A MORTE DE DANTON - Teatro Nacional D.Maria II
A MORTE DE DANTON - Teatro Nacional D.Maria II
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agulhas a saltitar… eu maldizia esse concerto, a caixa, a melodia, e… ah!<br />
pobres músicos esganiçados que nós somos, será possível que os nossos<br />
gemidos no cadafalso estejam lá apenas para passar através das nuvens e,<br />
ressoando ao longe, irem morrer como um sopro melodioso em ouvidos<br />
celestes? Seríamos nós, no ventre ardente do touro de Perillos, a vítima<br />
cujo grito de morte soa como a explosão de alegria do deus touro a arder<br />
nas chamas?”<br />
Não é difícil detetar aqui certos motivos de A Morte de Danton, mesmo que a peça<br />
tenha sido escrita mais tarde. Büchner recordou-se ou inspirou-se nos seus negros<br />
pensamentos, retomando mesmo as imagens do pobre músico e do touro, e<br />
atribuiu às suas personagens angústias e pensamentos profundos que se<br />
assemelham aos seus. Ora ele coloca-os indiferentemente em qualquer campo:<br />
Danton, Lacroix, Camille, Robespierre, e até o traidor Laflotte são afetados, como<br />
se se tratasse de um sentimento geral e não apenas de características individuais.<br />
Existe na peça um desfasamento entre a distância que Büchner toma em relação<br />
às suas personagens no campo da ação política e a empatia que sente quando se<br />
trata do fundo íntimo do ser. Isto explica em parte as dificuldades de<br />
interpretação quando misturamos os dois níveis e pensamos que Büchner estaria<br />
politicamente próximo deste ou daquele porque lhe coloca na boca um discurso<br />
que poderia fazer ele próprio. O facto de esse discurso estar repartido entre os<br />
dois campos tende a provar que as coisas não são bem assim, mesmo que estas<br />
meditações sejam mais frequentes entre os partidários de Danton. A questão das<br />
orientações políticas e a da experiência existencial cruzam-se, influenciando-se<br />
mutuamente, mas estão longe de se misturar totalmente. Como se Büchner tivesse<br />
querido mostrar que o sofrimento profundo do ser era exacerbado pela sua ação<br />
na História, mas em muitos pontos separado das apostas desta última. O mundo<br />
das experiências privadas das personagens em A Morte de Danton ultrapassa o<br />
espaço espiritual e afetivo da ação, e daí o grande desfasamento entre esfera<br />
pública e esfera privada.<br />
Na peça, a questão do sofrimento é debatida sob a forma de uma discussão<br />
filosófica entre diferentes presos. Liderados por Payne, os detidos trocam opiniões<br />
sobre a não-existência de Deus. Depois de ter tentado demonstrar que Deus não<br />
pode existir, pois a sua essência eterna é contrária à ideia de Criação, depois de<br />
se ter lançado numa refutação vulgar do panteísmo de Spinoza, e depois de ter<br />
perguntado se uma causa perfeita podia criar algo de imperfeito, Payne faz um<br />
desmentido da Teodiceia, tendo em conta a presença do mal na terra:<br />
“Acabai com a imperfeição, só assim se poderá provar a existência de Deus.<br />
Espinosa tentou-o. Podemos negar o mal, mas não a dor. Só a razão pode<br />
provar a existência de Deus, o sentimento revolta-se contra isso. Repara,<br />
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