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mais em seus próprios demônios na desordem do<br />
quarto e, em seguida, totalmente arrumado esperando<br />
um rei imaginário. “Perfeitamente, Alteza.<br />
Quanta honra, Alteza!”. Ou na fantástica cena do<br />
culto dionisíaco efetuado no quarto da pensão, o<br />
foco de luz lilás na figura de Eiras nu empunhando<br />
a máscara de Dionísio e o símbolo de Baco a<br />
entoar cânticos indígenas (sim, em Bressane é<br />
possível uma tomada do Rio de Janeiro quando<br />
Nietzsche sente a plenitude da natureza; Wagner,<br />
já morto, testemunhando sua loucura e outras liberdades<br />
mais). Nesse momento, Nietzsche é Dionísio<br />
e também O Crucificado. O ciclo se fecha. Há<br />
ainda uma pungente surpresa final: fotos de Nietzsche<br />
jogado na cama, alheio, são superpostas de<br />
maneira a sugerir ligeiros movimentos. O olhar<br />
é perdido, profundamente perdido. A inércia do<br />
corpo era a contrapartida do vulcão.<br />
Mesmo atendo-se a um momento da vida do<br />
filósofo, o olhar de Bressane é complexo, estabelecendo<br />
um jogo com a própria forma nietzscheana,<br />
com sua escritura. Da utilização dos textos nada<br />
digo porque pouco conheço, apesar de ser clara a<br />
escolha de alguns temas centrais de sua filosofia.<br />
Note-se apenas como o aforisma, sempre mobilizado<br />
por Nietzsche, encontra equivalente no gosto<br />
do cineasta pelos planos longos condensados<br />
em torno de uma ideia, em permanente fuga do<br />
centro ordenador, explorando situações. Ambos<br />
trabalham de uma forma a não submeter suas<br />
linguagens aos sistemas explicativos. Filme sofisticado,<br />
lento, para ser sorvido em pequenos goles,<br />
sem pressa. O que não teve um amigo, ao afirmar<br />
categoricamente: “Um saco! Isto não é cinema!”.<br />
Como diria Nietzsche, talvez lhe falte utilizar as<br />
narinas para percebê-lo.<br />
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