A MORTE DE DANTON - Teatro Nacional D.Maria II
A MORTE DE DANTON - Teatro Nacional D.Maria II
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A <strong>MORTE</strong> <strong>DE</strong> <strong>DANTON</strong><br />
<strong>DE</strong> GEORG BÜCHNER<br />
DOSSIÊ PEDAGÓGICO
ÍNDICE<br />
Ficha Ficha técnica<br />
Distribu Distribuição<br />
Distribu ção<br />
O O Espetáculo<br />
Espetáculo<br />
Representações de A Morte de Danton 5<br />
2<br />
3<br />
4<br />
Georg Büchner 6<br />
Georg Büchner: cronologia 9<br />
A Morte de Danton 12<br />
Os Últimos Sobressaltos 24<br />
Cronograma da Revolução Francesa 34<br />
Súmula da Revolução Francesa até à Morte de Danton 42<br />
Danton, Robespierre e a Revolução 54<br />
Danton<br />
Sugestão Sugestão de de Atividades<br />
Atividades<br />
Equipa Equipa <strong>Teatro</strong> <strong>Teatro</strong> <strong>Nacional</strong> <strong>Nacional</strong> D. D. <strong>Maria</strong> <strong>Maria</strong> <strong>II</strong>, <strong>II</strong>, E.P.E.<br />
E.P.E.<br />
59<br />
63<br />
65<br />
1
15 MAR – 22 ABR<br />
SALA GARRETT<br />
4ª a sáb. 21h | dom. 16h<br />
FICHA TÉCNICA<br />
de<br />
GEORG BÜCHNER<br />
tradução<br />
MARIA ADÉLIA e JORGE SILVA MELO<br />
com<br />
MIGUEL BORGES<br />
PEDRO GIL<br />
SYLVIE ROCHA<br />
JOÃO MEIRELES<br />
MARIA JOÃO PINHO<br />
RITA BRÜTT<br />
AFONSO LAGARTO<br />
ALEXANDRA VIVEIROS<br />
AMÉRICO SILVA<br />
ANTÓNIO SIMÃO<br />
ELMANO SANCHO<br />
ESTÊVÃO ANTUNES<br />
GUSTAVO VARGAS<br />
HUGO SAMORA<br />
JOANA BARROS<br />
JOÃO <strong>DE</strong> BRITO<br />
encenação<br />
JORGE SILVA MELO<br />
cenografia e figurinos<br />
RITA LOPES ALVES<br />
luz<br />
PEDRO DOMINGOS<br />
direção musical<br />
RUI REBELO<br />
JOÃO <strong>DE</strong>LGADO<br />
JOSÉ NEVES<br />
LUÍS MOREIRA<br />
MAFALDA JARA<br />
MARCO TRINDA<strong>DE</strong><br />
MIRRÓ PEREIRA<br />
NUNO BERNARDO<br />
NUNO PARDAL<br />
PEDRO LUZINDRO<br />
PEDRO MEN<strong>DE</strong>S<br />
RICARDO NEVES-<br />
NEVES<br />
RÚBEN GOMES<br />
RUI REBELO<br />
TIAGO MATIAS<br />
TIAGO NOGUEIRA<br />
som<br />
ANDRÉ PIRES<br />
VÂNIA RODRIGUES<br />
assistência de encenação<br />
LEONOR CABRAL<br />
JOANA BARROS<br />
co produção<br />
e estagiários da ESTC<br />
BERNARDO NABAIS<br />
DAMIÃO VIEIRA<br />
DANIEL VIANA<br />
DIOGO TORMENTA<br />
FILIPE VELEZ<br />
ISAC GRAÇA<br />
IVO SILVA<br />
JOÃO PEDRO MAME<strong>DE</strong><br />
JOÃO VENTURA<br />
PEDRO LOUREIRO<br />
RAFAEL GOMES<br />
RICARDO TEIXEIRA<br />
TEATRO NACIONAL D. MARIA <strong>II</strong><br />
GUIMARÃES 2012 - CAPITAL EUROPEIA<br />
DA CULTURA<br />
ARTISTAS UNIDOS<br />
M/ 12<br />
2
DISTRIBUIÇÃO<br />
MIGUEL BORGES<br />
GEORGES <strong>DANTON</strong><br />
PEDRO LUZINDRO<br />
LEGENDRE, FABRE<br />
D´EGLANTINE<br />
JOÃO MEIRELES<br />
CAMILLE <strong>DE</strong>SMOULINS<br />
TIAGO MATIAS<br />
HÉRAULT-SÉCHELLES<br />
AMÉRICO SILVA<br />
LACROIX<br />
JOSÉ NEVES<br />
PHILIPPEAU<br />
JOÃO <strong>DE</strong>LGADO<br />
RAPAZ DO LENÇO,<br />
MERCIER<br />
RÚBEN GOMES<br />
THOMAS PAYNE<br />
PEDRO GIL<br />
ROBESPIERRE<br />
ELMANO SANCHO<br />
SAINT-JUST<br />
GUSTAVO VARGAS<br />
BARRÈRE<br />
RICA RDO NEVES-<br />
NEVES<br />
COLLOT D´HERBOIS,<br />
CARRASCO<br />
AFON SO LAGARTO<br />
CIDADÃO, BILLAUD<br />
VARENNES, DUMAS<br />
NUNO PARDAL<br />
CHAUMETTE<br />
ESTÊVÃO ANTUNES<br />
SOLDADO, CIDADÃO,<br />
DILLON, CARROCEIRO<br />
HUGO SAMORA<br />
FOUQUIER TINVILLE,<br />
CARCEREIRO<br />
MARCO TRINDA<strong>DE</strong><br />
CIDADÃO, <strong>DE</strong>PUTADO,<br />
PRISIONEIRO, AMAR<br />
PEDRO MEN<strong>DE</strong>S<br />
PARIS, <strong>DE</strong>PUTADO,<br />
HERMANN<br />
ANTÓNIO SIMÃO<br />
SIMON, CARCEREIRO,<br />
CARROCEIRO<br />
VÂNIA RODRIGUES<br />
MULHER <strong>DE</strong> SIMON<br />
JOÃO <strong>DE</strong> BRITO<br />
TRANSEUNTE,<br />
LAFLOTTE<br />
RITA BRÜTT<br />
JULIE<br />
SYLVIE ROC HA<br />
MARION<br />
MARIA JOÃO PINHO<br />
LUCILE<br />
ALEXANDRA VIVEIROS<br />
ROSALIE<br />
JOANA BARROS<br />
A<strong>DE</strong>LAI<strong>DE</strong><br />
RUI REBELO<br />
MENDIGO, LIONÊS<br />
MIRRÓ PEREIRA<br />
DAMA DAS CARTAS<br />
MAFALDA JARA<br />
MULHER DA VIELA<br />
TIAGO NOGUEIRA<br />
CANTOR AMBULANTE,<br />
PRISIONEIRO,<br />
CIDADÃO<br />
NUNO BERNARDO<br />
CIDADÃO<br />
LUÍS MOREIRA<br />
CIDADÃO,<br />
TRANSEUNTE,<br />
<strong>DE</strong>PUTADO,<br />
PRISIONEIRO,<br />
CARRASCO<br />
<strong>DE</strong>PUTADOS,<br />
CIDADÃOS,<br />
PRISIONEIROS,<br />
CARCEREIROS,<br />
CARROCEIROS,<br />
POPULARES:<br />
PELO ELENCO E<br />
ESTAGIÁRIOS DA ESTC<br />
(BERNARDO NABAIS,<br />
DAMIÃO VIEIRA,<br />
DANIEL<br />
VIANA, DIOGO<br />
TORMENTA, FILIPE<br />
VELEZ, ISAC GRAÇA,<br />
IVO SILVA, JOÃO<br />
PEDRO<br />
MAME<strong>DE</strong>, JOÃO<br />
VENTURA, PEDRO<br />
LOUREIRO, RAFAEL<br />
GOMES, RICA RDO<br />
TEIXEIRA).<br />
3
O ESPETÁCULO<br />
Pretender fazer A Morte de Danton, o enigmático texto de Georg Büchner, é desejo<br />
profundo de quem começou a dirigir espetáculos nos velhos anos 70 daquele<br />
outro século, sanguinário também. Porque é na Morte de Danton que se lançam<br />
todas as questões do teatro que depois nos viria a interessar, é nela que a<br />
herança de Shakespeare é ultrapassada e o seu sopro histórico absorvido. Peça<br />
desequilibrada, insólita, premonitória, desarrumada, desalinhada - em que às<br />
cenas de multidão se sucedem as insónias mais íntimas, em que a História é vista<br />
como um pesadelo noturno, peça de um negro pessimismo, é a peça sangrenta de<br />
um rapaz olhando a morte. E a mim sempre me interessaram os escritos de<br />
juventude. Do jovem Brecht à jovem Sarah Kane, do jovem Harrower ao jovem<br />
Fosse ou ao José <strong>Maria</strong> Vieira Mendes – tenho-me encontrado sistematicamente<br />
entre aqueles que afinam ainda a voz, que ainda não encontraram o equilíbrio<br />
formal, que ainda sangram.<br />
E A Morte de Danton é esse texto: as convulsões da História vistas por um rapaz,<br />
perplexo perante a morte.<br />
Jorge Silva Melo<br />
Fotografia de ensaios © Jorge Gonçalves<br />
4
REPRESENTAÇÕES <strong>DE</strong><br />
A <strong>MORTE</strong> <strong>DE</strong> <strong>DANTON</strong><br />
A obra teatral de Georg Büchner não foi representada a não ser postumamente. A<br />
descoberta deve-se aos naturalistas (nomeadamente Gerhard Hauptmann e,<br />
depois, aos expressionistas. Max Reinhardt virá a estrear A Morte de Danton em<br />
1916 e posteriormente em 1921 e 1929, tendo nessa altura sido realizado um filme<br />
com Fritz Kortner. Também Gustav Gründgens dirige a peça, em 1939. Fora do<br />
mundo germânico, a peça conhece várias versões, nomeadamente a encenação de<br />
Jean Vilar (Avignon, 1948), Bruno Bayen (Théâtre de la Cité Internationale, 1968),<br />
Georges Wilson no TNP (Paris, 1971), a de Giorgio Strehler em Milão, e, mais<br />
recentemente, as de Alexander Lang no Deutchses Theater de Berlim (1981), Klaus<br />
Michael Grüber nos Amandiers em Nanterre (1989), Thomas Oestermaier na<br />
Schaubúhne (2001) ou a de Georges Lavaudant no Odéon (2002), Jean François<br />
Sivadier (Rennes, 2005) ou ainda Michael Grandage (numa versão bastante livre<br />
de Howard Brenton, no National Theatre, Londres, 2010). A peça deu origem a uma<br />
ópera de Gottfried von Einem estreada em Salzburgo em 1947, com direção de<br />
Ferenc Fricsay. Em Portugal, A Morte de Danton estreou, numa tradução de <strong>Maria</strong><br />
Adélia Silva Melo (aqui revista), em 1989, com encenação de Carlos Avilez,<br />
cenografia de João Quintão e interpretação de: António Marques (Danton); João<br />
Vasco (Robespierre); Sérgio Silva (Camille Desmoulins); Carlos Freixo (Lacroix);<br />
Paulo B (Saint Just); Anna Paula (Marion); Fernanda Neves (Lucile); Filomena<br />
Gonçalves (Julie); Santos Manuel (Simon); Alice Luís; Ana Marques; António Pedro<br />
Cerdeira; Carlos Pessoa; Diogo Infante; F. Pedro Oliveira; Marcantonio Del-Carlo.<br />
João Vasco (Robespierre) e António Marques (Georges Danton),<br />
em A Morte de Danton (enc. Carlos Avilez),<br />
TEC, 1989 © César Cardoso<br />
5
GEORG BÜCHNER<br />
STANLEY KAUFFMANN<br />
Filho de um médico ilustre, nasceu em Goddelau, uma pequena cidade perto de<br />
Darmstadt, na Alemanha, a 17 de outubro de 1813. De génio científico brilhante,<br />
Georg, influenciado pelo pai, decidiu começar a estudar medicina em 1831, aos 18<br />
anos. Dois anos mais tarde, contudo, a sua atenção virou-se para a história e a<br />
filosofia, e envolveu-se profundamente nas lutas políticas do seu tempo. Isto levou<br />
a que trocasse a Alemanha por Zurique, onde continuou a sua formação na<br />
Universidade. Morreu a 19 de fevereiro de 1837, aos 23 anos, após sofrer de uma<br />
das “febres” generalizadas do seu tempo, provavelmente tifo.<br />
Büchner escreveu algumas das peças mais influentes da história do teatro<br />
ocidental: A Morte de Danton (1835). Leôncio e Lena (1836) e o inacabado Woyzeck<br />
(1837). Apesar de, na altura, o seu trabalho ter tido pouco impacto, influenciou um<br />
espectro incrivelmente largo de práticas teatrais, desde a sua redescoberta por<br />
Gerhardt Hauptmann nos finais do século XIX.<br />
