meninos e meninas como eu. Eu tinha a tua idade… – eu tinha a tua idade e acordei com os gritos e aquilo estava no chão da sala, às voltas, membros contorcidos a agitarem-se sem nexo, sugestões de ombros e ancas misturados e fora de sítio, uma massa de carne sem molde, a guinchar das bocas abertas de cada lado, e nos olhos, nos olhos agora soltos e descaídos, o pavor, o medo infinito daqueles dois seres aprisionados para sempre… A miúda encara-a com ar triste. – A mamã dizia que os meus pais verdadeiros… estão no Céu. E do Céu, olham para baixo, para cuidar de mim. É onde estão os teus? A rapariga, incapaz de falar, diz que sim com a cabeça. Chora, e o instinto diz-lhe para proteger a criança das suas lágrimas, mas depois lembra-se que não a afetarão. – Joana – pergunta Beatriz, muito baixinho, talvez adivinhado a resposta –, a mamã foi para o Céu, não foi? Joana não resiste, e desatar a soluçar abertamente. Abana a cabeça, tentando encontrar a voz. Fala, tens de responder à miúda! – Sim, minha querida. Tenho muita pena. Beatriz baixa a cabeça e fica muito calada. E depois reage assim, como se chegasse a uma conclusão: – Não faz mal. Está com os meus pais. E com os teus – vira-se para Joana, e abraça-a pelo pescoço. Ela cinge o pequeno ser contra si. A miúda não chora. É como se a criança confortasse o adulto. – Agora, tu és a minha mamã, Joana. És a minha mamã. Nessa noite, ao deitar Beatriz e arrumar os álbuns novamente na gaveta do armário do quarto – terá de ter uma conversa com a miúda sobre limites, e até este pensamento lhe traz um sorriso, por ser tão próprio de uma mãe –, Joana detém-se e senta-se na beira da cama, e abre o último tomo. Ali, a meio, a encerrar abruptamente uma série de fotografias normais, encontra-se a única cópia que conseguiu obter, entre súplicas e subornos a um assistente de armazém, da recolha efetuada na sua casa. É uma fotografia profissional, contendo objetos acessórios para ajudar a dimensionar o ser enquadrado. É a derradeira imagem em vida dos seus pais. Teria preferido um melhor ângulo, ou mais nitidez. A confusão de articulações e membros oculta vários pormenores, em particular do que lhes restava dos rostos, ali espalhados ao longo da massa disforme como se fosse, afinal, uma mera figura de cera derretida. A mãe ao alto – denunciada pelo nariz pequeno -, o pai ao fundo, com as sobrancelhas espessas. De resto, irreconhecíveis, a caricatura grotesca saída de um pesadelo, que podia confundir-se com arte abstrata. Diz-se que, naquele estado, a sobrevivência é curta. Diz-te também o contrário, e que as vítimas dessa época foram eutanasiadas por desconhecimento e medo. Os arquivos são secretos, e ninguém está muito disposto a descobrir. Não teve a sorte de Beatriz. Havia que colocar as crianças tresmalhadas em instituições seguras, isoladas do contacto com terceiros e longe das garras daqueles que já as chamavam de filhos do demónio. Julgavam-nos casos únicos e que assim conteriam o problema. Em breve a realidade revelaria o engano. E por fim, surgiram simplesmente demasiadas crianças e poucas famílias disponíveis para acolhimento. Saltou de instituição em instituição, mantida pelas benesses estatais até se tornar adulta e ganhar alguma autonomia. Anos de dura sobrevivência e ensinamentos básicos: não confiar de ninguém, não depender de nada. Jamais mudar os hábitos. Manter os outros à distância. E agora, esta situação: cometeu um erro? –oOo- –oOo- Leva Beatriz às compras noutra vila, para não encontrarem conhecidos e evitar perguntas arriscadas. Experimentam roupas e resguardos de vários feitios, e voltam de sacos cheios. Na vinda do emprego, Joana escolhe brinquedos e jogos e outras distrações que, asseguram-lhe os vendedores, agradam a meninas da idade de Beatriz. Começa a fazer planos, tentando deixá-la num centro de dia – a miúda precisa do ensino, e é demasiado nova para ficar em casa. Joana tem-se declarado doente no emprego, e depois tirou dias de férias, mas é um recurso limitado e há que encontrar uma solução definitiva. Mas não pode deixá-la em nenhuma escola sem a documentação legítima. Não é mãe nem tutora da criança. Uma tarde decide passar pela repartição de planeamento familiar. Dezenas de pessoas encapuçadas, algumas com transparências mas a maioria com figuras e padrões nas máscaras, viram-se quando entra. Crianças de várias idades perseguem-se mutuamente pelo amplo espaço de atendimento. Apenas vê casais. Ela é a única solitária. A sua condição de isolada surge visível como uma marca na testa. Talvez pretendendo uma gravidez anónima, dizem os olhares, não necessariamente críticos mas indubitavelmente opinativos. Detesta-os de imediato, bem como ao local, que sempre evitou. Se não fosse pela Beatriz, teria dado meia-volta. Vários painéis animados repetem sem parar os serviços disponíveis ao público. As várias opções para sexo 18
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