vidas_secas
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sejam instrumentos de destino ou dos seus instintos, nos<br />
romances do Sr. Graciliano Ramos, não encontramos em parte<br />
nenhuma aquele sentimento de piedade que Luís da Silva<br />
sugere. Com uma fria impassibilidade, o romancista contempla<br />
a miséria humana de seus personagens. Não lhes concede a<br />
mínima piedade. Ao contrário: o romancista chega a estar<br />
animado de um certo prazer nessa contemplação da miséria<br />
humana. Podemos falar, sem exagero, de uma crueldade do<br />
criador diante da sua criação.<br />
Trata-se de um caso semelhante ao de Machado de Assis, com<br />
muitas linhas de aproximação a estabelecer entre os dois. Já<br />
houve mesmo quem falasse de influência; e o Sr. Graciliano<br />
Ramos se defendeu com um argumento fulminante: que nunca<br />
havia lido antes Machado de Assis... O problema dessa<br />
influência será mais tarde esclarecido pela história<br />
literária; o que interessa agora é um problema de aproximação<br />
e semelhança, que não nasce só da influência direta de um<br />
autor sobre outro, mas de uma certa identidade de sentimentos<br />
em face da vida e da literatura. O que aproxima o Sr.<br />
Graciliano Ramos de Machado de Assis é a mesma concepção da<br />
vida, o mesmo julgamento dos homens, ao lado de uma<br />
semelhante estrutura temperamental.<br />
Todavia, o Sr. Graciliano Ramos parece-me mais feroz e<br />
cruel na sua criação romanesca. O sentimento de Machado de<br />
Assis: indiferença e ceticismo; o seu humour era destruidor,<br />
mas sereno. O do Sr. Graciliano Ramos: ódio ou desprezo,<br />
sendo o seu humour - muito raro, aliás - de um caráter<br />
sombrio e áspero. Em conjunto, a sua obra constitui uma<br />
sátira violenta e um panfleto furioso contra a humanidade. O<br />
que a torna, nesse sentido, menos ostensiva e mais arejada, é<br />
a circunstância de ser o Sr. Graciliano Ramos um verdadeiro<br />
artista, um escritor da mais alta categoria.<br />
Dos seus romances, acho S. Bernardo o que mais explica a<br />
idéia que o Sr. Graciliano Ramos sustenta a respeito dos<br />
homens. Será impossível não estender um pouco ao romancista<br />
esta conclusão de Paulo Honório: Bichos. As criaturas que me<br />
serviram durante anos eram bichos, Havia bichos domésticos,<br />
como Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos<br />
bichos para o serviço do campo, bois mansos. Os currais que<br />
se escoram uns nos outros, lá embaixo, tinham lâmpadas<br />
elétricas. E os bezerrinhos mais taludos soletravam a<br />
cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei de Deus.<br />
E não é que Paulo Honório esteja muito acima dos outros<br />
seres que julga tão friamente. A princípio, uma desmedida<br />
ambição deu-lhe essa miragem de superioridade. Depois, a<br />
sua impressão desaba no momento mesmo em que alcança os seus<br />
fins. Desaba sob o peso do egoísmo e do ciúme que devoram