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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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Velhice<br />

Descobri que eu estava velho há muitos anos, num metrô de São Paulo. Foi assim:<br />

o vagão estava lotado e não havia assento vago. Não liguei. Eu era jovem, pernas<br />

e braços fortes, podia fazer a viagem de pé, segurando um balaústre. Aí comecei a<br />

observar metodicamente o rosto das pessoas, coisa que gosto muito de fazer. Os<br />

rostos revelam o mundo. Muitas crônicas me apareceram no ato de observar um<br />

rosto. Uma vez, tomando o meu café da manhã num hotel em Uberaba, fui<br />

comovido pelo rosto de um garçom já meio velho, magro, calvo, daqueles que não<br />

cortam o cabelo de um lado, para com seus fios compridos tentar disfarçar<br />

(inutilmente) a calva lisa. Aquele rosto me comoveu. E, quase num segundo,<br />

apareceu na minha imaginação a trama de um conto que nunca escrevi. É sobre<br />

um garçom que trabalhava num hotel onde pilotos e aeromoças pernoitavam. Ele<br />

se apaixona por uma delas e a sua vida passa a girar em torno dos dias em que<br />

sua escala de voos fazia com que aquela que ele amava secretamente dormisse no<br />

hotel. O garçom, servindo o café da manhã, dela se aproximava e respirava fundo<br />

para sentir o seu perfume. Até saiu pelas lojas de perfume, à procura daquele...<br />

Terminado o café, ele recolhia copos e xícaras. Aí, furtivamente, na cozinha,<br />

quando ninguém estava olhando, comia e bebia os restinhos que haviam sobrado...<br />

Era como se ele a estivesse beijando. Isso o excitava... Mas, voltando ao metrô. De<br />

repente, meus olhos encontraram uma moça que também olhava para mim, com<br />

um discreto sorriso nos lábios. Foi um momento de suspensão romântica: eu<br />

olhando para ela, ela olhando para mim. Aquele poderia ser o início de uma estória<br />

de amor por acontecer. Muitas estórias de amor se iniciam em estações. Mas<br />

então, naquele momento de suspensão romântica, ela fez um gesto delicado:<br />

sorrindo, levantou-se e me ofereceu o lugar... Entendi então o sentido do seu<br />

sorriso: olhando para mim, ela se lembrava do seu avô, velhinho tão querido...<br />

Compreendi que estava velho. Foi um momento de revelação. Desde então, o meu<br />

pensamento volta sempre para a velhice.<br />

Amor de velho<br />

Simone de Beauvoir, no seu livro sobre a velhice, diz que há uma coisa que não se<br />

perdoa nos velhos: que eles possam amar com o mesmo amor dos moços. Aos<br />

velhos está reservado outro tipo de amor, amor pelos netos, sorrindo sempre<br />

pacientes, olhar resignado, espera da morte, passeios lentos pelos parques, horas<br />

jogando paciência, cochilos em meio às conversas. Mas, quando o velho ressuscita,<br />

e no seu corpo surgem de novo as potências adormecidas do amor, ah! os filhos se<br />

horrorizam e dizem, como explicação: “Ficou caduco”. Amor de mocidade é bonito,<br />

mas não é de se espantar. Jovem tem mesmo é de se apaixonar. Romeu e Julieta é

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