Orion 7
international sci-fi and fantasy web-zine (novels, comics. illustrations)
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lábio inferior, cheia de energia. É absolutamente linda,<br />
pensa Joana. Nenhum mal lhe tocou ainda, não foi<br />
conspurcada pelo mundo. O coração aperta-se num nó.<br />
Percebe, naquele instante, que ela precisa de quem a<br />
proteja. De quem a defenda da humanidade. De quem a<br />
ensine e crie. Precisa de uma mãe.<br />
Ajoelha-se, para ficar ao nível dela. A miúda faz<br />
uma careta.<br />
– Não gosto da tua máscara, é muito feia.<br />
Joana sente, de repente, vergonha da sua<br />
preferência por máscaras escuras e padrões agressivos, mas<br />
não tem outras. Mostrar o rosto é uma forma de<br />
aproximar os outros, e ela sempre quis, a vida toda, mantêlos<br />
à distância. Agora, que precisava de transmitir o<br />
sentimento oposto, não tem forma de o fazer.<br />
–Amanhã comprarei das transparentes, prometo –<br />
diz à miúda, que parece ficar satisfeita. Estica a mão para<br />
agarrar a de Joana, por cima da luva, e puxá-la atrás de si.<br />
Ela quer que Joana veja os álbuns.<br />
Não terá sido difícil descobri-los, mas implica que<br />
Beatriz andou a abrir armários na sua ausência, e sabe-se<br />
lá o que mais. Estarão ao seu alcance substâncias perigosas?<br />
Joana percorre mentalmente um inventário de objetos<br />
aguçados e produtos de limpeza, talvez demasiado<br />
acessíveis, e fica preocupada. Sim, tem de mudá-los de<br />
local.<br />
As fotos, já velhas e amarelecidas pois não foram<br />
impressas em papel de boa qualidade, mostram dois<br />
adultos e uma menina num quintal, ao lado de bicicletas<br />
e bolas e um cão saltitante, em várias poses contínuas,<br />
como instantâneos de um filme que nunca existiu. Joana<br />
desejaria ter esse filme, ou imagens em movimento. Tudo<br />
o que guarda deles, na memória, são aquelas figuras de<br />
pedra, inanimadas.<br />
Joana pousa o dedo sobre a menina encavalitada<br />
no pescoço do homem.<br />
– Esta sou eu, com quatro anos. Estes são os meus<br />
pais. Este é o Tobias – toca na figura do cão. Nunca soube<br />
que destino lhe deram. – Tinha um pouco de medo dele,<br />
era grande e derrubava-me. Vivíamos nesta casa – vira as<br />
páginas. Conhece perfeitamente a sequência. É a sua única<br />
herança do passado. – Esta era a nossa rua. E aqui, os<br />
nossos vizinhos da casa em frente… Tinham galinhas,<br />
sabes o que são? Eu não parava de correr atrás dos<br />
pintainhos.<br />
Os álbuns cobrem vários anos. Joana não está<br />
convicta de todas as histórias que conta, talvez algumas<br />
lembranças se misturem com histórias ouvidas, ou com<br />
sonhos. À custa de tanto recordar, é possível que certos<br />
pormenores se tenham alterado. Nunca teve quem a<br />
corrigisse mais tarde, quem tivesse estado presente. Mas<br />
agora pouco importa, pois Beatriz parece ouvir com<br />
delícia. O nosso passado também existe na forma como o<br />
contamos.<br />
– Onde estão os teus pais?<br />
Joana suspira. Existe uma página, do último<br />
álbum, incompleto, que responde a essa pergunta; uma<br />
derradeira fotografia que fez questão de guardar. Há muito<br />
que não a vê.<br />
– Sabes o que são os derretidos?<br />
Beatriz fita-a com um certo temor e indica que sim<br />
com a cabeça.<br />
– A mamã disse que é quando uma pessoa se<br />
agarra a outra e as duas têm uma doença, e começam a<br />
mergulhar uma na outra. Mergulham e mergulham e<br />
ficam misturadas para sempre. Já não se podem separar<br />
mais. Ela fez bonecos com a minha plasticina com várias<br />
cores e mostrou.<br />
– É isso mesmo, Beatriz. É por isso que não podes<br />
nunca, mas nunca, tocar nas pessoas que estejam<br />
desprotegidas. Entendes? Tens de usar sempre roupa e<br />
máscara e todas as proteções. Nem um dedo, nem a ponta<br />
do nariz, nem o teu umbigo lindo – faz cócegas à miúda<br />
para ela não ficar amedrontada com a conversa –, nada<br />
pode tocar na pele de outra pessoa. Só se também tiver<br />
proteções como tu.<br />
– Mas eu podia tocar nos outros meninos… na<br />
escola… e na mamã – diz ela, acabrunhada, olhando Joana<br />
de soslaio. – Em ti é que não.<br />
Joana sente a acusação como um choque na<br />
espinha.<br />
– Eu… ah, podes porque és pequena. E eles são<br />
pequenos. Mas tens de praticar, para quando cresceres<br />
mais um pouco. E eu ajudo-te a praticar. Para não te<br />
descuidares nunca.<br />
– Não quero crescer… – resmunga. Joana sorri.<br />
– Eu também não queria, mas cresci. Crescemos<br />
todos, não se pode fazer nada – afaga-lhe as costas. – Não<br />
é assim tão mau, Beatriz. É bom crescer.<br />
A miúda aponta para as fotografias.<br />
– Porque é que estes adultos não usam proteção?<br />
Joana esquecera-se do assunto principal.<br />
– Porque a doença ainda não existia, meu amor.<br />
Era diferente, no passado. As pessoas podiam<br />
cumprimentar-se e abraçar-se e… – sorri. – E serem<br />
felizes, assim, umas com as outras. Sem terem medo. Mas<br />
um dia apareceu, e… e tudo mudou. Ninguém sabia o que<br />
se passava, foi… difícil. Até se descobrir a natureza da<br />
doença e se criarem regras… houve muitos derretidos.<br />
– Também os teus pais?<br />
Joana suspira.<br />
– Sim, também os meus pais. E os de muitos<br />
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