A Morte de Danton é a primeira peça escrita por Büchner, com 21 anos. A sua<br />
pesquisa para a peça começou no final de 1834 e completou a primeira versão em<br />
5 semanas já em 1835. A peça só estreou em 1902, muito após a morte de Büchner.<br />
A Morte de Danton confronta-nos com os problemas mais graves da ideologia e da<br />
crença. Os assuntos em A Morte de Danton são subtis e caracterizados com<br />
mestria, emergindo de uma época particularmente problemática e dramática na<br />
história dos movimentos democráticos no ocidente, a era da Revolução Francesa e<br />
do Terror. A ação, que tem lugar depois da decapitação de Luís XVI e <strong>Maria</strong><br />
Antonieta, traça a queda do espírito democrático, a partir das alturas do idealismo<br />
até às profundezas do desejo vingativo e sanguinário. A peça acompanha a<br />
história de George Danton, um poderoso e carismático orador e líder das forças<br />
antimonárquicas pós-revolucionárias, que se volta contra o poder exercido pelos<br />
seus correligionários (nomeadamente Robespierre) e tenta parar as medidas<br />
atrozes que trazem tanto sofrimento ao povo. Robespierre impede-o e usa o<br />
Tribunal para condenar à Danton e toda a oposição à morte, consolidar o seu<br />
poder e chacinar inúmeros milhares de homens, mulheres e crianças franceses. No<br />
final, Danton é levado à guilhotina.<br />
6
“Büchner, apaixonadamente humano, politicamente rebelde, manifestando-se com<br />
impaciência, queria claramente que a forma da sua peça se ajustasse às suas<br />
visões radicais das personagens, da política e da história. A estrutura tradicional<br />
teria sido limitadora, já que a peça que é precursora, filosoficamente, do<br />
existencialismo do século vinte, que põe a nu o idealismo narcótico da ação<br />
pública, e que explode com as injunções aristotelianas. A Morte de Danton é a<br />
primeira peça a começar depois do seu clímax. O destino do protagonista – a sua<br />
execução pelo grupo de Robespierre – já está mais que decidido antes de a peça<br />
começar. A peça poderia igualmente chamar-se Danton a Morrer. Ele tenta<br />
defender-se devido à pressão dos seus amigos; no entanto, desde o primeiro<br />
momento da peça, o assunto está estabelecido na sua mente. Ele vai morrer.<br />
Assim, a intenção dramática inconvencional de Büchner forçou-o a prescindir das<br />
estruturas clássicas dos seus adorados Shakespeare e Goethe e a moldar a sua<br />
peça de uma maneira tão inovadora e explorativa como o seu pensamento”. (…) “A<br />
peça depende de um andamento, de um ritmo de progresso, de uma corrente de<br />
cenários que agora associamos ao cinema e que parecia estar, antecipadamente,<br />
na posse de Büchner. (...) Büchner, desprezando a prática teatral corrente,<br />
7
ultrapassou-a: respondeu a uma estética que ainda não existia. Consideremos<br />
alguns pormenores. A peça não começa. Estas vidas já tinham estado a acontecer<br />
durante algum tempo: nós apenas nos juntamos a elas. A cena um não começa<br />
com o estabelecimento de tempo ou espaço – estes vão-se infiltrando à medida<br />
que avançamos – mas com o sentido da nossa entrada num cenário de vidas em<br />
progresso. (...) A peça ainda nem tem um minuto e já nós estamos completamente<br />
imersos nela. Nós, que vivemos num mundo imerso em cinema, conseguimos<br />
reconhecer o processo, usado aqui com um propósito excecional. (...) Ao longo da<br />
peça, cenas longas e curtas, ativas e introspetivas quase se atropelam umas às<br />
outras (...) A ideia da fusão de cenas através de mudanças de luzes e focos, algo<br />
muito familiar ao teatro de hoje – e, claro, ao cinema – era rudimentar num teatro<br />
que ainda não tinha, nem tinha sequer concebido, a iluminação elétrica”.<br />
Stanley Kauffmann, in Büchner: A Revelation.<br />
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves<br />
8
GEORG BÜCHNER:<br />
CRONOLOGIA<br />
1813 1813 18 de outubro: Karl Georg Büchner nasce em Goddelau, Hesse, o primeiro<br />
filho de Ernst Karl Büchner e da sua mulher, Caroline. (Dando seguimento a uma<br />
tradição de muitas gerações, Ernst Büchner era médico; mais tarde entrou ao<br />
serviço do grão-duque e conquistou por fim o título de Obermedizinalrat. O casal<br />
teve mais cinco crianças; todas exceto uma – a mais velha das duas raparigas – se<br />
distinguiram nas suas variadas áreas, particularmente Ludwig, o segundo mais<br />
novo, que se tornou muito mais famoso que Georg no século XIX graças ao seu<br />
livro Kraft und Stoff, que popularizou a filosofia materialista).<br />
1816 1816 1816 A família muda-se para Darmstadt, capital do Grão-Ducado de Hessen-<br />
Darmstadt.<br />
1825 1825 1825 Depois de receber instrução primária em casa com a mãe e também numa<br />
escola privada local, Büchner começa os estudos secundários no Ludwig-Georg-<br />
Gymnasium em Darmstadt.<br />
Georg Büchner, gravura de Aimbach<br />
a partir de retrato de A. Hoffman<br />
9
1831 1831 outubro: tendo deixado a escola em março, Büchner torna-se aluno na<br />
Faculdade de Medicina da Universidade de Estrasburgo. Aloja-se em casa de um<br />
pastor protestante viúvo, Johan Jakob Jaeglé, e começa um noivado secreto com<br />
a sua filha Minna (Louise Wilhelmine, 1810-1880).<br />
1833 1833 1833 Regulamentações governamentais obrigam Büchner a prosseguir os<br />
estudos no Grão-Ducado, e assim ingressa em outubro na Universidade de<br />
Giessen, na província do Alto Hesse. (Entre os seus professores, o grande químico<br />
Justus von Liebig e J. B. Wilbrand, um dos expoentes máximos da<br />
Naturphilosophie). Fins de novembro: ataque de meningite.<br />
1834 1834 Entre fins de fevereiro e inícios de março: sofre sérias crises de doença que<br />
afetam o seu equilíbrio físico e mental. A meio de março (ou talvez mais cedo): a<br />
carta “hediondo fatalismo” para Minna. Fins de março: escreve uma primeira<br />
versão daquilo que viria a ser O Mensageiro de Hesse e funda a secção de Giessen<br />
da sua Sociedade dos Direitos Humanos, núcleo revolucionário que incluía tanto<br />
trabalhadores como membros da classe média; em abril, funda uma segunda<br />
secção em Darmstadt.<br />
Agosto: Carl Minnigerode é preso com grandes quantidades de recentes cópias<br />
impressas de O Mensageiro de Hesse. Büchner escapa à prisão pela sua posição<br />
social e familiar.<br />
Setembro: Büchner abandona Giessen definitivamente e volta à segurança relativa<br />
da casa familiar em Darmstadt.<br />
1835 1835 Entre fins de janeiro e fins de fevereiro: Büchner termina A Morte de Danton<br />
“em cinco semanas no máximo”; neste período foi também provavelmente<br />
chamado a depor.<br />
Inícios de março: foge para Estrasburgo (rapidamente seguido, afinal, por uma<br />
nota de captura).<br />
Junho: A Morte de Danton é publicada em edição expurgada.<br />
Outubro: Lenz está provavelmente concluída.<br />
1836 1836 1836 31 de março: após agitados meses de trabalho, Büchner completa a tese em<br />
Biologia, tendo lido excertos na Sociedade de História Natural de Estrasburgo, em<br />
abril e princípios de maio.<br />
Entre junho e outubro: outro intenso período de trabalho, no qual Büchner trabalha<br />
alternadamente em Leôncio e Lena, em Woyzeck, num projeto de várias<br />
conferências filosóficas e na “Lição Experimental” de Zurique; terá também<br />
possivelmente planeado, redigido e terminado uma outra peça (de que não ficou<br />
rasto), Pietro Aretino.<br />
10
Setembro: Büchner doutora-se pela nova Universidade de Zurique, tendo por base<br />
a Memória sobre o sistema nervoso do barbo.<br />
19 de outubro: após o seu vigésimo terceiro aniversário, celebrado no dia anterior,<br />
Büchner viaja para Zurique com o objetivo de se tornar um Privatdozent na<br />
Faculdade de Filosofia da Universidade (que incluía Anatomia Comparada).<br />
5 de novembro: apresenta a sua “Lição experimental” e é formalmente aceite no<br />
cargo; nas semanas seguintes dá o seu primeiro curso, “Anatomia comparada dos<br />
peixes e anfíbios”; continua a trabalhar em Woyzeck.<br />
1837 1837 2 de fevereiro: Büchner adoece; é-lhe diagnosticada febre tifoide. A 17 de<br />
fevereiro, Minna Jaeglé chega de Estrasburgo.<br />
Büchner morre a 19 de fevereiro.<br />
Fotografia de ensaios © Jorge Gonçalves<br />
11
A <strong>MORTE</strong> <strong>DE</strong><br />
<strong>DANTON</strong><br />
Georg Büchner é possivelmente o mais extraordinário fenómeno da literatura<br />
moderna alemã. Ele chocou completamente com a consciência do seu próprio<br />
século. Quando morreu em 1837, com apenas vinte e três anos (vítima de uma<br />
epidemia de tifos), era praticamente desconhecido fora dos seus círculos – o que<br />
não é surpreendente tendo em conta que apenas uma obra tinha sido publicada<br />
com o seu nome (uma versão expurgada de A Morte de Danton).<br />
Meio século depois ele não era certamente mais conhecido: apesar de a maioria<br />
dos seus escritos terem aparecido, de uma forma ou de outra, tinham causado<br />
pouco impacto; ele era mencionado na maioria dos manuais literários e<br />
enciclopédias, mas como um pedaço obscuro da história, periférico e<br />
frequentemente dúbio. Mais tarde, pelo final do século, a perceção alterou-se.<br />
