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vidas_secas

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dos pés e as botinas de vaqueta resistiram como virgens.<br />

Sinha Vitória levantou a saia, sentou-se no chão e limpou-se<br />

também. Os dois meninos entraram no riacho, esfregaram os<br />

pés, saíram, calçaram as chinelinhas e ficaram espiando os<br />

movimentos dos pais. Sinha Vitória aprontava-se e erguia-se,<br />

mas Fabiano soprava arreliado. Tinha vencido a obstinação de<br />

uma daquelas amaldiçoadas botinas; a outra emperrava, e ele,<br />

com os dedos nas alças, fazia esforços inúteis.<br />

Sinha Vitória dava palpites que irritavam o marido. Não havia<br />

meio de introduzir o diabo do calcanhar no tacão. A um<br />

arranco mais forte, a alça de trás rebentou-se, e o vaqueiro<br />

meteu as mãos pela borracha, energicamente. Nada conseguindo,<br />

levantou-se resolvido a entrar na rua assim mesmo, coxeando,<br />

uma perna mais comprida que a outra. Com raiva excessiva, a<br />

que se misturava alguma esperança, deu uma patada violenta no<br />

chão. A carne comprimiu-se, os ossos estalaram, a<br />

meia molhada rasgou-se e o pé amarrotado se encaixou entre as<br />

paredes de vaqueta. Fabiano soltou um suspiro largo de<br />

satisfação e dor. Em seguida tentou prender o colarinho duro<br />

ao pescoço, mas os dedos trêmulos não realizaram a tarefa.<br />

Sinha Vitória auxiliou-o: o botão entrou na casa estreita e a<br />

gravata amarrou-se. As mãos sujas, suadas, deixaram no<br />

colarinho manchas escuras.<br />

- Está certo, grunhiu Fabiano.<br />

Atravessaram a 'pinguela e alcançaram a rilã. Sinha Vitória<br />

caminhava aos tombos, por causa dos saltos dos sapatos, e<br />

conservava o guarda-chuva suspenso, com o castão para baixo e<br />

a biqueira para cima, enrolada no lenço. Impossível dizer<br />

porque Sinha Vitória levava o guarda-chuva com biqueira para<br />

cima e o castão para baixo. Ela própria não saberia explicarse,<br />

mas sempre vira as outras matutas procederem assim e<br />

adotava o costume.<br />

Fabiano marchava teso.<br />

Os dois meninos espiavam os lampiões e adivinhavam casos<br />

extraordinários. Não sentiam curiosidade, sentiam medo, e por<br />

isso pisavam devagar, receando chamar a atenção das<br />

pessoas. Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda,<br />

mundos maravilhosos na serra azulada. Aquilo, porém, era<br />

esquisito. Como podia haver tantas casas e tanta gente? Com<br />

certeza os, homens iriam brigar. Seria que o povo ali era<br />

brabo e não consentia que eles andassem entre as<br />

barracas? Estavam acostumados a agüentar cascudos e puxões de<br />

orelhas. Talvez as criaturas desconhecidas não se<br />

comportassem como Sinha Vitória, mas os pequenos retraíam-se,<br />

encostavam-se às paredes, meio encandeados, os ouvidos cheios<br />

de rumores estranhos.

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