Orion 7
international sci-fi and fantasy web-zine (novels, comics. illustrations)
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meninos e meninas como eu. Eu tinha a tua idade… – eu<br />
tinha a tua idade e acordei com os gritos e aquilo estava no<br />
chão da sala, às voltas, membros contorcidos a agitarem-se<br />
sem nexo, sugestões de ombros e ancas misturados e fora de<br />
sítio, uma massa de carne sem molde, a guinchar das bocas<br />
abertas de cada lado, e nos olhos, nos olhos agora soltos e<br />
descaídos, o pavor, o medo infinito daqueles dois seres<br />
aprisionados para sempre…<br />
A miúda encara-a com ar triste.<br />
– A mamã dizia que os meus pais verdadeiros…<br />
estão no Céu. E do Céu, olham para baixo, para cuidar de<br />
mim. É onde estão os teus?<br />
A rapariga, incapaz de falar, diz que sim com a<br />
cabeça. Chora, e o instinto diz-lhe para proteger a criança<br />
das suas lágrimas, mas depois lembra-se que não a afetarão.<br />
– Joana – pergunta Beatriz, muito baixinho, talvez<br />
adivinhado a resposta –, a mamã foi para o Céu, não foi?<br />
Joana não resiste, e desatar a soluçar abertamente.<br />
Abana a cabeça, tentando encontrar a voz. Fala, tens de<br />
responder à miúda!<br />
– Sim, minha querida. Tenho muita pena.<br />
Beatriz baixa a cabeça e fica muito calada. E depois<br />
reage assim, como se chegasse a uma conclusão:<br />
– Não faz mal. Está com os meus pais. E com os<br />
teus – vira-se para Joana, e abraça-a pelo pescoço. Ela<br />
cinge o pequeno ser contra si. A miúda não chora. É como<br />
se a criança confortasse o adulto. – Agora, tu és a minha<br />
mamã, Joana. És a minha mamã.<br />
Nessa noite, ao deitar Beatriz e arrumar os álbuns<br />
novamente na gaveta do armário do quarto – terá de ter<br />
uma conversa com a miúda sobre limites, e até este<br />
pensamento lhe traz um sorriso, por ser tão próprio de<br />
uma mãe –, Joana detém-se e senta-se na beira da cama, e<br />
abre o último tomo. Ali, a meio, a encerrar abruptamente<br />
uma série de fotografias normais, encontra-se a única<br />
cópia que conseguiu obter, entre súplicas e subornos a um<br />
assistente de armazém, da recolha efetuada na sua casa. É<br />
uma fotografia profissional, contendo objetos acessórios<br />
para ajudar a dimensionar o ser enquadrado.<br />
É a derradeira imagem em vida dos seus pais.<br />
Teria preferido um melhor ângulo, ou mais<br />
nitidez. A confusão de articulações e membros oculta<br />
vários pormenores, em particular do que lhes restava dos<br />
rostos, ali espalhados ao longo da massa disforme como se<br />
fosse, afinal, uma mera figura de cera derretida. A mãe ao<br />
alto – denunciada pelo nariz pequeno -, o pai ao fundo,<br />
com as sobrancelhas espessas. De resto, irreconhecíveis, a<br />
caricatura grotesca saída de um pesadelo, que podia<br />
confundir-se com arte abstrata.<br />
Diz-se que, naquele estado, a sobrevivência é<br />
curta. Diz-te também o contrário, e que as vítimas dessa<br />
época foram eutanasiadas por desconhecimento e medo.<br />
Os arquivos são secretos, e ninguém está muito disposto a<br />
descobrir.<br />
Não teve a sorte de Beatriz. Havia que colocar as<br />
crianças tresmalhadas em instituições seguras, isoladas do<br />
contacto com terceiros e longe das garras daqueles que já<br />
as chamavam de filhos do demónio. Julgavam-nos casos<br />
únicos e que assim conteriam o problema. Em breve a<br />
realidade revelaria o engano. E por fim, surgiram<br />
simplesmente demasiadas crianças e poucas famílias<br />
disponíveis para acolhimento. Saltou de instituição em<br />
instituição, mantida pelas benesses estatais até se tornar<br />
adulta e ganhar alguma autonomia. Anos de dura<br />
sobrevivência e ensinamentos básicos: não confiar de<br />
ninguém, não depender de nada. Jamais mudar os hábitos.<br />
Manter os outros à distância.<br />
E agora, esta situação: cometeu um erro?<br />
–oOo-<br />
–oOo-<br />
Leva Beatriz às compras noutra vila, para não<br />
encontrarem conhecidos e evitar perguntas arriscadas.<br />
Experimentam roupas e resguardos de vários feitios, e<br />
voltam de sacos cheios. Na vinda do emprego, Joana<br />
escolhe brinquedos e jogos e outras distrações que,<br />
asseguram-lhe os vendedores, agradam a meninas da idade<br />
de Beatriz. Começa a fazer planos, tentando deixá-la num<br />
centro de dia – a miúda precisa do ensino, e é demasiado<br />
nova para ficar em casa. Joana tem-se declarado doente no<br />
emprego, e depois tirou dias de férias, mas é um recurso<br />
limitado e há que encontrar uma solução definitiva. Mas<br />
não pode deixá-la em nenhuma escola sem a<br />
documentação legítima. Não é mãe nem tutora da criança.<br />
Uma tarde decide passar pela repartição de<br />
planeamento familiar. Dezenas de pessoas encapuçadas,<br />
algumas com transparências mas a maioria com figuras e<br />
padrões nas máscaras, viram-se quando entra. Crianças de<br />
várias idades perseguem-se mutuamente pelo amplo<br />
espaço de atendimento.<br />
Apenas vê casais. Ela é a única solitária. A sua<br />
condição de isolada surge visível como uma marca na<br />
testa. Talvez pretendendo uma gravidez anónima, dizem<br />
os olhares, não necessariamente críticos mas<br />
indubitavelmente opinativos. Detesta-os de imediato,<br />
bem como ao local, que sempre evitou. Se não fosse pela<br />
Beatriz, teria dado meia-volta.<br />
Vários painéis animados repetem sem parar os<br />
serviços disponíveis ao público. As várias opções para sexo<br />
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