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Este modesto diploma que aqui apresento vale para provar que<br />
longamente cursei a escola da pequena sabe<strong>do</strong>ria na qual aprendemos<br />
que não só com a cabeça pensa o homem, mas com os pés para<br />
tê-los no chão, e com as mãos para sentir a primeira verdade das<br />
coisas. Nesta escola aprendi que o pilriteiro só dá pilritos, e insiste<br />
em só dar pilritos ainda que o chamemos de Crataegus oxyacantha;<br />
como também aprendemos que a água molha, o sol alumia, o fogo<br />
queima, e daí, por duas ou três ilações, facilmente descobrimos que<br />
o marxismo, além de ser uma estupidez que só produz marxistas, é<br />
a maior impostura da história <strong>do</strong> sistema planetário. E, além disso,<br />
a pequena sabe<strong>do</strong>ria presta-se a ser estribo para outra maior, e nos<br />
ensina que Deus é Deus, e de Deus não se zomba, ou então, caprichan<strong>do</strong>,<br />
diríamos: "Deus non irridetur".<br />
Tempos atrás, escrevia eu um artigo sobre vários pronunciamentos<br />
<strong>do</strong> robusto cardeal Suenens, e afligia-me com os disparates<br />
<strong>do</strong> purpura<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> ouvi da sala contígua os rumores que<br />
fazia um eletricista na perseguição de um insidioso curto-circuito em<br />
nossa instalação. Honra<strong>do</strong> eletricista! Pensei eu com meus botões,<br />
você sabe que tem de obedecer à natureza das coisas, sabe que deve<br />
tratar o cobre de uma maneira, o chumbo de outra, e o plástico<br />
isolante de uma terceira maneira. Cada coisa é o que é, e o bom<br />
eletricista sabe, por outras palavras mais singelas, que deve ser dócil<br />
ao real, que deve ser atento, e sobretu<strong>do</strong> sabe que os equívocos têm<br />
consequências. Se trocar os fios, se ligar erra<strong>do</strong>, ele logo verá o<br />
clarão e ouvirá o estron<strong>do</strong> <strong>do</strong> curto-circuito, e logo terá de mudar<br />
os fusíveis. O cardeal Suenens, pelo que se depreendia facilmente<br />
de sua entrevista, não parece saber que os erros são consequentes, e<br />
que há clarões e estron<strong>do</strong>s muito mais graves <strong>do</strong> que o de um curtocircuito<br />
caseiro.<br />
Devo agora assinalar a segunda diferença prometida nas primeiras<br />
linhas deste tópico. É a seguinte: o camponês <strong>do</strong> Garona é<br />
um velho leigo que se interroga sobre os tempos que correm. Minhas<br />
interrogações não são reflexivas. Pode ser que nas últimas páginas<br />
desta obra eu também entretenha com meus botões o diálogo de<br />
perplexidade; mas, antes disso, o meu propósito é sair por aí formulan<strong>do</strong><br />
interrogações, perguntan<strong>do</strong>, aos vivos e aos mortos, o que é<br />
que houve? Como? Por quê? Quem? Onde?<br />
E para isto, para tirar ainda a tempo o enorme atraso em que<br />
estive a vida toda sobre o que estava acontecen<strong>do</strong> nos vários compartimentos<br />
da história recente, para recompor toda uma coleção de<br />
histórias mal contadas, de que este <strong>século</strong> é particularmente fértil,<br />
eu precisava entrevistar centenas de autores e ler centenas de livros<br />
fora da fremente e estonteante atualidade. Precisava, por exemplo,<br />
saber que cartas Charles Maurras escreveu a Pio XI e que paternais<br />
cartas Pio XI escreveu a Charles Maurras. E muitas outras coisas.<br />
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Ora, para esse trabalho tive a sorte de entrar em regime de meiaaposenta<strong>do</strong>ria<br />
(digo meia-aposenta<strong>do</strong>ria porque ainda estou na ativa<br />
para boa parte <strong>do</strong>s deveres de esta<strong>do</strong>) com um capital de disposição<br />
e de saúde que me permite manter há quase dez anos a média de<br />
oito ou dez horas por dia de estu<strong>do</strong> e de redação. Creio que nunca<br />
estudei tanto em minha vida. Se com tu<strong>do</strong> isto a obra não sair a<br />
contento de quem a encomen<strong>do</strong>u, não posso queíxar-me de <strong>nada</strong> e<br />
de ninguém, a não ser de meus pobres,limites. E aí vai o estu<strong>do</strong> que<br />
ofereço ao leitor: nem sempre será ameno e fácil, às vezes parecerá<br />
fastidioso, sobretu<strong>do</strong> nos tópicos em que procurei mais exata<br />
concatenação de ideias. Feitas todas as contas, apego-me ao provérbio<br />
<strong>do</strong>s pilriteiros: fiz o que pude.<br />
Entrevistan<strong>do</strong> o velho camponês <strong>do</strong> Garona.<br />
Ten<strong>do</strong> professa<strong>do</strong>, ao longo <strong>do</strong>s quarenta anos de luta e pregação,<br />
uma fidelidade de discípulo à obra filosófica de Jacques Maritain,<br />
a quem tanto devo, e a quem me sinto liga<strong>do</strong> por laços muito<br />
afetuosos e muito desliga<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s jogos de interesses deste mun<strong>do</strong>,<br />
tenho de começar as retratações prometidas no subtítulo desta obra<br />
pelos pontos em que hoje me desligo, não <strong>do</strong> pensamento tomista<br />
<strong>do</strong> autor de Dégrès du Savoir e de Trois Réformateurs, mas das<br />
posições tomadas em várias circunstâncias; não tanto de sua filosofia<br />
política, mas <strong>do</strong> uso prático que dela fez, ou de sua "política<br />
filosófica", como diz Henry Bars.<br />
Depois de ler o que li, e de reler Le Paysan de la Garonne, um<br />
de meus sonhos, desvairadamente sonha<strong>do</strong>, foi o de procurar Maritain<br />
na sua última estação para entreter com ele mil e duzentas conversas<br />
sobre todas essas coisas. E não escon<strong>do</strong> o la<strong>do</strong> mais fantástico <strong>do</strong><br />
sonho: o de conseguir, na milésima duocentésima primeira conversa,<br />
à feição de circunstâncias especialmente favoráveis, <strong>do</strong> mestre tão<br />
admira<strong>do</strong> e tão ama<strong>do</strong>, algumas importantíssimas retratações. Consideran<strong>do</strong><br />
que a vida neste vale de lágrimas mais separa <strong>do</strong> que une,<br />
ou bem compreenden<strong>do</strong> que meu sonho nem no céu se realizará,<br />
porque, se a misericórdia de Deus lá nos unir, estaremos ocupadíssimos<br />
em admirar e louvar Deus três vezes santo e totalmente livres<br />
<strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s de retratações, reafirmações e interrogações; e sobretu<strong>do</strong><br />
consideran<strong>do</strong> a brevidade desta vida, concluo que devo eu<br />
fazer em meu próprio nome as retratações que julgo exigidas pela<br />
verdade. Mas bem sei que tu<strong>do</strong> o que eu disser é intransferível como<br />
retratação; e não me custa muito imaginar o brio gaulês com que<br />
Maritain repeliria tal impertinência.<br />
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