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vidas_secas

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Fabiano insistiu nos seus conhecimentos topográficos, falou<br />

no cavalo de fábrica. Ia morrer na certa, um animal tão bom.<br />

Se tivesse vindo com eles, transportaria a bagagem. Algum<br />

tempo comeria folhas <strong>secas</strong>, mas além dos montes encontraria<br />

alimento verde. Infelizmente pertencia ao fazendeiro - e<br />

definhava, sem ter quem lhe desse a ração. Ia morrer o amigo,<br />

lazarento e com esparavões, num canto de cerca, vendo os<br />

urubus chegarem banzeiros, saltando, os bicos ameaçando-lhe<br />

os olhos. A lembrança das aves medonhas, que ameaçavam com os<br />

bicos pontudos os olhos de criaturas vivas, horrorizou<br />

Fabiano. Se elas tivessem paciência, comeriam tranqüilamente<br />

a carniça. Não tinham paciência aquelas pestes vorazes que<br />

voavam lá em cima, fazendo curvas.<br />

- Pestes.<br />

Voavam sempre, não se podia saber donde vinha tanto urubu.<br />

- Pestes.<br />

Olhou as sombras movediças que enchiam a campina. Talvez<br />

estivessem fazendo círculos em redor do pobre cavalo<br />

esmorecido num canto de cerca. Os olhos de Fabiano se<br />

umedeceram. Coitado do cavalo. Estava magro, pelado,<br />

faminto. e arredondava uns olhos que pareciam de gente -<br />

Pestes.<br />

O que indignava Fabiano era o costume que os miseráveis<br />

tinham de atirar bicadas aos olhos de criaturas que já não se<br />

podiam defender. Ergueu-se, assustado, como se os bichos<br />

tivessem descido do céu azul e andassem ali perto, num vôo<br />

baixo, fazendo curvas cada vez menores em torno do seu corpo,<br />

de Sinha Vitória e dos meninos.<br />

Sinha Vitória percebeu-lhe a inquietação na cara torturada<br />

e levantou-se também, acordou os. filhos, arrumou os picuás.<br />

Fabiano retomou o carrego. Sinha Vitória desatou-lhe a<br />

correia presa ao cinturão, tirou a cuia e emborcou-a na<br />

cabeça do menino mais velho, sobre uma rodilha de molambos.<br />

Em cima pôs uma trouxa. Fabiano aprovou o arranjo, sorriu,<br />

esqueceu os urubus e o cavalo. Sim senhor. Que mulher!<br />

Assim ele ficaria com a carga aliviada e o pequeno teria um<br />

guarda-sol. O peso da cuia era uma insignificância, mas<br />

Fabiano achou-se leve, pisou rijo e encaminhou-se ao<br />

bebedouro. Chegariam lá antes da noite, beberiam,<br />

descansariam, continuariam a viagem com o luar. Tudo isso era<br />

duvidoso, mas adquiria consistência. E a conversa recomeçou,<br />

enquanto o sol descambava.<br />

- Tenho comido toicinho com mais cabelo, declarou Fabiano<br />

desafiando o céu, os espinhos e os urubus.<br />

- Não é? murmurou Sinha Vitória sem perguntar, apenas<br />

confirmando o que ele dizia.

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