Gnose em Revista - Intranet - Uemg
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Literatura, raça, etnia: considerações sobre a literatura negra e sobre Lima Barreto, um intelectual sitiado<br />
(sujeito destinatário) se reduz criando a unidade do<br />
“nós”. Nesse sentido, o surgimento do “eu-nós”<br />
assinala a ruptura com um discurso anterior que<br />
sist<strong>em</strong>aticamente o negava.<br />
b) Construção de uma “cosmogonia”<br />
Para Bernd (1992), a poesia se torna o espaço no<br />
qual são gerados os mitos compensatórios que supr<strong>em</strong><br />
os vazios que pontuam a presença do negro na América.<br />
Para suprir os vazios que pontuam a presença<br />
do negro na América, a poesia se torna o espaço<br />
gerador de mitos compensatórios. Os feitos de<br />
Ganga Zumba, de seu filho Zumbi do Palmares<br />
e de outros chefes quilombolas são mistificados<br />
e cantados <strong>em</strong> po<strong>em</strong>as épicos onde, de escravos<br />
rebeldes e fora da lei, transformam-se nos heróis<br />
de que o povo negro necessita para ter um<br />
modelo de identificação (BERND, 1992, p. 271).<br />
Sob essa ótica, a identificação com esses heróis e sua<br />
luta pela libertação é o primeiro passo para a construção<br />
da identidade.<br />
A transmissão e a r<strong>em</strong><strong>em</strong>oração do passado coletivo,<br />
das dificuldades, dos sucessos e dos fracassos do<br />
grupo, das condutas ex<strong>em</strong>plares de seus heróis...<br />
participam do processo de identificação cultural.<br />
A l<strong>em</strong>brança da história através de narrativas,<br />
de obras de arte, de cerimônias e rituais, assim<br />
como através da educação das jovens gerações,<br />
contribui para modelar a identidade de um grupo<br />
social (MUCCHIELLI 4 , 1986 citado por BERND,<br />
1992, p. 272).<br />
c) Ordenação de uma “nova ord<strong>em</strong> simbólica”<br />
Conforme discutido por Bernd (1992), a prática<br />
usual dos procedimentos da paródia e da carnavalização<br />
permite que o resgate operado no nível dos referentes<br />
históricos efetue-se paralelamente no nível da<br />
representação simbólica: “o princípio ordenador é o<br />
mesmo: a reversão, sendo a palavra de ord<strong>em</strong> pôr o<br />
mundo às avessas” (BERND, 1992, p. 272).<br />
Nessa perspectiva, as novas unidades culturais<br />
passam a representar o reencontro com as origens,<br />
caracterizando-se como os símbolos de uma nova<br />
ord<strong>em</strong> social injusta e revestindo-se, portanto, de um<br />
caráter positivo de alerta contra os atuais métodos de<br />
discriminação racial que reproduz<strong>em</strong>, <strong>em</strong> certo sentido,<br />
o modelo escravocrata.<br />
d) “Reversão dos valores e avaliação do outro”<br />
“A lei maior da Negritude, que consistiu <strong>em</strong> tornar<br />
positivo o que até então era considerado negativo,<br />
continua sendo o fio principal com que se tece a poesia<br />
negra” (BERND, 1992, p. 270).<br />
4 MUCCHIELLI, A. L’Identité. Paris: Presses Universitaires de France, 1986.<br />
Configurando-se, portanto, como discurso da<br />
“destruição” e da afirmação de uma diferença, a poesia<br />
negra irá também produzir uma imag<strong>em</strong> do branco<br />
que, ocupando a terceira pessoa do discurso, se torna,<br />
por sua vez, o outro.<br />
Assim, a literatura é o lugar de convocação à<br />
resistência e à re-existência do negro. “De literatura de<br />
resistência, a literatura negra passa a ser literatura de reexistência”<br />
(BERND, 1992, p. 270).<br />
3 Lima Barreto: o drama<br />
do intelectual sitiado<br />
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922),<br />
escritor “militante”, título que ele mesmo timbrava<br />
<strong>em</strong> afirmar - cuja significação implicava por de lado<br />
o “bonito” pelo “real” - foi o romancista brasileiro<br />
do século XX que melhor reconheceu o poder de<br />
transfiguração da produção literária como obra de arte;<br />
caracterização expressa por suas próprias palavras:<br />
tendo passado por diversos meios os mais<br />
desencontrados possíveis, eu me julgo<br />
conhecedor bastante das coisas deste mundo,<br />
para, com os el<strong>em</strong>entos da vida comum,<br />
organizar uma outra, dos meus sonhos, com a<br />
qual a minore, só no criá-la, a mágoa eterna e<br />
inapagável que haja talvez <strong>em</strong> mim e me turve as<br />
alegrias íntimas [...] (BOSI, 1970, p. 340).<br />
o que mais se olhou a si mesmo para escrever, como<br />
observou Montenegro:<br />
[...] <strong>em</strong> Lima Barreto foi como se o sentimento<br />
constant<strong>em</strong>ente amargo da vida, a crua e<br />
penetrante consciência de vítima que tanto o<br />
torturava, tirasse de vez <strong>em</strong> quando ao escritor<br />
o que faz a força e a intensidade do escritor (sic)<br />
- a sua disponibilidade interior, indispensável a<br />
uma arte que se propõe representar as coisas <strong>em</strong><br />
termos de uma realidade mais real ainda do que<br />
a própria vida (MONTENEGRO, 1953, p. 146).<br />
Formada numa época <strong>em</strong> que morria a belle époque,<br />
a obra de Lima Barreto se constrói entre dois<br />
mundos: o mundo do tradicionalismo agrário,<br />
saudosista e reformador, e o mundo do novo século,<br />
seduzido pela vanguarda e pelo racionalismo,<br />
fecundado pelo dadaísmo e pelo cubismo,<br />
pela psicanálise e pelo relativismo de Einstein,<br />
pela Revolução Russa, anarquismo espanhol e<br />
sindicalismo fascista (BOSI, 1970, p. 341).<br />
Os desgostos domésticos e a revolta contra o<br />
preconceito de cor de que foi vítima somados à vida<br />
economicamente difícil de pequeno funcionário da<br />
v. 1 - n. 1 - Fevereiro 2011 - p. 93-99<br />
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