passíveis de constatação

visual na maioria das vezes, mas as outras duas nem sempre são e é aqui que o problema se

apresenta, visto estarem mais sujeitas à interpretação médica, judicial etc.

Para elucidar essa dependência interpretativa, muitas vezes feita por homens,

evocamos o caso da operadora de emergência, Patricia Brooks, mostrado no documentário

Nevertheless (2020). Em 1996, enquanto atendia um chamado de socorro, teve seus seios

apalpados por debaixo da blusa por um colega. O caso foi arquivado sob alegação de não haver

provas contundentes de assédio grave ou generalizado, tendo ocorrido apenas uma vez. O caso

de Brooks serviu de molde para luta pela mudança da lei na Califórnia (EUA) e pela melhor

definição do que constitui violência e assédio.

Todo e qualquer ato de violência é algo a ser denunciado e combatido. Contudo,

a violência contra a mulher sempre foi velada, e, em muitos casos, permitida. A partir do

momento em que as mulheres passam a romper com a objetificação e lutam contra saberes e

poderes constitutivos de práticas que as interditam e violentam, práticas essas que as mantêm

refém de uma sociedade patriarcal e machista, emerge, desde novos rituais enunciativos,

posições-sujeito outras e novos lugares de enunciação (ZOPPI-FONTANA, 2002; 2017). O

ritual enunciativo inaugurado pelos feminismos permite lugares de enunciação cujo mote é a

reinvindicação de direitos, como direito de voto, direito a emprego, controle de natalidade,

aborto, entre outros. A voz feminina foi ganhando coro e passa a ser cada vez mais ouvida. A

violência passa a ser cada vez menos aceita.

Entretanto, as lutas contra a violência e as opressões mostram-se ainda

necessárias. Segundo Márcia Tiburi,

perceber a função dessas categorias [sexo, capital, Deus e poder] em nossas vidas é o

caminho da nossa libertação de dominações e violências que são impostas. Aquilo que

é tratado pelo senso comum ou pelas instituições de maneira fundamentalista deve ser

sempre investigado criticamente. A pergunta que podemos nos colocar, portanto, diz

respeito ao que essas categorias têm a nos dizer quando somos corpos viventes e

sobreviventes que lutam contra opressões em nome de direitos básicos, tais como

simplesmente existir (2018, p. 18).

Tiburi achata as categorias sociais desconsiderando as desigualdades existentes

dentro da luta contra a violência, colocando, por exemplo, mulheres brancas e mulheres negras

numa mesma posição de luta pela libertação contra a violência, sem considerar que, apesar do

gênero delas ser o mesmo, a categoria raça é determinante e dita uma discrepância gritante na

luta contra qualquer tipo de violência. Segundo o IPEA, as mulheres negras representam 68%


16

das mulheres assassinadas no Brasil em 2018, quase o dobro se comparado às mulheres nãonegras

5 . Não é nossa intenção diminuir a fala da escritora, mas é de suma importância para

nosso trabalho marcarmos a esfera racial e coloca-la em debate por entendermos sua relevância

e para não apagarmos e silenciarmos a criadora do movimento #metoo, Tarana Burke, mulher

negra e ativista.

A ONU (apud SOARES, 2015, [n.p.]) alerta que 7 em cada 10 mulheres no

mundo já foram ou serão violentadas em algum momento da vida por um parceiro e 35% das

mulheres já foram ou serão violentadas por um estranho, sem especificar raça, classe social,

escolaridade ou lugar no mundo.

Em 2019, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicou a segunda edição

do mapa “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, onde 37,1% das mulheres

com 16 anos ou mais relataram terem sofrido assédio dos mais variados tipos nos últimos 12

meses: 32,1% receberam comentários desrespeitosos ao andar na rua (19 milhões de mulheres);

7,8% foram assediadas fisicamente em transporte público (3,9 milhões) e 5% foram agarradas

ou beijadas sem consentimento (2,3 milhões). Além disso, 66% de mulheres entre 16 e 24 anos

sofreram algum tipo de assédio em 2019.

Os números ficam ainda mais alarmantes na pesquisa sobre violência contra

mulher no ambiente universitário realizada pelo Instituto Avon em 2015: 56% das mulheres

entrevistadas relataram já terem sofrido assédio sexual; 28% sofreram violência sexual; 18%

sofreram algum tipo de coerção; 10% sofreram violência física e 49% sofreram desqualificação

intelectual. Contudo, o mais preocupante desta pesquisa são os casos que ainda não são

reconhecidos como violência por parte dos homens: 27% não consideram violência abusar da

mulher embriagada; 35% não consideram violência coagir uma mulher a participar de

atividades degradantes como desfiles e leilões e 31% não consideram violência repassar fotos

ou vídeos das colegas sem a autorização delas. As mulheres negras são maior índice de

vitimização, representando 28,4% das mulheres vítimas de violência física, além de serem

40,5% das mulheres vítimas de assédio (DATAFOLHA; FÓRUM BRASILEIRO DE

SEGURANÇA PÚBLICA, 2019).

Em 2017, nos EUA a atriz Alyssa Milano publica um tweet convocando

mulheres a contarem suas histórias de assédio usando a hashtag #metoo. Milano foi interpelada

pela reportagem do jornal The New York Times publicada dias antes, expondo décadas de

abusos e assédios por parte do magnata Harvey Weinstein. Apesar de Metoo já existir

5

A pesquisa considera como mulheres não-negras as mulheres pardas, indígenas e brancas (IPEA, 2019).


17

previamente, tendo sido um movimento fundado pela ativista negra Tarana Burke em 2006, o

tweet inaugura um lugar de enunciação que, através de novos rituais enunciativos, proporciona

uma maior possibilidade de escuta, impactando o silenciamento da violência (sem

necessariamente rompê-lo) e dando lugar a processos de ressignificação.

É importante fundamentarmos o que aqui chamamos de “movimento”, para tal

lançaremos mão de Orlandi (2011b), que distingue “movimento social” de “movimento da

sociedade”, sendo este inevitável, parte da materialidade, do real, já aquele diz respeito a

“organizações que se formam, em certos momentos, visando certos objetivos, bem

determinados na sociedade e na história” (p. 4). Assim sendo, consideramos o #metoo como

um movimento da sociedade, pois se constitui de modo espontâneo através de ações no real da

história procurando produzir, através de novos lugares de enunciação, outros espaços sociais.

Já o Movimento fundado por Burke consiste em um movimento social, uma vez que é uma

organização formal com um objetivo estabelecido, acolher crianças e adolescentes em situação

de vulnerabilidade.

É dentro desse cenário de inquietação que esta pesquisa começa a nascer. Num

primeiro momento, a ideia era realizar um estudo sobre a midiatização da violência de gênero

e sobre como a mídia permite a perpetuação dessa violência, através de análises de manchetes

de jornais, notas de desculpas e tweets que retratassem essa violência. Contudo, por fatores

externos, houve uma mudança de foco, que passa a ser o Movimento #metoo e seu levante.

Poderia ele ser um acontecimento discursivo? Temos aqui nossa pergunta de pesquisa que, para

ser respondida, demandou a montagem de um arquivo, dispositivo de AD. O arquivo não é algo

fixo, pré determinado e imutável, e considerar sua materialidade é, segundo Dias (2015, p. 973),

encontrar o momento da interpretação em oposição ao momento da descrição, numa alternância

entre eles como disse Pêcheux (2008, p. 54). Ainda,

[...] a descrição instala o real da língua (equívoco, falha, elipse, etc.), a interpretação

instala o real da história (contradição), um alternando-se ao outro na própria

complexidade do arquivo, tomado em redes de memória, pondo assim em relação

língua e história (DIAS, 2015, p. 973).

Contudo, não estamos falando de uma identificação puramente institucional do

arquivo, o que Guilhaumou e Maldidier (1994) consideram insuficiente para defini-lo, já que

ela diz pouco sobre o funcionamento dos discursos.

[...] O arquivo nunca é dado a priori, e em uma primeira leitura, seu funcionamento é

opaco. [...] o arquivo não é o reflexo passivo de uma realidade institucional, ele é,

dentro de sua materialidade e diversidade, ordenado por sua abrangência social. O

arquivo não é um simples documento no qual se encontram referências; ele permite


18

uma leitura que traz à tona dispositivos e configuração significantes

(GUILHAUMOU; MALDIDIER, 2010, p. 162).

De forma prática, o arquivo foi constituído e se mostrou, nesta pesquisa, como

heterogêneo, constituído de diversos mídium, e marcado justamente pela abrangência social e

uma leitura plural. Com relação à leitura, Pêcheux (1981 apud DIAS, 2015, p. 973) nos alerta

que não há apenas uma maneira de leitura, muito pelo contrário, há uma pluralidade de gestos

de leitura e tampouco trata-se de uma leitura literal, trata-se de “adicionar sistematicamente a

leitura à fragmentação espontânea das sequências para liberar completamente a matéria verbal

[ou não verbal] dos restos de sentido que ainda a aderem [...]”, o que Cristiane Dias (2015, p.

973) explanou como “tirar a leitura de qualquer relação com a evidência”.

O arquivo foi construído por documentários como The Hunting Ground;

Untouchable; Nevertheless; Feministas: o que elas estavam pensando?; Miss Representation;

Rede de abuso, Atleta A e No coração do ouro: o escândalo da seleção americana de ginástica.

Filmes, séries e miniseries: Patriot Act; Jeffrey Epstein: poder e perversão; O homem invisível;

I may destroy you; The Handmaid’s Tale, Inacreditável e Nanette. Além do livro Ela disse.

A partir do arquivo, começamos a seleção dos recortes que iriam figurar no

corpus de análise, composto por (i) um vídeo do canal estadunidense As/Is sobre uma história

de estupro apresentada pela própria vítima, (ii) diversos tweets retirados diretamente de contas

do Twitter de atrizes, ginastas e anônimas e (iii) dois documentários que abordam o julgamento

do médico olímpico Larry Nassar, a fim de elucidar e responder à pergunta de pesquisa.

A decisão de analisar o vídeo This Is My Assault Story #metoo veio após assistir

o vídeo derivado dele, publicado pela página brasileira Quebrando o Tabu no Twitter e

Facebook. Começamos a análise pelo vídeo original, com vistas a compreender seus modos de

significação, dos quais destaca-se a circulação de sentidos, com efeitos nos sentidos produzidos.

A construção da dissertação se deu a partir disso e foi progredindo conforme o próprio material

pedia novos rumos e conceitos.

No percurso desta pesquisa, entendemos que o vídeo This Is My Assault Story

nos permite sustentar uma compreensão da hashtag #metoo enquanto acontecimento

discursivo, conforme o objetivo principal proposto. Situamos, deste modo, a hashtag #metoo

no encontro entre uma memória e uma atualidade, procurando abarcar seu funcionamento

discursivo, ou seja, seus modos de formulação, constituição e, principalmente, circulação, posto

que a circulação tem um lugar privilegiado quando se pensa a produção de sentidos no digital:

[...] a maneira de circular altera o sentido da arte e sua função social. Trata-se de uma

circulação por reprodução. É a circulação que produz mudanças no modo de


19

formulação. [...] Formula-se para circular de maneira produtiva, em quantidade. [...]

o que sustenta a formulação dos dizeres no digital é a sua própria circulação [...]

(DIAS, 2018, p. 34).

Assim, o aqui e o agora da própria circulação não se separam da circunstância

da enunciação no digital. “[...] as formas de circulação e replicação no meio digital são o próprio

aqui e agora, singulares em sua aparição” (DIAS, 2018, p. 34).

Partindo da questão de pesquisa definida para este estudo, traçamos o objetivo

principal, qual seja, compreender a #metoo como um acontecimento discursivo. Tendo em vista

os documentos de arquivo de que dispomos, nossa aposta é que a #metoo possa ser considerada

um acontecimento discursivo posto que, através de novos rituais enunciativos, deslocam-se

cristalizações anteriores possibilitando sentidos outros, por meio de processos que envolvem o

testemunho, o luto e a ressignificação do trauma. Além disso, graças a esses sentidos outros, há

ressignificação de discursos de assédio, o que passa a possibilitar movimentos no

silenciamentos impostos às mulheres há séculos.

Para responder tal pergunta, os capítulos foram estruturados com perguntas

norteadoras que, de certa forma, servem também como objetivos específicos. O primeiro

capítulo busca compreender a #metoo como acontecimento discursivo, apresentando o conceito

não apenas de acontecimento discursivo para Pêcheux, mas também de ritual enunciativo

(ZOPPI-FONTANA, 2002; 2017) e lugar de enunciação (ZOPPI-FONTANA, 2002). Faz-se

também um percurso pelas condições de produção, com exposição e análise do cenário político

dos EUA, dando destaque ao ciberfeminismo e à marcha das mulheres. Neste capítulo, o

objetivo é mostrar como, através de uma organização ciberativista, a #metoo emerge em um

cenário de profundo silenciamento, Hollywood, e pode se configurar como acontecimento

discursivo.

Já no segundo capítulo, pretendemos compreender os modos de construção,

formulação e circulação dos sentidos para a #metoo através de análise do vídeo This is my

assault story #metoo, relato de uma sobrevivente que, interpelada pelo Movimento, passa a

ressignificar sua história e incentiva outras mulheres à ressignificação. Explicamos o

funcionamento tecnológico e discursivo da hashtag e mostramos filiações de memória nos

discursos de sobreviventes e apoiadores do Movimento.

O terceiro e último capítulo visa analisar os modos de transformação do luto da

violência sofrida em luta e resistência, através de testemunhos dados em um julgamento e

abordado em dois documentários distintos, No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção

Americana de Ginástica e Atleta A. E, por fim, os impactos no real da história que o Movimento


20

#metoo causou. Elencamos casos como o da China, que mudou o código civil, incluindo pela

primeira vez em sua história, uma definição para assédio sexual, diretrizes explícitas da não

permissividade de assédio por parte dos empregadores às funcionárias e a possibilidade de

processar por assédio sexual e discriminação de gênero. Outros casos, como Índia, Austrália e

Brasil também serão expostos.

Esta dissertação busca, também, contribuir de maneira sistemática para o campo

da Análise de Discurso mostrando como movimentos ciberativistas podem se constituir como

acontecimentos discursivos. Além disso, acreditamos também que esta pesquisa teve, entre suas

justificativas e relevância, aquilo que é da contribuição política das pesquisas acadêmicas, posto

que há relevância sócio-histórica em tratar de assédio contra as mulheres em um momento que

o Brasil é governado por um presidente, o supremo chefe político da nação, que destila

estereótipos misóginos e faz constantes apologias à violência contra mulher. Não obstante,

buscamos contribuir para os estudos sobre as novas tecnologias de informação, comunicação e

circulação de dizeres no interior da AD, mostrando seu funcionamento discursivo e relevância

sócio-histórica, sendo terreno fértil para futuras análises uma vez que cada dia se renovam tais

tecnologias.


21

1 O ACONTECIMENTO #METOO E OS NOVOS RITUAIS ENUNCIATIVOS

There are mountains growing beneath our feet that

cannot be contained

All we’ve endured has prepared us for this

Bring your hammers and fists, we have a glass

ceiling to shatter

Rupi Kaur 6

Os movimentos sociais têm ganhado força na atualidade graças, principalmente,

à sua circulação no ciberespaço e às novas relações com o tempo e com o espaço por ele

possibilitadas. Segundo Costa (2018), o movimento feminista ou ciberfeminismo vem se

apropriando das ferramentas virtuais disponíveis, entre elas da hashtag, definida por Paveau

(2017) como uma tecnopalavra que estabelece pontos de ancoragem do debate público sobre

determinado tema. Para Paveau, a hashtag pode ser compreendida enquanto

[...] segmento de linguagem precedido do símbolo #, utilizado originalmente na rede

Twitter, mas adaptado a outras plataformas, como o Facebook. Essa associação faz

com que se torne uma tag clicável, inserida manualmente no Twitter que permite

acessar um fio que reúne o conjunto dos enunciados que contém a hashtag [...]

(PAVEAU, 2017, p. 196).

O ciberespaço funciona como amplificador das causas debatidas offline; ele

possibilita a circulação de sentidos e a proliferação das manifestações relacionadas aos

movimentos sociais. Para Costa (2018), o ciberativismo, definido como “processos de

adaptação dos movimentos sociais às novas tecnologias”, tem contribuído na divulgação das

causas sociais, políticas, econômicas e, sobretudo, “na própria determinação destes movimentos

reivindicatórios” (p. 40).

O combate ao assédio faz parte da agenda feminista há tempos, acompanhado de

questões acerca do corpo feminino (liberdade de escolha, direitos reprodutivos, discriminação,

aborto etc.), cidadania, gênero, disparidades e luta por equidade no mercado de trabalho,

desigualdade na educação, trabalho doméstico e, claro, violência contra a mulher e de gênero.

6

tem montanhas que crescem / debaixo do nosso pé / isso ninguém controla /tudo que enfrentamos / nos preparou

para esse momento / venham com martelos e punhos / temos um teto de vidro a quebrar

(- vamos arrancar esse telhado. Rupi Kaur. O que o sol faz com as flores, p. 262)


22

Ao trabalharmos, neste estudo, com o assédio e a violência sexual discursivizados por meio da

#metoo, colocamos em evidência um movimento cuja história se inicia anos antes do tweet de

Alyssa Milano, embora ele tenha configurado novos modos de formulação e circulação

possibilitados, principalmente, pelo funcionamento do digital.

Partindo deste ponto, dedicamos este capítulo à problematização da #metoo

como um acontecimento discursivo. Interessa-nos investigar se esse movimento integra um

acontecimento midiático ou se ele pode também ser considerado um acontecimento discursivo.

Tentamos aqui cunhar o termo acontecimento midiático, a partir do “acontecimento

jornalístico” explorado por Dela-Silva,

[...] um fato, uma ocorrência no mundo; mas um fato que gera uma notícia, que por

sua relevância perante a avaliação dos jornalistas do que se constitui como interesse

público, merece estar presente nas edições diárias dos noticiários impressos ou

eletrônicos. Trata-se de um acontecimento enquanto referente, com uma existência

material no mundo; um acontecimento enquanto um fato que se inscreve na história

do dia-a-dia, que o jornal e os jornalistas se propõem a escrever (DELA-SILVA, 2008,

p. 27).

E ainda

Os meios de comunicação gozam do poder e detêm espaço privilegiado para interpelar

sujeitos através da circulação de seus discursos pelos jornais, pela TV, mesmo pelas

novas mídias digitais, produzindo sentidos fortes o suficiente para que, também,

orientem a política (ALMEIDA; AMARAL, 2020, p. 451).

Entendemos assim, que os meios de comunicação, a mídia, têm a capacidade e

o espaço que orientam o político, não somente a política, e podem estar diretamente

relacionados ao texto de Hanisch (1969), “O pessoal é político”, em que a autora postula que

determinadas ocorrências da espera pessoal devem ser colocadas numa esfera mais ampla, na

midiática. Segundo Guimarães (2001, p. 14 apud DELA SILVA, 2008, p. 16) “o acontecimento,

enquanto acontecimento para a mídia, diz respeito a uma relação da mídia, a partir da qual ela

enuncia, com os eventos do mundo social e político”. Os acontecimentos midiáticos são,

portanto, aqueles acontecimentos mais amplos, não necessariamente jornalísticos, aqueles que

ocorrem na mídia, acontecimentos de grande impacto, com massiva veiculação, extensa

duração e, porque não, extenso alcance. São aqueles que transitam entre os diferentes suportes

midiáticos, encontrando eco neles para reverberarem. Contudo, os efeitos de sentidos são muito

próximos aos do acontecimento jornalístico, como efeito de realidade, efeito de verdade,

universalidade, observação e denúncia da realidade social.

Nesta direção, apresentaremos, nas páginas que se seguem, um percurso teórico


23

de compreensão da relação entre memória e acontecimento nos processos de significação, ou

seja, colocamos em pauta sentidos que atualizam modos de dizer a violência, inaugurando

rituais enunciativos e lugares de enunciação até então impossibilitados por uma história

machista e patriarcal de opressão e violência às mulheres.

Para tanto, mobilizamos teoria e análise conjuntamente, embora não de forma

indistinta. Isso porque a própria especificidade da AD é ser uma disciplina analítica, de

interpretação, cujos conceitos e noções não comportam uma aplicabilidade. Segundo Orlandi

(2007a), a AD é uma disciplina de entremeio não positiva, ou seja, ela não acumula

conhecimentos, posto que discute constantemente seus pressupostos. Trabalhando no entremeio

da Linguística, da Psicanálise e do Materialismo histórico, campos aos quais Pêcheux recorreu

para elaborar sua teoria dos processos de significação, a AD se interessa pela linguagem tomada

como prática, na relação com a historicidade. As análises comparecem no texto visando os

objetivos de pesquisa e podem permitir uma leitura mais fluida e uma compreensão mais apurada

da discursividade ora investigada.

Como ser de linguagem, constituído pelo simbólico, o homem não é indiferente

aos processos de significação por meio dos quais ele se significa e significa o mundo. Para

Orlandi:

Como os sentidos não são indiferentes à matéria significante, a relação do homem

com os sentidos se exerce em diferentes materialidades, em processos de significação

diversos: pintura, imagem, música, escrita, etc. a matéria significante e/ou a sua

percepção – afeta o gesto de interpretação, dá uma forma a ele (ORLANDI, 2007a, p.

12).

Isso quer dizer que os sujeitos se significam também pelo gesto de compartilhar

uma história de abuso por meio de um tweet. Ao analisarmos nossos objetos simbólicos,

produzimos gestos de análise que visam a compreensão de como eles funcionam produzindo

sentidos e sujeitos, na relação com a língua e a historicidade. A língua tem aí um lugar

privilegiado uma vez que, segundo Orlandi (2012, p. 83 – grifos meus), “a materialidade

específica da ideologia é o discurso e a materialidade específica do discurso é a língua.”.

Em uma nota de rodapé presente em Discurso em Análise, a autora explica a

utilização da palavra “específica”. Segundo ela, não se deve reduzir o discurso apenas a

materialidade da língua, “tampouco se pode reduzir a importância, dada à língua, como

materialidade específica de efeitos de sentidos dos processos discursivos” (ORLANDI, 2012,

p. 83). Ela remete à Pêcheux (2008) e ao enunciado “on a gagné”, que se desloca do político

para o esportivo e “reverte em materialidades significantes diferentes entonações”, ou seja,


24

remete-se à língua no conjunto das condições materiais básicas para desdobramentos dos

processos discursivos (ORLANDI, 2012).

Ainda segundo Orlandi (2007a, p. 28), “do ponto de vista discursivo, sujeito e

sentido não podem ser tratados como já existentes em si, como a priori, pois é pelo efeito

ideológico elementar que eles funcionam, como se eles estivessem sempre lá”. Além disso, a

AD vai reunir “essa forma de conhecimento em que se inscreve na relação do mundo com a

linguagem a noção de ideologia [...] como condição para essa relação”, através da noção de

discurso (ORLANDI, 2007a, p. 28).

De maneira geral, podemos considerar que, em seus processos discursivos, as

hashtags demonstram movimentos de identificação e/ou contraidentificação dos sujeitos que

constituem posições subjetivas frente à violência. Postulamos que cada nova utilização da

#metoo nos apresenta uma função-autor 7 constitutiva do gesto interpretativo, que deriva de uma

relação com a memória. O que faz do sujeito “uma posição na filiação de sentidos, nas relações

de sentidos que vão se constituindo historicamente e que vão formando redes que constituem a

possibilidade de interpretação” (ORLANDI, 2007a, p. 15). Ou seja, ao mobilizar formulações

utilizando a hashtag, o sujeito inscreve uma posição-sujeito, coloca-se na origem dos dizeres

que enuncia.

1.1 A #METOO ENTRE MEMÓRIAS E SILENCIAMENTOS

A AD trabalha com o linguístico e com o ideológico no processo de

produção/interpretação do sujeito e dos sentidos que o significam e que ele significa. Nessa

perspectiva, o sujeito não é um indivíduo corpóreo, empírico, é um lugar de significação

ideologicamente constituído, uma posição-sujeito, isto é, um sujeito que se materializa no

entrecruzamento de diferentes discursos e se manifesta no texto pela relação a uma formação

discursiva (PÊCHEUX, 1997a apud MARQUEZAN, 2008, p. 467). As formações discursivas,

para Pêcheux e Fuchs:

determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um

sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.), a partir de uma

dada posição em uma conjuntura; dito de outra forma, em uma certa relação de

7

Segundo Orlandi (2008, [n.p.]), “a função autor se dá quando o sujeito se coloca – no imaginário constituído pelo

que Michel Pêcheux (1975) chama ‘esquecimento número 1’ – na origem do que diz. Este gesto o constitui em

autor ao mesmo tempo em que constitui o texto como unidade de sentidos em relação à situação.”


25

lugares no interior de um aparelho ideológico e inscrito em uma relação de classes.

Diremos daqui por diante que toda formação discursiva depende de condições de

produção específicas, identificáveis a partir do que acabamos de expor (PÊCHEUX;

FUCHS, 1975, p. 11 apud COURTINE, 2020, p. 61).

O sujeito em AD é interpelado pelo ideológico, pelo simbólico e precisa se

submeter à língua para ser sujeito; é no processo de identificação com os sentidos de uma

formação discursiva que sentidos e sujeitos se constituem. A língua, por sua vez, irá inscreverse

na história para significar, o que acaba por constituir a materialidade discursiva, que é

linguístico-histórica (ORLANDI, 1999, p. 60-61).

Se pensarmos discursivamente, sentidos e sujeitos têm sua materialidade, e faz parte

da materialidade do sujeito a inscrição de seu corpo em seu processo de significação,

em sua constituição, do sujeito e do corpo. E esta inscrição se dá, como resultado do

modo como o sujeito, tendo sido constituído pela interpelação ideológica, é

individuado e se identifica ao se inscrever em uma formação discursiva e não outra

(ORLANDI, 2014, p. 7).

