Orion 7
international sci-fi and fantasy web-zine (novels, comics. illustrations)
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outros orfãos do seu passado dificil. A animosidade<br />
institucional, sabe-se que cria cúmplices entre os fracos, e<br />
dívidas que jamais se esquecem. O rapaz oferece-lhes<br />
guarida numa casa do campo, um frigorifico cheio, e<br />
desaparece ser fazer perguntas.<br />
Joana não nutre ilusões. A perseguição não<br />
terminará tão facilmente, hão de encontrá-las. Sem meios<br />
próprios, não poderão fugir para sempre. Esta aventura<br />
terá o fim próprio das narrativas reais, e não da ficção.<br />
Mas só queria mais algum tempo com Beatriz.<br />
Mais alguns dias, mais algumas noites, mais alguns<br />
momentos, mais alguns abraços. Ela conseguira penetrar<br />
nas suas antigas defesas, e agora não podia entregá-la, ficar<br />
de braços caídos.<br />
Que mãe não lutaria pela vida dos seus filhos?<br />
– Não me deixes, mamã – pediu-lhe a criança<br />
naquela noite, e nas noites seguintes, agarrada a si como<br />
ninguém a agarrara. A sua solidão, o fardo de tantos anos,<br />
derrubada por fim por um toque leve como uma pena.<br />
Beatriz repete agora a súplica, assustada com as pancadas<br />
na porta da entrada, que Joana barricou com alguns<br />
móveis mas rapidamente cederá. Senta-se no chão frio de<br />
louça da casa de banho, e deixa cair o martelo, a arma<br />
ridícula que escolheu para se defender. – Não quero ir.<br />
– Escuta, tens de ser forte. Vais para um sítio bom,<br />
tratarão de ti. Terás uma vida feliz – embora no íntimo<br />
imaginasse experiências incontáveis, análises sem fim e<br />
uma vigilância que jamais terminaria. Se de facto há a<br />
possibilidade de uma cura, e esta residir na criança, Beatriz<br />
jamais será livre.<br />
Ouvem-se berros do exterior. São vários homens.<br />
Um estrondo sonoro avisa que a barricada começou a<br />
ceder.<br />
– Não estejas triste, mamã – a menina pousa as<br />
mãos no rosto de Joana e limpa-lhe as lágrimas. – Vamos<br />
ficar juntas.<br />
E ao dizê-lo, levanta a camiseta, puxando-a ao<br />
nível do peito, expondo a barriga.<br />
O olhar de Joana é imediatamente atraido para a<br />
zona do umbigo. Ali, expandindo-se na forma de pétalas,<br />
ainda ténue mas inconfundível como uma flor do mal,<br />
encontra-se uma mancha rosácea com escamas.<br />
– Filha… – exclama Joana, atónita. Como é<br />
possível? Ontem lhe dei banho, não havia sinal nenhum. Ela<br />
sempre averigou todos os centímetros de pele com a maior<br />
das cautelas. Aquilo não cresce assim tão rapidamente, e há<br />
mais sintomas… – Quando…<br />
A miúda cala-a, levando os dedos aos seus lábios.<br />
É um toque tão leve quanto determinado. E a expressão<br />
da criança… repleta de uma paz infinda, de uma entrega<br />
total. Transfigurada, Joana fica presa naquele olhar.<br />
O que disse a mulher? Algumas destas crianças são<br />
máquinas de sobrevivência.<br />
– Vamos ficar juntas para sempre. Não tenhas<br />
medo, mamã.<br />
E descendo as mãos para a blusa de Joana, começa<br />
a desabotar os botões, um por um.<br />
Joana encara a míuda, mas já não encontra uma<br />
criança frágil diante de si. Em vez dela, ao ver-se<br />
encurralado, manifestou-se um ser antigo, uma força<br />
cúmplice e resoluta que descobriu a única saída possível,<br />
expressa numa simples pergunta.<br />
A rapariga aquiesce, um subtil gesto.<br />
E com os dedos a tremerem, não querendo pensar<br />
para não perder a coragem, apressa-se a ajudar a miúda.<br />
–oOo-<br />
–oOo-<br />
Dizem que estavam tranquilas, em paz, e houve<br />
inclusive quem relatasse ter presenciado sorrisos – se tal era<br />
possível naquela confusão de formas – ou mesmo um<br />
ronronar gutural, como um gato satisfeito. Era obviamente,<br />
tarde de mais, mas não lhe poderão dar o destino dos<br />
outros. Há muito por aprender – por exemplo, por que<br />
motivo foi o processo tão rápido.<br />
Quanto àquele novo ser, recolhido no canto<br />
daquele espaço, ficou absorto. Para ele, não existe o medo,<br />
não se sente aprisionado. É produto de uma escolha mútua,<br />
e resultado da entrega total.<br />
Se a síndrome lhes uniu os corpos para sempre, já<br />
o amor – essa outra doença da qual nunca se encontrou<br />
cura – lhes tinha, anteriormente, unido as almas num laço<br />
inquebrável e eterno.<br />
Até a solidão tem um fim, para quem foi bastante<br />
só, durante bastante tempo.<br />
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