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Ostra Feliz Nao Faz Perola - Rubem Alves

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Pequeno Príncipe que partira. Meu filho pequeno, nas minhas ausências e com<br />

saudades, ia para o meu escritório vazio para sentir o cheiro do fumo de cachimbo.<br />

O cheiro do cachimbo era o que ele tinha de mim. O cheiro do cachimbo era, para<br />

ele, um sacramento. Sacramento é uma presença na qual mora uma ausência. A<br />

única coisa que recebi de meu pai como herança foi um peso de papel de vidro<br />

esverdeado. Quando olho para o peso de papel não vejo peso de papel,<br />

insignificância. Vejo o rosto do meu pai.<br />

Palavra que apunhala<br />

Recebi um e-mail em inglês que me foi enviado por uma senhora, Lola Degenszjn,<br />

nascida na cidade do Cairo, Egito, mas residindo no Brasil há muitos anos. Ela se<br />

desculpou dizendo que lia português mas não escrevia bem. Disse-me que gostava<br />

das coisas que eu escrevia. Mas uma única palavra que usei foi uma punhalada na<br />

sua alma. A palavra, bem... Eu escrevia para as minhas netas e descrevia como era<br />

a casa pobre em que vivi, quando menino. Fogão de lenha, luz de lamparina, sem<br />

geladeira (não havia eletricidade), as comidas eram guardadas num armário de<br />

tela chamado guarda-comida. Foi essa palavra banal que escrevi sem nenhuma<br />

emoção que lhe deu a punhalada. “With this I was stabbed”, ela disse. E como que<br />

se lembrando, escreveu o nome do guarda-comida em francês: “garde manger”... A<br />

punhalada aconteceu porque, ao ler a palavra, ela se viu menina, na sua casa no<br />

Cairo. Lá havia um guarda-comida... Tanto tempo se passara! Ela até se esquecera<br />

de tal objeto. Ao ler a palavra “guarda-comida” no meu texto ela foi devolvida a<br />

uma cena da sua infância: ela, menina, na cozinha de sua casa... Eu e a Lola,<br />

agora, nos tornamos amigos ligados por essa palavra banal, “guarda-comida”...<br />

Variações<br />

Milan Kundera observou que “as variações eram a forma favorita de Beethoven ao<br />

final da sua vida”. Variação é ficar repetindo a mesma coisa, cada hora de um jeito.<br />

Por que é que se repete? Por ser bonito. A gente quer a repetição do beijo, do<br />

doce, do poema, do pôr do sol... A alma não quer ir para a frente. Quem quer ir<br />

para a frente é porque ainda não encontrou. Está ainda à procura. Quem quer<br />

repetir é porque já encontrou o que procurava. Acho que é por causa disso que, faz<br />

muito tempo, estou sempre a repetir as mesmas coisas, cada hora de um jeito.<br />

A alma é música<br />

Quero ouvir música: aquelas que fazem parte da minha alma. Pois a alma, no seu

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