Portanto, o sujeito aqui apresentado é, ainda segundo Orlandi (1999), o resultado

de processos de identificação e individuação, constituído ao mesmo tempo que o sentido, “na

articulação da língua com a história, em que entram o imaginário e a ideologia” (p. 11).

Ainda, no campo teórico da AD, trabalhamos com a memória discursiva ou

interdiscurso. Orlandi (1999, p. 64) explica que “A memória – o interdiscurso, como definimos

na análise de discurso – é o saber discursivo que faz com que, ao falarmos, nossas palavras

façam sentido. Ela se constitui pelo já-dito que possibilita todo dizer.” Segundo a autora, a

memória está sujeita a falhas, silenciamentos, apagamentos, equívocos, regularizações e

censuras. Já o esquecimento é constitutivo da memória. Aliás, Orlandi destaca, tendo em vista

as teorizações de Pêcheux, que a memória discursiva

[...] é estruturada pelo esquecimento. É quando esquecemos como um sentido se

constituiu em nós que ele passa a produzir seus efeitos, entre eles, o principal, de que

estes sentidos, quando falamos, nascem em nós, quando, na realidade para significar

é preciso que as palavras, expressões, proposições já signifiquem (ORLANDI, 2014,

p. 6).

Consideramos que a hashtag #metoo apresenta a capacidade de conferir ao quadro

da história a força da memória, constituindo um registro da relação social e histórica. Seu

funcionamento tem consequências no que diz respeito à memória histórica e à memória social,

atreladas à memória constitutiva do digital da qual trataremos mais adiante; neste estudo,

procuramos sustentar que a hashtag constitui um acontecimento que desestabiliza processos de


26

significação da violência sofrida por mulheres, pois possibilita a inscrição do sujeito em posições

de denúncia, rompendo com o silenciamento historicamente imposto.

Com efeito, não é possível falar de memória sem falar de silêncios, silenciamentos,

esquecimentos, não-ditos, sentidos interditados, etc. Para Orlandi (1999, p. 61-62) “falar é esquecer.

Esquecer para que surjam novos sentidos, mas também esquecer para apagar os novos sentidos que

já foram possíveis, mas foram estancados em um processo histórico-político silenciador. São

sentidos que são evitados, de-significados”. Sentidos de-significados são, portanto, aqueles que

deixaram de significar, que foram silenciados na memória, “Está fora da memória, como uma sua

margem que nos aprisiona nos limites desses sentidos. O que está fora da memória não está nem

esquecido nem foi trabalhado, metaforizado, transferido” (ORLANDI, 1999, p. 66). Esse lugar

de de-significação não é um vazio, é um espaço que vai sendo preenchido por um discurso que

naturaliza práticas violentas. Temos aqui também o que Orlandi nomeia como faltas e não falhas,

discursos silenciados que não fazem sentido, “colocando fora do discurso o que poderia ser

significado a partir deles e do esquecimento produzido por eles para que novos sentidos aí

significassem” (ORLANDI, 1999, p. 65). Ou seja, são aqueles sentidos que foram silenciados e

ocasionam furos na memória, causados por interdição, precisamente o que ocorre nos processos

de silenciamento da violência e que, por meio da #metoo, encontra uma maneira de se resignificar.

Uma vez que os sentidos não são únicos e nem exclusivos, quando o dito é

repetido ele pode, ao mesmo tempo, produzir novos sentidos por efeito das condições de

produção. Tal noção de repetição/renovação, segundo Marquezan (2008, p. 468), é empregada

no nível discursivo porque considera as suas condições sócio-históricas e ideológicas de

produção. Assim, todo discurso é produto de uma memória, de uma retomada e atualização,

tornando a estruturação de um dizer uma questão social e histórica, fazendo com que os sentidos

produzidos sejam produzidos na/pela circulação social. A própria estruturação discursiva vai

produzir a materialidade dessa memória. Os discursos, assim, funcionam a partir de uma

memória discursiva.

Como dissemos previamente, os discursos são constituídos também de silêncios

e silenciamentos, assim, é preciso especificar o que entendemos como silêncio. Orlandi (2007b)

postula que, como no discurso sujeito e sentido se constituem concomitantemente, o silêncio, a

não possibilidade de dizer, a interdição de sentidos em detrimento de outros, “proíbe ao sujeito

ocupar certos ‘lugares’, ou melhor, proíbem-se certas ‘posições’ do sujeito” (p. 76). Silêncios,

silenciamentos são os não-ditos necessariamente excluídos. Os sentidos que se querem evitar,

as denúncias, por exemplo, que poderiam instaurar sentidos outros, são interditados.


27

1.1.1 Filiações de memória acerca do movimento #metoo

Apesar de se utilizar do mote metoo, não é Alyssa Milano que o cria, tendo ele

já sido usado anteriormente para nomear uma instituição que acolhe meninas abusadas. A

história remonta ao ano de 1997, quando a ativista negra Tarana Burke ouviu relatos de uma

menina negra de 13 anos que fora abusada sexualmente pelo namorado da mãe e, na ocasião,

não soube como reagir. Passada quase uma década, sem esquecer o caso, Burke continuava

arrependida de não ter dito “eu também” (me too) naquele momento, sendo ela própria

sobrevivente de abuso sexual. Em 2006, fundou a Just Be Inc., uma organização sem fins

lucrativos que ajuda meninas em situação de risco de 12 a 18 anos vítimas de abuso sexual e

estupro. Assim, numa tentativa de criar um movimento de empatia entre as vítimas de assédio,

Burke passou a utilizar o mote Me Too. A organização passou a ser ponto de acolhimento para

essas meninas e mulheres, embora não fosse mundialmente conhecida, o que iria mudar mais

de uma década depois.

Em 5 de outubro de 2017, as jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey do New

York Times expuseram anos de assédio cometidos pelo então poderoso produtor hollywoodiano

Harvey Weinstein. Após uma delicada e longa pesquisa, as jornalistas conseguiram finalmente

revelar não somente os casos de assédio, mas a maneira como, através de advogados poderosos,

ameaças e artifícios dignos de um filme hollywoodiano, o produtor foi capaz de comprar e

manter o silêncio de suas vítimas por anos.

Dezenas de mulheres acusavam o produtor de diversos crimes sexuais, entre eles,

obriga-las a massageá-lo e vê-lo nu, fazer o “teste do sofá” 8 , fazer sexo e, também, de estupralas

em troca de impulsionar suas carreiras. Comprovou-se com acordos judiciais, entrevistas,

memorandos e e-mails cerca de três décadas de abuso cometido pelo produtor e uma onda de

denúncias foi criada, não somente contra o magnata, mas contra várias celebridades e pessoas

em cargos de chefia que usavam dessas posições para “ganharem e concederem favores”.

Fotógrafos, cineastas, CEOs, músicos, celebridades, ninguém mais estava imune às denúncias.

Várias mulheres se posicionaram condenando as atitudes denunciadas e

8

O teste do sofá é um conhecido eufemismo para a troca de favores sexuais entre uma pessoa em condição

aspirante, aprendiz ou subordinado, e alguém que lhe seja hierarquicamente superior. Segundo Melissa Hope

Ditmore, em A Enciclopédia da Prostituição e profissionais do sexo, “Hollywood distorce ainda mais a noção do

‘teste de sofá’, o lugar onde mulheres trocam sexo por papéis em filmes ou trabalhos como modelos. Atrizes e

modelos são acusadas de terem feito o teste do sofá quando, de fato, não o fizeram e, em contra partida, mulheres

que não se consideravam prostitutas, de fato dormiram com diretores e produtores para avançarem suas carreiras”

(2006, p. 260 – tradução minha).


28

inúmeras famosas, como Gwyneth Paltrow e Angelina Jolie, relataram seus casos de abuso

sofridos nas mãos do produtor hollywoodiano ainda no início de suas carreiras.

A reportagem publicada no New York Times foi apenas a ponta do iceberg.

Lançado em setembro de 2019, o livro “Ela disse”, das mesmas jornalistas, mostra a dura

trajetória para conseguirem as entrevistas de atrizes e mulheres que haviam sofrido na mão do

produtor. A trama parece de filme, envolvendo segredos, encontros em bares distantes e

escuros, empresas internacionais usadas para vigiar as envolvidas, atores contratados para tentar

descobrir o que o jornal já tinha, jornalistas sendo perseguidas e vítimas silenciadas. Contudo,

é preciso observar que há um apagamento da história original do metoo quando Hollywood se

apropria do mote, principalmente em se tratando da questão racial, uma vez que, no primeiro

momento, quem o cria e o utiliza é a ativista negra Tarana Burke. Com a apropriação

hollywoodiana o movimento se torna, em sua maioria, branco.

A apropriação do mote por Milano faz parecer que a campanha se deu de forma

espontânea e se originou na atriz, além de adicionar para a invisibilização das mulheres negras

por não assinalar que o mote foi criado por uma mulher negra que anos antes fundara uma ONG

para combater o assédio e ajudar sobreviventes. Pode-se observar o apagamento de Burke na

capa da revista Time (Fig. 01), que apresenta apenas uma mulher negra, a lobista Adama Iwu –

em primeiro plano cercada de brancas. Essa prática é o que Stephanie Ribeiro chama de uma

“ilha cercada de brancos”. A jornalista também alerta para o protagonismo de mulheres que já

foram conhecidamente racistas em outras ocasiões, como Taylor Swift.

Quando estou diante daquela capa, só penso nas inúmeras vezes que até mesmos

feministas, por serem brancas, me usaram de objeto para suas campanhas e circulação

de seus projetos, mas nunca estiveram do meu lado na luta no combate antirracista.

Mesmo que o assédio para mulheres negras esteja também relacionado com o racismo,

afinal não é só mero destino negras jovens terem 3 vezes mais chances de serem

estupradas no Brasil. É racismo e machismo (RIBEIRO, 2017, [n.p.]).

Essa prática é comum na branquitude,

[...] um local de vantagem estrutural, de privilégio racial. Além disso, é um "ponto de

vista", um lugar do qual as pessoas brancas olham para nós mesmos, para os outros e

para a sociedade. Ainda, ‘Branquitude’ refere-se a um conjunto de práticas culturais

que são geralmente invisíveis e anônimas (FRANKENBERG, 1993, p. 1 apud

DIANGELO, 2018, p. 39).

É preciso destacar que, quando o movimento foi criado por Burke, seu intuito

era lidar com “mulheres de minorias étnicas, frequentemente em posições desprivilegiadas nas

sociedades e cujas vozes são historicamente invisibilizadas”, pretendendo fornecer um “um


29

espaço seguro de partilha de histórias, com o objetivo final da necessária transformação dos

valores culturais que permitem que situações de assédio continuem a ser aceitáveis”

(ALMEIDA, 2019, p. 5). As mulheres negras experienciam uma forma interseccional de

opressão estrutural que sobrepõe efeitos tanto racistas quando sexistas. (BROCK, KVASNY,

HALES, 2010; CRESNSHAW, 2017 apud SOBANDE, FEARFULL, BROWNLIE, 2019, p.

413). Assim, “a apropriação cultural reflete uma estrutura racista que não permite acesso e

visibilidade a grupos inferiorizados e, mais grave, promove muitas vezes o silenciamento ou

apagamento de suas manifestações, esvaziando de significados os elementos de sua tradição”

(RODNEY, 2019, p. 54). No caso do #metoo, não há somente um esvaziamento de significados,

mas também um preenchimento de significados outros, que tiram as minorias étnicas do

protagonismo, substituindo-as por mulheres brancas, famosas e heterossexuais.

Figura 1 – capa da revista Time de 2017

Fonte: Time, 2017 9 .

9

Disponível em: https://time.com/5793798/the-silence-breakers-100-women-of-the-year/. Acesso em: 16 jan.

2021.


30

A capa consiste em cinco mulheres, todas vestidas de preto. Cinco mulheres que

têm marcadores discursivos e corpóreos que se interseccionam 10 : mulheres (denunciantes e

sobreviventes), sendo quatro mulheres brancas e uma negra. Contudo, considerando o histórico

social colonial em que estamos, encontrar uma mulher negra, mesmo que em posição de poder

como ocupa Adama Iwu, ainda é destoante e causa surpresa. Não só por ser maioria étnica e

minoria na representatividade, mas por carregar em si uma representação de opressão e não

padronagem, uma vez que o padrão eurocêntrico cria a expectativa de ver representada na capa

uma hegemonia branca, cisheteropatriarcal (AKOTIRENE, 2019).

Em primeiro plano, a diretora Sênior de relações locais e governamentais da

Visa, Adama Iwu, que foi assediada sexualmente por um colega de trabalho num evento político

em Sacramento e, como forma de lidar com a situação, informou seus chefes e enviou uma carta

para o Los Angeles Times com 147 assinaturas. Junto de colegas, ela fundou We said Enough,

uma plataforma que angaria fundos para vítimas e sobreviventes, além de prover

aconselhamento legal gratuito.

Na linha acima de Adama, temos à esquerda Isabel Pascual, um pseudônimo,

mulher mexicana que trabalha colhendo morangos, foi perseguida e abusada, além de ter o filho

ameaçado caso falasse sobre o assunto. À direita, Susan Fowler, antiga engenheira da Uber, que

expôs em seu blog como foi assediada e teve o RH da empresa se recusando a tomar

providências contra seu antigo gerente que constantemente fazia propostas sexuais a ela.

Por fim, temos a atriz estadunidense Ashley Judd, famosa por filmes como Risco

Duplo e Beijos que Matam, vítima de investidas do magnata Harvey Weinstein, tendo perdido

um papel na trilogia mundialmente famosa O Senhor dos Anéis. A atriz nunca se calou e foi

uma das primeiras a relatar os encontros com o produtor para o The New York Times. E a cantora

pop Taylor Swift, que denunciou o DJ David Muller de uma rádio de Denver por ter colocado

a mão dentro de sua saia e pegado sua bunda. O DJ entrou com processo contra a cantora e o

julgamento teve perguntas como “como você se sentiu?”, “você se sentiu mal por ele ter sido

demitido?”, o que fez com Swift se sentisse ainda mais indignada e passasse a falar

publicamente sobre o acontecido.

O nome de Burke não é nem ao menos mencionado na reportagem introdutória

10

“A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do

racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado - produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são

repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais.

Segundo Kimberlé Crenshaw, a interseccionalidade permite-nos enxergar a colisão das estruturas, a interação

simultânea das avenidas identitárias, além do fracasso do feminismo em contemplar mulheres negras, já que

reproduz o racismo. Igualmente, o movimento negro falha pelo caráter machista, oferece ferramentas

metodológicas reservadas às experiências apenas do homem negro” (AKOTIRENE, 2019, p. 14).


31

do vídeo que acompanha a capa 11 . No vídeo promocional da edição, Tarana aparece após 3:30

e 4:30 e fala por aproximadamente 7s cada vez. Na reportagem oficial da revista 12 , aparece em

uma das fotos e sua história é contada brevemente, sem ocupar ao menos um parágrafo inteiro.

É revelado que a amiga de Milano tirou um print do mote de Burke e o enviou para a atriz, sem

dar detalhes de onde a frase estaria. Há sim participação de mulheres negras de Hollywood no

movimento, como Oprah Winfrey, Kerry Washington e Viola Davis. Além de outras mulheres

que representam minorias, como Sandra Oh (asiática), Priyanka Chopra (indiana), Penelope

Cruz (espanhola), Karla Souza (mexicana), Eva Longoria (mexicana), entre outras. Contudo,

mulheres negras nos EUA sofrem mais violência que as brancas, sendo 40% das sobreviventes

de tráfico sexual. De todas as mulheres negras nos EUA, 20% são vítimas de estupro e 30% das

que sofreram abuso na infância apresentam história de estupro quando adultas. Mulheres

Negras são 2,5 vezes mais prováveis de serem assassinadas por homens. E mais de 9 em 10

mulheres assassinadas em 2015 conheciam seu assassino (THE NATIONAL CENTER ON

VIOLENCE AGAINST WOMEN IN THE BLACK COMMUNITY, 2018).

No Brasil os índices se assemelham, sendo as mulheres negras 66,6% dos casos

de feminicídios de 2020 (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020), 50,9%

dos casos violência sexual (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2019),

32% dos casos de assédio (31% são pardas) (DEDIHC, 2017). E ainda assim são minoria em

questão de representatividade, ponto que o Movimento #metoo falhou em problematizar, e

acabou por ratificar, o apagamento histórico das mulheres negras.

No entanto, não foi possível calar as jornalistas ou impedir as reportagens que

viriam a seguir, como a de Ronan Farrow para a revista New Yorker, em 10 de outubro do

mesmo ano. Intitulada “De propostas agressivas a assédio sexual: as acusadoras de Harvey

Weinstein contam suas histórias” 13 , a matéria conta os tipos apurados de histórias, de atrizes,

assistentes e pessoas ao redor do magnata, além de três mulheres que detalhadamente

descreveram seus encontros, expondo os horrores sofridos e suas consequências. Nota-se que

em crimes de abuso sexual, importunação sexual e assédio sexual 14 , a própria mulher é a prova,

11

Disponível em: https://time.com/5793798/the-silence-breakers-100-women-of-the-year/. Acesso em: 20 mai.

2019.

12

Disponível em: https://time.com/time-person-of-the-year-2017-silence-breakers/. Acesso em: 18 abr. 2019.

13

Tradução livre. Título original “From Aggressive Overtures to Sexual Assault: Harvey Weinstein’s Accusers

Tell Their Stories”. Disponível em: https://www.newyorker.com/news/news-desk/from-aggressive-overtures-tosexual-assault-harvey-weinsteins-accusers-tell-their-stories.

Acesso em: 15 jun. 2019.

14

Violência sexual ou abuso sexual não se configura apenas como estupro, mas pode ser: induzir a vítima a

comercializar ou utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade; impedir de usar qualquer método contraceptivo;

forçar, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação, matrimônio, gravidez, aborto ou prostituição;

limitar ou anular o exercício de direitos sexuais e reprodutivos da mulher; e provocar aborto sem o consentimento


32

no entanto, ela acaba tendo que prover outras provas, fazendo exame de corpo de delito,

apresentado testemunhas, vídeos, fotos, prints, qualquer coisa que não apenas sua palavra, que

geralmente não é ouvida e nem tida como crível.

As reportagens passaram a circular e ganhar notoriedade internacionalmente, até

que, em 12 de outubro de 2017, a atriz americana Rose McGowan postou um tweet misterioso

que parecia apontar o produtor como seu estuprador. Lia-se: “Eu disse ao presidente do

estúdio 15 que HW havia me estuprado. Eu disse, de novo e de novo. Ele disse que não havia

sido provado. Eu disse que eu era a prova.” 16 Podemos perceber que o lugar de enunciação da

mulher é silenciado e marcado pelo descaso; a formulação “eu disse, de novo e de novo”, dá a

ver que não adiantou denunciar apenas uma vez, foi preciso repetir inúmeras vezes e mesmo

assim ela não foi ouvida. Não há legitimidade nesse lugar de enunciação, somente

silenciamento e interdições 17 .

Interpelada pela reportagem, três dias depois, a atriz Alyssa Milano pede em sua

conta pessoal do Twtitter que todos aqueles que já haviam sido assediados ou abusados

sexualmente respondessem usando a hashtag #metoo (Fig.2). Uma amiga da atriz a interroga

“se todas as mulheres que já foram sexualmente assediadas ou abusadas escrevessem “eu

também” em seus status, nós poderíamos dar uma ideia da magnitude do problema às pessoas”.

No dia seguinte o tweet já contava com mais de 30 mil pessoas usando a hashtag. A postagem

contava com 63,4 mil respostas, 22,6 mil compartilhamentos e 50,9 mil curtidas. 18 . A atriz

da gestante. (FEITOSA, Bianca Lisboa. Isso é violência sexual! 27 nov. 2020. Instagram @biancalisboafeitosa.

Disponível em: https://www.instagram.com/p/CIGaUsAB1GM/. Acesso em: 22 jan. 2021).

Importunação sexual se configura por meio da prática de atos libidinosos na presença de alguém e sem o seu

consentimento com o objetivo de satisfazer o próprio prazer sexual ou o de terceiros. Esse crime segue os mesmos

traços do crime de assédio sexual, entretanto, nesse tipo penal não se tem a hierarquia entre o agressor e a vítima.

Também é importante destacar que nesse crime, não se força com violência ou ameaça a vítima a participar do ato

libidinoso. (FEITOSA, Bianca Lisboa. O que é importunação sexual?? 10 dez. 2020. Instagram

@biancalisboafeitosa. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CInjTIOh6kk/. Acesso em: 22 jan. 2021).

O assédio sexual se configura através do constrangimento à vítima, por parte de um superior hierárquico, para

obter favorecimentos sexuais. O agente pode usar de sua posição para obter tais vantagens sexuais insinuando

melhores cargos e privilégios no emprego e, da mesma forma, caso a vítima não aceite as investidas, o agressor

também pode impedir que a vítima alcance seus objetivos profissionais. (FEITOSA, Bianca Lisboa. O que é

assédio sexual??? 9 dez. 2020. Instagram @biancalisboafeitosa. Disponível em:

https://www.instagram.com/p/CImHPd9h740/. Acesso em: 22 jan. 2021).

15

A atriz se refere ao estúdio Amazon.

16

Tradução livre. Tweet original: “I told the head of your studio that HW raped me. Over & over I said it. He said

it hadn’t been proven. I said I was the proof.” O tweet original não pode ser encontrado, tendo sido apagado,

apresentamos aqui a transcrição conseguida na internet.

17

A conceituada revista norte-americana Time elegeu como personalidade do ano de 2017 “The Silence Breakers”

(os quebradores do silêncio, em tradução livre), uma denominação da revista às pessoas que, naquele ano,

incentivados pelo levante do Movimento #metoo, denunciaram inúmeros casos de assédio sexual no ambiente de

trabalho e fora dele, quebrando um silêncio por vezes de anos, um exemplo de como movimentos da sociedade

podem ultrapassar as fronteiras do digital.

18

Dado da postagem em fevereiro de 2020.


33

relata que caiu no choro 19 , o que nos mostra o que ter sua fala e existência reconhecidas pode

fazer.

Figura 2 – Tweet de Alyssa Milano

Fonte: Twitter pessoal da atriz, 2017 20 .

Segundo Butler, “O #MeToo é, está bem claro, uma impressionante série de

histórias que apontam para a estrutura generalizada de discriminação, assédio e agressão”

(BUTLER, 2020, [n.p]). É possível, através da leitura dos relatos, acompanhar uma construção

sistêmica e muito bem desenhada e delimitada de séculos de opressão à mulher e ao feminino,

marcada pelos mais diferentes tipos de violências. Violências essas que podem ser de cunho

verbal, psicológico ou até mesmo sexual, que durante todo esse tempo calou e negou às vítimas

o reconhecimento/validação da própria história.

1.2 O ACONTECIMENTO #METOO E A EMERGÊNCIA DE NOVOS RITUAIS

ENUNCIATIVOS

Consideramos que a fala de Alyssa Milano inaugura um lugar de enunciação

19

Reportagem da TIME – Person of the year 2017 – The Silence Breakers. Disponível em: https://time.com/timeperson-of-the-year-2017-silence-breakers/.

Acesso em: 18 mar. 2020.

20

Disponível em: https://twitter.com/alyssa_milano/status/919659438700670976. Acesso em: 13 jun. 2019.


34

(ZOPPI-FONTANA, 2017), ao convocar todas aquelas que já passaram por situações de assédio

no passado, e que se mobilizam, por meio de processos de identificação, para contar suas

histórias. Tal lugar de enunciação desloca pré-construídos por atualizar uma memória de

assédio sexual sofrido por mulheres há anos, memória estabilizada historicamente por meio de

práticas sexistas, racistas e misóginas, e que encontram formas para serem finalmente

enunciadas.

Interpretamos a #metoo como um acontecimento que interpela o leitor a ocupar

uma posição de contraidentificação com a ideologia machista e denunciar a violência. Em Papel

da Memória (1999), Pêcheux coloca o acontecimento como descontinuidade da memória que

seria eternizada através do interdiscurso, nascendo do choque da atualidade com a memória que

não produz repetição, mas sim ressignificação. A regularização discursiva, tentada pela

memória, é passível de

ruir sob o peso do acontecimento discursivo novo, que vem perturbar a memória: a

memória tende a absorver o acontecimento, [...] mas o acontecimento discursivo,

provocando interrupção, pode desmanchar essa ‘regularização’ e produzir

retrospectivamente uma outra série sob a primeira, desmascarar o aparecimento de

uma nova série que não estava constituída enquanto tal que é assim o produto do

acontecimento; o acontecimento, no caso, desloca e desregula os implícitos

associados ao sistema de regularização anterior (PÊCHEUX, 1999, p. 52).

O acontecimento discursivo é aquele que irrompe das cristalizações e ganha

contornos e sentidos outros, absorvendo os anteriores, através de ressignificações,

deslizamentos. Assim, Pêcheux situa o acontecimento discursivo “no ponto de encontro de uma

atualidade e uma memória”, colocando-o em relação com “[...] (o fato novo, as cifras, as

primeiras declarações) em seu contexto de atualidade e no espaço de memória que ele convoca

e que já começa a reorganizar [...]” (PÊCHEUX, 2008, p. 17-19).

Segundo Guilhamou e Maldidier (1993, p. 166) o acontecimento discursivo [...]

“é apreendido na consistência de enunciados que se entrecruzam em um momento dado”. Ou

seja, é o lugar de convergência de uma memória e uma atualidade a partir da qual se

reestruturam as práticas discursivas (GARCIA e SOUSA, 2015, p. 51). Para Orlandi (2014, p.

3), o acontecimento nos mostra que “há sempre (outros) sentidos possíveis”, o acontecimento

não para nunca de “produzir sentidos”.