Outros escritores, em particular, começaram a responder à sua voz e a<br />
reconhecer a sua modernidade surpreendente. Uma a uma, as suas peças foram<br />
chegando aos palcos: Leôncio e Lena em 1895; A Morte de Danton em 1902;<br />
Woyzeck em 1903 (e a ópera de Alban Berg, Wozzeck, em 1925). As edições<br />
começaram a seguir-se. O gotejar inicial de monografias e teses transformou-se<br />
num rio, e depois numa cheia. De repente Georg Büchner era um clássico. Mas<br />
mais importante que isso, ele era – e é –, uma presença viva. Mais nenhum escritor<br />
alemão antes de Brecht tinha apreendido tão vivamente a imaginação moderna –<br />
ou é representado com mais frequência tanto na Alemanha como no estrangeiro.<br />
Nenhum outro escritor é tão entusiasticamente saudado pelos seus sucessores<br />
contemporâneos: Heinrich Boll falou da sua “singular relevância”, Gunter Grass da<br />
sua força “incendiária”; para Christa Wolf, “a prosa germânica começa com o Lenz<br />
de Büchner” – que constitui o seu “ideal absoluto”, a sua “experiência fundamental”<br />
na literatura germânica; Wolf Biermann foi mais longe, descrevendo-o<br />
simplesmente como “o maior escritor” da Alemanha (“unser grofter Dichter”).<br />
Mas apesar de existir acordo universal em relação ao poder e imediaticidade da<br />
voz de Büchner, têm havido pequenas disputas acerca do que essa voz realmente<br />
diz. Isto é pouco surpreendente, tendo em conta variados fatores que<br />
transformam Büchner num foco natural de controvérsia.<br />
Começando pelo mais óbvio, temos a "pequenez" de escala e a interrupção<br />
precoce da sua produção. Se ele tivesse chegado aos setenta anos (como o seu<br />
pai e quatro dos seus irmãos, de entre os quais o mais novo viveu até ao século<br />
12
XX), os seus escritos mais prematuros não teriam sido apenas finalizados e<br />
publicados, mas também, provavelmente, contextualizados como parte de uma<br />
muito maior obra. Tendo em conta a forma como tudo aconteceu, eles<br />
sobreviveram – se de todo – apenas em manuscritos rasurados, incompletos e<br />
muitas vezes elegíveis, ou então em versões impressas que foram por variadas<br />
vezes mutiladas, truncadas, expurgadas, sendo também quase inteiramente<br />
póstumas e não autorizadas. Parece dificilmente credível, mas mesmo hoje em dia,<br />
mais de um século e meio após a sua morte, não existe ainda uma edição<br />
Histórico-Crítica definitiva da obra de Büchner.<br />
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves<br />
13
Depois, há também a natureza provocatória dos seus temas e preocupações. O<br />
sexo, para começar: a partir das primeiras linhas de A Morte de Danton, com a sua<br />
imagem da duplamente "pretty lady" que oferece o seu coração ao marido e a<br />
cona aos amantes, as "obscenidades" de Büchner garantem-lhe o título de "enfant<br />
terrible". E no processo serviu para trair a visão de inúmeros críticos. A religião é<br />
também um tema persistentemente irritante. Uma e outra vez, os deuses, Deus e<br />
os espíritos são invocados pelas suas personagens, para serem desprezados,<br />
negados, desafiados, rogados – servindo assim como um desafio constante ao<br />
crente, semelhante ao agnóstico e ao ateu. Mas a mais explosiva de todas é talvez<br />
a questão política. Este é um homem que foi indiscutivelmente o pensador<br />
esquerdista mais radical da sua época em terras germânicas, um revolucionário<br />
dedicado que – embora tenha entrado no panorama como propagandista<br />
militante e ativista apenas durante um curto período de tempo – manteve-se<br />
notavelmente comprometido durante o resto da sua vida à violenta subversão<br />
daquilo a que assistiu enquanto membro da incapaz classe dirigente, parasita e<br />
ilegítima, e ao ressurgimento e emancipação da viciosamente explorada massa<br />
popular.<br />
Tendo em conta a escassez e caráter duvidoso das evidências diretas, como as<br />
cartas de Büchner (a maioria das quais sobreviveram - se de alguma forma -<br />
apenas sob formas cortadas cuidadosamente extraídas e possivelmente<br />
inofensivas), e também das evidências indiretas, como reminiscências de amigos e<br />
conhecidos, ficheiros de polícia, registos de tribunal, etc, há uma considerável<br />
margem para argumentos até relativos às suas atividades precisas e<br />
posicionamento nas macro e micro realidades políticas da época. Mas tem havido<br />
uma particularmente feroz controvérsia sobre a dedução das políticas dos seus<br />
escritos (quase todos eles nascidos após o fiasco de O Mensageiro de Hesse, que<br />
afetou profundamente o decorrer da sua vida - não apenas forçando-o ao exílio no<br />
estrangeiro). As interpretações nesta área têm diferido de forma muito radical,<br />
desde uns num extremo que encontram um revolucionarismo militante destemido<br />
em qualquer fase da sua escrita, àqueles no extremo oposto defendendo que a<br />
sua experiência desagradável o tinha impulsionado para um "niilismo absoluto",<br />
que tinha sequencialmente contribuído para a sua completa despolitização. (Os<br />
dois extremos são hoje bastante desacreditados).<br />
À parte da escassez e incerteza do estado dos textos, e da natureza inflamatória<br />
das questões lá contidas, há outro elemento muito mais fundamental no trabalho<br />
de Büchner que encoraja a controvérsia, que é a própria natureza da sua escrita –<br />
a linguagem, modos e estruturas que ele usa para expressar as suas<br />
preocupações. Pela imagem oscilante que a sua escrita projeta, é profundamente<br />
não- e mesmo anticlássica, assim como conscientemente longínqua das<br />
convenções e expectativas prevalecentes na sua época. Tanto na linguagem como<br />
14
no humor, no enredo ou nas personagens, ele não oferece desenvolvimentos fixos<br />
e constantes, nada que indique qualquer coisa cíclica, resolvida ou unificada. Em<br />
vez de uma revelação que se dá a um ritmo claramente medido, os seus trabalhos<br />
progridem através de uma sucessão de convulsões caleidoscópicas,<br />
representando aquilo a que se tem chamado a "lei da descontinuidade". A<br />
totalidade (“wholeness”) – quando aparece – é sempre falsa: uma pretensão, uma<br />
ilusão, no máximo um estado transitório. São sempre partículas que tecem<br />
grandes e discretos elementos que ele salienta num isolamento surpreendente, ou<br />
em aglomerações díspares e combinações que criam uma ideia constante de<br />
polivalência, mistério e paradoxo. Reside aqui o ponto alto da sua espetacular<br />
modernidade: aquilo que ele já faz nos anos 30 do século XIX irá parecer<br />
chocantemente original quando praticado pelos pintores, compositores e<br />
escritores mais avant-guardes do início do século XX. Mas isto também o torna<br />
especialmente difícil de interpretar. Em particular, coloca o problema da<br />
perspetiva: sendo tão díspares e discretos, os elementos do seu trabalho mudam<br />
de aspeto e de importância aparente de forma muito radical quando encarados<br />
de diferentes pontos de vista.<br />
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves<br />
15
É escusado dizer que a descontinuidade sistemática de Büchner não é um<br />
acidente – e não é certamente, como já foi sugerido, uma marca de imaturidade –<br />
mas uma característica central, até definidora, do seu trabalho. Se olharmos para<br />
um exemplo do classicismo germânico como <strong>Maria</strong> Stuart de Schiller, vemos uma<br />
complexidade magnífica – mas uma complexidade semelhante a uma fuga<br />
barroca com a sua rica mas contida elaboração de lúcidos temas pré-<br />
estabelecidos. A abordagem de Georg Büchner é fundamentalmente diferente. Ele<br />
nunca se preocupa com o atingir de conclusões ou soluções. Em vez disso, a sua<br />
escrita é como um género de "happening", uma busca constante, uma<br />
promulgação dinâmica do próprio processo de argumentação e conflito, da colisão<br />
e interação de possibilidades contrárias. O seu trabalho começa, mas nunca num<br />
início; ele chega a um fim, mas nunca a uma conclusão. Isto consegue facilmente<br />
provocar-nos alegria mas perplexidade – e deixar-nos propensos ao entendimento<br />
de alguns elementos discretos e particulares como a soma do todo, ou como o<br />
fixar definitivo de uma posição. Muitos críticos caíram nesta tentação, daí a<br />
persistente deturpação de Büchner como sendo variavelmente um pessimista<br />
programático e niilista, um fatalista programático, um cristão programático, um<br />
revolucionário Jacobino programático. Há uma consistência e unidade subjacentes<br />
em Büchner, mas só podem ser encontradas dentro e através das multiplicidades<br />
do seu trabalho – e não apesar delas.<br />
Ajuda se identificarmos qual é certamente o paradoxo dos paradoxos em Georg<br />
Büchner: o seu modo disjuntivo com a sua insistência implacável nos fragmentos e<br />
partículas é sempre a expressão de uma radiante visão da totalidade. Uma e outra<br />
vez, em qualquer área da sua existência – a sua política, a sua ciência, a sua<br />
estética, a sua escrita poética – encontramos um sentido ardente de totalidade,<br />
mas quase sempre uma totalidade que é pungentemente elusiva: isto foi mas já<br />
