Orion 7
international sci-fi and fantasy web-zine (novels, comics. illustrations)
international sci-fi and fantasy web-zine (novels, comics. illustrations)
- TAGS
- orion
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
primeiro dia, coberta de baba e ranho de tanto chorar.<br />
Joana ajoelha-se.<br />
– O que foi, querida? – leva a mão à cara da<br />
miúda, mas interrompe-se de imediato. Não tem luvas.<br />
Não tem capas nos braços. Está demasiado exposta.<br />
Contudo, não pode fechar a porta. Jamais se<br />
perdoaria.<br />
– Sonhei… que… me… levavam… para…<br />
orfanato – diz a menina, a custo, entre soluções fortes. –<br />
Tive… tanto… medo…<br />
– Não tenhas, querida, não tenhas. Ninguém te<br />
levará. Não te vou deixar.<br />
E então a miúda avança, e antes que Joana consiga<br />
reagir, já lhe passou os bracinhos em volta do pescoço,<br />
encostou a cara à dela, cingiu o pijama macio contra o seu<br />
peito. Está fria, e o primeiro pensamento de Joana é que<br />
terá dormido destapada, mas este pensamento é subjugado<br />
pelo grito intenso que irrompe do seu exterior e que ela se<br />
vê forçada a calar.<br />
Estás a tocar-me!<br />
Completamente subjugada pela confusão entre<br />
espanto e pânico e a necessidade de ser forte, Joana agarra<br />
a pequena figura assolada pelos espasmos do choro. Uma<br />
necessidade de apoio, porque Beatriz aperta-a com força.<br />
– Larga-me, querida – pede, assustada. Sente-se<br />
fraca, quase a desmaiar.<br />
– Não me deixes, mamã, não me deixes…<br />
– Larga-me! – e neste berro, a criança sobressaltase,<br />
dá um passo atrás, encolhe-se, ainda mais amedrontada.<br />
Joana quer pedir-lhe desculpas, mas tudo em si é<br />
descontrolo. O coração tenta sair do peito, os pulmões não<br />
recolhem ar suficiente.<br />
Espera sentir a reação da doença mas nada<br />
acontece. Não surge prurido, não crescem as manchas<br />
ávidas de outra carne. Os pêlos não caem, a pele continua<br />
intacta, não se forma secura nem pregas. Está como<br />
sempre esteve, o tom acastanhado da infeção latente mas<br />
sem o tom rubro da infeção ativa.<br />
Olha para Beatriz, que continua encolhida e<br />
distante, fitando-a com igual perplexidade e susto.<br />
Estende-lhe a mão.<br />
– Anda cá – agita os dedos. – Devagar. Aproximate.<br />
A miúda dá dois passos em frente. Joana fá-la parar.<br />
Depois, lentamente, percorre os braços destapados<br />
com a ponta dos dedos, com todas as cautelas, como se a<br />
criança estivesse em chamas. Como se esperasse encontrar<br />
o fim de si mesma naquele singelo gesto.<br />
Mas nada acontece. Nada, a não ser o despertar de<br />
uma memória. De uma carícia irmã, há muito enterrada<br />
no espírito, de quando os papéis estavam invertidos e ela<br />
era ainda uma promessa de gente.<br />
O rosto da mãe. Antes do fim.<br />
Aperta os braços rechonchudo com os dedos. São<br />
tão macios… tão lisa e pura, aquela leveza de ser… Puxa<br />
a criança para si, sentindo o coração acelerar, a vertigem a<br />
tomar conta de si. Aos poucos, cinge-a contra a sua pele<br />
exposta. Passa as mãos pelo cabelo da miúda – tão<br />
delicado! –, pelo rosto, pelos braços, nas pernas. Aquele<br />
odor a infância… Entrega-se ao momento, aceitando o<br />
risco, renegando o medo e calando a desconfiança.<br />
Há coisas sem as quais a vida deixa de ser vivida.<br />
E afinal, não há perigo. As chagas ainda não estão<br />
ativas na miúda. Ainda pode aproveitar o pequeno<br />
intervalo antes de se fechar para sempre na prisão.<br />
A epiderme é composta por várias camadas: córnea,<br />
lúcida, granulosa, espinhosa, basal, míseras fronteiras que tão<br />
facilmente se desfazem. E nelas começa e termina a sua<br />
pessoa. Termina onde começa o outro.<br />
– Joana, porque choras? Estás triste? – pergunta<br />
Beatriz, sentindo a mulher soluçar.<br />
– Não… estou feliz… – fala a custo, por não ser<br />
uma admissão fácil, nem comum. Por ser, talvez, a<br />
primeira vez que pronuncia aquela frase há muito tempo.<br />
– Não me vais deixar, mamã? – pergunta a criança<br />
com uma voz muito sumida.<br />
– Jamais te deixarei. Jamais te deixarei, minha filha.<br />
–oOo-<br />
A terapeuta dá-lhe esperanças, o médico assusta-a.<br />
A terapeuta diz que tem uma prima no Ministério<br />
e que as coisas não são como contaram a Joana. Há<br />
preferências mas podem ser contornadas se a situação se<br />
justificar. Existem precedentes, casos como o dela, que<br />
podem ser usados como argumento. Ela que não se<br />
preocupe mas fortaleça os laços com a criança. Exiba a<br />
relação filial a outros, sem receios, para servirem de<br />
testemunhas no futuro. Como se estão a dar?<br />
– Dormimos juntas – diz Joana com orgulho. –<br />
Não aguentava mais vê-la no sofá. Claro, sem perigos, pois<br />
a síndrome continua dormente. Ela gosta assim. Disse que<br />
também dormia com a mãe… anterior.<br />
– Bem – comenta a terapeuta, algo reservada -, não<br />
sei se é bom para ti, tanta intimidade súbita. Foste de um<br />
extremo ao outro, muito rapidamente, e não tens<br />
experiência… falaremos melhor na próxima sessão.<br />
Entretanto, aconselho-te que marcar consulta com um<br />
especialista, pois a miúda aproxima-se da idade limite.<br />
O especialista que a terapeuta lhe recomenda<br />
mostra-se extremamente interessado em Beatriz.<br />
– É sua filha? – pergunta, absorto no resultado das<br />
21