Nesta direção, a #metoo inaugura um “lugar de enunciação” (ZOPPI-

FONTANA, 1997) para dizer da violência vivenciada, com efeitos sociais importantes. Para

Zoppi-Fontana, o acontecimento discursivo funciona na quebra de rituais enunciativos:

a ruptura de uma prática discursiva pela transformação dos rituais enunciativos que a


35

definem; a interrupção de um processo de reformulação parafrástica de sentidos pela

mudança das condições de produção; enfim, a emergência de um enunciado ou de

uma posição enunciativa novos que reconfiguram o discurso, e através deste

participam do processo de produção do real histórico (ZOPPI-FONTANA, 1997, p.

51).

Desse modo, interpretamos a hashtag como acontecimento que dá a ver

transformações dos rituais enunciativos; nas atuais condições de produção dos discursos, ela

possibilita a sujeitos historicamente silenciados ocuparem posições de denúncia da violência.

O digital, em sua articulação com as condições históricas, permite às mulheres emanciparemse

da ideologia patriarcal, inaugurando rituais enunciativos improváveis há 20 anos. Nesta

direção, o caso da roteirista estadunidense Amaani Lyle é modelar, pois escancara o

funcionamento da ideologia patriarcal e machista e suas práticas de silenciamento. Ela se

tornaria a primeira mulher negra roteirista a integrar uma sitcom 21 mundialmente famosa, se

não tivesse sido demitida em 1999.

A série estadunidense FRIENDS se tornou internacionalmente conhecida na

década de 1990, quebrando todos os recordes de audiência e pagamentos já vistos. Contudo, o

que poucas pessoas sabem é que uma das roteiristas da 6ª temporada, Amaani Lyle foi demitida

por denunciar casos de abuso nas salas de roteiro. De acordo com a reportagem do jornal online

Bustle, “A ‘Friends’ Lawsuit set back #metoo by year”, de Kelsey Miller, o trabalho primário

da roteirista era anotar absolutamente tudo que era dito durante as sessões de brainstorming 22

da equipe de roteirista, composta majoritariamente por homens brancos. Apesar de ter sido

avisada na entrevista de contratação que as conversas poderiam ser meio chulas, ela conta que

não poderia imaginar o quão baixas e asquerosas elas poderiam se tornar. Segundo as

declarações de Lyle, as sessões de brainstorming não eram apenas momentos de discussões

sobre possíveis histórias para o seriado, mas sim homens falando mal de mulheres porque

podiam, contando suas experiências sexuais e até mesmo falando em estuprar as atrizes do

seriado. “[Esse tipo de comportamento] estava tão arraigado e onipresente na época que

ninguém fazia nada a respeito” (LYLE, 2018, [n.p.] – tradução e adaptação minhas).

Nessa fala de Lyle temos uma filiação de memória importante, o comportamento

masculino tido como típico, boys will be boys ou, em português, garotos serão garotos,

21

Sitcom, do inglês situation comedy, comédia situacional, é um tipo de seriado televisivo que acompanha um

grupo de personagens em situações cotidianas, que frequentam os mesmos ambientes e se envolvem em situações

cômicas. Geralmente é gravada com uma plateia. Os episódios são curtos, de até 30 minutos.

22

Conhecida técnica de dinâmica em grupo que busca o desenvolvimento da potencialidade criativa dos

envolvidos, a partir de contribuições espontâneas dos participantes. Conhecido também como tempestade de

ideias.


36

enunciado usado para desculpar condutas tidas como masculinas e imutáveis, muitas vezes

violentas e não saudáveis, chegando até mesmo a infantilizar homens adultos, minimizando

atitudes como falta de maturidade. Essa naturalização comportamental como algo violento, viril

e imutável perpetua uma formação discursiva dominante. A noção de formação discursiva, a

qual abordaremos mais adiante, é fundamental para o entendimento desses processos pois

ancora essa conduta em processo histórico de naturalização, ditando o que pode ou não ser dito

da perspectiva “cisheteropatriarcal branca e de base europeia” (AKOTIRENE, 2019, p. 11).

Retomando o caso, em outubro de 1999, a roteirista foi demitida por baixa

performance no trabalho. Os chefes alegavam que ela digitava muito devagar. Na reunião de

demissão, foi advertida para “não causar problemas” pelo desligamento para que não fosse

enterrada e nunca mais trabalhasse no ramo. Apesar da ameaça, Lyle fez uma reclamação

formal ao departamento de RH, que nunca foi investigada. Posteriormente, moveu um processo

judicial contra a Warner Brothers e perdeu, sendo alegada necessidade criativa como decisão.

É esse o motivo pelo qual a manchete da reportagem é “processo judicial atrasa #metoo em

anos”. Com o precedente legal, necessidade criativa passou a ser a arma de advogados de defesa

em casos de assédio no ambiente de trabalho, praticamente garantindo causa ganha. Temos aqui

uma filiação a uma rede de memória que evoca e sustenta a ideia de que homens têm

“necessidades sexuais” que precisam não só ser toleradas, mas protegidas. “É da natureza do

homem” trair, abusar, ser violento, ser possessivo, ser dominante, ser superior, enunciados que

evocam essa rede de memória. Safiotti postula a construção social dessa filiação:

Potencialmente, todo homem é violento à medida que é incentivado, cotidianamente

a ser valente, a mostrar que é macho, masculinidade sendo sinônimo de transformação

da agressividade em agressão. [...] Ademais, a violência não existe apenas como fato

concreto, mas também como ameaça (SAFIOTTI, 1994, p. 460).

Segundo a reportagem, quando as primeiras acusações contra Weinstein

começaram a surgir, não houve muita esperança da parte da roteirista, mas, após atrizes

consagradas começarem a se envolver, Lyle conta que pensou “uau, isso não vai desaparecer”.

Para Amaani, o Movimento #metoo trouxe importantes mudanças e permitiu que mulheres não

se silenciassem ou fossem silenciadas e pudessem lutar por seus direitos e empregos, não

precisando se calar frente a assédios, abusos e outros tipos de crime. Ela acredita que, apesar

de não crer que a indústria tenha mudado, ainda assim há maneiras diferentes de comportamento

uma vez que o mundo todo pode estar observando o que antes era privado.

Os 18 anos que separam a história de Amaani Lyle e o tweet de Alyssa Milano,

responsável por internacionalizar a #metoo, são significativos do ponto de vista analítico, pois


37

reforçam a importância das condições de produção na construção do dispositivo de análise

discursiva. Em 1999, graças às condições de produção, não era possível um movimento que

mobilizasse estrelas hollywoodianas e milhões de pessoas ao redor do globo para lutar contra

abuso, sexismo, machismo e violência de gênero. Nem era Amaani Lyle capaz de provocar tal

movimento, por ser uma mulher negra, desconhecida e subordinada na sitcom de maior sucesso

da época. Isso porque em 1999 a rede social Twitter não havia sido criada ainda, não

possibilitando o compartilhamento de hashtags, a criação deste novo ritual enunciativo que

mencionamos, os movimentos ciberativistas não tinham a força que ganharam após os anos

2000 23 . Assim, nem ao menos Tarana Burke, que já havia fundado sua corporação nessa época,

poderia por si só, por ser como Lyle, uma mulher negra, desconhecida mundialmente, mobilizar

todas as ferramentas para a criação deste novo lugar de enunciação, pois ela própria enuncia de

um lugar que não permite o alcance da enunciação em patamar global. É somente através do

novo ritual enunciativo #metoo, inscrito por Milano em novas condições de produção, que

novos lugares de enunciação que passam a proporcionar o aparecimento de enunciados outros.

A memória histórica social atual de um movimento que busca não só igualdade,

mas equidade 24 de gênero, é latente e não pode ser desatrelada de um pré-construído, uma

memória de violência que mulheres sofrem há anos por meio de perseguições, condenações,

violências dos mais variados tipos e até morte, pelo simples fato de não serem o gênero

dominante. Aqui se faz necessário esclarecer que a dominância de um sob outro, masculino

sobre feminino, não se faz pelo quantitativo e sim pelo exercício das relações de poder que se

pautam no social.

Nos primórdios civilizatórios, a mulher é a dominante da sociedade por ser capaz

de gerar vida (SAFFIOTI, 2004). Essa condição se modifica quando há a constatação da

necessidade masculina para a reprodução. Saffioti (2004) postula que talvez a necessidade

masculina de mostrar força física e superioridade venha do fato de que, apesar de serem

necessários à reprodução, não são capazes de dar à luz e são, notoriamente, mais fracos para

23

“Em 2004, as irmãs feministas norte-americanas Jessica e Vanessa Valenti criaram o site feminista Feministing

com o objetivo de conectar uma gama diversificada de feministas e vozes feministas. [...] O Feministing ajudou a

tornar visíveis as questões feministas. A internet permitiu maior acessibilidade e reuniu um público de origens

diferentes, vindo de diferentes partes do mundo. [...] De acordo com um perfil de Jessica Valenti na lista das Cem

Mulheres Mais Importantes do jornal britânico The Guardian, ela foi responsável por digitalizar o feminismo. A

partir do Feministing, incontáveis exemplos de ativismo feminista vêm se materializando pela internet.”

(MCCANN, Hannah et al. Talvez a quarta onda seja feminista. In: MCCANN, Hannah et al. Trad. de Ana

Rodrigues. O livro do feminismo. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019, p. 294-297).

24

Tomamos por igualdade o conceito de dar condições iguais às pessoas sem distinção de gênero, raça,

sexualidade, etc. Igualdade salarial entre os gêneros, por exemplo. Já por equidade entendemos um aspecto

reparador histórico social, que visa não só a igualdade social, mas maneiras de reparar danos passados através de

condições adequadas às diferenças sociais.


38

suportarem dores físicas. O que a autora irá chamar adiante de “força de ordem masculina”

entendemos como força física e demonstrações de violência típicas de uma masculinidade

tóxica e impositiva que busca, através da agressividade, se mostrar superior. Citando Bourdieu,

diz com ele a autora:

A força da ordem masculina pode ser aferida pelo fato de que ela não precisa de

justificação: a visão androcêntrica se impõe como neutra e não tem necessidade de se

enunciar, visando sua legitimação. A ordem social funciona como uma imensa

máquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação masculina na qual se funda: é a

divisão social do trabalho, distribuição muito restrita das atividades atribuídas a cada

um dos dois sexos, de seu lugar, seu momento, seus instrumentos [...] (BOURDIEU,

1998, p. 15 apud SAFFIOTI, 2001, p. 118).

Há a perpetuação e manutenção de uma ordem patriarcal, machista e

heteronormativa, promovida não somente pelos integrantes sociais, mas também pelo Estado.

Althusser (1970) afirma que “[...] a classe dominante, para manter sua dominação, gera

mecanismos que perpetuam e reproduzem as condições materiais, ideológicas e políticas de

exploração [...]”, dentre eles estão os aparelhos ideológicos de Estado, que retomaremos mais

adiante.

Na esteira de Pêcheux, podemos afirmar que é através de processos de

identificação ou contraidentificação e práticas sociais que sujeitos constituem e retomam

memórias e, ao mesmo tempo, se reapropriam da história. E é justamente esse movimento que

irá romper um status quo, construindo um acontecimento. Retomando o exemplo da roteirista,

podemos considerar que no momento de sua demissão os sentidos encontravam-se de tal modo

cristalizados que nada do que ela dissesse seria capaz de desregular os implícitos. Contudo, em

2017 as condições de produção instalam novos rituais enunciativos que possibilitam um abalo

na rede de memória que, perturbada pela força do acontecimento, faz surgir sentidos outros,

rompendo silenciamentos.

1.3 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO

A noção de condições de produção cunhada por Pêcheux ([1969] 1997) é

fundamental para a AD. O autor propõe uma abordagem fundamentada na teoria da

materialidade discursiva, “cujo percurso permite compreender as condições (históricas) da

produção e circulação de um discurso pensando que é no momento em que a língua se oferece


39

ao equívoco que os gestos ideológicos de produção de sentidos transbordam” (MEDEIROS,

2008, p. 49). Assim, temos sujeitos (não empíricos) determinados por uma formação social que

se constrói pelo/no discurso. Para Orlandi (2005, p. 30) há duas possibilidades de se considerar

as condições de produção: estrito e amplo. Na primeira, é o contexto imediato do discurso, já a

segunda inclui “o contexto sócio-histórico, o ideológico” (ORLANDI, 2005, p. 30). No caso

desta pesquisa, além de um contexto sócio-histórico e cultural, é preciso considerar o

surgimento de novos lugares de enunciação através de um novo ritual enunciativo (a hashtag),

que proporciona uma forma narrativa distinta, atrelada a um contexto digital.

1.3.1 Condições políticas de emergência da #metoo

No final de 2016, em 8 de novembro, ocorreram as eleições presidenciais dos

Estados Unidos da América. O processo eleitoral foi fortemente marcado pela disputa entre

republicanos, representados por Donald Trump, e democratas, representados pela ex-primeira

dama Hillary Clinton. A ascensão de um republicano empresário ao poder, depois do primeiro

democrata negro ocupar a cadeira presidencial, causou duras mudanças políticas e sociais no

país.

Durante o processo eleitoral, áudios do então candidato surgiram escancarando

a misoginia e sexismo em sua fala:

Eu dei em cima dela como uma puta. Mas eu não consegui fechar o negócio. E ela era

casada. Então, do nada, eu a vejo e ela tem esses peitões cafonas e tudo mais. Ela

mudou completamente a aparência.

[...]

[…] eu comece a beijá-la. Você sabe, eu sou automaticamente atraído pela beleza –

eu simplesmente começo a beijá-la. É como um imã. Só beijo. Eu nem espero. E

quando você é uma estrela, elas deixam você fazê-lo. Você pode fazer qualquer coisa.

[...]

Pegue-as pela buceta. Você pode fazer qualquer coisa (TRUMP, 2015, [n.p.]). 25

Em inglês puta é bitch, palavra usada para se referir a cadelas. Podemos ver que

na escolha lexical já ocorre uma animalização da mulher, que nesse processo discursivo não é

25

Excertos retirados e traduzidos da transcrição feita pelo The New York Times de áudio vazado da conversa entre

Donald J. Trump e Billy Bush no set de Days of our lives. Os dizeres originais e transcrição completa estão

disponíveis em: https://www.nytimes.com/2016/10/08/us/donald-trump-tape-transcript.html. Acesso em: 27 out.

2020.


40

considerada um ser humano, mas um animal, ser inferior.

Trump dizer que a mulher era casada tem mais de uma relevância para nós,

podendo indicar uma espécie de camaradagem entre homens, o que teria feito com que ele não

insistisse mais e nem se chateasse tanto com a cantada fracassada. Mas também pode indicar que

a mulher é sempre vista como propriedade pertencente a outrem, nunca a ela mesma.

A parte mais execrável da fala é a última, que reduz a mulher a uma parte de seu

corpo, chamada pelo candidato de pussy, o que mostra novamente a animalização feminina,

uma vez que o léxico também se refere a gatinho. Temos aqui, novamente, a mulher reduzida,

objetificada. Um objeto de dar prazer ao homem, independentemente da situação, ocasião ou

vontade. Bulter (1997) postula que só há sujeito através da linguagem; a partir do momento que

se nomeia algo, ele passa a existir e é através da fala que há sujeito, ou seja, “[...] ser nomeado

é também uma das condições pelas quais o sujeito é constituído na linguagem [...]” (BUTLER,

1997, p. 2 – tradução minha). A autora também mostra a importância das filiações de memória,

principalmente no discurso injurioso:

O sujeito que diz as palavras socialmente injuriosas é mobilizado por aquele longo fio

de interpelações injuriosas: o sujeito atinge um estado temporário de citar esse dizer,

em performar a si mesmo como origem desse dizer (BUTLER, 1997, p. 50 – tradução

minha).

[...] nenhum termo ou declaração pode funcionar permanentemente sem a

acumuladora e dissimuladora historicidade de força. Quando um termo injurioso

machuca [...], machuca justamente através do acúmulo e dissimulação de sua força. O

sujeito que diz a calúnia, está citando-a, fazendo comunidade linguística com a

história dos falantes (BUTLER, 1997, p. 51-52 – tradução e adaptação minhas).

Assim sendo, podemos entender que ao nomear a mulher como um animal,

Trump faz dela um objeto, e isso é possível graças a uma rede de memória que sustenta e

legitima essa posição ideológica patriarcal machista no discurso.

Após o vazamento do áudio, mais de 20 mulheres procuraram jornais com

denúncias de assédio sexual contra o presidenciável. Em um vídeo, Trump assume o que disse

e pede desculpas se ofendeu alguém. Muito comum em pedidos de desculpas, “desculpa se

alguém se sentiu ofendido”, não é um pedido sincero uma vez que não assume o próprio erro e

sim terceiriza a culpa para aquele que se sentiu ofendido dizendo, em outras palavras, que o

erro é de quem se ofende por um motivo ou por outro, e não de quem diz a ofensa em si.

Para além disso, ele também chega a dizer que suas palavras “bobas” são muito


41

diferentes das palavras e ações de Bill Clinton 26 , que ele acusa de abusar de mulheres, e acusa

Hillary Clinton de proteger o ex-marido. Isso porque, na década de 1990, o então presidente

dos EUA, Bill Clinton, foi acusado de ter relações sexuais com uma estagiária de 22 anos na

Casa Branca. O caso teve repercussão mundial e levou à destituição do cargo de presidente.

Percebe-se que, ao usar o caso de Clinton como pior que o seu, Trump tenta se escusar das

acusações, como se as dele não fossem relevantes uma vez que alguém que já cometeu atos

bem piores já esteve na presidência. Além disso, acusa Hillary de acobertar o marido, a

colocando como “guardiã do marido”, reforçando o que Gay (1995) diz sobre a mulher ainda

ser usada como álibi masculino.

É interessante notar, ainda sobre o escândalo de Bill Clinton, que o

acontecimento leva o sobrenome da estagiária, Escândalo Lewinsky. Uma mulher jovem,

bonita, trabalhando em seu primeiro emprego, na Casa Branca, se envolve com um homem

mais velho e casado. O caso ganha o nome dela, nos mostrando como a mulher é colocada como

pivô de separações mesmo não sendo ela a comprometida ou responsável direta pelo divórcio.

Ela é sempre o objeto. O fato de Trump ter sido eleito após o vazamento dos áudios reforça

ainda mais a supremacia masculina e seu poder.

1.3.2 A marcha das mulheres e os movimentos ciberativistas

O pré e pós eleições de 2016 foram marcados por intensos protestos e

manifestações, principalmente, contra Trump. A mais famosa foi, de acordo com reportagem

da BBC, a Marcha das Mulheres em 21 de janeiro, que contou com mais de 200 mil pessoas. O

movimento nasceu na internet como reação à vitória do republicano e foi crescendo até se

organizar na marcha que foi até Washington em defesa dos direitos das mulheres, justiça social

e direitos humanos. 27 Concomitantemente, a Marcha das Mulheres de Portland contou com

mais de 100 mil pessoas e se tornou um dos maiores protestos públicos do estado de Oregon.

Os dois eventos ilustram como movimentos feministas se organizam, hoje pela internet, e

mostram força em suas reinvindicações. Podemos observar que, mesmo movimentos

26

Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/estados-unidos/caso-lewinsky-ha-15-anos-escandaloquase-derrubou-clinton,019897e31a04c310VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html.

Acesso em: 04 nov. 2020.

27

Posse de Trump deve ter protesto com 'maconhaço' e apoio de motoqueiros. Disponível em:

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38575291. Acesso em: 04 nov. 2020.


42

ciberativistas podem ter forças reais e impactar o real, o que os tornam movimentos da

sociedade (ORLANDI, 2011b).

Para além das eleições e declarações controversas do atual presidente

estadunidense, temos vários refugiados de guerra buscando exílio em diversos países europeus

que nem sempre se mostram abertos a isso, havendo relatos de abusos sexuais por parte de

oficiais dos países de exílio, trocando sexo por comida, por exemplo 28 . A Coréia do Norte

ameaça bombardear os EUA. A relação Israel – Palestina está cada vez mais frágil graças ao

presidente americano e suas declarações. É nesse cenário de conflitos, que o Movimento Metoo

irá ressurgir e se re-significar.

Contudo, não apenas de contexto sócio-histórico se fazem as condições de

produção. A tecnologia digital é fundamental em nossas análises e, apesar de não nos

aprofundarmos na discussão para definir o termo como o faz Cristiane Dias no capítulo Da

circulação do sentido de tecnologia e seus efeitos na relação linguagem-sujeito-mundo 29 , ela

precisa ser levada em conta como uma das condições relevantes para a produção dos discursos

aqui analisados.

Segundo Dias (2018), há hoje uma inversão na situação história-tecnologia em

que se tem considerado a primeira como produto da segunda e não o contrário, o que se dá

graças ao “sentido de transparência da tecnologia. E dele o sentido do desaparecimento do

sujeito mediante a máquina.” (p. 44). Não iremos apreender tecnologia em sua forma empírica,

mas sim em sua forma material, que

coloca o sentido em relação com a memória, o sujeito e com as condições de produção,

nos possibilitando compreender o processo de produção dos sentidos, a significação

material do discurso nos dizeres e objetos que compõem o nosso cotidiano (DIAS,

2018, p. 39-40).

Uma vez que,

[...] a tecnologia tem efeitos no processo de interpelação em sujeito do indivíduo biopsico,

intervindo no funcionamento espontâneo da forma sujeito histórica pelas duas

propriedades da forma sujeito: o esquecimento e a identificação (PECHÊUX, 1995,

p. 163 apud DIAS, 2018, p. 49-50).

Com os adventos tecnológicos e o avanço da internet, temos a criação de espaços

28

Ver: https://noticias.r7.com/internacional/menina-de-quatro-anos-e-estuprada-em-campo-de-refugiados-dagrecia-em-meio-a-onda-de-agressoes-sexuais-22042017.

29

DIAS, Cristiane. Análise do discurso digital: sujeito, espaço, memória e arquivo. Campinas: Pontes Editores,

2018.


43

de interação virtuais mediados pela máquina e que permitem uma dissipação mais rápida e

democrática dos dizeres e saberes. Se antes dependíamos de veículos oficiais de divulgação de

notícias ou mídia impressa, agora a informação se encontra ao toque de dedos de qualquer

pessoa que tenha acesso à rede de internet. Tal democratização possibilitou o surgimento do

chamado ciberfeminismo, a quarta onda feminista, pautado pela defesa de identidade e do papel

social feminino de acordo com novos paradigmas.

Segundo Costa,

Analisar a produção discursiva do ciberfeminismo permite vislumbrar o modo como

as novas relações sociais estão sendo erigidas por meio da linguagem, pois, pelas redes

sociais, as mulheres (re)constroem e defendem seus espaços no “mundo público”,

anteriormente a elas negado. A internet dissolve algumas barreiras e permite um modo

de expressão feminista menos limitado (COSTA, 2019, p. 1310).

É através da internet que as mulheres do século XXI passam a se organizar. O

número de sites e blogs feministas aumenta e se tornam recorrentes meios de reinvindicação

das pautas da 4ª onda. Em 2012, a feminista britânica Laura Bates cria o projeto Everyday

Sexism, um fórum on-line em que mulheres relatam suas experiências diárias de sexismo.

Surgem campanhas com ativismo usando hashtags como #BringBackOurGirls,

#WhyWomenDontReport, #meuamigosecreto, #meuprimeiroassedio.

Contudo, espaços digitais como o Twitter nem sempre foram espaços de

ciberativismo e resistência. No documentário Rede de Abusos, a blogueira criminalista

Alexandria Goddard conta como utilizou a rede social para traçar uma linha do tempo do caso

de abuso de Steubenville, em que dois jogadores de futebol de colegial sequestraram e

estupraram uma menor de idade 30 . Os tweets serviram de guia para a blogueira traçar a noite da

garota, começando com animação para a festa que ocorreria na noite e passando a falar do

estupro, com os dizeres “há um cadáver em Steubenville”, “você não dorme enquanto tem um

pau no seu rabo”, “é o que eu sempre digo, você não precisa de muitas preliminares com uma

menina morta”. Nota-se que não apenas os discursos são afetados pelas condições de produção,

mas até mesmo os suportes podem sofrer alterações e serem ressignificados a depender do

contexto sócio-histórico.

Após a pouca repercussão local e nenhuma ação efetiva dos órgãos responsáveis,

o grupo ciberativista Anonymous se envolveu e divulgou um vídeo gravado entre os dois

acusados e mais alguns garotos que comentam o estupro, inclusive fazendo uso da palavra

30

Após investigações, outra vítima, também menor de idade, foi identificada.


44

estupro. É a partir desse envolvimento do grupo que podemos notar uma modificação no suporte

digital, que passa de entretenimento a resistência/denúncia.

1.4 LUGAR DE ENUNCIAÇÃO E RITUAL ENUNCIATIVO

Zoppi-Fontana (2002; 2017) propõe a noção de lugar de enunciação para “pensar

a articulação entre os processos de subjetivação e as formas históricas de enunciação política,

para melhor compreender a relação entre o discurso, a prática política e a constituição de novos

sujeitos/movimentos sociais” (2017, p. 66). Segundo a autora,

Do ponto de vista teórico trata-se da relação entre acontecimento discursivo, memória

discursiva e enunciação na sua reflexividade performativa. Se é a posição-sujeito que

determina os sentidos dos enunciados a partir do funcionamento da memória

discursiva, é na enunciação de um sujeito em determinadas condições de produção

que esse dizer poderá ser reconhecido como legítimo relativamente a um determinado

lugar enunciativo (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 66).

É preciso lembrar aqui esse sujeito como interpelado ideologicamente e é isso

que nos permite usar lugar de enunciação ao invés do conhecido lugar de fala 31 (BORGES,

2017), que a autora ressalta como sendo “sobredeterminado pela ideologia, a língua e o

inconsciente, o ‘lugar de fala’ se mostra, no seu funcionamento enunciativo, sustentado em

processos metonímicos” (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 70). Entendemos que lugar de fala se

trata, comumente, mais de uma identificação pessoal com experiências, identificação essa que

autoriza um sujeito a dizer ou não de algo, que o permite compartilhar de/sobre sua vivência.

