Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
ti<strong>do</strong> seria vão querer ser isto ou aquilo, já que nascemos ruivos,<br />
biliosos ou sanguíneos. O que se pode fazer, diz ainda Maritain, é<br />
corrigir seu temperamento para evitar as monstruosidades <strong>do</strong>s limites<br />
extremos: o puro cinismo da "direita" e o puro irrealismo da<br />
"esquerda".<br />
Aqui, evidentemente já se percebe que um <strong>do</strong>s mais inteligentes<br />
filósofos <strong>do</strong> <strong>século</strong> caiu no erro de querer modelar matéria muito<br />
ingrata. Desde logo se levanta em nosso espírito uma ideia que merece<br />
reparo: se podemos corrigir os temperamentos para evitar as monstruosidades<br />
extremas, por que não corrigi-los desde logo no nível<br />
das monstruosidades medianas que certamente to<strong>do</strong>s nós gostaríamos<br />
de evitar?<br />
Além disso, nota-se no raciocínio <strong>do</strong> filósofo uma quebra de<br />
homogeneidade entre os conceitos defini<strong>do</strong>s como temperamentos e<br />
cada um desses limites extremos que, de um la<strong>do</strong>, pertence à ordem<br />
moral (já que ninguém é cínico por temperamento), e de outro la<strong>do</strong><br />
pertence à ordem intelectual.<br />
Este pequeno tropeço poderia ser evita<strong>do</strong> se o autor considerasse<br />
o vigoroso, ou até o violento dualismo que caracteriza o jogo<br />
esquerda-direita, e que se coaduna mal com a caracterologia. Se<br />
quisermos caracterizar os homens por seus temperamentos, não há<br />
razão nenhuma para limitar a <strong>do</strong>is tipos essa espécie de variedade.<br />
Hipócrates foi mais pluralista <strong>do</strong> que o autor de Humanisme Integral,<br />
porque abriu a rosa <strong>do</strong>s quatro ventos para os humores pre<strong>do</strong>minantes<br />
e os consequentes temperamentos humanos: o sanguíneo, o<br />
fleugmático, o melancólico e o colérico.<br />
O dualismo <strong>do</strong> esquema já nos induz a procurar sua colocação<br />
no plano ético, ou mesmo no plano da cosmovisão, ou da ideologia,<br />
onde os termos esquerda e direita poderão significar tipos de personalidades<br />
marcadas por parâmetros morais e por concepções intelectuais.<br />
Numa segunda tentativa, contra seus hábitos e seu génio, o autor<br />
prefere a ilustração à definição e toma <strong>do</strong>is personagens representativos:<br />
Jean Jacques será o "puro homem de esquerda" que prefere<br />
"o que não é ao que é", ísto é o homem a quem repugna o ser; e<br />
para representar o puro homem de direita "que detesta a justiça e a<br />
caridade" (!!) o autor toma Goethe, não a pessoa de Goethe, é<br />
claro, mas a abstração ou hipóteses de pessoa que levasse às últimas<br />
consequências uma frase atribuída ao autor de Fausto, pela qual "ele<br />
preferia a ordem à justiça".<br />
Aqui estamos novamente fora <strong>do</strong> campo neutro da caracterologia:<br />
de um la<strong>do</strong> temos um monstro intelectual ou uma espécie<br />
hiperbólica de demência, e de outro la<strong>do</strong> um monstro moral, ou um<br />
demónio, porque só os demónios podem detestar a justiça e a caridade.<br />
76<br />
Além disso, não há homogeneidade entre os <strong>do</strong>is termos <strong>do</strong> binómio<br />
e portanto não há possibilidade de contraposição.<br />
Detenhamo-nos um pouco na frase atribuída a Goethe e frequentemente<br />
utilizada para estigmatizar os conserva<strong>do</strong>res, os tranquilos,<br />
os bons pais de família com o mediano egoísmo que constitui<br />
o niveau de Vhumanité, como dizia Péguy. Esses homens, a acreditarmos<br />
no binómio que reaparece na página 236 de Le Paysan de la<br />
Garonne, preferem a ordem à justiça.<br />
Que senti<strong>do</strong> terá essa frase? Receamos que não tenha senti<strong>do</strong><br />
nenhum. Rigorosamente, formaliter loquen<strong>do</strong>, não há ordem social<br />
sem justiça, nem justiça sem ordem. As duas coisas pedem integração<br />
e não oposição e opção. A frase só recupera a mínima dignidade<br />
verbal a que aspira qualquer proposição se admitirmos que os termos<br />
confronta<strong>do</strong>s, ordem e justiça, são toma<strong>do</strong>s equivocamente, ou pelo<br />
menos com certa frouxidão. Assim, um da<strong>do</strong> homem é de direita<br />
porque prefere "o que ele chama de ordem" à justiça, ou prefere<br />
apegar-se ao "que ele chama de ordem" ao que ele mesmo sabe<br />
que é "justiça". Mas esse mesmo homem acusa<strong>do</strong> de ser de direita,<br />
nesses termos, poderia dizer que ele prefere "o que sabe ser ordem"<br />
ao que você, de esquerda, "chama de justiça". E não se diga, depressa<br />
demais, que é só a ideia de ordem que se presta à equivocidade,<br />
enquanto a ideia de justiça, com refulgente nitidez, se impõe a gregos<br />
e troianos. Creio que, se promovêssemos um inquérito sobre o uso<br />
equívoco <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is termos nos tempos que correm, a equivocidade <strong>do</strong><br />
termo "justiça" ganharia por <strong>do</strong>is corpos da equivocidade <strong>do</strong> termo<br />
"ordem". Estamos evidentemente em pleno delírio se insistirmos em<br />
dar algum valor de utensílio mental a frases que contrapõem <strong>do</strong>is<br />
termos equívocos, e se admitirmos que o valor de tais fórmulas dependem<br />
<strong>do</strong> teor de equivocidade de cada termo. O que até aqui já<br />
vimos nos inclina a concordar com Mes Monnerot (1) que chama<br />
de "solecismos políticos fundamentais" o conjunto de fórmulas<br />
postas debaixo <strong>do</strong> título genérico Esquerda-Direita.<br />
Quan<strong>do</strong> Maritain emprega em Le Paysan o mesmo binómio<br />
"ordem-justiça" duas vezes, para caracterizar a direita e a esquerda,<br />
podemos imaginar a presença <strong>do</strong> fantasma de Maurras, e de outros<br />
fantasmas menores, nas zonas obscuras de sua memória. Nas paredes<br />
da Action Française o termo ordem tinha sonoridades de clarim ou<br />
de trovões <strong>do</strong> Sinai. Mas Charles Maurras não era tão cartesiano ou<br />
tão positivista como o pintam: nos dias de mais ar<strong>do</strong>rosa paixão<br />
política, nos momentos em que o jornal mais precisava de seus golpes<br />
de solda<strong>do</strong>s, ou nas horas em que a vermine rongeait la France e em<br />
(1) Notas no fim <strong>do</strong> capítulo.<br />
77