21.12.2021 Views

Orion 7

international sci-fi and fantasy web-zine (novels, comics. illustrations)

international sci-fi and fantasy web-zine (novels, comics. illustrations)

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Epidermia by Luis Filipe Silva (ilustração de José Cromagnon)<br />

Epidermia<br />

A pele é o órgão mais extenso do<br />

corpo humano, e a epiderme o seu<br />

escudo protetor. Tradicionalmente<br />

composta por células unidas entre si<br />

sem substâncias intracelulares, a<br />

epiderme apresenta uma barreira<br />

eficiente à penetração por microorganismos<br />

e substâncias estranhas.<br />

Enquanto camada que contacta com o<br />

exterior, repleta de células mortas, seria<br />

de esperar inatividade. Mas esta doença<br />

impõe a sua vontade, cria vida e desejo<br />

onde estes não existem.<br />

«Doença de Hipógenes», in Indice<br />

Nacional Terapêutico,2030<br />

Joana encontra-se novamente em fase de escamação<br />

e terá de perder preciosos minutos a esfregar o creme nas<br />

lesões. Estão em chama viva, as chagas de Hipógenes,<br />

incitando-a a uma fome que não pode satisfazer,<br />

conspurcando os braços, as pernas, o tronco e barriga até<br />

à púbis. O creme demora a fazer efeito, mas Joana não<br />

pode esperar mais. Cobre as zonas afetadas com adesivos,<br />

não obstante o risco que será desfazer-se deles nas casas de<br />

banho do escritório, assombrado por outros doentes.<br />

Puxar para cima a camisola que agora veste, abrir a camisa<br />

interior hermética, tirar as luvas, expor a pele ao ar.<br />

Estremece só de pensar. Não será a primeira vez, mas<br />

representa sempre um risco. Depois estender a toalha<br />

sobre a bacia, despir a roupa, arrancar os adesivos, voltar a<br />

vestir-se. Trancará a casa de banho para maior segurança e<br />

grande arrelia das colegas. Já teve chatices, mas restam-lhe<br />

poucas alternativas. Não pode usar a desculpa das chagas<br />

para justificar o atraso. Ninguém lhes é imune, e entradas<br />

tardias são penalizadas.<br />

Viaja nos transportes apinhados com uma<br />

disciplina férrea que a faz suar. Respira compassadamente.<br />

Não pode ceder um milímetro ao ardor. Não pode coçarse<br />

nem ajustar a roupa, nem contorcer o tronco como<br />

fazem as crianças. Perderá o controlo. Denunciando ali,<br />

em público, o seu estado, e receber como resposta a<br />

censura inclemente dos estranhos. Os ataques intensos<br />

despoletam a mesma situação em corpos alheios. Partilha<br />

de feromonas, dizem os cientistas, ainda que ela prefira a<br />

explicação popular, que a doença comunica entre si.<br />

Quantos daqueles passageiros terão de mergulhar em<br />

banhos de sais ao cair a noite por sua causa? Há que<br />

reforçar a posologia – o ciclo anda errático.<br />

A pomada começa a surtir efeito finalmente após<br />

o virar da hora, e respira com mais calma. Precisa de<br />

marcar consulta com a terapeuta. Os pensamentos<br />

esvaem-se aos poucos. As fantasias abandonam-na. Leu<br />

imenso sobre o assunto, troca experiências anónimas com<br />

terceiros. A vontade de correr para os braços alheios. De<br />

esfregar lesões contra lesões e deixar-se ir. Mergulhar num<br />

doce mar de carne, como melaço sobre geleia. O que<br />

jamais fará, impedida pela sensatez e pelo medo das<br />

consequências. Mas a doença é também maldita neste<br />

sentido. Apodera-se das fragilidades. Corrói a<br />

determinação. Abafa a perseverança. Cansa, manter-se<br />

sempre vigilante, dia após dia, todas as horas, minuto após<br />

minuto. Oxalá ficasse em casa, na redoma, mas não pode.<br />

Não lhe permitem. E ela não lutou durante tanto tempo<br />

para desistir assim.<br />

Mas novamente se interroga: é a pele que me faz<br />

querer, ou reflete apenas o meu grande desejo?<br />

–oOo-<br />

A menina chora, sentada no soalho do corredor,<br />

junto à porta aberta do apartamento contíguo. Joana<br />

reconhece de imediato a filha da vizinha, com os seus oito<br />

ou dez anos, da qual por vezes se tem de desviar ou esperar<br />

que passe, não obstante os intervalos combinados pelo<br />

condomínio. Seguindo de mão dada com a mãe, nos seus<br />

devidos e óbvios resguardos, e lhe acenava por vezes,<br />

exibindo com orgulho a máscara animada. Desta vez,<br />

sozinha, sem mãe, e a pele exposta. Joana fita os braços<br />

alvos, a pele brilhante do pescoço, as canelas desnudas sob<br />

os calções, e estremece de pavor. Olha para a sua porta,<br />

tranquila e expectante do outro lado daquela barreira de<br />

carne exposta. Encosta-se à parede, esticando a cabeça para<br />

espreitar para dentro do apartamento. Não há<br />

movimento. A mãe dela não se encontra visível. Que<br />

irresponsabilidade, pensa.<br />

A menina apercebe-se da sua presença e vira a cara<br />

para cima. Joana não consegue evitar: perante tanta pele<br />

assim à mostra, dá um passo atrás, não obstante encontrarse<br />

protegida da cabeça aos pés.<br />

– Senhora Joana? – pergunta a miúda com voz<br />

sumida. Tinha os olhos inchados do choro, nariz e boca<br />

ranhosos, uma visão lamentável. Mas a pele muito branca<br />

e limpa. Sem qualquer mancha rosácea nem amarela da<br />

doença.<br />

– Porque choras?<br />

– Senhora Joana, é a minha mãe – solta ela<br />

arduamente entre fortes soluços, apontando para trás.<br />

Joana estremece. Teria a mulher… derretido? O<br />

pensamento enregela-lhe o sangue. Deseja enfiar-se em<br />

13

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!