No entanto, a autora define lugar de fala como aqueles legitimados por processos metonímicos

que o ratificam a partir de uma experiência vivida de um sujeito que se identifica com outro:

[...] ao transformar relações de classe, gênero e segregação racial em relações morais

intersubjetivas entre indivíduos humanos, as lutas pelo reconhecimento enunciadas a

partir de um lugar de fala legitimado metonimicamente podem deslizar

inadvertidamente para o apaziguamento do conflito, dadas as condições de produção

da formação social [...] (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 69 – grifos da autora).

Contudo, lugar de enunciação poderia ser definido como “uma reflexão sobre a

31

Borges postula que lugar de fala “é a posição de onde olho para o mundo para então intervir nele” (2017, [n.p.]).

Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/01/15/O-que-é-‘lugar-de-fala’-e-como-ele-éaplicado-no-debate-público.

Acesso em: 03 nov. 2020.


45

divisão social do direito de enunciar e a eficácia dessa divisão e da linguagem em termos da

produção de efeitos de legitimidade, verdade, credibilidade, autoria, circulação, identificação,

na sociedade” (ZOPPI-FONTANA, 1999, p. 16 – grifos da autora).

todo ato de enunciação realizado por um sujeito enunciador deve ser entendido como

manifestação da regularidade de uma prática discursiva configurada por determinados

rituais enunciativos [...]. Através desses rituais enunciativos se estabelecem relações

de continuidade entre os diversos efeitos de sentido produzidos no mesmo discurso

ou em discursos diferentes. Assim, delimitam-se regiões (ou estados) de discurso

definidas pela repetição, pela reformulação de sentidos, pela continuidade de rituais

enunciativos que estabilizam os processos de produção de sentido através do

funcionamento discursivo da paráfrase (ZOPPI-FONTANA, 1994, p. 48).

Por fim, “os lugares de enunciação, por presença ou ausência, configuram um

modo de dizer (sua circulação, sua legitimidade, sua organização enunciativa) e são diretamente

afetados pelos processos históricos de silenciamento” (ZOPPI-FONTANA, 2011, p. 64).

No caso da nossa pesquisa, a noção de lugar de enunciação permite

problematizar uma posição historicamente silenciada que colocou (e ainda coloca) mulheres à

margem da sociedade. A interdição de um lugar de enunciação pode produzir o que Orlandi

(1999) chamou de de-significação, o esvaziamento, ou até mesmo a interdição de dizeres, a

censura. Faz parte das condições de produção o rompimento do silenciamento, a quebra de um

lugar para o surgimento de outros. Uma reconfiguração da sociedade patriarcal permite que

hoje certos discursos possam ser ditos, discursos esses que antes não eram possíveis. Há novos

lugares de enunciação.

A primeira onda feminista trouxe várias conquistas importantes para o

movimento feminista, porém a segunda onda 32 precisa ser melhor exposta aqui por, depois da

II Guerra Mundial e durante a Guerra Fria e Guerra do Vietnam, a sociedade estadunidense

contar com uma maior participação feminina na sociedade, o que acaba por aumentar também

as reinvindicações das mulheres. A preocupação dessa onda foi responder o que é ser mulher e

porque as mulheres, apesar de garantidas de direitos, ainda não usufruem deles. É na segunda

onda que a ativista, jornalista e fundadora do Feminismo Radical, Carol Hanisch escreve o

artigo “O pessoal é político 33 ”.

O artigo nasce de uma observação da escritora em suas participações dos

chamados “grupos de terapia”, compostos exclusivamente por mulheres. Seu argumento

principal é que as opressões sofridas pelas mulheres na vida privada eram muito similares com

32

Período compreendido entre as décadas de 1930 e 1980.

33

“The personal is political” publicado pela primeira vez no livro Notes from the Second Year: Women’s

Liberation – Major Writings of Radical Feminists (New York: Pamphlet, 1970) – sem tradução para o português.


46

aquelas sofridas na vida pública, o que justificaria a estagnação pessoal de algumas delas e, ao

mesmo tempo, mostrava a necessidade da organização de um movimento feminino que lutasse

pelas causas múltiplas das mulheres. Com a maior participação feminina no mercado de

trabalho, surgem questionamentos sobre igualdade salarial, matrimônio, controle de natalidade

e posições de trabalho. A sociedade patriarcal começa a sofrer mudanças significativas em sua

estrutura.

Na esteira de Pêcheux (1884), Zoppi-Fontana (1994) explana que, através do que

este chamou de rituais discursivos de assujeitamento, o sujeito irá se constituir numa relação de

identificação (ou contra-identificação) com a formação discursiva que o afeta. São regras

anônimas historicamente determinadas, num tempo e espaço dado, que determinam as

condições de produção. São os rituais enunciativos que estabilizam os processos de produção

de sentido através de paráfrases.

O acontecimento discursivo funciona como o ponto de quebra desses rituais

enunciativos, como o lugar material onde o real da língua (o lapso, o ato falho, o

equívoco, a elipse, a falta, todas as formas de irrupção da lalangue) e o real do discurso

(a sua historicidade, a determinação do sentido e do sujeito por FDs inscritas num

complexo de formações ideológicas) se encontram, produzindo uma ruptura, uma

interrupção e uma emergência (Pêcheux et al., 1981) nas relações de continuidade

definidas pelos rituais (ZOPPI-FONTANA, 1994, p. 49).

Enquanto acontecimento discursivo, o funcionamento da #metoo permite o

aparecimento de novos lugares de enunciação diretamente ligados ao “original”, o que também

possibilita diferentes e novos gestos de interpretação, novas posições-sujeito, que apresentam

formações discursivas outras, diferentes associações de memória e distintas relações com a

exterioridade. Ponto este, para Orlandi (2007a, p. 14), “crucial: a ligação da materialidade do

texto e exterioridade (memória).”

O ritual enunciativo está, aqui, diretamente ligado à prática enunciativa e ao

digital, ou seja, ele estabelece uma nova prática discursiva, uma forma diversa de dizer e

circular dizeres que não eram possíveis em outro momento histórico. Novamente, temos aqui

um dos elementos que participam das condições de produção que possibilitaram o levante do

Movimento. Os rituais enunciativos irão delimitar as práticas discursivas através de práticas de

subjetivação, organizadas na linguagem e atravessadas por mecanismos ideológicos que se

dissipam para o sujeito (MARIANI, 1999, p. 48 apud PERON, 2007, p. 45). O ritual

enunciativo-discursivo que se estabelece na situação de interlocução gerada no ambiente

digital, define tanto a instituição quanto aos sujeitos que a ocupam social e discursivamente.

(PERON, 2007, p. 66).


47

2 MODOS DE CONSTITUIÇÃO, FORMULAÇÃO E CIRCULAÇÃO DE SENTIDOS

EM THIS IS MY ASSAULT STORY #METOO

Women are born with pain built in, it’s our physical

destiny: period pains, sore boobs, childbirth, you know.

We carry it within ourselves throughout our lives, men

don’t. They have to seek it out, they invent all these gods

and demons and things just so they can feel guilty about

things, which is something we do very well on our own.

And then they create wars so they can feel things and

touch each other and when there aren’t any wars they

can play rugby. We have it all going on in here inside, we

have pain on a cycle for years and years and years [...]

Fleabag 34

Neste capítulo pretende-se não só compreender os modos de constituição,

formulação e circulação de sentidos (ORLANDI, 2001) da #metoo, mas também apreender

como tais processos se estabelecem como memória através dos conceitos de memória metálica

(ORLANDI, 2007a) e memória digital (DIAS, 2016), tendo em vista que, segundo Costa

(2018), o funcionamento da #metoo mobiliza uma memória discursiva do assédio ou da

tentativa de seu apagamento. Para tanto, serão analisados recortes do vídeo que passa a circular

em resposta ao tweet de Alyssa Milano, intitulado This Is My Assault Story #metoo.

Orlandi (2012, p. 70) aponta que há “rupturas que reorganizam o trabalho

intelectual, a relação entre os homens e suas práticas sociais, os seus modos de vida” nos

diferentes momentos históricos, considerados a materialidade da escrita. Isso quer dizer que,

em se tratando do digital, a repetição e a reprodução são aspectos constantes “nesse trajeto

histórico-social da relação do homem com o simbólico e o político” (ORLANDI, 2012, p. 70).

A autora faz um percurso passando pela materialidade, mais especificamente o materialismo

histórico, que define como “o que permite observar a relação do real com o imaginário, ou seja,

a ideologia, que funciona pelo inconsciente: a materialidade específica da ideologia é o discurso

e a materialidade específica do discurso é a língua, diz M. Pêcheux (1975)” (ORLANDI, 2012,

34

As mulheres nascem com dor embutida. É nosso destino físico. Cólicas, seios doloridos, parto, você sabe.

Carregamos a dor dentro de nós durante nossas vidas. Homens não. Eles têm que procurar. Inventam todos esses

deuses e demônios e coisas só para que se sintam culpados pelas coisas, o que é algo que também fazemos por

conta própria. E então eles criam guerras para que possam sentir as coisas e para se tocarem, e quando não há

guerras eles podem jogar rugby. E nós temos tudo acontecendo aqui dentro. Nós temos dores em um ciclo por

anos e anos e anos (...). Ver: Fleabg – Amazon Prime.


48

p. 72).

Assim, a autora coloca em perspectiva que o caráter material se encontra na

organização do homem em sociedade para (re)produção da vida e o caráter histórico está em

como ele se organiza no decorrer da história.

[...] no nosso caso, o da falha pensando o digital, por um intrincado processo de

memória, é um repetível que mostra sua cara ao romper o círculo da repetição. Um

repetível outro. De um outro funcionamento da memória. [...] Expõe o sujeito a seu

próprio dizer, ao seu próprio olhar. [...] (ORLANDI, 2012, p. 77).

Orlandi teoriza ainda que há três relações entre sujeito e significação,

importantes pra a discussão posteriormente desenvolvida, a constituição, a formulação e a

circulação. Partindo do princípio de que a relação existente entre enunciado e enunciação são

constitutivas do discurso, a

enunciação corresponde a sua "horizontalidade", enquanto que o enunciado

dimensiona o discurso na "verticalidade" (interdiscurso). É à verticalidade do discurso

que se pode atribuir o domínio do repetível, onde se trama a constituição do dizer

(exterior ao sujeito) (ORLANDI, 2008, p. 111).

Apesar de instâncias distintas, constituição (interdiscurso) e formulação

(intradiscurso), são inseparáveis, sendo assim que o sujeito interfere no repetível e o repetível

se inscreve nele. Ou seja, “o interdiscurso (o repetível) está no intradiscurso (seqüência

lingüística específica)” (ORLANDI, 2008, p. 111). É dessa relação que se produz a

historicidade, a realidade do discurso. Ainda,

o repetível, na ordem do discurso, se instala como uma das dimensões da

historicidade, da relação com a formação discursiva e com o seu domínio de saber: o

enunciável. [...] É na relação com a memória, assim concebida, enquanto espaço de

recorrência das formulações na relação com a ideologia, que os objetos do discurso

adquirem sua estabilidade referencial.

[...]

O interdiscurso fornece os objetos do discurso de que a enunciação se sustenta, ao

mesmo tempo que organiza o ajuste enunciativo que constitui a formulação pelo

sujeito (ORLANDI, 2008, p. 111-112).

É esse ajuste que causa a sensação no sujeito de ser origem do seu dizer, e isso

diz respeito à eficácia do assujeitamento. Os sentidos são sócio historicamente determinados e

estão ligados aos sujeitos que são constituídos por suas relações com as formações discursivas.

É através desse reconhecimento que o interdiscurso produz o efeito de estabilidade referencial

(ORLANDI, 2008, p. 116).

Em seus modos de constituição de sentidos, a #metoo funciona a partir da

mobilização de uma memória discursiva, definida por Costa (2018) como “específica e atual –


49

as denúncias que circularam na web em torno dos casos de Hollywood – e uma memória

discursiva mais ampla e histórica”, que segundo a autora diz respeito ao “assédio sofrido pelas

mulheres devido à desigualdade de gênero e dominação masculina” (COSTA, 2018, p. 47). Em

termos de formulação, observa-se que a referida hashtag funciona a partir de uma elipse.

“Implicitamente ao enunciado da hashtag, ‘eu também’ (#metoo), que condensa: ‘eu também

sofri assédio ou fui agredida’, ou ainda ‘eu também apoio a causa’, está a temática mais ampla

do assédio sofrido pelas mulheres ao longo da história” (COSTA, 2018, p. 47).

De acordo com Haroche (1992, p. 117), a elipse se configura como “Enunciado

fortemente incompleto, mas do qual a lingüística pressupõe o caráter acabado do ponto de vista

do sentido, a elipse é o ponto em que se encontram lingüística e ideologia”, assim, mesmo que

não tenhamos o enunciado completo “eu também fui assediada/agredida”, é possível seu

entendimento através do implícito que a elipse coloca.

Além de implícitos, constitutivos da elipse, temos o equívoco como parte

constituinte do discurso. Não há língua sem falhas e sem equívocos e, através da repetição

histórica que “desloca, a que permite o movimento porque historiciza, nos seus percursos,

trabalhando o equívoco, a falha, atravessando as evidências do imaginário e fazendo o

irrealizado irromper no já estabelecido” (ORLANDI, p. 54), temos aqui um enunciado que

possibilita não apenas o posicionamento de mulheres através da hashtag, mas também que

outros grupos minoritários se identifiquem com ele. Ainda, “a relação da língua com a história

não é perfeitamente articulada”, uma vez que “o texto vai-se abrir para as diferentes

possibilidades de leitura que mostram que o processo de textualização do discurso se faz com

‘falhas’, com ‘defeitos’” (ORLANDI, 2001, p. 62 apud DIAS, 2019, p. 59). Há no enunciado

#metoo uma equivocidade que abre espaço para um processo de significação e potencializa os

efeitos identificatórios.

Essa equivocidade é marcada pelo uso do pronome objeto de primeira pessoa do

singular “me” em língua inglesa, referente ao pronome pessoal de primeira pessoa do singular

do caso reto em português, “eu”. Não sendo marcado por gênero, ao se dizer #metoo

(#eutambém) não há restrições de gênero impostas pelo léxico, o que permite que não somente

mulheres compartilhem suas histórias de abuso e assédio.

Ainda que se recupere o tweet original de Alyssa Milano, If you’ve been sexually

harassed or assaulted write ‘me too’ as a reply to this tweet, não é possível encontrarmos

marcadores de gênero uma vez que o pronome pessoal you em inglês é neutro podendo,

inclusive, ser usado no singular ou no plural. A equivocidade é retomada na imagem que

interpelou a atriz a twitar, em que se lê “If all the women [...]”, havendo claramente uma


50

convocação do feminino a se mobilizar, se identificar e responder ao tweet. Contudo, essa

convocação é esquecida, aspecto fundamental da materialidade da hashtag, uma vez que a

corrente se cria, se replicando através da hashtag #metoo e não necessariamente conectada ao

tweet original, criando o que Dias (2019) coloca como textualidades seriadas, que trataremos

mais a diante de forma detalhada. Há também a possibilidade de identificação de grupos não

convocados, como na figura abaixo, em que um homem se identifica com a convocação e faz

uso do espaço digital para compartilhar sua história. É relevante notar que também existe a

possibilidade de compartilhamento e identificação sem que necessariamente se use a hashtag,

o que também se mostra como específico da materialidade e funcionamento da mesma.

Figura 3 – Twitter de Randall G. Arnold.

Fonte: Tweet resposta à Alyssa Milano, 2017 35 .

Outro aspecto que se apresenta na equivocidade é que há ainda a história

determinando esses processos, o que significa que nem toda mulher irá se identificar com a

hashtag ou com o movimento. Prova disso é o Manifesto das artistas francesas, assinado por

Catherine Deneuve e dezenas de outras francesas, que faz frente ao #metoo alegando que

[...] a sedução insistente ou desajeitada não é um crime nem o galanteio uma agressão

machista [...] Essa justiça expeditiva já fez suas vítimas, homens castigados no

exercício de sua profissão, forçados a se demitir, etc., quando seu único erro foi ter

tocado um joelho, tentado roubar um beijo, falar sobre coisas “íntimas” em um jantar

profissional ou ter mandado mensagens com conotação sexual a uma mulher cuja

atração não era recíproca. (MANIFESTO, [n.p.]).

Apesar de não nos estendermos em análise do manifesto por se tratar de um

deslizamento que não nos interessa aqui, ele pode ser lido na íntegra no ANEXO A.

35

Randall G. Arnold: não sou uma mulher, mas eu também, no ambiente de trabalho.


51

2.1 INTERPELAÇÃO E PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO EM “ESSA É A MINHA

HISTÓRIA DE ESTUPRO #METOO”

Em 20 de outubro de 2017, o canal do YouTube As/Is publicou um vídeo relato

intitulado This Is My Assault Story #metoo 36 ou “Essa é a minha história de estupro #metoo”,

numa tradução livre. O vídeo conta com mais de 603 mil visualizações em setembro de 2020.

Figura 4 – Mensagem da Kate escrita no colchão.

Fonte: vídeo Youtube, 2017, 2:58 37 .

Uma mulher que se identifica como Kate segura uma câmera e fala diretamente

ao espectador. Um box e colchão estão na sala e ela explica que estão ali há seis meses e que

pensou em doá-los, nas possibilidades de como destruí-los e em simplesmente jogá-los fora,

contudo acabou se decidindo por participar do Movimento #MeToo. Kate conta rapidamente a

história do movimento iniciado por Tarana Burke e retomado no Twitter por Alyssa Milano,

passando assim a contar a sua própria história, mas sem entrar em detalhes. Segundo Bocchi

(2017, p. 61) “o processo discursivo (PÊCHEUX, 2010) apreendido no funcionamento dos

discursos de militância desenham processos de interpelação nos quais a prática testemunhal

ocupa um lugar privilegiado.” Ainda segundo a autora, é nesse processo de testemunho que o

sujeito reivindica “o olhar e a cumplicidade de seu interlocutor, [...] por meio de um dizer que

não silencia, mas delata, acusa, revela” (BOCCHI, 2017, p. 62). Justamente o que observamos

no vídeo aqui analisado e também nos dizeres escritos no colchão.

36

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jzc2lfxU_S0. Acesso em: 09 out. 2020.

37

Ibidem.


52

Kate então coloca o colchão na frente da sua casa com os dizeres “me too, on

this bed, in my house, on a second date” (eu também, nessa cama, na minha casa, no segundo

encontro) escritos nele e deixa algumas canetas, tintas e alguns bilhetes incentivando outras

pessoas a escreverem suas histórias ou mostrarem apoio. No final do dia, ela volta para casa e

checa o colchão. Para sua surpresa, o colchão está cheio de mensagens – mensagens relatando

abusos e mensagens de apoio aos sobreviventes.

Observa-se aqui como o acontecimento discursivo #metoo é capaz de extrapolar

as fronteiras do digital. No vídeo, a hashtag é inscrita em um suporte não convencional, o

colchão, um objeto privado, de aconchego e descanso (ou de violência e estupro...),

transformado em suporte de inscrição de dizeres que denunciam a violência sofrida pela mulher

e buscam a ressignificação através desse novo ritual enunciativo.

Temos também uma ressignificação presente nessa troca de suporte, que sai do

digital e passa, nesse caso, para o colchão (no real). Quando deixa de ser um hiperlink clicável,

a hashtag não pode construir uma rede de significação análoga à que constrói no Twitter.

Contudo, há uma relação interdiscursiva e esses processos de ressignificação precisam ser

esclarecidos:

a partir da invenção de Chris Messina, os usos da hashtag no Twitter se diversificaram,

e vão igualmente chegar a outros ecossistemas. [...] Encontramos as hashtags em um

e-mail ou um texto, ou em alguns sites, nos quais eles são integrados linguisticamente

nos enunciados, sem sua função hipertextual. Constatamos que a forma migrou para

contextos em que ela não funciona como uma tecnopalavra; ela possui então outra

função, que será preciso determinar (PAVEAU, 2013, p. 14-15 apud SILVEIRA,

2015, p. 69).

Em sua tese de doutorado, Juliana da Silveira (2015) destaca:

Os diferentes usos das hashtags modificam suas características digitais, pois ao

circular em meios que não suportam a linguagem digital, ela deixa de ser um hiperlink

e, portanto, não pode construir uma rede de significação nos mesmos moldes que

ocorre com sua circulação no Twitter. Por outro lado, mesmo circulando em outros

meios, como os impressos, elas podem estabelecer uma ligação interdiscursiva com

as formulações e proposições baseadas em sua circulação no digital (SILVEIRA,

2015, p. 69).

Essa ligação interdiscursiva que a autora menciona pode ser constatada pelo uso

da hashtag no colchão que, mesmo em suporte diferente, não convencional e não digital,

carrega a memória discursiva do assédio e possibilita o compartilhamento de relatos de

violência. É o digital incidindo fora dele, com efeitos no real histórico.

Retomando o vídeo, Kate volta do trabalho e, acompanhada de duas amigas, o


53

choque é claro ao ver o colchão, pois há nele diversas mensagens, inclusive de suas amigas,

que também escrevem nele. A mensagem da primeira amiga diz “#metoo summer before my

senior year of college” (#eutambém verão antes do meu último ano de faculdade) (Fig. 4), já a

segunda escreve “Every woman I know has a story. Mine started at 14 and ends today because

I am no longer silente. xo" (Toda mulher que eu conheço tem uma história. A minha começou

aos 14 e termina hoje porque eu não estou mais em silêncio. Beijo e abraço) (Fig. 5).

Figura 5 – Mensagem da primeira amiga escrita no colchão.

Fonte: vídeo Youtube, 2017, 4:40 38 .

Figura 6 – Mensagem da segunda amiga escrita no colchão.

Fonte: vídeo Youtube, 2017, 4:42 39

Na mensagem da segunda amiga (Fig. 6) podemos verificar o uso de every

woman, “toda mulher”, o que se mostrará um sema recorrente em nossas análises, evidenciando

38

Ibidem.

39

Ibidem.


54

que os processos identificatórios são esperados das mulheres graças a uma memória. Há um

efeito de universalidade e “a coesão é produzida como efeito imaginário, justamente por meio

dessa voz universalizante, dissimulando as diferenças sob [...]” (BOCCHI, 2017, p. 63) uma

mesma hashtag que se refere a violência.

Para além disso, temos “não estou mais silenciada”. O silêncio tem, para Orlandi

(2011a, p. 29), significância própria, “é garantia do movimento de sentidos” (ORLANDI,

2011a, p. 23).

Ele é, sim, a possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradição constitutiva, a

que o situa na relação do "um" com o "múltiplo", a que aceita a reduplicação e o

deslocamento que nos deixam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso

que lhe dá realidade significativa (ORLANDI, 2011a, p. 24).

A autora fala ainda da instância política do silêncio, o silenciamento, podendo

ser parte da opressão ou da resistência. Nessa perspectiva, temos na mensagem “não estou mais

silenciada” um movimento que sai da opressão, da posição de subjugada, para resistência em

forma de discurso, empoderamento e coletividade. Através da identificação, proporcionada por

esse ritual enunciativo, o lugar de enunciação se desloca proporcionando um efeito de

emancipação do sujeito que coloca em evidência o que Hanisch diz em 1970, “o pessoal é

político”. O que queremos dizer é que a utilização da hashtag, seja em ambiente digital ou não,

proporciona ao sujeito sua inscrição num movimento emancipatório que rompe o silenciamento

(político), abrindo os processos de significação a efeitos de resistência.

Pode-se ponderar que Kate se mobiliza a partir do momento que é interpelada

pelo Movimento #metoo. Antes disso, ela encontrava-se inerte, com o colchão a mostra na sala

de sua casa como um lembrete do abuso sofrido, sem poder sequer falar sobre a violência, em

um processo semelhante ao enlutamento. Ao ser indagada pela #metoo, ela responde ao abuso

ao assumir uma posição materializada em ato; é através dessa interpelação que Kate inscreve

um movimento subjetivo com efeitos coletivos, pois outras mulheres acabam por fazerem o

mesmo, indiciando processos de identificação.

Há aqui algo interessante a se observar: não apenas o Movimento #metoo sai do

digital e passa a circular também fora dele, mas também a própria utilização do recurso gráfico

#, de circulação específica nas redes digitais e ambientes web, passam à rua, num movimento

que vai das telas à circulação na cidade. Por meio desse traço significante característico do

digital, mulheres se posicionam face à violência, instituindo um novo ritual enunciativo; elas

passam a ocupar lugares outros de enunciação, abandonando uma posição de silenciamento: “A


55

minha começou aos 14 e termina hoje porque eu não estou mais em silêncio” (Fig. 5).

Temos um duplo movimento de (de)significação, em outras palavras, há sentidos

interditados, de-significados, por meio de censura, opressão e poder, que passam a se

ressignificar a partir do novo lugar de enunciação inaugurado pela #metoo e encontram um

lugar de ressonância na sociedade.

Um exemplo do silenciamento que sobrepõe discursos outros aos femininos, é o

caso de Marie Adler 40 , personagem fictícia baseada em uma vítima real de estupro que, ao

denunciar, foi desacreditada pelos policiais e pressionada a dizer que a violência não havia

acontecido. Ao coagirem a vítima, os detetives silenciam sua violência, saturando os sentidos

possíveis e fixando uma possibilidade única. Ou seja, a de que não houve violência contra a

vítima, o que se configura como outro tipo de violência.

A violência é uma maneira de silenciar as pessoas, de negar-lhes a voz e a

credibilidade, de afirmar que o direito de alguém de controlar vale mais do que o

direito delas de existir, de viver. [...] a violência é, antes de qualquer coisa, autoritária.

Ela começa com esta premissa: “Eu tenho o direito de controlar você”. [...] o desejo

de controlar provém de uma raiva que a obediência não consegue mitigar (SOLNIT,

2017, p. 17, p. 40).

