A Vida sob Efeitos do Transe - Repositórios Digitais da UFSC
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temor, alegria...) suspen<strong>da</strong>m o trabalho <strong>da</strong> consciência que Manoel Bomfim procura<br />
instituir. Assim, o que se impede é que se produza uma reação ou a<strong>da</strong>ptação que não esteja<br />
de acor<strong>do</strong> com a tecnologia de funcionamento <strong>da</strong> mente. A mente é captura<strong>da</strong> pelo objeto<br />
para que depois este mesmo objeto possa ser captura<strong>do</strong> por uma mente qualifica<strong>da</strong>, que não<br />
está <strong>sob</strong>re o arbítrio <strong>da</strong>s emoções suscita<strong>da</strong>s na ocorrência <strong>da</strong> excitação. 20<br />
o poder de escolha <strong>da</strong> reação é individual, é o indivíduo que delibera, porém essa deliberação só pode ser feita<br />
a partir de uma tecnologia apreendi<strong>da</strong> na escola. Esta tecnologia conferiria, portanto, <strong>sob</strong>erania ao indivíduo.<br />
20 O transe ganharia atuali<strong>da</strong>de pelos efeitos sociais <strong>da</strong> música eletrônica. As pistas <strong>do</strong>s clubs ou <strong>da</strong>s<br />
raves são os espaços onde atualmente o transe se manifesta mais intensamente. Estes espaços são<br />
inteiramente media<strong>do</strong>s pela tecnologia digital, a música eletrônica é quase to<strong>da</strong> ela feita a partir de programas<br />
de computa<strong>do</strong>r. Neles há experiências concretas de hipnose, de extrema fixação à música. Por experiência<br />
pessoal, a consciência é anula<strong>da</strong> pela total concentração nas bati<strong>da</strong>s incessantes e fortes, é quase impossível<br />
ter qualquer pensamento, o corpo movimenta-se livremente, sen<strong>do</strong> muito difícil reproduzir os movimentos<br />
executa<strong>do</strong>s na pista quan<strong>do</strong> você não está submeti<strong>do</strong> aos seus efeitos. Os estímulos exteriores, a agitação <strong>da</strong>s<br />
pessoas, nos fazem transcender o próprio ego, sentimo-nos integra<strong>do</strong>s com to<strong>do</strong>s que estão na pista, com a<br />
música, com as luzes, como se fossemos parte de algo maior, que nos absorvesse. É estranha a felici<strong>da</strong>de<br />
proporciona<strong>da</strong> por esses estímulos. Trata-se de uma experiência de pura performance, de puro ritual. Em um<br />
ensaio <strong>sob</strong>re o mimetismo publica<strong>do</strong> em 1938, Roger Caillois descreve certas experiências que podem ser<br />
relaciona<strong>da</strong>s com aquelas que acontecem em uma pista de música eletrônica: Resumirei <strong>sob</strong>retu<strong>do</strong><br />
experiências pessoais, inteiramente de acor<strong>do</strong>, além disso, com as observações publica<strong>da</strong>s na literatura<br />
médica, por exemplo, as respostas invariáveis <strong>do</strong>s esquizofrênicos à pergunta: onde você está? “Eu sei onde<br />
estou, mas não me sinto no lugar onde me encontro.” O espaço parece, a estes espíritos desapossa<strong>do</strong>s, uma<br />
potência devora<strong>do</strong>ra. O espaço persegue-os, cerca-os, digere-os numa fagocitose gigantesca. No fim, acaba<br />
por substituí-los. O corpo deixa então de ser solidário <strong>do</strong> pensamento, o indivíduo franqueia a fronteira de<br />
uma pele e mora <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s seus senti<strong>do</strong>s. Procura ver-se de um ponto qualquer <strong>do</strong> espaço. Ele<br />
próprio se sente tornar espaço, espaço negro, onde não se podem meter coisas. É semelhante, não semelhante<br />
a algo, mas simplesmente semelhante. (Caillois, 1972: p.82). O fato de estar na pista de <strong>da</strong>nça significa<br />
consciência de estar nela ao mesmo tempo em que se está além dela, por não se tratar de qualquer música,<br />
mas <strong>da</strong>quelas que por meios eletrônicos são capazes de levar o indivíduo ao transe, a pista de e-music torna-se<br />
um espaço de transcendência. As festas, em que se é possível observar tais fenômenos, são aquelas em que as<br />
pessoas se importam apenas com a música executa<strong>da</strong> pelos DJ’s. A percepção restrita ao somatório <strong>do</strong>s<br />
estímulos visuais e sonoros faz com que a permanência nestes lugares seja impossível para aqueles que não<br />
estão preocupa<strong>do</strong>s <strong>sob</strong>retu<strong>do</strong> com a música, portanto, alterar o esta<strong>do</strong> de consciência torna-se fun<strong>da</strong>mental<br />
para suportar a festa. Assemelhan<strong>do</strong>-se com o que Roger Caillois descreve em relação àqueles espíritos<br />
desapossa<strong>do</strong>s, a satisfação só é alcança<strong>da</strong> se, a partir <strong>do</strong>s estímulos tecnológicos, nossa consciência seja capaz<br />
<strong>da</strong> transcendência, ou seja, estar no local <strong>da</strong> festa e não estar ao mesmo tempo, pois se atravessa uma<br />
fronteira, entra-se em hipnose. O corpo deixa então de ser solidário <strong>do</strong> pensamento, o indivíduo franqueia a<br />
fronteira de uma pele e mora <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s seus senti<strong>do</strong>s. O poder integra<strong>do</strong>r e mimético <strong>da</strong> música<br />
eletrônica em seu espaço ritual, onde o indivíduo é dissolvi<strong>do</strong> e ao mesmo tempo digeri<strong>do</strong> numa fagocitose<br />
gigantesca, é tema de relatos de freqüenta<strong>do</strong>res <strong>da</strong> cena. Como exemplo, cito o ensaio Cyber Zen publica<strong>do</strong><br />
no site cenaeletronica.com por Techno Mustang: Eu já tive várias experiências "alpha" - a concentração e<br />
satisfação <strong>do</strong> indivíduo o fazem se sentir como parte <strong>do</strong> "to<strong>do</strong>" existente, algo como se dissolver mentalmente<br />
no universo - em raves onde ouvia música eletrônica. Não...eu nunca tomei ecstasy. Talvez até seja uma<br />
simples questão de ritmo de respiração... Na ver<strong>da</strong>de, ela não te exige nem saber o nome <strong>do</strong> que está<br />
tocan<strong>do</strong>, pois um mesmo DJ ou produtor pode ter vários nomes, vários projetos e estilos. Então você fica<br />
livre. Dança <strong>do</strong> seu jeito, e lá estão as luzes psicodélicas, os telões de imagens... a iluminação extra-terrestre,<br />
as pessoas em sua volta e de repente...tum !!! - A coisa "bateu", você é parte <strong>do</strong> to<strong>do</strong>, você perde a<br />
consciência <strong>do</strong> ego, você é apenas mais um na pista e não quer na<strong>da</strong> além disso. Você não percebe, mas está<br />
concentra<strong>do</strong>, feliz e satisfeito com o momento presente, você entrou em "Alpha"!!!!! Por isso, a música<br />
eletrônica cresce mais e mais... O que vale é estar lá, fazer parte <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong>de naquele momento, ouvir sets<br />
bons, <strong>da</strong>nçar, respirar (muito) no ritmo, e dependen<strong>do</strong> de você mesmo, <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de que você permite à sua<br />
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