01.03.2013 Views

vidas_secas

vidas_secas

vidas_secas

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

suçuaranas. E nos bancos de macambira, rendilhados de<br />

espinhos, surgiam cabeças chatas de jararacas.<br />

Esfregou as mãos finas, esgaravatou as unhas sujas. Pensou<br />

nas figurinhas abandonadas junto ao barreiro, mas isto lhe<br />

trouxe a recordação da palavra infeliz. Diligenciou afastar<br />

do espírito aquela curiosidade funesta, imaginou que<br />

não fizera a pergunta, não recebera portanto o cascudo.<br />

Levantou-se. Via a janela da cozinha, o cocó de Sinha<br />

Vitória, e isto lhe dava pensamentos maus. Foi sentar-se<br />

debaixo de outra árvore, avistou a serra coberta de nuvens.<br />

Ao escurecer a serra misturava-se com o céu e as estrelas<br />

andavam em cima dela. Como era possível haver estrelas na<br />

terra?<br />

A cadelinha chegou-se aos pulos, cheirou-o, lambeu-lhe as<br />

mãos e acomodou-se.<br />

Como era possível haver estrelas na terra?<br />

Entristeceu. Talvez Sinha Vitória dissesse a verdade. O<br />

inferno devia estar cheio de jararacas e suçuaranas, e as<br />

pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas<br />

e pancadas com bainha de faca.<br />

Apesar de ter mudado de lugar, não podia livrar-se da<br />

presença de Sinha Vitória. Repetiu que não havia acontecido<br />

nada e tentou pensar nas estrelas que se acendiam na serra.<br />

Inutilmente. Aquela hora as estrelas estavam apagadas.<br />

Sentiu-se fraco e desamparado, olhou os braços magros, os<br />

dedos finos, pôs-se a fazer no chão desenhos misteriosos.<br />

Para que Sinha Vitória tinha dito aquilo?<br />

Abraçou a cachorrinha com uma violência que a descontentou.<br />

Não gostava de ser apertada, preferia saltar e espojar-se.<br />

Farejando a panela, franzia as ventas e reprovava os modos<br />

estranhos do amigo. Um osso grande subia e descia no caldo.<br />

Esta imagem consoladora não a deixava.<br />

O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se para<br />

não magoá-lo, sofria a carícia excessiva. O cheiro dele era<br />

bom, mas estava misturado com emanações que vinham da<br />

cozinha. Havia ali um osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e<br />

com alguma carne.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!