Nesse sentido, e pensando nos processos de subjetivação, resgatamos a fala do

Procurador-Geral de Ohio, Mike Dewine no documentário Rede de Abuso, “Nós tínhamos

adultos que estavam francamente mais preocupados em proteger uma instituição e proteger

alguns jovens e não preocupados com a vítima.” (tradução e adaptação minhas), a vida da

mulher é subalterna não somente a vida masculina, mas às instituições e reputações, o que nos

faz evocar Butler (2015) em seu questionamento sobre enquadramentos seletivos e

diferenciados da violência. Embora a autora trate, em seu livro Quadros de Guerra, de

situações de conflito armado, nos interessa sua reflexão sobre quais vidas são mais vulneráveis

à violência e menos passíveis de luto. Para a autora (2015, p. 14) “[...] as molduras pelas quais

apreendemos ou, na verdade, não conseguimos apreender a vida dos outros como perdida ou

lesada (suscetível de ser perdida ou lesada) estão politicamente saturadas. Elas são em si

mesmas operações de poder.”. Conforme sustenta a autora, para Hegel e Klein, é possível que

“(...) a apreensão da precariedade conduza a uma potencialização da violência, a uma percepção

da vulnerabilidade física de certo grupo de pessoas que incita o desejo de destruí-las”

(BUTLER, 2015, p. 15).

Nota-se, na fala do procurador geral, que a vida da vítima a qual ele se refere é

40

Ver: Inacreditável – Netflix, 2019.


56

precária, uma vida que não vale a pena ser vivida e, por consequência, não sofre perdas, uma

vez que se protege a reputação e vida dos atletas em detrimento a vida da vítima.

2.1.1 A hashtag: do funcionamento técnico ao discursivo

Antes de seguirmos, é importante entendermos o funcionamento da chamada

hashtag. O símbolo # era utilizado em programação para outros fins, como marcar o início de

um número ou presença de uma constante octal 41 no nome de arquivo ou extensão. Ou até

mesmo em usos de telefonia na época de linhas fixas.

A mudança entre programação e ambiente de redes sociais se deu em 2007,

quando foi sugerido que o símbolo fosse utilizado no Twitter 42 como indexador de canais.

Apesar dos executivos da empresa não aderirem à ideia inicialmente, o uso se popularizou em

outubro do mesmo ano com o uso da #sandiegofire com o intuito de propagar notícias sobre o

incêndio que tomava o estado norte americano. Com a popularização, o recurso foi incorporado

pela rede social e passou a ser um de seus traços marcantes.

O uso de hashtags cria pequenos hiperlinks que permitem o agrupamento de

postagens com as mesmas marcações em um só lugar, criando assim comunidades discursivas,

o que Maingueneau (1997, p. 56) define como “o grupo ou a organização de grupos no interior

dos quais são produzidos, gerados os textos que dependem da formação discursiva.”, ou seja,

“designa os grupos que existem somente na e pela enunciação de textos que eles produzem e

fazer circular” (RODRIGUES, 2013, p. 40). Acerca disso, Costa (2019, p. 1314) afirma que “A

hashtag funda uma comunidade discursiva e delimita a defesa de determinada visão de mundo,

na mesma medida em que se abre ao diálogo e à polêmica”. Ao se clicar em uma dada hashtag,

o usuário será levado a publicações que também contém a marcação, o que torna possível filtrar

o que se consome, fazer pesquisas, etc. É importante ressaltar aqui que não há limitação de

lugares ideológicos nas marcações, o que significa que nem todas as postagens serão positivas

com coniventes com a postagem original ou com a intensão inicial daquele que a criou.

Com essa utilização, as postagens não ficam restritas a um único lugar ou

41

Constante não decimal que costuma aparecer em programação C.

42

Rede social criada em meados 2006 e 2007, pelos norte-americanos Jack Dorsey, Evan Williams e Biz Stone.

O nome se dá pelo inglês “tweet” – pio de pássaros (inspiração para a logo da marca) e uma pequena explosão de

informações inconsequentes. Até novembro de 2017, era possível escrever pequenas postagens de até 140

caracteres, número que duplicou após a data.


57

comunidade, passando a possibilitar o compartilhamento mundial, o que acabou por criar os

chamados trending topics, os assuntos mais discutidos, ou seja, mais marcados, do momento

no mundo. A #metoo se tornou trending topic no mundo todo com traduções como #eutambém,

no Brasil e variações, como #BalanceTonPorc 43 na França. Segundo a BBC Brasil (2017),

apenas dois dias após ser lançada, a hashtag já contava com mais de 200 mil

compartilhamentos.

Diante disso, observa-se que as diferentes formas de utilização da hashtag

evidenciam seu forte potencial discursivo, pois, mesmo que na superfície do digital elas

remetam a um caráter hipertextual, “elas indicam a existência de uma estrutura que relaciona de

modo complexo o arquivo e memória discursiva [...]” (SILVEIRA, 2015, p. 70).

Nossos traços digitais tornam nosso discurso investigável, o que lhe confere uma

dimensão linguística inédita: a memória discursiva, a intertextualidade, a

interdiscursividade, a polifonia e o dialogismo, que os linguistas devem às vezes

buscar interpretativamente nas camadas invisíveis do discurso, se tornam visíveis e

explícitas, e fora da construção do analista-intérprete. Isso deve transformar os

procedimentos da análise do discurso (PAVEAU, 2013, p. 6 apud SILVEIRA, 2015,

p. 70).

Em suma, a análise discursiva da hashtag #metoo permite pensarmos a relação

entre língua e sujeito e língua e ideologia, através do ritual enunciativo que se inaugura. Ao

fazer uso da hashtag #metoo, o sujeito inscreve seu discurso na memória discursiva do assédio

e a referida hashtag produz “um elo de memória na medida em que insere os discursos que a

mobilizam no fio determinado pela história da temática do assédio” (COSTA, 2019, p. 1317).

É importante considerarmos também a textualidade seriada (DIAS, 2019) que o

uso da hashtag produz e como isso impacta a circulação e o funcionamento discursivo dos

dizeres. Para além de uma circulação convencional digital, em que se clica num link ou se entra

diretamente num site, a hashtag cria um efeito cascata, em série, em que é possível acompanhar

um fio (Fig. 7). Como podemos observar na figura 5, a resposta pode ser ligada diretamente ao

tweet original, como em 1, ou a respostas derivadas de outras respostas, como em 2. Essa

serialização permite uma leitura em sequência, em fio, como é conhecida na comunidade. Dias

aponta ainda para um desdobramento no campo da interpretação e da leitura com o digital.

Segundo a autora, há processos “que fazem parte da materialidade do texto no digital, como o

da quantidade (viralização, compartilhamento) e o da plataforma (Youtube, Netflix, Facebook,

etc.)” (DIAS, 2019, p. 59).

43

Denuncie o seu porco – numa tradução livre.


58

Figura 7 – Fio Twitter.

1

2

Fonte: Perfil pessoal de Alyssa Milano, 2017 44 .

“O texto, redefinido, deve ser então considerado como o lugar material em que

a relação com a exterioridade produz seus efeitos, apresentando-se imaginariamente como uma

unidade na relação entre os sujeitos e os sentidos” (ORLANDI, 2011, p. 86). Assim, segundo

Dias (2020), a textualidade seriada é a unidade imaginária na qual a relação sujeito e sentido,

linguagem e exterioridade produzem os efeitos da tecnologia na sociedade.

Assim,

Uma textualidade se constitui por uma sequência de textualidades dispersas, mas

ligadas por um traço em comum, que faz série. Esse traço pode ser linguístico,

temático, imagético, de formato, performático, icônico (hashtag), técnico (thread) etc.

A série pode ser aberta ou fechada. Na fechada, algo marca o fim da série. Já a série

aberta é aquela que não tem essa marcação. Ambas se constituem por uma

textualidade sempre a ser expandida, mas que se encerra em si mesma, podendo ser

lida individualmente. Não há necessidade de ser “completada”, a incompletude

constitui textualidade no âmbito da série (DIAS, 2020, [n.p.]).

44

Disponível em: https://twitter.com/alyssa_milano/status/919659438700670976. Acesso em: 24 nov. 2020.


59

Essa incompletude de que fala Dias, não quer dizer que a série não possa ser

entendida ou interpretada, uma vez que há efeito de completude. O sujeito, ao se inscrever na

função-autor, confere esse efeito de completude para o texto, o que possibilita o entendimento

e a compreensão, mesmo que constitutivamente o discurso seja inacabado. É o que temos nesses

tweets, uma sequência de textualidade dispersa, ligada por um traço icônico e aberta.

2.2 UMA ESCRITA TODA NOSSA

Consideramos a escrita como um gesto de reinvenção dessa história/testemunho

de luta e luto. O gesto, na perspectiva da Análise de Discurso, é considerado um “ato em nível

simbólico”. Carrenho (2019) postula que o contar é paralelo ao processo de textualizar, “ao

produzir dizeres sobre um acontecimento, de maneira a estabelecer relações de causa,

consequência, protagonismo, ações, estados, temporalidade, entre outras, ao narrá-lo.”

(CARRENHO, 2019, p. 45).

A autora aponta ainda para duas instâncias do contar analisadas em sua

dissertação que são análogas as nossas análises: a persistência de um silêncio e o momento de

quebra desse silêncio, (CARRENHO, 2019, p. 48) sendo que ambos podem ser observados nas

figuras 6 e 8.

Figura 8 – Mensagem relato direto escrita no colchão.

Fonte: vídeo Youtube, 2017, 5:08. 45

Especificamente na figura 8, em que se lê “#eutambém molestada sexualmente

45

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jzc2lfxU_S0. Acesso em: 09 out. 2020.


60

e mandada me calar quando eu tinha 5 anos”, podemos observar a interdição do dizer quando

o abusador manda a vítima shut up, literalmente, calar-se. É possível perceber que o

silenciamento se dá em várias instâncias. Na figura, pelo uso do poder, e no caso de Lyle,

anteriormente analisado, pela ameaça e por sansões jurídicas. Há casos em que o aspecto moral

também é silenciador, como o de Steubenville, em que a idoneidade das garotas foi colocada

em xeque, sendo retratadas como gross (nojenta), whore (puta), cho cho (onomatopeia de trem,

faz referência a trenzinho, prática sexual em que homens revezam a mesma mulher. Usado tanto

em casos de estupro coletivo como em casos consensuais). O caráter moral do silenciamento é

velho conhecido das vítimas de assédio e abuso, das mulheres em geral, uma vez que casos de

estupro são, por exemplo, o único crime em que a vítima é colocada como foco do julgamento,

tendo que provar sua inocência. O caráter persecutório de denúncias sexuais é claro e pode ser

analisado em diversos exemplos, como o de Brooks, que precisou se demitir e procurar outro

emprego, enquanto seu abusador seguiu em sua função.

Várias outras mensagens podem ser lidas no colchão, mas para propósito de

análise separamos mais 4. A figura 9 nos interessa por mostrar um relato indireto, alguém conta

a história da irmã e da mãe.

Figura 9 – Mensagem relato indireto escrita no colchão.

Fonte: vídeo Youtube, 2017, 4:53 46

O que queremos apontar com essa imagem é que a escrita não serve apenas para

a ressignificação de si, de uma história própria, podendo ser usada também para reescrever a

história de outros. É importante também dizer que quando falamos de abusos e assédios, na

maioria das vezes, não apenas a vítima sofre. Há casos em que até mesmo pessoas que nem ao

46

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jzc2lfxU_S0. Acesso em: 09 out. 2020.


61

menos conhecem a vítima passam a se identificar e simpatizar com a sua situação, o que pode

ser elucidado pelo caso da modelo Mariana Ferrer, virgem, dopada e estuprada por André

Aranha. Antes mesmo de vídeos do julgamento do empresário vazarem, em que Mariana é

claramente colocada como ré e psicologicamente torturada por advogado, promotor, defensor

e juiz, a hashtag #justiçapormariferrer (e derivados) já estava nos trend topics do Twitter em

setembro, tendo retornado em 3 outubro de 2020 com novas informações do caso divulgadas

pelo The Intercept 47 . Não há nos tweets que usam a hashtag apenas mensagens de apoio a

modelo, é possível ler também mensagens de identificação como “A derrota de Mariana Ferrer

é uma derrota para TODAS AS MULHERES! 48 ”, mensagens que identificam e nomeiam todos

os homens envolvidos no vídeo e mensagens de mobilização social convidando para protestos.

Por conseguinte, vê-se que, com o advento do digital, a circulação permite processos de

identificação múltiplos, não restritos à geografia por exemplo. Iremos elucidar melhor como

esse digital afeta os modos de construção, formulação e circulação dos sentidos no capítulo

seguinte.

Figura 10 – Mensagem relato direto escrita no colchão.

Fonte: vídeo Youtube, 2017, 4:49. 49

Na figura 10 temos uma manifestação de corpografia, “O sujeito manifesta-se

corporalmente” através do uso “[d]os recursos oferecidos pelo programa do chat ou dos

recursos do próprio teclado [...]” (DIAS, 2004, p. 141), o interessante é que aqui não há mais a

presença do digital, se escreve de próprio punho no colchão, mas ainda assim se faz uso de

47

Caso Mariana Ferrer e o inédito estupro culposo. Disponível em:

https://theintercept.com/2020/11/03/influencer-mariana-ferrer-estupro-culposo/. Acesso em: 05 nov. 2020.

48

Disponível em: https://twitter.com/FuracaoLGBTQ/status/1323749379782643712. Acesso em: 05 nov. 2020.

49

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jzc2lfxU_S0. Acesso em: 09 out. 2020.


62

recursos tecnológicos, como o @ para substituir o at. Em inglês, os dois semas são homófonos,

ou seja, ambos são pronunciados da mesma maneira, assim a preposição “at” (no, na, em – em

português) pode ser substituída pelo “@”. A frase lê-se “at volleyball practice” - no treino de

vôlei.

Na figura 11 nos interessa “I h8”, outra substituição que classifica corpografia.

O numeral 8 em inglês é foneticamente /eɪt/, o que, acrescido do fonema /h/ corresponde a

pronuncia de hate (odeio, ódio) /heɪt/. Ou seja, o escrito I h8 no colchão, lê-se I hate, eu odeio.

Figura 11 – Mensagem relato direto escrita no colchão.

Fonte: vídeo Youtube, 2017, 4:49. 50

Essa maneira de grafar as palavras surgiu com os adventos tecnológicos, mais

especificamente com a internet, em que a velocidade é primordial para a comunicação. Num

sistema que em segundos apresenta milhões de resultados para pesquisas globais, os jovens

(principalmente) passam a usar supressões, trocas, inversões, substituições, etc. tudo para

aumentar a velocidade de comunicação. Entendemos que a velocidade não é o único fator

implicado nesse processo, mas não nos interessa aqui aprofundarmos essa discussão. Nos

interessa que, ao nos apropriarmos dessa língua, nos apropriamos também de um espaço de

criação que é a internet, mas não somente, e a partir dela criamos um mundo de condições para

que esse processo criativo ganhe forma. Dias (2009, p. 906) aponta que, “grafar uma palavra

de determinado modo dá corpo ao sentido do que se quer dizer”, o que ela chama em seus

estudos e pesquisas de corpografia.

50

Ibidem.


63

2.2.1 Corpografia: escrita e corpo no digital

Para compreendermos a noção de corpografia cunhada por Cristiane Dias

(2004), é preciso antes entendermos o que a autora entende por língua e o que a internet traz de

diferente para a discussão. A AD entende língua enquanto materialidade e diretamente

relacionada com a exterioridade. Para ter sentido, é necessário que seja atravessada pela

história, “pelo equívoco, pela opacidade, pela espessura material do significante” (ORLANDI,

1999, p. 47). Partindo dessa noção, Dias (2008) pauta seu conceito no simulacro da língua na

escrita digital e

propõe em seus traços uma forma corpográfica do pensamento. Isso porque pretende

descrever o modo como o corpo se inscreve materialmente na língua, pela composição

do impossível do corpo e do impossível da língua. O impossível é, portanto, o lugar

de encontro entre língua e corpo, no qual ancoro a concepção de corpografia, tomando

a língua como simulacro do corpo e não apenas como representação do pensamento

(DIAS, 2008, p. 12).

Através do teclar, digitar, inscrevemos o corpo, “o sujeito deixa vestígios de si

mesmo, de suas sensações e sentimentos, no corpo das palavras” (DIAS, 2004, p. 141). É

imprescindível “compreender o modo de constituição do sujeito no espaço específico da

Internet, o sujeito experimentando a si mesmo nesse espaço constituído de territórios fluidos”

(DIAS, 2008, p. 12), criando, através da escrita, elos de pertencimento a uma comunidade,

cultura, sociedade etc.

É fundamental que se leve em consideração as condições de produção que

atravessam a língua em sua constituição, além do suporte onde se encontra tal utilização.

Explico. A depender do suporte, como por exemplo o Twitter, há limitações específicas da

própria plataforma, como por exemplo a impossibilidade de utilização de mais de 280 caracteres

por tweet. Algumas redes sociais não permitem o envio de gifs, vídeos, etc. O uso de emoticons,

linguagem abreviada, substituição e supressão de letras, uso de figurinhas, gifs etc., são próprios

da linguagem digital da internet, que já não se limita mais à linguagem da programação.

“O que define particularmente a corpografia é que ela não representa nem imita

uma emoção, mas ela cria essa emoção, nas condições de produção muito específicas do uso

do computador” (DIAS, 2008, p. 20). Dias continua, “o que tenho chamado corpografia, é,

portanto, essa textualização do corpo na letra.”

Essa noção é relevante para nossas análises por ser o digital nosso suporte e meio


64

de formulação e circulação. É através desse novo gesto de escrita que os corpos silenciados por

abusos e assédios irão buscar a ressignificação e ocuparem um lugar outro de enunciação.

Figura 12 – Mensagem escrita no colchão.

Fonte: vídeo Youtube, 2017, 5:12 51

“Assim, ao inventar uma grafia, o sujeito deixa vestígios de si mesmo, de suas

sensações e sentimentos, no corpo das palavras” (DIAS, 2004, p. 141). Isso pode ser observado

não somente na figura 12 com as carinhas de feliz, :) ou ainda *--*, mas também nas figuras

anteriores (Fig. 10 e 11), em que a substituição de letras por caracteres digitais pode ser vista

como uma forma de inscrever o corpo na materialidade, “como define Paveau (2015) 52 ,

produzindo uma digitalidade do sentido, pela escrita corpográfica. Uma inscritura do sujeito”

(DIAS, 2019, p. 69)

2.3 MEMÓRIA METÁLICA E MEMÓRIA DIGITAL

Segundo Cristiane Dias (2018), “[...] o que sustenta a formulação dos dizeres no

digital é a sua própria circulação [...]”, sendo “[...] as formas de circulação e replicação no meio

digital [...] o próprio aqui e agora, singulares em sua aparição” (DIAS, 2018, p. 34). Para

discorrer sobre isso, abordamos o conceito de memória metálica para, na sequência, lançar um

olhar para a noção de memória digital, elaborada por Dias (2018), procurando estabelecer uma

51

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jzc2lfxU_S0. Acesso em: 09 out. 2020.

52

PAVEAU, Marie-Anne A. Linguagem e Moral. Trad. Ivone Benedetti. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.


65

relação entre a memória digital e os modos de circulação dos sentidos no digital.

O conceito de memória metálica apresentado por Orlandi (1996) para denominar

a memória produzida pela informatização dos arquivos, ou seja, por novas tecnologias digitais

como a internet, é essencial para o desenvolvimento dessa pesquisa não apenas por si só, mas

por dar origem ao conceito memória digital, cunhado por Cristiane Dias.

Para problematizar as tecnologias informacionais e digitais, temos a memória

metálica, “a da informatização, a digital, a da informação de massa: a que serializa, repete na

horizontalidade, sem se historicizar. Memória descartável” (ORLANDI, 2014, p. 6). Para a

autora, a não distinção de posições pela linearização do interdiscurso, sem que se considere a

forma material dos dizeres, dos sentidos e das palavras é o que produz “o efeito de onipotência

do autor e a sensação do deslimite dos meios” (ORLANDI, 2007a, p. 16).

Essa ideia de onipotência se dá, de acordo com a autora, graças ao capitalismo,

no que denomina domínio pessoal através do “se eu quiser, eu posso tudo”, ou através do

coletivo “juntos podemos tudo”. Segundo a autora (2012), “esquecendo o real e o

atravessamento do poder (a força) e o atravessamento do sentido (a ideologia, o equívoco),

sugerem que quando se quer se pode tudo fazer” (ORLANDI, 2012, p. 213).

Para a autora, os processos de informatização modificam de fato a relação autorescrita

em função da modificação da materialidade da memória discursiva, que passa a ser

algoritmizada. Segundo Dias (2016), o termo teria sido cunhado pra dar conta teoricamente

desta “ilusão da memória infalível da informatização dos arquivos”, evidenciada tecnicamente

pela aparente infalibilidade e infinitas possiblidades físicas (DIAS, 2016, p. 12).

A diversificação dos meios de fato acontece pela informatização e pela mídia,

contudo há uma homogeneização dos efeitos que acabam por levar à sensação de “deslimitada

produção do mesmo, pelo esvaziamento, pela estabilização dos percursos” (ORLANDI, 2007a,

p. 16). A autora postula que, apesar da aparente “não falha” e infinita possibilidade de expansão,

a memória metálica “só produz o mesmo em sua variação, em suas combinatórias” (ORLANDI,

2007a, p. 16), uma memória ideologicamente transparente, infalível e ilimitada.

Retomando o que falamos anteriormente sobre sujeito e materialidade, é

importante ressaltarmos que

A informatização, a prática da escrita de textos no computador, assim como os modos

de ler, transforma efetivamente a relação do sujeito, do autor com a escrita e com o

que é ler, em função da mudança da materialidade da memória (arquivo),

algoritmizada, nesse caso, e da relação com a exterioridade do dizer. E aí se inauguram

outras formas de pensar e compreender a linguagem (ORLANDI, 2009, p. 66).


66

Dias cunha, pois, outro termo para complementar o de Orlandi, memória digital,

aquele “resíduo que escapa à estrutura totalizante da máquina e se inscreve já no funcionamento

digital, pelo trabalho do interdiscurso” (DIAS, 2016, p. 12), aquilo que foge, “que atualiza o

mesmo em sua variedade e se inscreve no funcionamento do discurso digital. Estaria aí a

possibilidade de deslocamento do sentido” (DIAS, 2019, p. 72).

É a memória que pode vir a escapulir dos dispositivos informatizados,

dispositivos esses responsáveis pela aplicatização da memória 53 , “pensada como um resíduo

da própria repetição, reformulação, numerização, se inscreve como possibilidade de

desregulação da reformulação do sentido superficial.” (DIAS, 2019, p. 71). A memória digital

é, então, aquela que atualiza o já-dito em sua variedade e se inscreve no funcionamento do

discurso digital.

Destarte, as análises aqui apresentadas englobam elementos diretamente

dependentes da memória digital, como o mote me too, que é atualizado para #metoo e ganha

novos contornos, lugares e rituais através do discurso digital e seu funcionamento.

53

Ver: TORRES, Cleyton Carlos. Aplicatização da memória: memória plástica digital. In: Entremeios, v. 15, jul.-

dez. 2017, p. 357-367.


67

3 A TRANSFORMAÇÃO DO LUTO EM LUTA

Although our world is full of suffering,

it is full also of the overcoming of it.

Helen Keller 54

No subcapítulo 2.1 Interpelação e processos de identificação em “Essa é minha

história de estupro #metoo” conhecemos Kate, sua história e seu colchão, objeto que ela usa

como forma de interpelar outras mulheres a ressignificarem suas histórias de violência, depois

que ela mesma é interpelada pelo Movimento Metoo. Kate encerra seu luto e convida outras a

fazer o mesmo. Contudo, o que entendemos como luto? O que são processos de enlutamento?

Quando eles aparecem? E mais importante, quando podem aparecer e serem vividos? E trauma?

Onde o trauma entra nos processos de enlutamento? É possível dissociá-los? E o que esses dois

têm a ver com processos de ressignificação? Essas perguntas traçam um panorama norteador

para as questões e análises abordadas nesse capítulo.

3.1 A INSTÂNCIA DO LUTO

A priori, o luto é um conceito psicanalítico e, segundo Freud (1917, p. 249), “é

a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um

ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém.” Assim, o luto é a reação a uma

perda, não necessariamente de alguém, uma perda de algo significativo, perdido de forma

natural ou violenta, indaga Dunker: “O que é que foi que foi perdido nessa perda? Bom, talvez

a gente jamais vá saber exatamente o quê.” (2019, p. 32). O autor continua, “o luto não é só um

evento, o luto é um modo de subjetivação, é um modo de relação com o outro permanente.”

Ancorado em Freud, o pesquisador afirma que “cada estrutura vai viver o luto com os recursos

que ela possui e com as dificuldades que ela possui” (DUNKER, 2019, p. 38). E agora, o luto

54

Apesar de nosso mundo estar cheio de dor, está também cheio de superação. (Helen Keller)


68

é coletivo ou individual? Pode ou não ser vivido? Quando deve ser vivido?

Essas perguntas não são fáceis de serem respondidas e talvez nem possam, mas

faremos um esforço para abordar todas elas e tentar, à luz de nossas análises, respondê-las.

Dunker nos ensina que o luto é algo coletivo por envolver uma instância social, pois “pessoas

desencaminhadas no seu luto são pessoas perigosas” (p. 38), pessoas enlutadas precisam ser

acolhidas e cuidadas para que não se tornem violentas e um perigo para a sociedade, precisam

ser entendidas. Quando o autor diz que as pessoas desencaminhadas no seu luto são perigosas,

não se refere somente a instância física, como exemplifica com o caso do tiroteio de Suzano 55 ,

mas a um perigo de si, um perigo de adoecimento, como relata Penna (2015) sobre os

sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, que adoeceram 15 ou 20 anos após a guerra por um

luto silenciado. O luto precisa ser tratado como instância coletiva para que possa ser vivido e

termine. Para o Dunker, o “luto é complicado, porque ele nos coloca nessa dimensão do infinito.

