Orion 7
international sci-fi and fantasy web-zine (novels, comics. illustrations)
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oblívio, satisfazendo o desejo, rezando para conseguir<br />
aguentar mais um dia. A síndrome introduziu-se no código<br />
genético e transmite-se pela reprodução. Já não se trata de<br />
uma doença mas de uma nova condição do ser humano, com<br />
a qual este aprendeu a coabitar.<br />
–oOo-<br />
Prepara um pequeno leito ao canto da sala – pois<br />
o apartamento é minúsculo e apertado, próprio de quem<br />
vive em isolamento permanente, e não lhe restam espaços<br />
livres -, repleto de almofadas e mantas, e até pendura um<br />
lençol do teto a rodeá-lo, em jeito de tenda, para aligeirar<br />
a situação e também conter a libertação de pele. A menina,<br />
nada diz, apenas a fita com ar sério, e recolhe-se dentro<br />
daquele espaço, calada.<br />
A meio da quinta noite, Joana acorda cheia de<br />
remorsos e transita a miúda para o sofá. Afinal, é onde já<br />
passa os dias, diante da televisão, só desviando os olhos<br />
para perguntar pela mãe.<br />
Joana ainda não teve coragem de lhe contar,<br />
inventando desculpas com médicos e hospitais e que em<br />
breve a visitarão. Tem telefonado várias vezes para a<br />
esquadra mas o polícia com quem falou nunca está<br />
disponível nem lhe devolve os recados. Compenetra-se aos<br />
poucos que não haverá desenvolvimentos. Beatriz é agora<br />
problema seu. Se não a quiser, terá de denunciá-la, por si<br />
mesmo, à assistência social.<br />
Ao dar-lhe as boas noites, comete um gesto<br />
inesperado: afasta-lhe o cabelo da cara. É verdade que tem<br />
a mão enluvada, mas a reação instintiva surpreende-a e<br />
assusta-a. Mas Beatriz sorri, por fim, talvez o primeiro<br />
sorriso daqueles dias, e aninha-se no leito improvisado.<br />
Joana regressa para o quarto, cuja porta tranca, e<br />
despe as proteções, com o coração a bater acelerado. Mas<br />
não de susto. Nessa noite, não tem pesadelos.<br />
Pediu uma licença no emprego, julgando que a<br />
situação se resolveria logo, mas não consegue prolongá-la,<br />
e na manhã seguinte, levanta-se mais cedo para preparar<br />
comida e deixa-a numa embalagem com instruções para a<br />
menina.<br />
– Se precisares de falar comigo, liga o telefone e diz<br />
o meu nome, que marcará automaticamente – mais um<br />
objeto em que tocará, mas esse facto já não cria tanta<br />
ansiedade em Joana. – Volto ao final da tarde. Não faças<br />
disparates e come quando for hora certa.<br />
– Obrigado, Joana – o «senhora» tinha<br />
desaparecido algures pelo caminho. – Hoje poderemos<br />
visitar a mamã?<br />
Joana engole em seco.<br />
– Talvez, minha querida. Vou falar com os<br />
médicos.<br />
A menina sorri, não com total alegria. Leva os<br />
dedos aos lábios, num beijo, e depois pousa-os na máscara<br />
facial de Joana, por cima da bochecha direita. Um gesto<br />
natural, aparentemente instintivo. Despedir-se-ia assim da<br />
mãe? Depois a miúda dá meia volta e vai aos pulinhos para<br />
o sofá, pois o programa favorito já começou.<br />
A cabeça de Joana segue num turbilhão, absorta<br />
do mundo, e até se senta demasiado perto de uma senhora<br />
no comboio, a qual a ataca imediatamente com<br />
impropérios de susto e indignação. Desfazendo-se em<br />
desculpas, Joana procura outro lugar.<br />
No escritório, ela, que nunca se abre sobre a sua<br />
vida, aborda pela primeira vez uma colega com filhos da<br />
mesma idade de Beatriz. E em troca de informação, conta<br />
o que lhe sucedeu.<br />
– Pois a mim parece-me que já te afeiçoaste –<br />
indica a colega com olhar conhecedor. – Vai ser bom para<br />
ti. É quando surge o motivo que temos vontade de lutar.<br />
Não podes passar a vida com medo.<br />
– Ter medo e ter cautela são dois extremos. Um<br />
deles ajuda-nos a viver. O outro não – Joana não se lembra<br />
de onde ouviu isto, embora admita para si mesma que não<br />
é totalmente verdade. Desconfia ainda que a colega<br />
também percebeu isto.<br />
– Bem, só te digo que não é fácil criar uma criança.<br />
Em particular, se não estava nos teus planos. E para quem<br />
é… – mira Joana de cima a baixo – tu sabes.<br />
Uma isolada, percebe Joana. Mas persiste e coloca<br />
as perguntas que tem de saber.<br />
Quando regressa a casa, ao final do dia, encontra<br />
Beatriz sentada no chão com um livro aberto diante de si.<br />
Não, não é um livro – percebe Joana – mas um álbum de<br />
fotografias. E não é o único, pois outros estão empilhados<br />
ao seu lado.<br />
A menina levanta os olhos, espantada. Não traz<br />
qualquer proteção, apenas uma camiseta velha de Joana<br />
que a cobre até aos pés, e da qual estes espreitam, pequenos<br />
e delicados, com os dedinhos enrolados sobre o linóleo. Os<br />
álbuns parecem gigantes e pesados, comparados com a sua<br />
figura, como tijolos. O rosto de Beatriz ilumina-se, os<br />
olhos faíscam de felicidade e a boca abre-se num sorriso. E<br />
Joana fica imóvel, transfigurada. É como se, tendo salvado<br />
uma criatura da natureza, a visse pela primeira vez na sua<br />
glória. Mas não uma criatura dos bosques sombrios nem<br />
das vielas sujas – antes, um ser celeste, cheio de luz, com<br />
os olhos claros, o cabelo muito fino e leve e louro, a pele<br />
imaculadamente branca. Isenta de pecados.<br />
É esta a sensação dominante enquanto vê a miúda<br />
correr para si, de braços abertos. Não recua, deixa-se ser<br />
abraçada. Beatriz fita-a do nível da cintura, mordendo o<br />
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