não é; ou vai ser mas ainda não é; ou – a mais pungente de todas – isto é no<br />
presente, mas só pode ser possuído parcial ou transitoriamente. Büchner é assim<br />
forçado a ser um fazedor de mosaicos. Mas quantas mais reentrâncias existirem<br />
nos fragmentos desses mosaicos, mais vistosos serão eles na sua invocação do<br />
todo – um padrão surgiu nas primeiras páginas do seu trabalho, quando uma sua<br />
personagem em A Morte de Danton usava os seguintes termos para definir a<br />
busca do protagonista por entre as tartes do Palais Royal: “Anda à procura dos<br />
bocados da Vénus de Médicis (…), faz um mosaico, é o que ele diz (…). É pena que<br />
a natureza tenha desmembrado a beleza (…) e depois dispersado os elementos<br />
pelos corpos mais diversos”. Minutos mais tarde o tema ecoa e é intensificado na<br />
resposta terna de Danton a Marion com o seu duplo enfoque na “totalidade” e na<br />
respetiva impossibilidade de alcance: “Porque é que não posso absorver a tua<br />
beleza, não posso abarcá-la toda?”. No início de Lenz encontramos a mesma<br />
imagem essencial durante as loucas viagens do protagonista pelos Vosges: “Sentia<br />
16
dever atrair a si a tempestade, receber todas as coisas; estendia-se na terra,<br />
cavava uma passagem no universo”. Em Leôncio e Lena é a totalidade do amor<br />
que é fragmentada, despedaçada nas notas separadas da escala musical, as cores<br />
separadas do arco-íris. Mas aqui, como sempre, a ênfase nos fragmentos implica<br />
uma crença na totalidade. E assim, é precisamente a experiência de Leôncio de<br />
um amor que inspira a totalidade do ser que é celebrada no intenso mas efémero<br />
clímax da peça: “Todo o meu ser está neste mesmo momento… Mais é impossível”.<br />
A centralidade desta visão de Büchner da totalidade torna-se clara mesmo quando<br />
percebemos que também está presente no coração do seu trabalho enquanto<br />
“cientista-filósofo”. Quando morreu em fevereiro de 1837, ele tinha acabado de<br />
embarcar numa promissora carreira na nova Universidade de Zurique. A sua tese<br />
de Estrasburgo sobre a anatomia do barbo, Memória sobre o sistema nervoso do<br />
barbo, concedeu-lhe não apenas o doutoramento em Zurique mas também a<br />
oferta de um cargo de docência como Privatdozent, tendo a 5 de novembro 1836<br />
apresentado competentemente a sua “Lição Experimental” (um requerimento<br />
obrigatório para a confirmação de posições como esta). Nas últimas linhas da sua<br />
Memória ele deu a entender a sua visão do mundo natural enquanto um grande<br />
todo harmonioso no qual mesmo as mais complexas entidades derivam de um<br />
“tipo primitivo”; no qual “as formas mais elevadas e mais puras” são desenvolvidas<br />
pela natureza de acordo com “o plano mais simples”. No prefácio da “Lição<br />
Experimental” ele expande-se neste tema. Sumarizando a história recente da<br />
anatomia comparada, salienta que “tudo estava a lutar na direção de uma certa<br />
unidade, em direção à investigação de todas as formas desde o tipo mais simples<br />
e primordial” (e isto era a essência da sua tentativa, na “Lição” e na Memória, de<br />
provar a hipótese segundo a qual o crânio, cérebro e nervos cranianos, por toda a<br />
sua suprema complexidade, se teriam desenvolvido originalmente a partir das<br />
estruturas relativamente simples das vértebras). A frase final da Memória ecoa<br />
especialmente na “Lição”, quando Büchner fala das “formas mais elevadas e puras”<br />
como sendo produzidas a partir dos “mais simples contornos e padrões”; mas<br />
onde ele se conteve na Memória a citar a Natureza como o agente deste processo,<br />
ele é agora muito mais explícito. No coração da natureza, ele declara, tem de<br />
haver uma “lei fundamental”, uma “lei primordial” que molda e forma o “mundo<br />
orgânico inteiro”. Apenas isto é já suficientemente surpreendente; mas mais<br />
surpreendente ainda é a proposta de Büchner segundo a qual essa “lei primordial”<br />
assumida é nenhuma outra que não a “lei da beleza”, que produz necessariamente<br />
“harmonia”de entre todas as suas manifestações. É possivelmente apenas contra<br />
este fundo que apreciamos verdadeiramente a ânsia por beleza atribuída a<br />
Danton quando este contempla Marion; ou as palavras climáticas de Leôncio (logo<br />
a seguir ao seu “Mais é impossível”): “Do caos nasce a criação, irrompendo contra<br />
mim, tão viva e nova, tão radiante de beleza”; ou – acima de tudo – as palavras<br />
17
concedidas a Lenz no decorrer da mais famosa declaração de Büchner sobre uma<br />
posição estética: “As imagens mais bonitas, as harmonias mais ressonantes,<br />
unem-se, dissolvem-se. Apenas uma coisa permanece: uma beleza infinita que<br />
passa de uma forma a outra, eternamente mutável e novamente revelada”.<br />
A solicitação de Büchner na “Lição Experimental” por uma ordem abrangente de<br />
rica simplicidade, impulsionada pela beleza e harmoniosa nas suas ações, pode<br />
parecer perfeitamente desconcertante, vinda de um homem que durante décadas<br />
foi quase universalmente representado como um pessimista ou niilista supremo,<br />
como dono de uma “forma extrema de pessimismo” que é “mais profunda e<br />
obscura que qualquer outra na anterior história do pensamento alemão, com a<br />
possível exceção de Schopenhauer” (M.B.Benn). Ainda que não consideremos esta<br />
perspetiva tradicional (entretanto caída em desaprovação), deparamo-nos ainda<br />
com um paradoxo estridente subjacente aos próprios textos: por um lado a bela<br />
ordem e a harmonia tão calmamente propostas na “Lição Experimental”, mas por<br />
outro as visões de desespero tão frequente e eloquentemente projetadas nos seus<br />
trabalhos poéticos – o isolamento aterrador do anti-herói no final de Lenz, ou da<br />
criança no “anticonto-defadas” de Woyzeck; o famoso grito de Danton “O mundo é<br />
caos, insignificância devido a Messias”; os medos de Leôncio, de que todas as<br />
imagens do nosso eu e do mundo possam ser meros delírios que mascam uma<br />
realidade de puro vácuo. Os exemplos poderiam ser multiplicados. Mas o<br />
paradoxo é mesmo esse – um paradoxo; não é uma contradição. A angústia rouca<br />
tão comum na escrita de Büchner não nega ou desmente esta crença na beleza<br />
fundamental e na ordem: deriva inteiramente dela.<br />
Fotografia de ensaio © Jorge Gonçalves<br />
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A este respeito ele é inesperadamente antiquado: considerando que Lenz e as três<br />
peças são magnificamente modernistas na sua articulação, a fé e a visão<br />
subjacentes a elas são largamente fundamentadas num Zeitgeist que estava já<br />
desatualizado quando Büchner o abarcou. À semelhança de tantos outros<br />
escritores prévios pertencentes ao período febril que começa no Sturm und<br />
Drang, passando pelo classicismo de Weimar e culminando no romantismo<br />
alemão, ele foi abençoado e amaldiçoado com uma visão idealista da totalidade e<br />
harmonia essenciais – mas num tempo em que a realidade prevalecente era, por<br />
contraste, ainda mais ruidosamente discordante. Encontramos precisamente este<br />
contraste numa das mais pungentes cartas de Büchner à sua amada noiva, Minna<br />
Jaeglé, escrita em março de 1834 quando este recuperava de um período de<br />
severa doença – e severa crise pessoal. Ele tinha “acabado de voltar do exterior”,<br />
conta a Minna, onde “Um único tom ressonante vindo de uma centena de cotovias<br />
estoura através do melancólico ar de verão, um pesado pedaço de nuvem vagueia<br />
pela terra, o vento em expansão ressoa à semelhança do seu melodioso passo”. É<br />
assim o vibrante e bonito presente de Büchner. Mas, ele continua, até ao momento<br />
em que o ar primaveril o libertou e lhe deu vida outra vez, ele tinha sido há muito<br />
trespassado por um género de rigor, por uma impressão de estar já morto,<br />
enquanto tudo à sua volta se assemelhava a cadáveres com olhos de vidro e<br />
bochechas de cera. Os “cadáveres” falavam e moviam-se, e com esta descrição<br />
Büchner lança-se num dos seus característicos e emocionantes compassos de<br />
desespero:<br />
Então, quando toda a maquinaria começou a trabalhar com membros que se<br />
sacudiam e vozes dissonantes a chiar, e eu ouvi a mesma velha melodia no órgão<br />
a tralala e vi os pequenos dentes e os cilindros a zumbir na caixa do órgão – eu<br />
amaldiçoei o concerto, a caixa, a melodia – oh, que pobres músicos gritantes<br />
somos nós – será possível que os nossos gritos de agonia na estante apenas<br />
existam para ressoar através de brechas entre as nuvens e, ecoando em contínuo,<br />
morram como um suspiro melódico em ouvidos celestiais?<br />
- Uma antífona enervante: na natureza, o vento e as cotovias e a sua<br />
melodia libertadora; entre os homens, uma raspagem mecânica e mortífera, gritos<br />
tortuosos extraídos talvez por qualquer divindade distante para sua excitação<br />
privada. E é esta mesma trágica antífona que Büchner usa nove meses depois para<br />
iniciar o grande clímax de ópera em A Morte de Danton:<br />
PHILLIPPEAU: Meus amigos, não temos de nos erguer muito acima da terra<br />
para perder de vista todo este vacilar, todas estas incertezas e encher os olhos de<br />