O luto de um, vira o luto de todos nós, dos que já foram, dos que estão e dos que virão.” (p. 39).

Contudo, não é esse tipo de rito de luto que nossa sociedade promove. O que temos é um luto

privado, relegado ao indivíduo, um rito individual em que cada um escolhe o que fazer com seu

sofrimento e dor. Um rito que, do ponto de vista social, tem que acabar logo, porque a vida

precisa continuar. Sete dias de folga se um dos pais morre, nenhum dia de folga se o cachorro

morre. As leis sociais vão moldando o prazo do luto e o luto em si. Quem são as pessoas

autorizadas a passar pelo luto? Quem são as pessoas autorizadas a serem enlutadas?

Butler vai afirmar que a instância social é um dos determinantes da precariedade

da vida. A autora teoriza que algumas vidas são “consideradas vivíveis e passíveis de luto”

(2015, p. 252) e há aquelas que são tão precárias que nem são consideradas vidas, portanto, não

são vivas e nem podem morrer, não sendo passíveis de luto. “Afirmar que a vida é precária é

afirmar que a possibilidade de sua manutenção depende, fundamentalmente, das condições

sociais e políticas, e não somente de um impulso interno para viver” (BUTLER, 2015, p. 36).

Não basta que o indivíduo queira viver ou que a sociedade queira que ele viva, é preciso que

haja condições de vida e manutenção dessa vida. Não há regras evidentes que coloquem em

xeque quais são as vidas vivíveis e as precárias, apesar de termos uma ideia disso a partir de

um ponto de vista sócio-histórico. Retomando o exemplo do documentário Rede de Abusos e a

fala do Procurador-Geral de Ohio, Mike Dewine, “Nós tínhamos adultos que estavam

55

O Massacre de Suzano ocorreu em 13 de março de 2019. Luiz Henrique de Castro (25 anos) e Guilherme Taucci

Monteiro (17 anos) invadiram a Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano - SP, armados de um revólver, uma

machadinha, uma besta com dardos, coquetéis molotov e bombas falsas. Os dois mataram 10 pessoas e feriram

outras 11. Após o massacre, Guilherme matou o comparsa e, em seguida, cometeu suicídio.


69

francamente mais preocupados em proteger uma instituição e proteger alguns jovens e não

preocupados com a vítima.”, ou seja, as vidas dos atletas (abusadores) eram vidas vivíveis, que

valiam a pena ser protegidas, até a mesmo a reputação das universidades deveria ser cuidada e

protegida de escândalos, já as vidas das mulheres (sobreviventes) eram precárias, não passíveis

de proteção e nem de luto, em nenhuma instância.

Butler nos diz que,

aquele que decide ou assegura direitos à proteção o faz no contexto de normas sociais

e políticas que enquadram o processo de tomada de decisão, e em contextos

presumidos nos quais a afirmação de direitos possa ser reconhecida. Em outras

palavras, as decisões são práticas sociais, e a afirmação de direitos surge precisamente

onde as condições de interlocução podem ser pressupostas ou minimamente invocadas

e incitadas quando ainda não estão institucionalizadas (BUTLER, 2015, p. 36).

Isso evidencia uma vertente política não somente nessas decisões, mas também

no luto em si. Segundo a filósofa, “somos constituídos politicamente em parte pela

vulnerabilidade social dos nossos corpos – como um local de desejo e de vulnerabilidade física,

como um local de exposição pública ao mesmo tempo assertivo e desprotegido.” (2019, p. 28)

“Essa vulnerabilidade, no entanto, torna-se altamente exacerbada sob certas condições sociais

e políticas, especialmente aquelas em que a violência é um modo de vida e os meios para

garantir a autodefesa são limitados.” (2019, p. 35).

Em Quadros de Guerra, Butler vai argumentar, como fizeram Hegel e Klein, que

a percepção da precariedade conduz à potencialização da violência, um entender que, graças à

vulnerabilidade física de certo grupo, eleve o desejo de outrem em destruí-los. Não seria isso a

violência contra mulheres? Destruí-las parece excessivo, mas talvez não seja.

Pensemos nos seis casos de feminicídio que fizeram manchetes no natal de

2020 56 : Viviane Vieira do Amaral, juíza, 45 anos; Thalia Ferraz, 23; Evelaine Aparecida

Ricardo, 29; Loni Priebe de Almeida, 74; Anna Paula Porfírio dos Santos, 45; e Aline Arns, 38.

As seis mulheres foram mortas pelos companheiros ou ex-companheiros. Simplesmente por

serem mulheres. Tiros e facadas têm esse intuito, se não matar, mas ferir profundamente.

Poderíamos dizer o mesmo para outros casos de violência? Destruir alguém se resume apenas

à morte?

Essa destruição está intimamente ligada à misoginia, que coloca a mulher como

o outro, inferior, indesejável, ameaçador e que deve ser eliminado. Um ódio ao feminino que

56

Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/no-periodo-de-natal-pelo-menos-seis-mulheres-foramvitimas-de-feminicidio-no-pais-24813436.html.

Acesso em: 01 fev. 2021.


70

se concretiza em violência.

O mundo programado da desigualdade demora a assimilar cada novo sujeito que

chega e reage a isso. No caso das mulheres, a reação advém não apenas dos homens,

indivíduos concretos, mas de todo um conjunto fundado em valores materiais e

simbólicos resultantes da “valência diferencial dos sexos” – termo cunhado pela

antropóloga feminista francesa Françoise Heritier –, que significa que a mulher vale

menos que o homem no todo social.

Assim sendo, todos somos socializados com este “molde mental” que tem efeitos na

subjetividade de homens e de mulheres. Quando a situação das mulheres se modifica,

ela afeta o conjunto das relações sociais, desestabilizando certezas prévias e

deslocando posições de poder e prestígio; com isto, elas se tornam sujeitos de suas

próprias biografias e sujeitas, também, aos riscos, o que inclui os diversos tipos de

violências [...] (GONÇALVES e BORGES, 2011, [n.p.]).

Como já dissemos, os homens são moldados por comportamentos encorajados

de violência. Em contraste, as mulheres são colocadas como seres delicados, que devem ser

cuidados, “vistos mas não ouvidos”, seres objetos que devem ter medo e serem passivos. E isso

mina a capacidade da mulher em reagir à violência, relegando-a ao lugar de silêncio. Elaine

Gonçalves e Lenise Borges (2011) afirmam que “a crença na passividade das mulheres, na

impunidade dos homens e na inviolabilidade da família ajuda a alimentar o pacto de silêncio e

o ciclo perverso da violência”, o que pode ser observado a seguir.

O documentário No Coração do Ouro - O Escândalo da Seleção Americana de

Ginástica 57 , expõe a rede de abusos que ocorria na seleção olímpica de ginastas estadunidenses

de 1997 até o ano de 2018, quando o médico Larry Nassar foi preso e condenado a 360 anos de

prisão por abusar de mais de 260 mulheres. A primeira mulher a abertamente nomear Nassar

como seu agressor foi Rachel Denhollander, uma ginasta inspirada por uma série produzida

pelo The Indianapolis Star, um jornal diário publicado desde 1903. A ginasta leu a reportagem

sobre abusos cometidos pela comissão, sem que o nome do médico fosse mencionado, e

resolveu ligar para o jornal e contar sua história. Em setembro de 2016, Nassar se declarou

culpado de posse de pornografia infantil, mas em setembro de 2017 ele ainda enfrentava 25

acusações de abuso sexual. Foi nessa época que o caso Harvey Weinstein e a #metoo vieram à

tona, o que fez com que mais atletas viessem a público, inclusive ginastas medalhistas olímpicas

como Aly Raisman, McKayla Maroney e Simone Biles. Biles postou sua história no Twitter

com os dizeres “Feelings... #metoo” (sentimentos... #eu também) e seu relato, (Fig. 13).

Biles relata:

A maioria de vocês me conhece como uma garota feliz, energética e risonha, mas

57

Disponível na HBO.


71

ultimamente... eu tenho me sentindo um pouco quebrada e quanto mais eu tento calar

a voz em minha cabeça, mais alto ela grita. Eu não tenho mais medo de contar minha

história. [...] (2018 – tradução minha).

Figura 13 – Tweet relato Simone Biles

Fonte: Conta pessoal da atleta, 2018 58 - adaptado.

A postagem de Biles conta atualmente com 19,9 mil retweets, 2.380 comentários

e 98,1 mil curtidas 59 . Temos novamente a importância da circulação digital, com efeito no real

da história, uma vez que, através das novas denúncias que circularam no Twitter ou em outras

mídias, novas vítimas foram adicionadas ao processo judicial e contribuíram para a condenação

do médico. Iremos abordar a juridicização mais à frente, com a abordagem de Shoshana Felman

que afirma haver “uma relação fundamental, do direito com o amplo fenômeno do trauma

cultural ou coletivo” (2014, p. 92).

Retomando o questionamento “destruir é apenas matar?”, evocamos o relato de

Kyle Stephens, já no julgamento de Nassar, relatando o relacionamento dela com o pai, após

contar, aos 12 anos, que era abusada pelo médico desde os 6:

[...] Para o meu pai, alguém que faz acusações falsas e tão hediondas é o pior tipo de

pessoa. Sua crença de que eu mentira se infiltrou na fundação do nosso

relacionamento. Toda vez que brigávamos, ele dizia: “você precisa de desculpar com

Larry”. Não foi até que eu estava prestes a ir embora para a faculdade que tentei

novamente limpar meu nome. As ações de Larry Nassar já haviam me causado

angústia significativa, mas eu machuquei ainda mais quando vi meu pai perceber o

que havia me feito passar. Meu pai e eu fizemos o nosso melhor para consertar nosso

relacionamento esfarrapado antes que ele cometesse suicídio em 2016.

58

Disponível em: https://twitter.com/simone_biles/status/953014513837715457. Acesso em: 02 fev. 2021.

59

Dados de 04 fev. 2021.


72

É interessante notar que, além da vida da atleta, a vida do pai também foi

destruída quando se suicida pela dor que causou à filha. No depoimento a atleta chora e treme,

seu corpo fala, externaliza a dor que sente e sentiu.

Assim, temos a violência que não somente destrói seu objeto direto, mas vai aos

poucos corroendo tudo que toca, tudo ao seu redor, tendo causado dor tamanha que somente a

morte é capaz de cessar sua latência.

A próxima fala que pretendemos analisar é de Melody Posthuma, uma ex

dançarina que relata, junto a outras ginastas, sua relação com Larry e os tratamentos médicos

que recebia (Fig. 14).

Figura 14 - Melody Posthum

Fonte: No Coração do Ouro - O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 21:29, 2019.

Você sempre escuta de treinadores e professores “sem dor, sem ganho”, então quando

algo é doloroso, você está pensando “isto está me ajudando e eu estou melhorando

por causa disso”. Eu me lembro de pensar “Posso sobreviver a isso por mais dois

minutos?” Olhando o relógio do meu celular, esperando cinco minutos passar, dez

minutos passar até 45 minutos ou uma hora. Então suas consultas eram de duas horas

de duração. Minha análise é de que uma hora era médica, profissional e a segunda

metade era sexual.

Melody Posthum busca no relógio o refúgio mental contra a violência, vendo os

ponteiros passarem e se perguntando “posso sobreviver a isso por mais dois minutos?”.

Crianças, adolescentes, mulheres vítimas de uma violência tão brutal que a dormência e o

refúgio mental são os únicos aliados para conseguirem sobreviver. Elas não são viventes, são

sobreviventes. Seria destruir relegar mulheres a um lugar particular de fuga dentro de si mesma

para que o tempo passe?

Taylor Livingston, ex-ginasta diz: “a razão pela qual Larry era um médico tão

bom, era porque você não sentia nada depois, não apenas física, mas emocional e mentalmente.


73

Você tinha que bloquear. Você tinha ou você vai desmoronar” (Fig. 15). A atleta usa bloquear

em sua descrição, é preciso bloquear o que estava acontecendo, o que aconteceu, pois, sentir e

reconhecer o abuso, iria lhe desmontar, “você vai desmoronar”, cair em pedaços. O

reconhecimento do abuso, do trauma é também uma forma de reconhecimento da própria dor.

Seria relega-las à dormência de si próprias para que pudessem aguentar?

Figura 15 – Taylor Livingston

Fonte: No Coração do Ouro - O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 25:45, 2019.

No documentário Atleta A, que aborda o mesmo escândalo dando ênfase às

reportagens e implicações posteriores ao julgamento, o advogado John Manly diz: “foi isso que

ele fez, ele roubou essa parte delas e elas estão lutando para recuperá-la”. Destruí-las pode ser

interpretado com roubar parte de alguém e relegar essa pessoa ao sofrimento sem

reconhecimento, um sofrimento privado que a sociedade nem ao mesmo reconhece.

3.1.1 Disenfranchised Grief

Analisando o que vimos até aqui, em especial o luto e a vida precária,

gostaríamos de introduzir um conceito que se relaciona diretamente aos dois: disenfranchised

grief. Kenneth Doka que cunha o termo (2002) 60 para se referir ao luto que não tem permissão

60

Apesar do site Descritores em Ciências da Saúde trazer a tradução do termo como “luto contido”, optamos aqui

por não o traduzi-lo por entendermos que o processo de luto é algo pessoal e não necessariamente contido,

relegando a cada pessoa/situação a forma de enlutamento possível. Não é possível que generalizemos

disengranfrased grief como contido, podendo ele assumir diversas formas. Portanto, levaremos em conta como

um luto privado de reconhecimento, precário, uma face política, análoga à definição de Butler (2015) de vida

precária.


74

de ser sentido, vivido. Segundo os descritores em ciências da saúde (1987), luto “refere-se ao

processo completo de pesar e luto e está associado a um sentimento profundo de perda e

tristeza”, ou seja, o conceito não carrega em si a descrição de quem, por quem e por quanto

tempo deve-se ou pode-se sentir luto. No entanto, há lutos mais passíveis de serem vividos,

análogos a “vida precária” de Butler.

O conceito de disenfranchised grief reconhece que sociedades têm conjuntos de

normas – efetivamente, “normas para o luto” – que tentam especificar quem, quando,

onde, como, por quanto tempo e por quem as pessoas deveriam se enlutar. Essas regras

de enlutamento podem se codificar como políticas de pessoal. Por exemplo, um

trabalhador pode ter uma semana de folga pela morte de seu cônjuge ou filho, três dias

pela perda de um parente ou irmão. Tais políticas refletem o fato de que cada

sociedade define quem tem o legítimo direito de enlutar-se, e esses direitos

correspondem a relacionamentos, primordialmente familiares, que são socialmente

reconhecidos e sancionados.

Contudo, essas normas de enlutamento podem não corresponder à natureza da ligação,

ao sentido de perda, ou aos sentimentos de sobreviventes logo, é disenfranchised grief.

(DOKA, 1999, p. 37 – tradução e grifos meus).

Assim,

Disenfranchised grief pode ser definido como o luto experenciado por aqueles que

sofrem uma perda que não é, ou não pode ser, abertamente reconhecida, publicamente

chorada ou socialmente suportada. Isolado em privação, pode ser muito mais difícil

sofrer e reações são frequentemente complicadas (DOKA, 1999, p. 37 – tradução e

grifo meus).

Observamos que a fala do autor também judicializa o luto, face que ainda iremos

abordar, mas compreendemos que há uma outra face dessa judicialização que nos interessa por

ter relação direta com o a precariedade da vida, conforme Butler (2015). Explica Bocchi que

é possível considerar que essas imagens-testemunho se constituem, então, a partir de

um anseio por justiça e se encontram ancoradas nas histórias vivenciadas por sujeitos

garantidos por sua identidade social e seu estatuto jurídico. Em outras palavras, tratase

de discursos nos quais a forma-sujeito de direito e a evidência lógico-jurídica

(PÊCHEUX, 2009) se produzem, em um funcionamento que explicita um processo

de judicialização do trauma, amparado na crença de que a não violência pode ser

assegurada pela esfera jurídica. Um desejo de justiça que, nesses recortes, produz

efeitos de denúncia de uma realidade de violência e busca por reparação, tecendo-se,

então, numa certa relação com o político (2019, p. 24-25).

Butler (2015) postula que todas as vidas são precárias por serem dependentes de

aparatos sociais e umas das outras, e que é necessário

[...] considerar a condição precária como uma condição existente e promissora para

mudanças em coligações. Para que as populações se tornem lamentáveis, não é

necessário conhecer a singularidade de cada pessoa que está em risco ou que, na

realidade, já foi submetida ao risco. Na verdade, quer dizer que a política precisa


75

compreender a precariedade como uma condição compartilhada, e a condição precária

como a condição politicamente induzida que negaria uma igual exposição através da

distribuição radicalmente desigual da riqueza e das maneiras diferenciais de expor

determinadas populações, conceitualizadas de um ponto de vista racial e nacional, a

uma maior violência (BUTLER, 2015, p. 50).

Se, dentro de uma sociedade, vidas são precárias e lutos não podem ser vividos,

a ideia de coletividade se mostra falha e

Uma vez que o estado da consciência humana e o estado das forças sociais de

produção abandonaram essas ideias coletivas, essas mesmas ideias adquirem

qualidades repressoras e violentas. [...] é essa violência e esse mal que colocam os

costumes em conflito com a moralidade [...] (ADORNO, 2001, p. 17 apud BUTLER,

2015, p. 14).

Para elucidar esse tipo de luto, evocamos a fala de Tarana Burke em uma palestra

TED 61 : “Tenho viajado por todo o mundo dando palestras, e, frequentemente, depois de cada

evento, algumas pessoas me abordam para conversar comigo em particular.” Em particular esse

luto pode ser vivido, narrado. Mas só em particular. Butler (2020) diz que “uma forma

puramente privada de luto é possível, mas não pode amenizar o grito que deseja que o mundo

testemunhe a perda.” A impossibilidade de um luto público significa vivenciar e decifrar a perda

de outros (sejam pessoas ou coisas) de uma maneira diferente daquela que nos permite marcar,

registar e compartilhar o luto. Apesar de a internet ter reivindicado esse lugar de “nova esfera

pública, como marca a autora, o espaço digital não supri os rituais de enlutamento coletivos que

se mostram faltantes em situações como as de violência contra a mulher.

Ao refletir sobre o luto em tempos de pandemia da covid-19 62 , Butler pondera

sobre algo que nos é caro também aqui.

Aprender a enlutar-se pelas mortes em massa significa marcar a perda de alguém cujo

nome você não sabe, cuja língua você talvez não fale, que vive a uma distância

intransponível de onde você mora.

Não é preciso conhecer a pessoa perdida para afirmar que isso era uma vida. O que se

lamenta é a vida interrompida, a vida que deveria ter tido a chance de viver mais, o

valor que a pessoa carrega agora na vida dos outros, a ferida que transforma

permanentemente aqueles que sobrevivem. O sofrimento de um outro não é o seu

próprio, mas a perda que o estranho suporta atravessa a perda pessoal que sente,

potencialmente conectando estranhos em luto (BUTLER, 2020, [n.p.] – grifos meus).

Não estamos valorando vidas perdidas na pandemia do novo coronavírus na

61

Disponível em: https://www.ted.com/talks/tarana_burke_me_too_is_a_movement_not_a_moment. Acesso em:

10 fev. 2021.

62

A pandemia de covid-19 teve início em 2019 na China com uma nova variante de coronavírus, assolando o

mundo, tendo matado até o presente momento (24 mar. 2021) 2.736.298 pessoas no mundo todo.


76

mesma medida que a violência sofrida pelas mulheres e analisada nessa pesquisa, mas podemos

entender de forma similar a perda sofrida por essas mulheres e o luto que não pode ser vivido

por elas. A ferida que transforma permanentemente aqueles que sobrevivem. Há algo marcado

nas sobreviventes, uma cicatriz invisível de uma violência que a sociedade muitas vezes se

recusa a enxergar.

3.2 A INSTÂNCIA DO TRAUMA E DO TESTEMUNHO

Eu jurei não me calar frente à tortura, à barbárie.

Então, estive por trás de denúncias públicas, de

falar publicamente, de dizer a minha verdade.

Rigoberta Menchú

O trauma, assim como o luto, é um conceito psicanalítico e, segundo Penna, “é

muito difícil falar de luto e perda sem relacioná-los com o trauma, pois em uma dada dimensão

toda perda é traumática” (2015, p. 11). Para a autora, “o entorpecimento e o bloqueio afetivo

sentido, aliviavam os efeitos dolorosos da angústia excessiva” (2015, p. 15), como vemos na

fala de Melody Posthum (Fig. 14) “Eu me lembro de pensar ‘Posso sobreviver a isso por mais

dois minutos?’ Olhando o relógio do meu celular, esperando cinco minutos passar, dez minutos

passar até 45 minutos ou uma hora”. Há um entorpecimento, uma fuga, como se olhar fixamente

para o relógio e ver a hora passar tornasse a situação de violência tolerável.

O que acontece no trauma é um registro “literal” do evento traumático, dissociado dos

processos cognitivos habituais que não pode ser conhecido, nem tampouco

representado, retornando de forma repetida e reencenada na forma de flashbacks,

pesadelos e repetições. No trauma, ocorre um “colapso da representação performática

da linguagem” (CARUTH, 1995, p. 12) similar a uma morte e assim um deathlike

break (CARUTH, 1995, p. 14) passa a residir no coração do trauma (PENNA, 2015,

p. 15-16).

Já Carrenho (2019) ancorada em Levi (2014), Agamben (2008), Felman (2014)

e Mariani (2016), fala sobre a dimensão do trauma, uma dimensão que “barra a possibilidade

de entrada da experiência no âmbito do vivido e do reconhecido/reconhecível, fazendo

permanecer para o sujeito justamente o impossível da experiência, o impossível de significála.”

(p. 50),


77

Assim, não é possível chegarmos a uma definição concreta e fixada do que é ou

não uma experiência traumática pois, como problematiza Carrenho,

primeiro lugar, ser o que foge à estrutura, ao mesmo tempo em que é

fundamentalmente relativa a essa estrutura que, como proposto, jamais podemos

delimitar em totalidade, pois no preciso momento em que pensamos tê-lo feito ela já

se reorganizou, já se tornou outra. Em segundo lugar, o sujeito só significa a

experiência como traumática no depois, de forma que o trauma é produzido

retroativamente (CARRENHO, 2019, p. 52).

Contudo, apesar de não haver uma definição fixada para trauma, é nas sutilezas

dos movimentos de (re)significação de eventos traumáticos a partir de processos de

identificação, como o uso da #metoo, que evidenciamos a existência dos mesmos.

Um testemunho de vida não é simplesmente um testemunho de uma vida privada, mas

um ponto de confluência entre texto e vida, um testemunho textual que pode nos

penetrar realmente como uma vida. (...) E ainda, ao passo que testemunhar é,

paradoxalmente suficiente, uma nomeação para transgredir os limites desse

isolamento, de falar por outros e para outros (FELMAN, 1992, p. 2-3 - grifos da

autora, tradução minha).

Trabalhamos até aqui com a análise da figura 14, contudo, com a fala de Felman

“de falar por outros e para outros”, podemos retomar a figura 9, já analisada, em que alguém

escreve por sua mãe e sua irmã, “Minha mãe, também, andando pela rua / Minha irmã, também,

no meu casamento”. O testemunho que quebra o isolamento não precisa ser de si, mas de outras,

um poder de fala que rompe com o silenciamento. Ou quando se escolhe falar através do outro,

como é o caso da ginasta estadunidense Maggie Nichols. Nichols era chamada de Atleta A nos

autos do processo contra o médico Larry Nassar e só decidiu se identificar no julgamento,

através de uma declaração lida por sua mãe. É a mãe de Maggie, Gina Nichols quem lê a

declaração no julgamento frente a Nassar.

Felman vai, em O Inconsciente Jurídico (2014), trazer a fala de Hanna Arendt

sobre trauma, “é algo que não pode mesmo ser adequadamente representado, tanto em termos

jurídicos quanto em termos políticos” (ARENDT, 1960, p. 417 apud FELMAN, 2014, p. 99).

E continua,

o abuso de poder está inscrito na cultura como trauma. [...] trauma é precisamente o

que não pode ser visto; é algo que inerente, política e psicanaliticamente derrota a

vista, mesmo quando esta entra em contato com as regras de evidência e com a

investigação jurídica do julgamento por visibilidade. Assim, o político está

essencialmente ligado à estrutura do trauma (FELMAN, 2014, p. 116 – grifos da

autora).


78

Para os tribunais, a prova mais importante é aquilo que se vê, a testemunha

ocular, o objeto, mas o trauma é justamente essa instância que não pode ser vista ou mensurada,

ainda que constitua a prova mais contundente. A autora argumenta que nos tribunais e vereditos,

“entre fatos contraditórios e entre versões conflitantes da verdade, veredictos são decisões em

torno do que admitir na memória coletiva e do que transmitir da memória coletiva. A lei é, nesse

sentido, uma força organizadora da significação histórica” (2014, p. 117). E isso só ocorre, nos

casos analisados, através do testemunho.

Contudo, o testemunho nem sempre ocorre na espera jurídica, de maneira formal

e buscando uma decisão. O testemunho pode ser simplesmente o ato de narrar o evento

traumatizante para alguém. Escrever sua história como fez Primo Levi (1947, p. 6), “a

necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou entre nós, antes

e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento [...]”. Ou escrever cartas, como

fizeram os prisioneiros de Guantánamo, a quem Judith Butler se refere em Quadros de Guerra

(2015). Ele pode ser uma frase em um colchão.

