Orion 7
international sci-fi and fantasy web-zine (novels, comics. illustrations)
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em segurança, com e sem parceiros – recorrendo a<br />
aparelhos, disciplina mental, fatos protetores de corpo<br />
inteiro extrassensíveis, duplos animatrónicos com pele<br />
sintética. Opções para celibatários – controlar o desejo,<br />
canalizar a energia sexual para resultados positivos, sessões<br />
de hipnotismo. Opções para engravidar – análises,<br />
aconselhamento e realização da obrigatória fertilização in<br />
vitro. E por fim, muito discretamente, quase como uma<br />
ideia fugaz, a possibilidade de adoção.<br />
Joana pensa nas infindáveis narrativas de todas as<br />
eras sobre o amor desenfreado, o abandono do sexo, a<br />
preocupação da gravidez adolescente, o controlo exercido<br />
por religiões e dogmas sociais. Tudo inútil, tudo arcaico e<br />
impraticável, na nova realidade. Não há reprodução sem<br />
assistência. Não há intimidade sem mediação. À parte os<br />
conhecidos pactos de suicídio entre amantes, que, em<br />
desespero, trocam a vida por um único momento de real<br />
contacto, aqueles casais morrerão sem conhecerem a<br />
textura um do outro, o cheiro, a união física. Respira<br />
fundo, fecha os olhos, encerra os pensamentos, e por fim<br />
é a sua vez.<br />
A funcionária fita-a de cima a baixo e fala sem<br />
rodeios.<br />
– Vai ser muito difícil que consiga uma aprovação.<br />
– Ouça, como já expliquei – repete Joana com<br />
muita paciência -, a… minha amiga… conhece a criança<br />
mas a mãe dela… está muito doente. Às portas da morte.<br />
A minha amiga só quer garantir o bem-estar da criança e<br />
tornar-se tutora legal. A filha tem vivido com ela<br />
durante… este período.<br />
– Isso não é assim tão simples. Tempos houve em<br />
que os orfanatos estavam cheios. A situação é outra e<br />
temos de zelar pelo melhor ambiente da criança. Damos<br />
preferência a casais com condições estáveis e de preferência<br />
com outros filhos. Há que dotar a criança com as melhores<br />
aptidões de convívio social enquanto a saúde lhe permite.<br />
Imagine-se na pele dessa criança, sem pais biológicos e<br />
prestes a perder a mãe adotiva. Os novos regulamentos<br />
nem teriam permitido que fosse atribuída a uma isolada.<br />
Joana recebe este comentário como o golpe de um<br />
chicote.<br />
– Nem mesmo se a criança se sentir bem na<br />
presença desta pessoa?<br />
– Primeiro, deve retornar aos nossos serviços, onde<br />
lhe será feita uma avaliação psicológica completa e<br />
avaliação do estado de saúde. Queremos saber se foi bem<br />
tratada, se tem uma alimentação correta, se não tem<br />
sintomas de abuso. A partir daqui, serão aplicados os<br />
melhores critérios para escolher os candidatos.<br />
– E a minha amiga não teria preferência?<br />
– Só em circunstâncias muito especiais – a<br />
funcionária fita Joana duramente através da transparência.<br />
Há pessoas que não precisam de máscaras repelentes para<br />
afastar os outros. – Seria preciso que o elo entre elas se<br />
mantivesse. Sabe que isso nem sempre é verdade? Algumas<br />
destas crianças são máquinas de sobrevivência.<br />
Manipuladoras das emoções. Agarram-se ao primeiro<br />
abrigo.<br />
– É uma menina! E já passou por muito – Joana<br />
quase berra. É mais do que claro que não existe «amiga»<br />
alguma.<br />
– São mais resistentes do que pensa. Ainda bem<br />
para elas – a funcionária faz uma pausa. – Se a mãe atual<br />
assinar uma recomendação, podemos incluí-la no processo.<br />
– Receio que a mãe não esteja… em condições de<br />
assinar nada.<br />
– Então, trâmite normal – a funcionária encolhe<br />
os ombros. – Lamento, é igual para todos. – E antes de<br />
Joana sair, lança um aviso: – Diga à sua «amiga» que é<br />
contra a lei ficar com uma criança sem a devida tutelagem.<br />
Só para não se por com ideias…<br />
Regressando a casa num estado de angústia, Joana<br />
pondera no rumo a tomar. Quem lhe poderá dar<br />
conselhos? Decide recorrer à terapeuta. Talvez esta<br />
conheça alguém que mexa cordelinhos. Passa o jantar<br />
absorta em pensamentos. Para piorar a situação, a miúda<br />
está particularmente embirrenta, teimando em dar-lhe a<br />
mão e tentando tirar-lhe as luvas, até Joana perder a<br />
paciência e soltar um berro. E depois, imediatamente<br />
arrependida, diz que teve um dia complicado. E apesar de<br />
não ser intenção original, conta resumidamente à miúda a<br />
conversa na repartição. Afinal, precisa de desabafar.<br />
Foi um erro. Beatriz começa a fazer beicinho e a<br />
ficar muito agitada.<br />
– Eu não quero voltar! Não quero sair de ao pé de<br />
ti!<br />
– Minha querida, não, nunca deixaria que te<br />
levassem – mas a miúda refugia-se na casa de banho e<br />
Joana perde a boa parte da noite a acalmá-la. Deita-se<br />
exausta e tem sonhos agitados, incoerentes. Está de volta<br />
ao orfanato, mas este parece ser a casa da vizinha, e de<br />
dentro do quarto, caída no chão, vê-se a si mesma falar<br />
com uma menina no corredor, mas não é uma menina, é<br />
um cão grande, maior do que ela, que desata a ladrar<br />
ferozmente.<br />
Acorda, embebida em suor. Não são latidos mas<br />
pancadas na porta. Na porta do quarto.<br />
– Beatriz?… – ainda a dormir, levanta-se, e de<br />
repente percebe que tirara a camisa durante a noite por<br />
causa do calor. Olha em volta mas não a encontra. As<br />
pancadas sucedem-se. – Beatriz, que se passa? – Assustada,<br />
destranca a porta. Encontra a miúda em igual estado do<br />
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