uns grandes contornos divinos. Há um ouvido interior que ouve o clamor e a<br />
discórdia, em que nos aturdimos, e os transforma numa torrente de harmonia.<br />
19
<strong>DANTON</strong>: Mas nós somos os pobres músicos e os nossos corpos são os<br />
instrumentos. Tiramos deles estes acordes terríveis só para subirem cada vez mais<br />
alto e se perderem envolvidos num suspiro de volúpia nos ouvidos celestiais?<br />
Surge assim a questão: porque nos transformámos nós em tão “pobres músicos”,<br />
tão longe da “corrente de harmonias”, dessa “harmonia necessária” supostamente<br />
inscrita na natureza pela lei primordial da beleza? A imagem de deuses sádicos<br />
que forçam em nós a discordância para seu bel-prazer é mais um florescer<br />
retórico que uma afirmação séria. Büchner parece encontrar as razões<br />
verdadeiras entranhadas na própria humanidade – e mais particularmente na<br />
influência indevida da Mente e dos sistemas artificiais.<br />
Outro paradoxo ainda é o facto deste homem, um herdeiro do Iluminismo, um<br />
dedicado investigador científico, um intelectual voraz, um aspirante a académico<br />
que queria acima de tudo ensinar filosofia na Universidade de Zurique, tenha sido<br />
no entanto tão profundamente suspeito e desdenhoso da razão humana, e<br />
especialmente das suas manifestações na filosofia racionalista. Tanto o desprezo<br />
como os seus fundamentos estão muito claros no prefácio à "Lição Experimental".<br />
Büchner defende que ainda nunca se teria provado ser possível "colmatar o fosso<br />
entre [o dogmatismo dos filósofos racionalistas] e a vida natural tal como a<br />
apreendemos diretamente", continuando: “A filosofia a priori ainda habita um<br />
desolador e árido deserto; existe uma longa distância a separá-la da vida verde e<br />
fresca, e é altamente questionável se algum dia preencherá essa lacuna".<br />
Esta ideia da existência de um abismo absoluto entre o racionalismo e a Vida em<br />
todo o seu vigor e exuberância diretamente apreensíveis é exatamente o que dá<br />
alma às críticas fundamentais de Büchner a Descartes e ao seu cogito ergo sum.<br />
Numa passagem crucial do seu longo e complexo comentário à filosofia de<br />
Descartes, ele distingue categoricamente entre "ser" e "pensar". O que importa é o<br />
nosso Ser; o pensamento não é mais que uma "atividade secundária". A<br />
característica definidora do Ser é a sua imediaticidade: concede-nos verdades e<br />
conhecimentos "imediatos" (ou "não-mediados"), assim como uma espontânea e<br />
natural "consciência de que o eu existe". Este domínio primário do Ser é não<br />
apenas independente dos processos do pensamento racionalista mas também –<br />
de acordo com o entendimento radical de Büchner – inteiramente inacessível a<br />
ele. Tendo em conta a primazia desta “não-mediação”, o Ser autêntico e a sua<br />
inacessibilidade à racionalização, todo o edifício do racionalismo Cartesiano<br />
parece subitamente falso, as suas reivindicações pela verdade apenas um<br />
conjunto de ficções arbitrariamente construídas por e na mente lógica, distante da<br />
realidade vivida, diretamente intuída. Indo ainda mais longe, Büchner sugere que a<br />
lógica racionalista não pode sequer lidar adequadamente com os abismos<br />
especificamente filosóficos sobre os quais afinal foi inteiramente construída. Isto<br />
20
aplica-se com força particular às supostas provas de Deus. Assim, o Deus de<br />
Descartes é para Büchner um puro mecanismo de expediente, um dispositivo<br />
especialmente maquinado para "preencher o abismo" entre pensamento e<br />
conhecimento, para ser uma "ponte" entre o eu e o mundo, uma "escada" para<br />
fugir ao "túmulo da filosofia", uma corda para escalar o "abismo da dúvida". Num<br />
outro momento ele defende que enquanto a lógica da prova de Deus de Descartes<br />
pode ser convincente nos seus próprios termos, nada nos convence a aceitar essa<br />
lógica por si só; na verdade ela é contrariada pela experiência primária da nossa<br />
mente e das as nossas emoções: "Assim que alguém entra na definição de Deus,<br />
tem de admitir a existência Dele. Mas o que é que nos prova ao construirmos esta<br />
definição? / A nossa mente? / Ela conhece a imperfeição. / As nossas emoções?<br />
Elas conhecem a dor."<br />
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves<br />
21
Mas porque interessariam estas questões? Porque não poderá o racionalismo ser<br />
deixado aos seus próprios dispositivos no seu deserto de abstrações? Reside aqui<br />
um problema crucial para Büchner: apesar do quão remota possa estar a<br />
sistematização cartesiana da "vida verde e fresca" como nós diretamente a<br />
apreendemos, as suas construções falsas – e outras de tipo similar – são<br />
ameaçadoras de prevalecer, são ameaçadoras de condicionar a nossa<br />
compreensão e forma de lidar com o mundo. Isto é particularmente claro dentro<br />
da área da biologia de Büchner. Sob a enfraquecida mão de Descartes, o corpo<br />
vivo é reduzido a mera máquina composta por porcas e parafusos. Ele realça que<br />
em De homine, o tratado de Descartes sobre a psicologia, o ser humano é<br />
"l'homme machine", uma colagem "artificial" de "parafusos, dentes e cilindros", de<br />
"aparatos" mecânicos; e na "Lição Experimental" usa exatamente o mesmo tipo de<br />
vocabulário para atacar o funcionalismo frio e redutivo daquilo a que ele chama<br />
de escola "teleológica" em fisiologia e anatomia. Estava a lutar uma batalha<br />
perdida: os "teleologistas" estavam em sintonia perfeita com uma era cada vez<br />
mais conduzida pelo funcionalismo de qualquer tipo. Isto torna-se graficamente<br />
claro quando nos apercebemos que a visão deles de um organismo vivo era a de<br />
"uma máquina complexa provida de dispositivos funcionais que a permitem<br />
sobreviver durante certo período de tempo", destacadamente próxima da mais<br />
revolucionária e influente teoria biológica do século XIX: A Origem das Espécies,<br />
de Charles Darwin, e a sua asserção segundo a qual as criaturas mais adaptáveis e<br />
melhor equipadas seriam as que sobrevivem na "luta da vida" – de facto um grito<br />
longínquo da crença inspiradora de Büchner (presente na sua Naturphilosophie)<br />
numa lei primordial de beleza que produz uma riqueza perfeita, sublime, nobre,<br />
bela, inspirada e harmoniosa, partindo de uma matriz de simplicidade essencial.<br />
Apesar de tudo, ele mantém-se fiel à sua crença antiquada – e particularmente ao<br />
seu entendimento do valor absoluto do individual. Esta é possivelmente a sua<br />
crítica mais crucial aos "teleologistas" que, de acordo com o seu princípio único de<br />
“a melhor aptidão possível para cada intenção”, entendem o individual "apenas<br />
enquanto algo que deve atingir um propósito para além dele próprio". Para<br />
Büchner, em contraste – e esta é indiscutivelmente a declaração mais<br />
ontologicamente poderosa de toda a sua obra – "Tudo o que existe, existe por sua<br />
própria causa".<br />
Esta é a crença encerrada no centro da "Lição Experimental"; mas sugiro que é<br />
também a crença no coração de toda a produção de Büchner. Na sua escrita<br />
poética, assim como na sua filosofia científica ele mantém sagrada a plenitude da<br />
Vida natural e “não-mediada” e a sua rica manifestação no ser de cada indivíduo.<br />
O problema é que ele pode celebrar isso positivamente pela sua presença gloriosa<br />
apenas por raras e fugazes ocasiões; maioritariamente deve celebrá-lo<br />
negativamente pela sua ausência – através da lamúria rapsódica ou sardónica da<br />
22
sua perda, recusa, supressão. Particularmente, expõe publicamente de forma<br />
inflexível qualquer tentativa de subordinar a vida aos sistemas – especialmente<br />
sistemas intelectuais. Daí o escárnio ao racionalismo na figura do Rei Peter<br />
(Leôncio e Lena); ao cientismo consumado no maníaco “Doutor-Professor”<br />
(Woyzeck); ao moralismo no Capitão (Woyzeck); às ambições jacobinas para<br />
reestruturação da humanidade (A Morte de Danton); ao reducionismo chocante<br />
nas artes contemporâneas (A Morte de Danton). Simultaneamente ele também se<br />
fixa repetidamente nos protagonistas – todos eles homens, quase por definição –<br />
cujas mentes são demasiado ativas, protagonistas paralisados ou excitados pelo<br />
facto de saberem e verem muito para além daquilo que seria bom para eles.<br />
Mas todas estas reflexões são na pior das hipóteses enganadoras, na melhor<br />
apenas parte da história. Georg Büchner é um dos mais elusivos e desafiantes<br />
escritores. A sua vitalidade e multiplicidade podem apenas ser verdadeiramente<br />
apreciadas dentro das suas palavras – e o propósito desta edição é deixá-las falar<br />
por elas mesmas em todo o seu vigor e profundidade admiráveis.<br />
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves<br />
23
OS ÚLTIMOS<br />
SOBRESSALTOS DA<br />
VIDA<br />
JEAN-LOUIS BESSON<br />
Em 1835, Karl Kutzov notava já que Büchner tinha escrito “em vez de um drama,<br />
em vez de uma ação que se desenrola, se intensifica e enfraquece, os últimos<br />
sobressaltos e os últimos estertores que precedem a morte”.<br />