Ao final do vídeo Kate (Fig. 16) diz, com lágrima nos olhos, “parece um pouco

louco, mas é tão empoderador. E ainda que não passe, há esperança. É tipo um alívio. Eu nunca

achei que fosse fazer algo assim. É bem incrível o impacto que uma pessoa pode ter sobre outra,

que importa ser ouvida.” (tradução e grifo meus). Destaca-se, em seus dizeres, a importância

do endereçamento na inscrição do testemunho e a potência de cura implicada na fala, em falar

e escrever para os outros, compartilhar histórias de violências. Com Bocchi (2017),

entendemos que a perspectiva do endereçamento determina o testemunho na relação com algo

que não se pode calar. Como entende a pesquisadora, as análises ora realizadas também nos

mostram que os testemunhos adquirem “um sentido forte, político, de engajamento crítico na

mudança, e não um sentido meramente positivista que reafirma o poder da esfera jurídica” (p.

1812). Observa-se aqui que os testemunhos, amplificados pela circulação de seus sentidos no

digital, constituem narrativas de violência que excedem o que seria da ordem do singular,

configurando um “trauma social e coletivo” (BOCCHI, 2017, p. 1818). Felman (2014, p. 98)

vai apontar a importância do julgamento/veredito para o trauma social e coletivo, dizendo que

“inadvertidamente participa de um trauma que é não apenas individual, mas está inscrito na

história [...] e cuja queixa individual ou reclamação agora ganhou significado histórico,

cumulativo, coletivo, jurídico” (grifos da autora).


79

Figura 16 – Testemunho de Kate

Fonte: vídeo Youtube, 2017, 5:54 63

Para Yerushalmi (1998 apud MARIANI, 2016, p. 52), em testemunhos como os

do Holocausto, o “antônimo de esquecimento não seria memória, mas sim justiça”. Sem fazer

juízo de valor ou comparar uma violência a outra, podemos estender essa afirmação também às

vítimas de abusos e agressões, vítimas de violência.

O medo de que o destino ataque novamente é crucial para a memória do trauma, e

para a inabilidade de falar a respeito. Ao se quebrar o silêncio interno, o Holocausto

de que se está fugindo, pode voltar à vida e mais uma vez ser vivido; mas desta vez,

pode-se não ser poupado ou não ter o poder de suportar. O ato de contar pode se tornar,

em si mesmo, severamente traumatizante, se o preço de falar é reviver; não alívio,

mas retraumatização adicional. [...] Além disso, se se fala do trauma sem ser realmente

ouvido ou escutado, o contar pode ser em si mesmo vivido como trauma – uma

reexperimentação do evento em si (FELMAN; LAUB, 1992, p. 67 – tradução minha;

grifos das autoras).

Felman e Laub trabalham nesse texto também os traumas e testemunhos de

sobreviventes do Holocausto. Apesar da abordagem das autoras e suas considerações serem

acerca deste acontecimento histórico, muito da análise do trauma pode ser transposto para

nossas análises. As autoras argumentam que a dificuldade de se narrar um acontecimento

traumático se encontra na incapacidade do sujeito de narrativizar completamente tal

experiência. Há sempre algo que escapa e não pode ser totalmente compreendido e colocado

em palavras. A narrativa do trauma é um trauma em si mesma, narrar a experiência é revivê-la,

o que nem todas as pessoas estão dispostas a fazer ou tem condições de fazer.

63

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jzc2lfxU_S0. Acesso em: 09 out. 2020.


80

As autoras compreendem que o testemunho é “composto por pedaços de

memórias que foram sobrecarregadas com ocorrências que não se estabeleceram no

entendimento”, revivendo traumas que são “atos que não podem ser construídos como

conhecimento nem assimilados completamente, eventos que excedem nossos quadros de

referência”. Mas a necessidade de se falar do trauma, o testemunho, é mais do que contar sua

história e tê-la ouvida, “consiste na experiência do impossível”, sendo a sua função “fazer falar

a dor, o sofrimento e o desamparo”. O testemunho é forma de reescrita de uma memória de

violência, “mas também de resistência, pelo trabalho de luto que o testemunho possibilita”

(BOCCHI, p. 1814). É através da reescrita, do testemunho, que o sujeito irá se colocar

novamente, bordejando o real da história, ressignificando sua história de trauma, em resistência.

Ainda, para Felman, o testemunho tem caráter de promessa; testemunhar é produz o próprio

discurso como evidência material da verdade. O testemunho é uma prática discursiva, um ato

performativo de fala; ele “endereça o que na história é ação que excede qualquer significância

substancializada”, e produz “impacto que dinamicamente explode qualquer reificação

conceitual e qualquer delimitação constativa” (FELMAN; LAUB, 1992, p. 5).

Ainda na esteira deste impossível, temos o esquecimento, instância estruturante

da memória discursiva, “introdução do nada como força do significar” (ORLANDI, 2014, p.

6). Mariani (2016, p. 52) vai tratar do esquecimento pela “impossibilidade de um tudo lembrarse

que está no cerne da constituição do sujeito.” Um furo na memória que não encontra eco

para se significar, o que Pêcheux (1988, p. 183) chamou de “o acobertamento da causa do

sujeito no próprio interior de seu efeito”. Para Mariani (2016, p. 55) narrar, testemunhar “é

deparar-se também com o esquecimento, logo, com o real que sinaliza no campo da fala e da

linguagem, a impotência das palavras e um indizível na/da apreensão dos objetos.”

Contudo, Felman (1992, p. 68) destaca a importância de um ouvinte empático

ou de um “outro endereçável, um outro que pode ouvir a angústia das memórias e, assim,

afirmar e reconhecer sua realidade”, sem o qual a história é aniquilada, e é justamente essa

aniquilação que faz com que a narrativa do trauma “não possa ser ouvida ou que uma história

não possa ser testemunhada”.

Mariani vai lembrar Agamben e os termos testis e supertes. “1. Testis (o que se

põe como terceiro) em um processo entre dois contendores; 2. Supertes, aquele que viveu algo,

atravessou até o final um evento e pode dar testemunho disso” (2008, p. 35 apud MARIANI,

2016, p. 55). Ou seja, nas análises aqui apresentadas temos supertes, alguém que passou por

uma experiência traumática e que, através do relato do acontecimento, “pode dar um

testemunho, ou seja, transmitir aos outros o que foi passado por essa experiência” (MARIANI,


81

2016, p. 55). A autora vai apontar a insuficiência da linguagem em falar de um “todo vivido”,

ela irá apenas fazer “borda na tentativa de dar conta do real da experiência, ou evento, ou

acontecimento que mergulha com violência o sujeito”. Há nessa posição de superstes a marca

da insistência do testemunho, de contar para “os que sabiam”, para “os que não queriam saber”,

para os “indiferentes”, para os que querem saber, o que se viveu (MARIANI, 2016, p. 55). É se

fazer ouvir. E temos também testis, “a imagem-depoimento que, como efeito, produz a si

mesma como comprovação da violência, torna-se prova dentro de um dispositivo de verificação

ameaçado constantemente pela possibilidade de perjúrio e infidelidade” (BOOCHI, 2019, p.

24), é o momento do julgamento, do testemunho no julgamento em que o narrar testemunha

uma violência passada e coloca em xeque o real da história, o esquecimento e a linguagem.

3.2.1 O Documentário como acontecimento discursivo

E a natureza do material significante é importante

na maneira como construímos nosso dispositivo

analítico. Faz parte da relação entre o dispositivo

teórico e o analítico refletir sobre a natureza do

material analisado.

Eni Orlandi 64

Boa parte do nosso material de análise provém de documentários ou séries

documentais, como: The Hunting Ground, No coração do Ouro: o escândalo da seleção

americana de ginástica, Nevertheless, Rede de Abusos, Jeffrey Epstein: poder e perversão,

Atleta A, dentre tantos outros. Por isso, nos parece fundamental discorrermos sobre o gênero

documentário, um tipo de discurso que Orlandi (2012) chamou de “o discurso do

documentário”, “um objeto de arte”, “um objeto memorial”. Para a autora, “O documentário

fala de um acontecimento que se torna, por assim dizer, político, para além da ‘intenção’

declarada de seus participantes” (p. 55). Todos os documentários supracitados apresentam a

mesma temática: abuso de mulheres nas mais diferentes esferas sociais e o desdobramento das

denúncias feitas pelas sobreviventes.

É de suma importância compreendermos que o documentário é em si um

64

ORLANDI, 2012, p. 56.


82

acontecimento discursivo constituído de diversas materialidades e é atravessado por uma

memória discursiva, “irrepresentável”. Assim, quando o documentário “recorta, sem saber, essa

memória em algum ponto, produzindo um acontecimento, não ‘representa’, produz um efeito,

inserindo por seu gesto a memória em uma atualidade” (2012, p. 57). Atualidade essa que

Orlandi chamou de “uma formulação”.

Consequentemente, o documentário produz um recorte do real que é tomado

como um acontecimento, produzindo um efeito de memória e mexendo diretamente com o

esquecimento. Orlandi afirma que “no documentário, as coisas-a-saber são tomadas em redes

de memória dando lugar a filiações identificatórias e não a aprendizagens por interação.”

Há nos documentários uma presentificação de um passado, atualizando-o,

(re)criando-o e retomando-o. “A meu ver, para significar o acontecimento, o documentário põe

em contradição o que se esquece e o que não é para se esquecer” (ORLANDI, 2012, p. 59). O

documentário é uma maneira de burlar o esquecimento e registrar o real da história.

Contudo, nosso material de análise é heterogêneo em sua materialidade, como

já mencionamos, assim, evocamos Lagazzi (2017, p. 36) em sua pergunta “qual a materialidade

do discurso se falamos de objetos simbólicos materialmente heterogêneos?”. Por realizarmos

análises de diversos discursos que se materializam heterogeamente, o discurso também irá se

materializar em outras relações que não somente verbais, como através do corpo. Pois, “a

materialidade do discurso é a linguagem em duas diferentes materialidades significantes, quais

sejam [...], diferentes relações estruturais simbolicamente elaboradas pela intervenção do

sujeito.” A autora ressalta que essa materialidade significante nos remete a um suporte que

permita a produção de sentidos para os sujeitos.

Trata-se de considerar o modo de estruturação dos matérias tomados para análise, o

modo como materializam discursos. Trata-se, enfim, da formulação discursiva. [...]

Devemos nos perguntar quais materialidades significantes compõem esses materiais

passíveis de análise e nos permitem chegar a regularidades significantes de um

funcionamento discursivo que se quer compreender (LAGAZZI, 2017, p. 36).

Em seu texto, Lagazzi analisa do filme Moonlight, e, através de recortes

fílmicos, diferentes modos de formulação imbicados das diferentes materialidades significantes

no percurso de identificação do sujeito. O que tentamos fazer aqui também. Diferentes

materialidades significantes se compondo na eloquência do testemunho, do corpo, do choro, da

voz, do engasgar, do colchão... dos silêncios.


83

3.2.2 O Jurídico

Um julgamento sexual é o desenvolvimento

deliberado de uma imoralidade individual em

direção a uma imoralidade generalizada, contra

[seu] o pano de fundo escuro, a culpa comprovada

do acusado destaca-se luminosamente.

Walter Benjamin, Karl Kraus 65

Em outros momentos desta dissertação nos esbarramos no jurídico e não seria

possível ignorá-lo. A esfera jurídica se apresenta em nosso material nos testemunhos das

ginastas e outras mulheres vítimas do médico olímpico Larry Nassar, nas denúncias contra

Harvey Weinstein, no julgamento dos atletas de Steubenville e em tantos outros momentos que

não entraram em nossas análises. Um julgamento “é uma busca por uma decisão, e assim, em

essência, ele não busca simplesmente a verdade, mas uma finalidade: uma força de resolução”

(FELMAN, 2014, p. 90).

Contudo, não é apenas por se apresentar em nossos recortes que a face jurídica

se faz relevante. Felman (2014) vai argumentar, quando compara “o julgamento do século (O.

J. Simpson) com a obra A Sonata a Kreutzer, de Tolstói,” que a luta de gênero envolve uma

dimensão política “maior que a lei” e há uma convergência crítica indispensável, entre o reino

do jurídico e o reino da política. É nessa convergência entre o político e o jurídico que, sem

ferramentas próprias, tenta-se, através do julgamento (única ferramenta à mão) “julgar e

sentenciar sobre algo que não pode mesmo ser adequadamente representado, tanto em termos

jurídicos quando em termos políticos” (ARENDT, 1960 apud FELMAN, 2014, p. 99 – grifo da

autora).

Ou seja, há uma “tentativa de definir juridicamente algo que não é reduzível a

conceitos jurídicos” (p. 95). Para Felman,

A memória jurídica é constituída, na verdade, não apenas pela “cadeia do direito” e

pela repetição consciente de precedentes, mas também por uma cadeia esquecida de

feridas culturais e por compulsivas ou inconscientes repetições jurídicas [...] expõem

na arena histórica o inconsciente político do direito [...] (FELMAN, 2014, p. 92).

O que quer dizer que todo julgamento “[...] envolve essencialmente ‘algo maior

do que o direito’. Em todo grande julgamento, e certamente em todo julgamento de significado

65

FELMAN, 2014, p. 102.


84

político ou histórico, algo que difere da lei é abordado [...]”, o julgamento é usado de forma

pedagógica, como diz Felman, como veículo de uma mensagem.

Figura 17 – Testemunho de Rachael Denhollander

Fonte: Atleta A, 2020, 1:27:00 66 .

Em seu testemunho no julgamento do médico olímpico Larry Nassar, a exginasta

Rachael Denhollander diz (fig. 17):

Há dois grandes objetivos no nosso sistema criminal, Meritíssima. A busca por justiça

e a proteção de inocentes. Nenhum deles pode ser cumprido se a pena máxima

disponível no acordo [de se declarar culpado] não for imposta a Larry por seus crimes.

Então eu pergunto: quanta prioridade deve ser dada à comunicação de que o poder

máximo da lei será usado para proteger outra criança inocente da devastação

incomparável causada pelo assédio sexual? Eu lhes digo, essas crianças merecem

tudo. Merecem toda a proteção que a lei pode oferecer. Merecem a sentença máxima.

(grifo e adaptação minha).

A súplica de Rachael continua e pode ser vista em outro documentário, No

coração do ouro: o escândalo da seleção americana de ginástica.

Eu peço que você entregue uma sentença que nos diga que o que foi feito contra nós

importa. [...] É isso que precisamos aprender. Olhe ao redor do tribunal, lembre-se do

que você testemunhou nos últimos sete dias, e que seja um aviso para todos nós.

Quando os adultos em cargos de autoridade não respondem adequadamente às

revelações de agressão sexual, quando as instituições criam uma cultura em que um

predador pode florescer sem medo, é assim que se parece, um tribunal cheio de

sobreviventes que carregam feridas profundas. Mulheres e meninas que carregam

cicatrizes que nunca se cicatrizarão por completo, mas que se uniram para lutar por si

mesmas porque ninguém mais o faria. Mulheres e meninas que fizeram a escolha de

colocar a culpa e vergonha na única pessoa a quem pertencem, no agressor. Mas que

o horror expresso nesse tribunal nos últimos sete dias, seja motivação para que

qualquer um e todos, não importa o contexto, assuma a responsabilidade se erraram

66

Disponível em: Netflix – Atleta A.


85

em proteger uma criança. Para entender as incríveis falhas que levaram a essa semana.

E fazer melhor da próxima vez. Porque tudo é o que essas sobreviventes valem.

Como dissemos antes, o julgamento é uma busca por uma decisão e a súplica de

Rachael mostra tal constatação ao dizer “entregue uma sentença que nos diga que o que foi feito

contra nós importa.” De maneira que somente através de uma sentença máxima e que “manda

um recado”, o trauma sofrido por essas mulheres fosse verdadeiramente reconhecido e, mais

que isso, que pudesse assim ser trabalhado e superado, findando o processo de luto.

Felman sustenta que “a lei é uma força organizadora da significação da história”

e que os vereditos são “decisões em torno do que admitir na memória coletiva e do que

transmitir da memória coletiva” (2014, p. 117). Será, através do veredito da condenação de

Larry Nassar que “a mensagem” será admitida na memória coletiva. Apesar de Nassar ter se

declarado culpado das acusações de agressões sexuais e, por isso, não enfrentou julgamento, a

juíza do caso, Rosemarie Aquilina, determinou que o réu deveria ouvir todas as mulheres que

escolhessem depor. De início, foram 88 que declararam a vontade de falar formalmente,

contudo, no decorrer dos dias, mais mulheres se apresentaram e, no final do processo, 156

mulheres depuseram. Para além disso, o julgamento irá se mostrar aqui como uma forma de

significação das vítimas, de seus traumas, de seus lutos e de si mesmas. Explico. Quando

Denhollander diz “entregue uma sentença que nos diga que o que foi feito contra nós importa”

sua súplica não é apenas para que o trauma dela e das outros mulheres seja reconhecido e o

médico condenado, mas também que o trauma seja ressignificado e sirva de mensagem para a

sociedade e todas as pessoas, o abuso não é mais tolerável e nem será velado e silenciado, será

condenado e passível de pena. Parece utópico pensar dessa maneira e sabemos que mudanças

realmente significativas num sistema judicial que é se estruturado e beneficia homens brancos

em sua constituição, não é algo que ocorre com um único julgamento e uma única sentença.

Ainda assim, é imprescindível que vereditos como esse aconteçam e suas mensagens sejam

transmitidas para a memória coletiva.

O julgamento de Nassar foi transmitido por streaming 67 e pôde ser acompanhado

na íntegra online, o que significa que os sentidos ali produzidos passaram a circular além do

ambiente físico do julgamento e para as pessoas presentes no local. Segundo Aquilina, “o

67

Streaming é um tipo de serviço de transmissão de dados via internet que permite que conteúdos sejam

transmitidos sem a necessidade de download. O usuário/espectador pode assistir a transmissão através da internet

em sua própria casa através da transmissão do dono do conteúdo. Plataformas como Netflix, Spotify e GloboPlay

fornecem conteúdos de forma paga ou gratuita, através de uma assinatura, mas plataformas como YouTube

também sustentam esse tipo de transmissão e permitiram que vários conteúdos pudessem ser transmitidos. O

julgamento de Nassar foi transmitido via streaming pelo site Law and Crime.


86

mundo inteiro está ouvindo vocês” em um momento de encorajamento às mulheres. E essa fala

pode muito bem ser verdadeira.

Ao se declarar culpado, Nassar busca a interdição dos depoimentos das vítimas

e, novamente, seus silenciamentos. Segundo Felman (2014, p. 130) “a confissão deseja conferir

ao discurso o mais elevado valor moral e a mais elevada responsabilidade epistemológica: a de

acessar a verdade [...]”. Ou seja, ao se declarar culpado das acusações, Nassar tenta impor uma

verdade e impossibilitar sentidos outros de serem produzidos no julgamento. E Aquilina, ao

impor a obrigatoriedade de o médico escutar os testemunhos dessas mulheres, uma mensagem

também foi fixada na memória coletiva, “não seremos silenciadas”. De acordo com reportagem

no El País 68 , várias mulheres declararam que o processo as fortaleceu e foi terapêutico.

Felman argumenta, nos dois casos que analisa, que

tudo o que o julgamento é capaz de provar, portanto, é a não localizabilidade, a

invisibilidade constitutiva da lesão, traumática impossibilidade de se fazer justiça à

agressão. Tudo que o julgamento faz é, portanto, repetir o trauma ao produzir, mais

uma vez, sua invisibilidade recalcitrante e ao mostrar como o poder do trauma de

anular a visão infiltra-se nas próprias operações do processo legal, e insidiosamente

apodera-se da própria estrutura do julgamento (2014, p. 118).

Contudo, é justamente aqui que o julgamento de Nassar se diferencia do de O. J.

Simpson e da literatura de Tolstói. Quando Aquilina impõe ao médico que ouça os testemunhos

de suas vítimas, ela constrói uma ponte para o que Felman chamou de abismo, “a realidade

concreta de uma brecha traumática” (p. 123), “aquilo que não podemos apreender e que não

compreendemos” (p. 127). O abismo entre o gênero e o jurídico, que não enxerga as agressões.

A juíza ainda chegou a responder a Nassar em suas reinvindicações de que o julgamento seria

“um circo midiático” e de que seria muito doloroso para ele ouvir as vítimas por quatro dias,

dizendo “Passar quatro ou cinco dias a ouvi-las é algo menor, em relação às horas de prazer que

o senhor teve à custa delas e que lhes arruinou a vida.” A juíza pondera que, independentemente

do desconforto do médico e suas reclamações em carta endereçada à juíza, o réu tinha, como o

mínimo de obrigação, ouvir suas vítimas. Em outra fala, agora dirigida a uma das vítimas, a

juíza endereça a dor das sobreviventes – “Deixe a sua dor aqui. Depois saia e faça coisas

maravilhosas”.

O “abismo” se fecha um pouco quando Aquilina empodera 69 as vítimas e lhes dá

68

Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/26/internacional/1516971445_612553.html. Acesso

em: 15 fev. 2021.

69

Compreendemos empoderamento como “um centralizador de processos contínuos intencionais na comunidade

local, envolvendo respeito mútuo, reflexões críticas, cuidados e participação grupal, por meio das quais pessoas

enfraquecidas possam se valer da distribuição igualitária de recursos necessários, tendo facilitado o acesso e


87

espaço de fala e testemunho.

Figura 18 – Testemunho de Jamie Dantzscher

Fonte: Atleta A, 2020, 1:23:35 70 .

Jamie Dantzscher, ex-atleta olímpica, diz em seu testemunho “[...] ao invés de

proteger as crianças e denunciar as agressões que viu, você usou a sua posição de poder para

manipular e agredir também. Você sabia que eu era indefesa. Eu estou aqui hoje, com todas

essas mulheres, não vítimas, mas sobreviventes, para falar diretamente a você que seus dias de

manipulação acabaram. Nós temos uma voz agora. Nós temos o poder agora.”. A ex-ginasta

ainda diz, no documentário Atleta A, que finalmente se sente orgulhosa de ser uma atleta

olímpica ao poder dizer “você não me controla mais” e que “tem sido muito difícil se sentir

orgulhosa de algo. Então, dizer isso, para mim, é tipo: ‘tudo bem. Acho que estou melhorando.

Já sinto orgulho de algo.” (Fig. 18)

O jurídico, através da decisão da juíza Aquilina, passa a empoderar as

sobreviventes, lhes concedendo voz e fazendo com que suas histórias fossem ouvidas, não

somente pelo agressor, mas “por todo o mundo”.

Rachael Denhollander volta a falar para o documentário Atleta A sobre os efeitos

do julgamento:

Toda vez que a Angela 71 se levantava e dizia “A sobrevivente XYZ vai depor, e

decidiu falar publicamente...” Era sempre uma declaração muito poderosa. Pois

significava que elas se sentiam seguras o suficiente. E significava que elas conseguiam

se livrar da vergonha e passá-la pro agressor.

controle sobre esses recursos” (Cornell Empowerment Group, 1989), ou simplesmente um processo pelo qual as

pessoas têm controle sobre suas vidas (Rappaport, 1987), participações democráticas na vida de sua comunidade

e uma compreensão crítica do meio que as cerca (PERKINS e ZIMMERMAN, 1995 p. 570 apud BERTH, 2019,

p. 25).

70

Disponível em: Netflix – Atleta A.

71

Angela Povilaitis, procuradora geral assistente de Michigan no caso Larry Nassar.


88

E esse empoderamento pode ser visto nos números de sobreviventes que iriam

depor inicialmente, 88, e o número final de depoimentos, mais de 150. Nas palavras de Felman,

o julgamento tem

[...] uma proposta consciente e deliberada de transformar uma massa incoerente de

traumas privados (os secretos, escondidos e silenciados traumas individuais dos

sobreviventes) em um trauma coletivo, nacional e público, e então fornecer uma cena

pública para uma coleção de abusos individuais e traumas privados; tornar público e

transformar politicamente em público abusos que foram vividos como privados e

ocultados pelos sujeitos individuais traumatizados, que se tornaram, em suas próprias

percepções, os “portadores do silêncio” (FELMAN, 2014, p. 26-27).

Apesar da autora estar falando do julgamento de Eichmann 72 , tenente-coronel do

regime nazista, um dos principais organizadores do Holocausto, suas colocações podem ser

transpostas para o julgamento de Nassar e o trauma das sobreviventes, que por anos foram

“portadoras do silêncio”, mesmo quando escolhiam falar a respeito, eram silenciadas. Fato

mostrado pelo testemunho de Kyle Stephens, que foi desacredita pelo pai quando contou aos

12 anos que sofria abusos desde os 6. “[...] Para o meu pai, alguém que faz acusações falsas e

tão hediondas é o pior tipo de pessoa. Sua crença de que eu mentira se infiltrou na fundação do

nosso relacionamento.”

3.3 O CORPO

[...] o corpo da testemunha é o mais conclusivo local

de memória do trauma individual e coletivo – é

porque o trauma torna o corpo relevante e porque o

corpo, testemunhando o trauma, torna-se relevante

no tribunal de uma maneira nova [...]

Shoshana Felman, 2014, p. 29.

Ao analisar o caso do julgamento de Eichmann, Felman observa o incidente que

ocorre durante um dos depoimentos. Uma das vítimas, K-Zetnik, conhecido escritor que

produziu densa literatura sobre Auschwitz, colapsa no julgamento e entra em coma. Para a

autora, o colapso pode ser compreendido como “uma parábola ao colapso da linguagem no

encontro entre direito e trauma” e que isso revela a “profunda falência das palavras, a

72

O tenente-coronel foi sequestrado por agentes do Mossad em 1960 e levado para Jerusalém para julgamento,

sendo condenado em 1961 a morte por enforcamento.


89

importância do corpo da testemunha no tribunal.” (2014, p. 29). As palavras não dão conta do

trauma e da dor.

