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da por apenas duas peças contrastantes: céu, com<br />
um belo solo de oboé sobre cordas em contínuo e<br />
um vocalize de contralto; e inferno, mais sombria,<br />
com um coro ao fundo. A voz, em alguns momentos<br />
cheia de solenidade, ganha ritmo e dramaticidade,<br />
enquanto a cena se passa na Rua Grande,<br />
principal reduto do antigo comércio, via da nossa<br />
primeira experiência cotidiana de multidão. Rua<br />
de passantes, de movimentos “sem destino certo,<br />
exceto o destino cumprido por estômagos de usuras<br />
cheios”, onde se misturam mendigos e aleijados,<br />
focados ao chão, solitários em meio a “esse<br />
corredor de ecos, de buzinas pútridas”, de uma<br />
Troia massacrada cujas “mutiladas manhãs expõem-se<br />
nas vitrines,/de sapatos humanos mendigando<br />
pés,/de vestidos humanos mendigando<br />
peitos,/de saias humanas mendigando sexos...”.<br />
Toda a composição da sequência é bem feita, a superposição<br />
funciona, causando impacto e nos jogando<br />
sem rodeios no chão de experiência dessa<br />
poesia, a cidade de pedra que se destrói e se torna<br />
o viveiro da solidão impotente do poeta diante do<br />
caos do mundo.<br />
Dois momentos importantes em que a imagem<br />
conseguiu indicar traços centrais da poética.<br />
Uma é a sequência da velha cadeira de balanço na<br />
praia. Visão de delírio que faz parte do universo<br />
de Nauro, repleto de combinações absurdas, as<br />
imagens conflitantes dos oxímoros, carregadas de<br />
indefinição entre realidade e imaginação. A cadei-<br />
ra evoca o passado, o retrato do poeta jovem, a<br />
mãe, o retrato do pai, figura nuclear, cuja morte<br />
foi o deflagrar de uma crise existencial profunda,<br />
que o homem buscou aplacar estabelecendo um<br />
pacto com a poesia e a bebida, catalizadores dos<br />
infernos referidos pelo diretor. A outra remete ao<br />
sexo, uma das fontes por onde passa sua linguagem,<br />
suas visões e associações. A cena é a da atriz<br />
Flávia Teixeira, uma loura linda, nua, encostada<br />
na parede em pedra de um velho casarão à noite.<br />
O contraste cria um belo efeito. A tomada é lenta<br />
e segue sob a voz anasalada do poeta: “Nenhuma<br />
sede sobre a seda seda/o sofrimento aos lábios<br />
desse drama...” A lascívia aparece aí como ela surge<br />
nos poemas, de forma abrupta.<br />
Um tema central a que Frederico não se furtou<br />
e, para alguns, até exagerou, foi na abordagem<br />
da longa experiência de Nauro com a bebida. Começa<br />
pelos botecos do mercado da Praia Grande,<br />
local emblemático, para depois enveredar numa<br />
ronda pelos bares. O poeta bebe acelerado e o<br />
semblante vai mudando. Outros traços deste rosto<br />
de tanta expressividade aparecem, da alegria espontânea<br />
a tratar todos pela designação de “meu<br />
poeta”, aos primeiros arroubos confessionais,<br />
quando o álcool já embebe a consciência e os demônios<br />
saem em profusão pela boca e pelos olhos,<br />
até tomarem-lhe o corpo todo. “Por quantos dias<br />
levarei esta cruz? Por quantos dias sofrerei estes<br />
sóis? Céu azul, ó céu azul/rogai pelos nus, pelos<br />
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