O sofrimento e a morte ocupam um lugar preponderante no drama, e são<br />
evocados através das mais diversas expressões e metáforas: a morte seria uma<br />
“doença que faz perder a memória”, ela é chamada “a dona Putrefação”, “o grande<br />
manto debaixo do qual se apagam todos os corações e todos os olhos se fecham”.<br />
“A melhor morte é um ataque de apoplexia, ou preferias adoecer primeiro?”, diz<br />
Danton a Lacroix. Sofrer é um pensamento insuportável: “Não tenho medo da<br />
morte, da dor sim”, diz Laflotte, ela “é o único pecado e o sofrimento o único vício”.<br />
Esta presença constante da morte encontra um eco na correspondência de<br />
Büchner quando tem de sair de Estrasburgo e regressar a Hesse: é assaltado por<br />
interrogações sobre o sentido da vida, a ponto de se ter falado de uma profunda<br />
depressão. O que o rodeia em Darmstadt parece-lhe “medonho, esmagador,<br />
fastidioso (…), o deserto em todas as cabeças e em todos os corações”. Tudo é<br />
“pequeno e acanhado. A natureza e os homens, os ambientes mais mesquinhos,<br />
pelos quais não consigo sentir o menor interesse”, e sente-se “completamente só”;<br />
refugia-se no trabalho e “lança-se com todas as forças na filosofia”. Em fevereiro<br />
de 1834 acrescenta numa carta à noiva: “Estou só como se estivesse no túmulo (…),<br />
os meus amigos abandonam-me, gritamos uns com os outros como se fôssemos<br />
surdos; gostaria que fôssemos mudos, assim só poderíamos olhar-nos, e nestes<br />
últimos tempos mal posso olhar para alguém sem que me venham as lágrimas aos<br />
olhos (…). A neurastenia tenta ocupar o teu lugar, entrego-me a ela o dia inteiro”.<br />
Passado um mês, quando a crise atinge o paroxismo, afirma ainda:<br />
“A sensação de estar morto não me largava. Todos os seres me revelavam<br />
um rosto doentio, olhos vítreos, faces macilentas, e quando depois todo<br />
esse mecanismo começava a exprimir-se, quando as articulações<br />
estalavam, a voz saía aos guinchos e eu ouvia a eterna cantilena do realejo,<br />
cuja caixa deixava à mostra os pequenos rolos a girar e as pequenas<br />
24
agulhas a saltitar… eu maldizia esse concerto, a caixa, a melodia, e… ah!<br />
pobres músicos esganiçados que nós somos, será possível que os nossos<br />
gemidos no cadafalso estejam lá apenas para passar através das nuvens e,<br />
ressoando ao longe, irem morrer como um sopro melodioso em ouvidos<br />
celestes? Seríamos nós, no ventre ardente do touro de Perillos, a vítima<br />
cujo grito de morte soa como a explosão de alegria do deus touro a arder<br />
nas chamas?”<br />
Não é difícil detetar aqui certos motivos de A Morte de Danton, mesmo que a peça<br />
tenha sido escrita mais tarde. Büchner recordou-se ou inspirou-se nos seus negros<br />
pensamentos, retomando mesmo as imagens do pobre músico e do touro, e<br />
atribuiu às suas personagens angústias e pensamentos profundos que se<br />
assemelham aos seus. Ora ele coloca-os indiferentemente em qualquer campo:<br />
Danton, Lacroix, Camille, Robespierre, e até o traidor Laflotte são afetados, como<br />
se se tratasse de um sentimento geral e não apenas de características individuais.<br />
Existe na peça um desfasamento entre a distância que Büchner toma em relação<br />
às suas personagens no campo da ação política e a empatia que sente quando se<br />
trata do fundo íntimo do ser. Isto explica em parte as dificuldades de<br />
interpretação quando misturamos os dois níveis e pensamos que Büchner estaria<br />
politicamente próximo deste ou daquele porque lhe coloca na boca um discurso<br />
que poderia fazer ele próprio. O facto de esse discurso estar repartido entre os<br />
dois campos tende a provar que as coisas não são bem assim, mesmo que estas<br />
meditações sejam mais frequentes entre os partidários de Danton. A questão das<br />
orientações políticas e a da experiência existencial cruzam-se, influenciando-se<br />
mutuamente, mas estão longe de se misturar totalmente. Como se Büchner tivesse<br />
querido mostrar que o sofrimento profundo do ser era exacerbado pela sua ação<br />
na História, mas em muitos pontos separado das apostas desta última. O mundo<br />
das experiências privadas das personagens em A Morte de Danton ultrapassa o<br />
espaço espiritual e afetivo da ação, e daí o grande desfasamento entre esfera<br />
pública e esfera privada.<br />
Na peça, a questão do sofrimento é debatida sob a forma de uma discussão<br />
filosófica entre diferentes presos. Liderados por Payne, os detidos trocam opiniões<br />
sobre a não-existência de Deus. Depois de ter tentado demonstrar que Deus não<br />
pode existir, pois a sua essência eterna é contrária à ideia de Criação, depois de<br />
se ter lançado numa refutação vulgar do panteísmo de Spinoza, e depois de ter<br />
perguntado se uma causa perfeita podia criar algo de imperfeito, Payne faz um<br />
desmentido da Teodiceia, tendo em conta a presença do mal na terra:<br />
“Acabai com a imperfeição, só assim se poderá provar a existência de Deus.<br />
Espinosa tentou-o. Podemos negar o mal, mas não a dor. Só a razão pode<br />
provar a existência de Deus, o sentimento revolta-se contra isso. Repara,<br />
25
Anaxágoras, porque é que eu sofro? Aqui nasce o rochedo do ateísmo. O<br />
mais leve estremecimento da dor, mesmo que seja num átomo, destrói de<br />
alto abaixo a criação.”<br />
A argumentação prossegue, desenvolvendo o que Büchner aborda nas suas notas<br />
sobre Espinosa. Ao comentar a afirmação XI da Ética, reconhece que somos<br />
forçados a “chegar a qualquer coisa que só pode ser pensada como sendo”, mas<br />
objeta: “O que é que nos dá o direito de, por essa razão, fazer dessa essência o<br />
absolutamente perfeito, Deus?: O entendimento? Ele conhece o imperfeito; o<br />
sentimento? Ele conhece a dor.”<br />
Para Espinosa, nem o entendimento nem o sentimento podem demonstrar a<br />
existência de Deus. Só o facto de Deus ser pensado permite pressupor que ele<br />
existe. Payne inverte o argumento: segundo ele, o entendimento permitiria<br />
demonstrar a existência de Deus. Mas como o entendimento não pode demonstrar<br />
tudo, Deus e as outras coisas, isso significa que aquilo que ele pode demonstrar<br />
não poderia chamar-se Deus. O entendimento pode tudo afirmar e tudo negar,<br />
incluindo o bem e o mal. Só a dor seria então a prova da não-existência de Deus.<br />
Porque, se o mal é um conceito abstrato que pode ser negado, a dor é sentida<br />
fisicamente, o que a torna incontestável. Büchner tinha já encontrado este<br />
argumento em Epicuro. Como é que um Deus perfeitamente bom e todo-poderoso<br />
poderia tolerar o sofrimento? Se não pode impedi-lo, é porque não é todo-<br />
poderoso; e, se não quer impedi-lo, é porque não é perfeitamente bom,<br />
deleitando-se mesmo com ela, como os romanos se divertem com o flamejar das<br />
cores dos peixes agonizantes. Esta questão do sofrimento, apresentada aqui como<br />
“o rochedo do ateísmo”, não deixará de preocupar Büchner. Encontramos ainda<br />
vestígios em Lenz onde o poeta declara ao pastor Oberlin: “Mas eu, se fosse todo-<br />
poderoso, se fosse assim e não pudesse suportar o sofrimento, eu salvaria, pois só<br />
desejo a calma, a calma…”<br />
Robespierre, Danton e Marat<br />
26
Apesar da importância da “conversa dos filósofos”, em vão procuramos em A<br />
Morte de Danton ou na obra de Büchner uma ilustração das teses de Espinosa ou<br />
de Epicuro. Contudo, o tema da criatura sofredora num mundo abandonado pelos<br />
deuses é retomado na peça sob inúmeras variações.<br />
Robespierre, que fica só após a discussão com Danton, mergulha na incerteza “não<br />
sei qual dos dois dentro de mim mente”, constata ele, como as palavras de Danton<br />
na noite que precede a sua prisão. Até aqui, o Incorruptível identificara-se com a<br />
Revolução: no seu discurso no Clube dos Jacobinos, utilizava a primeira pessoa do<br />
plural para falar da sua ação. Agora, é como se tirasse a máscara. Pensamentos e<br />
desejos “insuspeitáveis” que o homem público refreia “ganham forma e relevo e<br />
deslizam na silenciosa morada do sonho”. Como observa Gérard Raulet: “O<br />
republicano clássico, estoico, torna-se um ‘romântico’, para o qual a vida é um<br />
sonho e o homem uma marioneta”. Este aspeto da personagem não está nas<br />
fontes, é uma criação de Büchner.<br />
Esta passagem cria um jogo de espelhos entre Danton e Robespierre. Os<br />
adversários políticos revelam-se semelhantes na sua identidade profunda. Ambos<br />
têm a sensação de que algo lhes escapa, que não dominam os seus atos, ou que se<br />
criou um fosso entre o pensamento e o ato: “não seremos nós sonâmbulos, não<br />
serão as nossa ações como as do sonho, só que mais nítidas, mais exatas, mais<br />
completas?”. A diferença entre Danton e Robespierre é que este último prossegue<br />
o combate. A chegada de Saint-Just vem arrancá-lo aos seus pensamentos<br />
sombrios, relançando-o no coração da ação política. Mas aquele que até aqui<br />
parecia decidido a ir até ao fim do terror surge irresoluto, como Danton. “Queres<br />
hesitar ainda mais tempo?”, censura-o Saint-Just, “agiremos sem ti, já decidimos”.<br />
A resposta de Robespierre “Que tencionais fazer?”, na qual o “vocês” se opõe ao<br />
