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O século do nada - Suma Teológica

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ficava nervoso, irrita<strong>do</strong>, pronto a voar se percebesse o mais<br />

leve sinal de impaciência ou desinteresse. Bom Fernan<strong>do</strong> Carneiro.<br />

Passou pela vida como um original, quase como um louco,<br />

sen<strong>do</strong> entretanto um homem cheio de sabe<strong>do</strong>ria e de bondade.<br />

Guar<strong>do</strong> como jóias os poucos conselhos que me deu nos ângulos<br />

da vida.<br />

Em matéria de <strong>do</strong>utrina social tínhamos divergências porque<br />

Carneiro estendeu o mais que pôde seu crédito ãs esquerdas.<br />

Eu, que já havia pago meu pedágio à estupidez humana nessa<br />

matéria, não sentia a menor disposição de "voltar ao vómito",<br />

mas estávamos to<strong>do</strong>s longe de supor, de pressentir o que ainda<br />

deveríamos sofrer nesse capítulo.<br />

Naquela noite, Carneiro pediu água, e no meio da sala,<br />

com o copo na mão e o lenço na outra, parecia um mágico que<br />

se preparava para tirar coelhos <strong>do</strong> lenço ou <strong>do</strong> copo. Em vez<br />

de coelho, tirou o Padre Lebret.<br />

— Você já ouviu falar no Padre Lebret?<br />

Eu não ouvira falar, e Carneiro continuou:<br />

— Olhe, o negócio ê assim: Aristóteles, Santo Tomás,<br />

Lebret.<br />

Fiquei meio alarma<strong>do</strong>, mas não pestanejei. E Carneiro<br />

explicou-me quem era esse frade <strong>do</strong>minicano que se dedicara<br />

a levantamentos sociológicos entre os pesca<strong>do</strong>res da França,<br />

que fundara um movimento chama<strong>do</strong> "Economia e Humanismo"<br />

e que agora viera estudar o Brasil. ..<br />

Naquele tempo poderíamos saber, se estivéssemos acompanhan<strong>do</strong><br />

de perto a evolução da esquerda católica e da infiltração<br />

comunista na ordem <strong>do</strong>minicana, se conhecêssemos a<br />

história da revista Sept, "que morrera de gripe espanhola" mas<br />

logo ressuscitara em Temps Présent, revista apresentada por Mauriac<br />

e outros como sen<strong>do</strong> totalmente diversa de Sept (conde<strong>nada</strong><br />

por Pio XI), et cependant da mesma cepa, se conhecêssemos<br />

as escapadas de Maritain na revista Vendredi, poderíamos<br />

saber que o Pe. Joseph Lebret em 1948 trazia ao Brasil os<br />

primeiros germes <strong>do</strong> "ativismo desespera<strong>do</strong>" de que nos ocuparemos<br />

no último capítulo deste livro, ou os primeiros vírus <strong>do</strong><br />

esquerdismo católico que vinte anos depois produziria o escândalo<br />

<strong>do</strong>s <strong>do</strong>minicanos que em São Paulo transformaram o<br />

Convento das Perdizes em reduto de guerrilheiros.<br />

Mas não antecipemos. O fato de ser <strong>do</strong>minicano o personagem<br />

que cativara Fernan<strong>do</strong> Carneiro tranqúilizava-me. Lembro-me<br />

da primeira vez que vi e ouvi Frei Pedro Secondi. Falava<br />

de algum problema social, muito carrément, sem precauções e<br />

meias-palavras. E, notan<strong>do</strong> talvez sombra de receio ou escân­<br />

dalo no semblante de alguma senhora, explicou-se: "— Nós,<br />

<strong>do</strong>minicains, podemos pisar to<strong>do</strong>s os terrenos sem me<strong>do</strong>, porque<br />

temos pés firmes e boa <strong>do</strong>utrina". E, para ilustrar a sentença,<br />

an<strong>do</strong>u com passo forte em cima <strong>do</strong> estra<strong>do</strong>, de um la<strong>do</strong> para<br />

outro, e eu, maravilha<strong>do</strong>, ouvia as tábuas <strong>do</strong> estra<strong>do</strong> rangerem<br />

debaixo da corpulenta orto<strong>do</strong>xia <strong>do</strong> frade <strong>do</strong>minicano.<br />

Com ternura ainda mais viva (e hoje indizivcimente machucada)<br />

lembro-me como se fosse hoje daquela tarde, na Praça<br />

Quinze, creio que em 41 ou 42. Chegavam de França os moços<br />

da AUC que tinham escolhi<strong>do</strong> o hábito branco de São Domingos;<br />

os mais numerosos já estavam vesti<strong>do</strong>s de preto no<br />

Mosteiro de São Bento, ou para lá se encaminhavam. Creio que<br />

era a primeira vez que eu via um <strong>do</strong>minicano, ou pelo menos<br />

um <strong>do</strong>minicano em flor. Quem naquela tarde viria ao Centro<br />

Dom Vital dizer alguma coisa de seus projetos e de suas esperanças<br />

no Brasil era Frei Romeu Dale. Sentei-me no fun<strong>do</strong> da<br />

sala, onde convinha que se apertasse a arraia-miúda <strong>do</strong>s novatos<br />

e <strong>do</strong>s ignorantes, e fiquei ansioso a esperar o lírio vivo e branco<br />

que nascera <strong>do</strong> coração de Domenico de Guzman; e quan<strong>do</strong>,<br />

na frente <strong>do</strong> Alceu, entrou um moço alto, cora<strong>do</strong>, com riso<br />

de criança, eu o acompanhei com os olhos e com o coração<br />

toma<strong>do</strong> de veneração apenas um pouco menor <strong>do</strong> que se visse<br />

surgir no salão o próprio Santo Tomás de Aquino.<br />

No estra<strong>do</strong>, ladea<strong>do</strong> pelo Alceu, que exultava como um<br />

pai feliz, Frei Romeu Dale falou da França, disse que tencionava<br />

dar um curso de teologia moral segun<strong>do</strong> Santo Tomás.<br />

E no decorrer da palestra, não sei por que, falou de Gilberto<br />

Freyre, e lamentou que "aquela grande inteligência tivesse resvala<strong>do</strong><br />

para o socialismo". Alceu sorria deslumbra<strong>do</strong>. E eu fixava,<br />

guardava no coração, como um tesouro, a figura <strong>do</strong> frade, a<br />

veste, as palavras que nos prometiam a // a // ae <strong>do</strong> Doutor<br />

Angélico...<br />

Outro dia, ven<strong>do</strong> a majestosa cabeça grisalha de Gilberto<br />

Freyre a cinco metros de distância, no Conselho Federal de<br />

Cultura, lembrei-me de sua profissão de Fé, no eleva<strong>do</strong>r, quan<strong>do</strong><br />

alguém lhe perguntou em que é que afinal ele acreditava. Franzin<strong>do</strong><br />

o rosto severo, apontou o teto <strong>do</strong> eleva<strong>do</strong>r e foi conciso:<br />

— "Em Deus, ora essa! em Deus, em Deus".<br />

Houve no ar uma corrente invisível de afeição, e vi que<br />

ele voltava-se para mim e me sorria. E eu então senti-me transporta<strong>do</strong><br />

não sei aonde, para um céu deste mun<strong>do</strong> ou <strong>do</strong> outro.<br />

E na cena maravilhosa que sonhei, num relâmpago de imaginação,<br />

vi-me outra vez senta<strong>do</strong> no fun<strong>do</strong> da sala, nos últimos<br />

lugares, à espera de um Gilberto Freyre anuncia<strong>do</strong> por um<br />

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