Aqui é preciso discordarmos de Felman quando diz que o “trauma é

precisamente o que não pode ser visto” (2014, p. 116), porque através do corpo, o trauma se

apresenta e é colocado em tela. Lágrimas, sorrisos nervosos, tremores, suspiros, pausas,

abraços, soluçõs, a impossibilidade de dizer. Tudo isso é o trauma se mostrando através do

corpo, podendo ser visto.

No epílogo de The scandal of the speaking body: Don Juan with J. L. Austin or

seduction in two languages 73 de Shoshana Felman (2003), Judith Butler postula que não há ato

de fala sem o corpo, não somente pelo corpo representar o meio pelo qual se fala, com seu

aparato físico, mas porque “o corpo significa o que não é intencional, o que não é admitido no

domínio da ‘intenção’, o desejo primário, o inconsciente e seus objetivos” (p. 119 – tradução

minha, grifos da autora). Segundo Bocchi (2019, p. 23), Felman irá estabelecer uma articulação

entre teoria do ato de fala e a psicanálise, “lançando mão da sedução constitutiva da complexa

e escandalosa relação entre corpo e linguagem: o ato de fala, enquanto ato de um corpo falante,

é sempre desconhecedor daquilo que produz, pois, sujeito às determinações inconscientes.”

Dessa maneira, a concepção de Felman para sujeito se assemelha com a posição da AD em

conceituar o sujeito discursivo. Contudo, nesse momento, nos interessa manter nosso foco no

corpo como aquilo que fala além das palavras, que fala quando as palavras já não são suficientes

para exprimir sentidos.

Butler vai sustentar que quando corpos se juntam em espaços públicos, incluindo

os virtuais, estão

exercitando um direito plural e performativo de aparecer, um direito que afirma e

instaura o corpo no meio do campo político e que, em sua função expressiva e

significativa, transmite uma exigência corpórea por um conjunto mais suportável de

condições econômicas, sociais e políticas, não mais afetadas pelas formas induzidas

de condição precária (2018, p. 11-12).

Na análise da autora, os corpos que se juntam estão em assembleias,

manifestações e protestos, contudo, se pensarmos no Movimento #metoo e em suas implicações

no real da história, temos corpos que se juntam com um propósito único: terem voz e barrarem

o assédio. O mesmo ocorre no julgamento. As sobreviventes se juntam, dando forças umas às

outras para testemunharem e contarem suas histórias. Os corpos se juntam pra denunciar a

73

Livro ainda sem tradução para o português. Numa tradução livre: O escândalo do corpo falante: Don Juan com

J. Austin ou sedução em duas línguas.


90

própria precariedade e reivindicar condições melhores de vida, de serem vividos.

“Ações corporificadas de diversos tipos significam, de uma forma que não são,

estritamente falando, nem discursivas nem pré-discursivas” (BUTLER, 2018, p. 11). Já vimos

isso acontecer quando falamos de corpografia, no item 2.2.1, em que o corpo se inscreve no

colchão, como nas figuras 10 e 11. No entanto, podemos evocar outros momentos em que o

corpo fala, como no julgamento de Larry Nassar, onde as sobreviventes podem ser vistas

chorando, tremendo, perdendo a voz, engasgando. As palavras cessam ou faltam, o corpo toma

pra si a obrigação de falar. E ele diz, com soluços, lágrimas, palavras entrecortadas, vaias,

aplausos, ombros encolhidos, suspiros...

Evocamos um primeiro momento em que o corpo fala com dor, pesar, que

extravasa o lugar de ouvinte do julgamento e gera movimento, lágrima, palma, vaia (Fig. 18).

A advogada de defesa Shannon Smith relata no documentário “No coração do ouro: o escândalo

da seleção americana de ginástica” o clima do julgamento. “Normalmente, não há pessoas

aplaudindo. Pessoas vaiando os advogados de defesa. [...] É quase como se esse tipo de explosão

fosse inevitável”. A juíza Rosemarie Aquilina também falou a respeito “Foi muito doloroso.

Você podia ver em seus rostos. As pessoas estavam tremendo, chorando... apenas em ver

Nassar.”

Essa explosão de que fala Smith lembra a fala de Primo Levi (1947, p. 6), “a

necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou entre nós, antes

e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento [...]”. Essa violência, explosão

que sai em forma de vaias, choros e gritos, é o corpo falante, falando tudo aquilo que as palavras

não são capazes de expressar.

Figura 19 – Sobrevivente chorando

Fonte: No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 2019, 1:03:13 74 .

74

Disponível em: HBO.


91

Mas nem só por/de dor se expressa o corpo. Em outros momentos, como na

figura 19, podemos ver as sobreviventes se abraçando, como que num ato de consolo e

congratulação pela força do outro e própria. Um abraço que parece tirar um peso que há anos

era carregado. Um abraço de alívio. Um abraço de luta. Um abraço de resistência.

Figura 20 – Angela e Rachael se abraçando.

Fonte: No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 2019, 1:15:06 75 .

Aquilina vai, ao final do testemunho de Rachael lhe dizer: “Obrigada. Você

construiu um exército de sobreviventes e é uma general de cinco estrelas. Você fez tudo isso

acontecer. Você fez todas essas vozes importarem.” É muito expressivo que a juíza use uma

analogia armamentista para falar do grupo sobreviventes, uma vez que exércitos são, em sua

maioria, compostos por homens e vistos como símbolo de virilidade. Ao atribuir às

sobreviventes esse status, Aquilina mostra que a “batalha” foi ganha, elas venceram a luta com

seu exército. Coroa Rachael com a mais alta parente do Exército dos EUA, general de 5 estrelas.

E isso aparece estampado no rosto de Rachael, que sorri (Fig. 21).

75

Disponível em: HBO.


92

Figura 21 –Rachael sorrindo.

Fonte: No Coração do Ouro: O Escândalo da Seleção Americana de Ginástica, 2019, 1:14:48 76 .

O sorriso da sobrevivente e a fala da juíza percorrem o cômodo e há uma salva

de palmas. Os testemunhos terminaram. As sobreviventes ganharam voz. Nesse dia, o abismo

tinha uma ponte.

3.4 IMPACTO NO REAL DA HISTÓRIA

As análises se focam nos EUA porque foi onde o Movimento surgiu, mas isso

não significa que ele não tenha ressoado pelo mundo e causado deslocamentos no real da

história, saindo do digital e irrompendo barreiras globais. Para Marci Hamilton, diretora da

CHILD USA 77 , “o Movimento #metoo será bem sucedido se se transformar em mudanças

sociais e legais. E isso pode ser visto ao redor do mundo. Buscamos aqui reunir uma pequena

porção desse impacto, destacando os que vemos como mais relevantes e que têm direta conexão

com a pesquisa apresentada.

O Google criou o projeto “Me Too Rising”, uma página com um globo em que é

possível navegar pelos países e dias vendo quais as notícias mais lidas e procuradas sobre o

movimento. Há uma barra na parte inferior que mostra do dia 01 de outubro de 2017 até o dia

atual a interação de usuários com o mote. 78

76

Disponível em: HBO.

77

Grupo de ideias sem fins lucrativos dedicado à pesquisa interdisciplinar para melhoria de leis e políticas públicas

a fim de acabar com o abuso e negligência infantil.

78

Ver: https://metoorising.withgoogle.com/


93

Na China 79 , o Partido Comunista Chinês impõe um sistema draconiano de

censura, que dita o que a população pode pesquisar e acessar. Redes sociais como Facebook,

Twitter, Instagram e até mesmo Youtube não estão disponíveis no país. A censura chega até

mesmo a bloquear conteúdos históricos do próprio país, como a Praça da Paz Celestial que não

pode ser ensinado nas escolas e nem encontrado na internet na China. Contudo, não é como se

os chineses não tivessem suas redes correspondentes. Há redes como Baidu, Weibo e Wechat,

que são todos controlados rigidamente pelo governo. Com controle tão severo parece

impossível qualquer tipo de ciberativismo, uma vez que palavras e frases são rapidamente

bloqueadas e proibidas. No entanto, o Movimento #metoo penetrou as barreiras da censura e,

liderado por alunas universitárias, e se mostra um problema singular para o Partido Comunista,

uma vez que este é baseado em princípios de igualdade. O movimento começou formalmente

em 1º de janeiro de 2018, quando Luo Xixi, uma ex-aluna de doutorado, publicou sua história

alegando ter sido agredida sexualmente em 2004 por seu orientador. Pouco depois, a censura

entrou vigor e tirou do ar a maioria dos compartilhamentos e postagens sobre o movimento.

Contudo, as mulheres começaram a usar palavras que soassem similares a metoo, como arroz

/mǐ/ mais coelho /tù/ criando a hashtag coelhinhas de arroz, numa tradução livre. As ativistas

passaram também a postar fotos rotacionadas de mensagens relato para dificultar a censura.

Após a história de Luo Xixi viralizar, milhares de alunos peticionaram suas universidades para

a criação de medidas contra o assédio. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Centro de

Estudos de Gênero de Guangzhou em 2018, 70% das alunas já sofreu assédio sexual, tendo

apenas 4% denunciado às autoridades. A porcentagem tão baixa de denúncias se dá ao fato de

não haverem leis e nem ao menos a definição de agressão sexual nas leis do país. Graças ao

Movimento #metoo, o novo código civil chinês explicita que empregadores não podem assediar

funcionárias, e é possível agora processar por assédio sexual e discriminação de gênero. Houve

a adição de uma definição para assédio sexual no código do país e a Suprema Corte diz que,

pela primeira na história chinesa, é possível processar alguém por assédio sexual.

Na Índia 80 , sob a hashtag #metoo e perfil @IndiaMeToo criado pela repórter

Rituparna Chatterjee, as mulheres começaram a narrar suas histórias de assédio, em sua maioria,

cometidos por homens conhecidos que as estupraram em encontros, as molestaram enquanto

dormiam, as beijaram forçadamente, fingiam não entender consentimento e abusavam delas

79

Ver: The Patriot Act, temporada 2, episódio 1.

80

Ver: BOOMERANG NEWS. How the #metoo cases that shook India have played out. 11 out. 2020. Disponível

em: https://www.bloomberg.com/news/features/2019-10-12/-metoo-in-india-one-year-later-how-cases-playedout-for-accusers.

Acesso em: 29 nov. 2020.


94

psicologicamente. Algumas histórias se destacaram com mulheres acusando jornalistas

famosos, repórteres, políticos e homens influentes no país. Contudo, dois anos após o

movimento irromper em 2018, o que podemos ver é uma conduta bem diferente do que

aconteceu nos EUA, com homens processando mulheres por difamação, vítimas buscando

exílio nos EUA, e muitos homens permanecendo em seus cargos. Não é possível dizer que não

houve mudanças, segundo Karuna Nundy, advogada da Suprema Corte Indiana, “#metoo

ajudou algumas pessoas a perceberem o quão espalhado assédio e agressão são [...] são essas

intervenções que mudam não só a vida de indivíduos, mas também o sistema para todo mundo”.

Na Austrália 81 não há leis que protegem liberdade de imprensa e liberdade de

expressão, então alguns acusados de condutas impróprias, como os atores Geoffrey Rush e

Craig McLachlan processaram jornais por difamação após notícias de processos contra eles

serem divulgados por emissoras. Rush ganhou a causa e recebeu 2,9 milhões de dólares

australianos em recompensa. Isso provocou um efeito negativo nas denúncias, fazendo com que

mulheres tivessem medo de denunciar. Quando o Movimento irrompeu, era ilegal na Tasmânia

e no Território do Norte que vítimas de assédio sexual se identificassem na mídia, até mesmo

jornalistas que identificassem sobreviventes poderiam ser indiciados. Em resposta, a hashtag

#LetHerSpeak foi criada pela organização voluntária End Rape On Campus Australia e o

conglomerado de mídia News Corp, advogando pela mudança de leis no país. Agora a Tasmânia

reformulou a chamada gag law (lei da mordaça) e o Território do Norte elaborou propostas de

legislações para concertar o problema.

Voltando aos EUA, um ano após o Movimento irromper, a Comissão pela

igualdade trabalhista dos EUA reportou aumento de 50% de processos de assédio sexual em

relação ao ano anterior. A Time’s Up criou um fundo de defesa legal para ajudar mulheres em

situação de vulnerabilidade e, de acordo com o The New York Time, já atendeu mais de 3.500

pessoas nos 50 estados estadunidenses. Harvey Weinstein, acuso de abuso por mais de 100

mulheres, foi julgado e condenado a 23 anos de prisão. O magnata foi expulso da Academia de

Artes e Ciências Cenográficas, demitido da Weinstein Company e sua esposa o deixou. Larry

Nassar foi condenado a até 175 anos de prisão e as pessoas envolvidas no caso, que tentaram

abafar as denúncias, também foram punidas. Como a ex-treinadora Kathie Klages que

testemunhou não saber dos abusos do médico, tendo sido contradita após denúncias serem

entregues ao tribunal. O famoso rancho de treinamento olímpico Karolyis foi fechado. Os dois

81

Ver: WASHINGTON POST STAFF. Opinion #metoo is at a crossroad in America. Around the world, it’s just

beginning. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/opinions/2020/05/08/metoo-around-theworld/?arc404=true.

Acesso em: 29 nov. 2020.


95

atletas envolvidos no estupro de Steubenville foram condenados à prisão.

No Brasil, em 2020 foi fundado o Me Too Brasil, um movimento busca ser uma

voz importante no país contra o assédio sexual. A iniciativa conta com o envolvimento do

Projeto Justiceiras, da Agência Model Brasil e tem apoio da Comissão da Diversidade Sexual

e de Gênero da OAB-SP. De acordo com o site Deutsche Welle (DW), há mais de 3.600

voluntárias, entre advogadas, psicólogas e assistentes sociais, estão à disposição para atender

vítimas.

É justamente através desse deslocamento para além das fronteiras do digital que

a #metoo passa a afetar o real da história; ela revela o Movimento #metoo como acontecimento

discursivo. Há uma desestabilização de uma série de enunciados sobre a violência sexual contra

mulher, um deslocamento da naturalização dessa violência, que passam a ser interditados e

sentidos outros passam a surgir, através de novos lugares de enunciação e novos rituais

enunciativos, por meio de testemunhos de práticas misóginas e sexistas.


96

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tomando como aporte teórico a Análise de Discurso de linha francesa, a presente

pesquisa buscou analisar a #metoo como acontecimento discursivo. Para tal, foi preciso

retroceder na história e contar como o Movimento surgiu, em 2006, com a ativista negra Tarana

Burke e o que fez com que, em 2017, houve uma nova circulação de sentidos para ele.

Compreendemos que, graças às condições de produção da época e o próprio lugar de

enunciação de Burke, o Movimento só encontrou voz de maneira global em 2017 com um tweet

de Alyssa Milano.

No primeiro capítulo buscamos centrar o leitor no percurso que faremos e dar

uma ideia geral do que seria desenvolvido no decorrer da dissertação. O aporte teórico foi sendo

introduzido aos poucos, tendo os conceitos basilares da AD, como sujeito, discurso e

acontecimento discursivo, apresentados. Passamos então à memória, conceito fundamental para

fundarmos nosso percurso de análise, tendo abordado memória discursiva, memória metálica e

memória digital. Com Orlandi (1999), pudemos dizer que a hashtag #metoo apresenta a

capacidade de conferir ao quadro da história a força da memória, constituindo um registro da

relação social e histórica. E tendo seu funcionamento consequências no que concerne à memória

histórica e à memória social, atreladas à memória digital.

Não é possível falarmos de memória sem que o silêncio seja abordado uma vez

que a memória se constitui de silêncios. E esse silencio será várias vezes trazido à tona em

nossas análises, através de testemunhos e análises de tweets. Sendo também reconhecido no

apagamento de Burke na revista Time.

Ao abordarmos as condições de produção em que o Movimento (re)surge,

analisamos diversas falas do ex-presidente estadunidense Donald Trump, o efeito das marchar

e movimentos ciberativistas e o caso Steubenville, que se materializa em tweets de agressores

e testemunhas, e permitiu que os culpados pelo estupro de uma menor pudessem ser julgados.

Com Zoppi-Fontana (2017) reconhecemos que Milano inaugura um novo ritual

enunciativo com a hashtag e através de meios de identificação que interpelam outras mulheres

a contarem suas histórias, agora através de um advento digital, tecnológico. Evocamos também

a noção de lugar de enunciação que permite problematizar uma posição historicamente

silenciada que colocou (e ainda coloca) mulheres à margem da sociedade. É na articulação


97

entre o digital, o novo ritual enunciativo e as condições de produção, que os testemunhos de

sobreviventes passam a circular, dentro e fora desse digital, inaugurando novos lugares de

enunciação.

Enquanto acontecimento discursivo, o funcionamento da hashtag #metoo

permite o aparecimento de novos lugares de enunciação diretamente ligados ao “original”, o

que também possibilita diferentes e novos gestos de interpretação, novas posições-sujeito, que

apresentam formações discursivas outras, diferentes associações de memória e distintas

relações com a exterioridade. O ritual enunciativo está, aqui, diretamente ligado à prática

enunciativa e ao digital, ou seja, ele estabelece uma nova prática discursiva, uma forma outra

de dizer e circular dizeres que não eram possíveis em um momento histórico distinto.

É nesse momento de nossas análises que buscamos, na esteira de Dela-Silva

(2008), cunhar o termo acontecimento midiático, similar ao acontecimento jornalístico da

autora, mas que entende olha para aqueles acontecimentos mais amplos, não necessariamente

jornalísticos, aqueles que ocorrem na mídia, de grande impacto, massiva veiculação, extensa

duração e, porque não, extenso alcance. São aqueles que transitam entre os diferentes suportes

midiáticos, encontrando eco neles para reverberarem. E, apesar de conceituarmos como algo

distinto, o acontecimento midiático tem os mesmos efeitos de sentidos do jornalístico, como

efeito de realidade, efeito de verdade, universalidade, observação e denúncia da realidade

social.

No segundo capítulo buscamos analisar o vídeo This is mt assault story #metoo,

que acompanha uma mulher chamada Kate que conta, em primeira pessoa, como foi interpelada

pelo Movimento e interpelou outras. É neste capítulo também que abordaremos de forma mais

aprofundada as formas de constituição, formulação e circulação de sentidos no digital, lançando

mão de Orlandi e Dias.

Os processos de identificação que ocorrem no vídeo são fulcrais para

entendermos o funcionamento discursivo do Movimento. Evidenciamos que os processos de

identificação ultrapassam a marca de gênero na convocação original de Milano, “Se todas as

mulheres [...]”, e proporcionam a identificação de homens também com o mote.

Passamos então a análise das frases escritas no colchão que Kate coloca no

jardim, o mesmo colchão em que ela fora estuprada e manteve em sua sala de jantar até ser

interpelada pelo Movimento e, com frases encorajadoras como “sinta-se livre para

compartilhar”, interpela outras a compartilharem suas próprias histórias de violência e

silenciamento.

Foi de extrema importância, antes de seguirmos, abordamos o funcionamento do


98

Twitter, rede social ímpar para nossas análises, e da hashtag como instrumento tecnológico.

Não é somente por Milano ter usado a rede social para lançar o mote, mas porque através da

plataforma, as pessoas foram interpeladas e milhões de testemunhos compartilhados. O uso do

advento conferiu ao mote uma circulação mundial e quebrou o silenciamento de milhares de

mulheres que puderam contar suas histórias e, mais importante, serem ouvidas.

Em nosso percurso passamos pelos conceitos de serialização e corpografia,

ambos de Cristiane Dias. Ao chegarmos nos conceitos de memória metálica, de Orlandi (2014)

e memória digital, de Dias (2018) nossa abordagem se aprofunda em entender como esses dois

conceitos funcionam e se relacionam entre si e com nosso material de análise.

No último capítulo abordamos a instância do luto que se transformam em luta

através da resistência e dos testemunhos. Os testemunhos se mostram ferramenta importante

para perpassar o trauma sofrido pelas sobreviventes do médico Larry Nassar, objeto de análise

neste momento da dissertação. Ao analisarmos os testemunhos das sobreviventes, observamos

o corpo falante que se inscreve no discurso.

Os testemunhos puxam a instância do jurídico para as análises e mostram a

dimensão dessa face na memória coletiva e como o coletivo é impactado pelos vereditos, que

são “decisões em torno do que admitir na memória coletiva e do que transmitir da memória

coletiva” (FELMAN, 2014, p. 117).


99

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2020.


106

ANEXOS

ANEXO A – Manifesto Das Francesas

O estupro é crime. Mas a paquera insistente ou desajeitada não é crime, nem o

galanteio é uma agressão machista. Depois do caso Weinstein, houve uma legítima tomada de

consciência a respeito da violência sexual exercida contra as mulheres, especialmente no

ambiente profissional onde alguns homens abusam do seu poder. Ela era necessária. Mas essa

libertação da palavra se volta hoje em seu contrário: somos intimadas a falar como se deve, a

calar o que incomoda e aquelas que se recusam a se curvar a tais injunções são consideradas

traidoras, cúmplices! Mas essa é uma característica do puritanismo: emprestar, em nome de um

suposto bem geral, os argumentos da proteção das mulheres e de sua emancipação para melhor

acorrentá-las a um estatuto de eternas vítimas, de pobres coisinhas sob o domínio dos falocratas

demônios, como nos bons e velhos tempos da feitiçaria. Na verdade, o #metoo provocou na

imprensa e nas redes sociais uma campanha de denúncia e de acusação pública de indivíduos

que, sem que lhes tenha sido dada a oportunidade de responder ou de se defender, foram

colocados exatamente no mesmo nível que os agressores sexuais. Essa justiça expeditiva já fez

suas vítimas, homens castigados no exercício de sua profissão, forçados a se demitir, etc.,

quando seu único erro foi ter tocado um joelho, tentado roubar um beijo, falar sobre coisas

“íntimas” em um jantar profissional ou ter mandado mensagens com conotação sexual a uma

mulher cuja atração não era recíproca. Essa febre para mandar os “porcos” ao matadouro, longe

de ajudar as mulheres a conquistar sua autonomia, serve na verdade aos interesses dos inimigos

da liberdade sexual, dos extremistas religiosos, dos piores reacionários e daqueles que

acreditam, em nome de uma concepção substancial do bem e da moral vitoriana que os envolve,

que as mulheres são seres “à parte”, crianças com rosto de adultos, que pedem para ser

protegidas. Diante delas, os homens são instados a fazer seu mea culpa e a encontrar, no fundo

de sua consciência retrospectiva, um “comportamento deslocado” que poderiam ter tido dez,

vinte ou trinta anos atrás, e do qual deveriam se arrepender. A confissão pública, a incursão de

autoproclamados promotores na esfera privada, eis o que instala um clima de sociedade

totalitária.

A onda expiatória parece não ter limites. Aqui, censuramos um nu de Egon

Schiele em um cartaz; ali, pedimos a retirada de um quadro de Balthus de um museu alegando


107

que seria uma apologia da pedofilia; na confusão entre o homem e a obra, pedimos a proibição

da retrospectiva de filmes de Roman Polanski na Cinemateca e conseguimos o adiamento

daquela dedicada a Jean-Claude Brisseau. Uma universitária considera Blow Up, o filme de

Michelangelo Antonioni, “misógino” e “inaceitável”. À luz desse revisionismo, John Ford

(Rastros de Ódio), e até mesmo Nicolas Poussin (O Rapto das Sabinas) ficam numa situação

delicada.

Os editores já estão pedindo a algumas de nós para tornarmos nossos

personagens masculinos “menos sexistas”, para falar sobre sexualidade e amor com menos

desmedida ou ainda para fazer com que os “traumas sofridos pelos personagens femininos”

sejam deixados mais evidentes! À beira do ridículo, um projeto de lei na Suécia quer impor um

consentimento expressamente notificado a todo candidato a uma relação sexual! Com um pouco

mais de esforço, dois adultos com vontade de se deitar juntos terão de assinalar com

antecedência, por meio de um “aplicativo” de seu telefone celular, as práticas que aceitam e

aquelas que recusam, devidamente listadas em um documento.

Ruwen Ogien defendia uma liberdade de ofender indispensável à criação

artística. Do mesmo modo, nós defendemos uma liberdade de importunar, indispensável à

liberdade sexual. Hoje estamos suficientemente avisadas para admitir que a pulsão sexual é por

natureza ofensiva e selvagem, mas também somos suficientemente clarividentes para não

confundir paquera desajeitada com agressão sexual. Acima de tudo, estamos conscientes de que

a pessoa humana não é monolítica: uma mulher pode, no mesmo dia, dirigir uma equipe

profissional e desfrutar de ser o objeto sexual de um homem, sem ser uma “vagabunda” ou uma

cúmplice vil do patriarcado.

Ela pode zelar para que seu salário seja igual ao de um homem, mas não pode se

sentir traumatizada para sempre por que alguém se esfregou nela no metrô, embora isso seja

considerado crime. Ela pode até considerar isso como expressão de uma grande miséria sexual,

ou como um não-acontecimento.

Como mulheres, não nos reconhecemos nesse feminismo que, para além da

denúncia do abuso de poder, assume as feições do ódio contra os homens e a sexualidade. Nós

acreditamos que a liberdade de dizer não a uma proposta sexual não existe sem a liberdade de

importunar. E consideramos que é preciso saber responder a essa liberdade de importunar de

outra maneira que não seja se fechar no papel de presa. Para aquelas dentre nós que escolheram

ter filhos, pensamos que é melhor criar nossas filhas de modo que sejam informadas e

conscientes o suficiente para poderem viver plenamente suas vidas sem se deixar intimidar ou

culpar. Os acidentes que podem afetar o corpo de uma mulher não necessariamente atingem sua


108

dignidade, e não devem, por mais difíceis que às vezes possam ser, necessariamente fazer dela

uma vítima perpétua. Porque não somos redutíveis ao nosso corpo. Nossa liberdade interior é

inviolável. E essa liberdade que apreciamos não existe sem riscos ou responsabilidades.

Fonte: EL PAÍS. A íntegra do manifesto assinado por Catherine Deneuve. 12 jan. 2018. Disponível em:

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