“nós” do discurso aos jacobinos, é a prova da sua hesitação em se identificar com<br />
uma República terrorista, e sem dúvida revela também o seu medo de lhe ser<br />
sacrificado, por seu turno. Essa hesitação transparece ainda quando Saint-Just<br />
cita o nome de Camille entre as futuras vítimas. Apenas a leitura do Vieux<br />
Cordelier (o jornal de Camille Desmoulins) põe fim aos escrúpulos de Robespierre,<br />
não pelos argumentos políticos expostos, mas porque se sente pessoalmente<br />
atacado quando é tratado por “Messias sanguinário, Robespierre, entre os dois<br />
ladrões Couthon e Collot no seu Gólgota onde sacrifica e não é sacrificado”, isto é,<br />
quando tocam no seu ponto fraco.<br />
Todavia, a decisão de Robespierre de condenar à guilhotina os partidários de<br />
Danton não o acalma. A frase de Camille ficou-lhe na memória, e leva-o a<br />
comparar-se a Cristo: imagina-se a resgatar a humanidade e a assumir os<br />
pecados do mundo. Mas a comparação é insustentável, pois Cristo “tinha a volúpia<br />
da dor”. Esta declaração é como que um eco das palavras de Danton, que pouco<br />
27
antes afirmara que Cristo era o mais requintado dos epicuristas: o filho de Deus<br />
conseguira transcender a sua dor e transformá-la em volúpia oferecendo-a para a<br />
salvação dos homens. Robespierre, que não redime a humanidade com o seu<br />
próprio sangue mas com o sangue dos outros, tem apenas “o tormento do<br />
carrasco”. Depois de ter decidido sacrificar Danton e os seus partidários, continua<br />
consumido pela dúvida: “nós todos suamos sangue no jardim das Oliveiras, mas<br />
não há quem redima o outro com as suas chagas”. O sacrifício de Robespierre não<br />
redimirá a humanidade, tal como a morte de Camille não redimirá Robespierre.<br />
Deixá-lo-á apenas numa solidão terrível: “Todos se afastam de mim - está tudo<br />
vazio e deserto - e eu estou só.”<br />
O sofrimento do ser humano, as suas angústias e dúvidas ganham corpo quando<br />
as construções abstratas se esboroam e o indivíduo se encontra face a si próprio.<br />
Esta passagem humaniza a personagem do Incorruptível, considerado frio e<br />
intratável, mostrando-o capaz de pensamentos íntimos e de interrogações sobre si<br />
mesmo. Paralelamente, antecipa as queixas dos detidos na prisão, nos dois últimos<br />
atos. É como que o eco da cena que precede a execução.<br />
Se a morte está inscrita no título da peça, os dois últimos atos são dedicados ao<br />
sofrimento de ter que morrer. No início, Danton mostra uma certa indiferença<br />
perante a sua execução e a sua prisão. Contudo, o amor à vida, problemático que<br />
seja, prevalece sobre o desgosto de viver. Se dá mostras de ceticismo em relação<br />
às possibilidades de realização do programa da República epicurista exposto por<br />
Camille e Phillipeau no primeiro ato, não deixa de aplicar a si próprio a moral<br />
hedonista de que os seus amigos são arautos (Büchner mostra-o mais como um<br />
debochado do que como um fino epicurista), e, face a Robespierre, desenvolve<br />
argumentos semelhantes aos deles. Dar ao indivíduo a possibilidade de afirmar a<br />
sua natureza parece-lhe ser a tarefa que agora compete à Revolução. Opõe assim<br />
o gosto de viver e o desejo de prazer a essa máquina de morte que é o Terror.<br />
O diálogo entre Danton e Marion apresenta uma variação sobre o tema do<br />
epicurismo, o que lhe confere indiretamente uma função de comentário. Marion<br />
está sentada aos pés de Danton. Essa situação evoca “Danton sentado num banco<br />
ao pé de Julie” na primeira cena, e cria não tanto uma hierarquia entre as duas<br />
mulheres (Danton aos pés da esposa, a prostituta aos pés de Danton), mas antes<br />
um jogo de espelhos: nos dois casos cria-se uma relação íntima. Essa imagem é<br />
relativizada, e até mesmo ridicularizada por Lacroix que, entrando pouco depois,<br />
compara as duas personagens aos dois cães que acaba de ver na rua e que<br />
estavam “um a tentar montar o outro”. A terna harmonia de um instante reduzida<br />
à sua banalidade trivial.<br />
Marion mantém com o mundo uma relação elementar e não oferece nenhuma<br />
resistência aos sentimentos: na primavera deixa-se invadir por uma “atmosfera<br />
28
que era só minha”, e considera-se “muito sensível, é só através dos meus<br />
sentimentos que estabeleço contacto com as coisas”. Alheia aos constrangimentos<br />
e às obrigações da vida familiar, que não compreende, apenas escuta a natureza.<br />
É sem dúvida também por isso que as palavras lhe saem naturalmente da boca:<br />
não quer provar nada, nem demonstrar nada, nem impor nada, mas tão-só<br />
contactar. A sua vida “não é pautada por conceitos como o vício ou a virtude, mas<br />
antes em função da intensidade com que ela é vivida”, e o seu discurso é de uma<br />
extrema simplicidade, sem floreados, sem pathos, o contrário da retórica<br />
revolucionária. Igual a si mesma, Marion diz que “Sou sempre esta. Uma ansiedade<br />
irreprimível, uma vontade de agarrar as coisas, um ardor, uma torrente. O crítico<br />
Reinhold Grimm saúda nesta personagem o arquétipo da sensualidade pagã, que<br />
ignora o antagonismo cristão entre eros e amor, entre prazer dos sentidos e<br />
espiritualidade que se emancipa tanto da dicotomia tradicional da mulher<br />
“enquanto objeto de adoração divina e enquanto objeto sexual”, como da oposição<br />
burguesa “entre a prostituta e a esposa”.<br />
O discurso de Marion não é apenas um momento de intimidade na peça: dando a<br />
entender a verdade profunda de um ser, contrasta com os discursos<br />
revolucionários que pretendem falar em nome do povo. É essa voz verdadeira que<br />
a revolução não é capaz de ter. Como observou Jean-Christophe Bailly, “Marion é<br />
uma mulher, e não é por acaso; ela opõe-se à virtude como qualquer coisa (sim)<br />
de mais virtuoso ainda – de verdadeiro. Talvez pareça incrível que Büchner nos<br />
fale já da guerra entre uma ordem do desejo e uma ordem do dever, que nos fale<br />
da rutura que a incompatibilidade de espírito entre essas duas ordens provoca. A<br />
vida extremamente calorosa por um lado, e incrivelmente rígida e fria pelo outro.”<br />
Fotografia de ensaio © Jorge Gonçalves<br />
29
Mas em Büchner nenhuma personagem, por muito positiva que possa parecer, é<br />
feita de uma só peça, e a imagem não é idílica. Por um lado, Marion continua a ser,<br />
para Danton, uma cortesã que deve pedir ao seu interlocutor que a escute “por<br />
uma vez”; por outro lado, ela só adquiriu essa liberdade de vida à custa da morte<br />
do primeiro amante e da sua mãe. Também ela deixa cadáveres atrás de si.<br />
Mesmo assim, ela é a única personagem na peça que mantém uma relação com o<br />
mundo de acordo com a perceção que tem dele, e que ignora o sofrimento. Surge<br />
apenas numa cena, como um meteoro num universo que não parece feito para ela.<br />
No segundo ato, a consciência do inimigo, primeiro, e depois o sentimento de<br />
culpa, apresentam a Danton a morte já não como um sofrimento, mas, pelo<br />
contrário, como uma libertação. Ela parece mais suportável do que a vida, que<br />
“não vale o trabalho que temos para a manter. A transição é brutal, e não é<br />
motivada pela psicologia nem pela ação. Enquanto no primeiro ato Danton se<br />
declarava pronto a agir – Não podemos perder nem um instante. Temos de nos<br />
mostrar ao povo!” – parece agora apático, como se o discurso de Marion tivesse<br />
abalado as suas últimas veleidades, fazendo-lhe entrever uma outra verdade, e<br />
Lacroix censura-lhe as suas hesitações, que o condenam, bem como aos<br />
companheiros. A partir desse momento, o drama da Revolução transforma-se num<br />
questionamento metafísico sobre o lugar e o papel do homem no universo:<br />
“Houve um erro quando fomos criados, há qualquer coisa errada, nem sei dizer o<br />
quê. Mas não vamos encontrar isso que nos falta remexendo nas entranhas uns<br />
dos outros. Porque havemos de rasgar os corpos uns dos outros? À procura de<br />
quê?”. Aqui já não é o homem político que fala, é o ser humano confrontado com as<br />
falhas da Criação.<br />
A curta intervenção de Danton na cena “uma digressão” inscreve-se na<br />
continuidade dessa reflexão. O mundo e os humanos que o habitam são de tal<br />
forma imperfeitos que não merecem ser levados a sério: “Deviam rir bem alto à<br />
janela e no túmulo, e o céu torcia-se todo, e a terra morria de tanto se rir.”<br />
O mundo torna-se uma farsa e não vale a pena ninguém dar-se ao trabalho de o<br />
melhorar. As pessoas deviam deter-se na rua “para rirem na cara umas das<br />
outras”.<br />
Mas a partir do terceiro ato, quando a morte se torna mais presente e parece<br />
evidente que o julgamento perante o tribunal revolucionário não passa de um<br />
simulacro, o tom volta a mudar. Quanto mais o tempo urge, mais se tornam<br />
caducas as tentativas de dar um sentido a essa morte, ou para a esconjurar; resta<br />
o indivíduo consumido pela angústia, o contrário de uma figura heroica: a<br />
30
presença da guilhotina, a sensação da lâmina a cair, o medo de sofrer e a imagem<br />
da putrefação apoderam-se dos espíritos.<br />
“Gritaste bem alto, Danton. Se te tivesses preocupado mais cedo com a tua vida<br />
seria agora diferente. Quando a morte se aproxima, assim, insolente, e se sente o<br />
fedor que lhe sai da boca, cada vez com mais insistência, é horrível, não é?”. As<br />
cenas da prisão giram em torno deste mesmo tema, apresentando múltiplas<br />
variações.<br />
Büchner abandona aqui o terreno político, mesmo que por vezes regresse a ele<br />
para se interessar pela criatura que sofre, para tentar compreender o que pode<br />
passar-se no mais profundo do ser nos últimos instantes. A imagem é desprovida<br />
de complacência, é progressivamente eliminado tudo o que possa desviar da<br />
realidade concreta da execução iminente, quer se trate do sentimento de morrer<br />
por uma causa justa, da crença num Além, do desprezo pela morte por uma<br />
questão de bravata, ou da convicção de estar a agir no sentido da História. Assim,<br />
quando os prisioneiros querem ver-se como vítimas da sua tentativa de salvar<br />
inocentes, não conseguem convencer-se disso, e o argumento cai por si. Quando<br />
Phillipeau evoca a possibilidade de encontrar a paz em Deus, os outros<br />
permanecem surdos aos seus argumentos, pois só concebem a divindade como<br />
insensível ao sofrimento terrestre. Quando Danton quer ironizar, Camille logo lhe<br />
responde que nem por isso conseguirá “por mais que deites a língua de fora, não<br />
consegues lamber o suor da morte do teu rosto”. Finalmente, quando Danton tenta<br />
colocar o curso da História do seu lado “Quando, um dia, a história abrir as<br />
catacumbas, o despotismo sufocará com o fedor dos nossos cadáveres”. Hérault<br />
responde-lhe que ele está a construir “frases para a posteridade”, frases que<br />
pouco interessam àqueles que vão morrer.<br />
No momento em que a carroça vem buscar os condenados para os conduzir à<br />
guilhotina, estes evocam de forma coral um mundo abandonado pelo divino. A<br />
noite que cai adquire o valor de crepúsculo dos deuses: “As nuvens cobrem o<br />
crepúsculo, é como um Olimpo que se extingue e onde aparecem, uma a uma, as<br />
figuras dos deuses pálidos, atónitos”. Só o amor entre Lucile e Camille, entre<br />
Danton e Julie, ou a amizade entre Camille e Danton – o calor humano, a<br />
compreensão da dor do outro nas cenas de prisão – parecem poder dar ainda um<br />
sentido à existência. “Poderás tu impedir que as nossas cabeças se beijem no<br />
fundo do cesto?” diz Danton ao carrasco. Resta também, última escapatória, a<br />
loucura de Lucile no final: último refúgio, paradoxal, contra um mundo insensato.<br />
Esta conceção de um universo de onde os valores desertaram, e sentido como um<br />
caos medonho, levou a crítica a ver em A Morte de Danton uma peça que advoga<br />
o niilismo. Todavia, convém notar que o mundo aqui posto em causa não tem um<br />
caráter absoluto. Não é o mundo em si que desaba, mas uma certa conceção que<br />
31
até aí se faz dele: um universo ordenado, concebido para os homens e regido por<br />
um princípio supremo. É ao desabar desse universo que os revolucionários de 1794<br />
assistem, submetidos que estão ainda ao “ter que”. Surge então neles uma<br />
sensação de vazio, exacerbada pela proximidade da morte: já que não se sabe por<br />
que se morre, mais vale convencer-se de que o mundo que se deixa não tem<br />
sentido, mais vale desvalorizar o que se perde para assim diminuir a perda.<br />
Execução de Robespierre e os seus apoiantes<br />
a 28 de julho de 1794.<br />
Mas o desaparecimento dos valores aviva o sofrimento que, no último instante,<br />
permanece a única realidade tangível. De modo absolutamente voluntário,<br />
Büchner substitui a morte carregada de sentido e de futuro para a humanidade<br />
por uma representação concreta da dor física no momento da decapitação. Não é<br />
por acaso que, contrariamente a todas as regras da arte dramática em vigor na<br />
época, ele imagina a guilhotina erguida no palco. Ela é a figuração concreta dessa<br />
morte mecânica, inventada para tornar a execução “humana”, mas que não<br />
suprime a dor moral e física. Num artigo publicado em 1992, Ingrid Oesterle<br />
destacou os sinais, em A Morte de Danton, das leituras de Büchner sobre os efeitos<br />
físicos da lâmina da guilhotina sobre os condenados. O mais marcante é esta<br />
observação de Laflotte: “Pode doer, quem é que diz que não? Dizem que é um<br />
segundo, mas a dor tem uma medida de tempo mais apurada: distingue décimos<br />
de segundo”.<br />
Mercier, em Le Nouveau Paris, dedicara um artigo aos debates da época sobre a<br />
decapitação na guilhotina, a crença numa morte instantânea e sem dor fora posta<br />
em causa perante observações feitas sobre os condenados. Mercier relata que<br />
32
testemunhas julgaram ter visto “nos movimentos convulsivos dos músculos do<br />
rosto, imediatamente após a execução, os sinais de uma dor aguda e um vestígio<br />
de sensibilidade que ainda não se extinguiu.” Uma sobrevivência de alguns<br />
instantes, acompanhada de sofrimento horrível após a decapitação, era, pois,<br />
verosímil. É a essa eventualidade que Laflotte se refere aqui. Morrer continua a ser<br />
um tormento, só a morte, com a rigidez do corpo, dá o repouso. É por isso que<br />
Danton diz que “a guilhotina é o melhor médico”: uma vez passados os últimos<br />
instantes, ela, ao tirar a vida, proporciona a única cura absoluta, na inconsciência<br />
e no esquecimento.<br />
Estes detalhes mórbidos dão uma imagem da morte totalmente diferente daquela<br />
que até então se conhecia no teatro. Não que o sofrimento de morrer nunca<br />
tivesse sido descrito, mas ele não constituía a realidade última. Büchner rompe<br />
com toda a estetização da morte. Lança sobre o indivíduo que sofre um olhar<br />
quase médico, que não é alheio aos seus estudos de biologia (não esqueçamos<br />
que mais tarde ele irá estudar precisamente os nervos do crânio!), e que, no<br />
teatro, transforma radicalmente a imagem do homem. O ser moral e consciente<br />
dos seus atos dá lugar à criatura que sofre na carne, presa numa tormenta que a<br />
arrasta e contra a qual luta em vão. O fim de A Morte de Danton anuncia Woyzeck.<br />
O autor já não é um juiz no tribunal das instituições políticas e morais, mas um<br />
clínico no seu laboratório, lançando um olhar compassivo sobre o sujeito de<br />
análise.<br />
Jean-Louis Besson, Le Théâtre de Georg Büchner: un jeu de masques,<br />
Belfort, Éditions Circé, 2001. (trad. Manuela Torres)<br />
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves<br />
33
CRONOGRAMA DA<br />
REVOLUÇÃO<br />
FRANCESA<br />
Acontecimentos que conduziram à ação da peça:<br />
LISA SPIRLING<br />
O O Iluminismo Iluminismo levou levou a a que que muitos muitos escritores escritores europeus europeus criticassem criticassem a a monarquia,<br />
monarquia,<br />
expondo expondo ideias ideias democráticas, democráticas, liberais, liberais, nacionalistas nacionalistas e e socialistas.<br />
socialistas.<br />
1774 1774 1774 – Coroação de Luís XVI em Reims.<br />
1775 1775 – Início da Guerra de independência dos Estados Unidos da América (1775–<br />
1783)<br />
1778 1778 – A França declara guerra à Grã-Bretanha em solidariedade com as colónias<br />
Americanas. A guerra subsequente agrava a já existente dívida financeira.<br />
34
1783 1783 – A erupção vulcânica do Laki na Islândia e o arrefecimento do clima<br />
provocado pela Pequena Idade do Gelo, combinados com o fracasso francês na<br />
adoção da batata como alimento dominante contribuem para a fome e má<br />
nutrição generalizadas.<br />
O Tratado de Paris termina com a guerra. O sucesso dos colonos<br />
americanos contra o poder europeu faz crescer as ambições daqueles que<br />
desejam uma reforma em França.<br />
1789 1789 – 5 maio. Os Estados Gerais são convocados pela primeira vez desde 1614. A<br />
votação decorrerá por Estado e não por cabeça.<br />
28 maio. O Terceiro Estado (Tiers Etat) começa a reunir por iniciativa<br />
própria, apelidando-se de “communes” (comunas).<br />
17 junho. O Terceiro Estado declara-se Assembleia <strong>Nacional</strong>.<br />
A A Assembleia Assembleia <strong>Nacional</strong> <strong>Nacional</strong> existiu existiu de de 17 17 de de junho junho a a 9 9 de de julho julho de de 1789, 1789, como<br />
como<br />
instituição instituição transitória transitória entre entre os os Estados Estados Gerais Gerais e e a a Assembleia Assembleia <strong>Nacional</strong><br />
<strong>Nacional</strong><br />
Constituinte.<br />
Constituinte.<br />
20 junho. O Terceiro Estado/Assembleia <strong>Nacional</strong> é impedido de reunir nos<br />
locais apropriados. Encaram o rei Luís XVI como aquele que lhes fecha as portas e<br />
decidem-se por um voto declarativo, conhecido por “serment au Jeu de Paume”<br />
(juramento do jogo da pela), que não se dissolve até a Constituição estar<br />
estabelecida.<br />
14 julho. Tomada da Bastilha; De Launay (o governador), Foulon (o<br />
secretário de Estado) e de Flesselles (então o equivalente ao Prefeito de Paris),<br />
entre outros, são massacrados.<br />
35
17 julho. O início do Grande Medo, revolta campesina contra o feudalismo e<br />
grande número de revoltas e distúrbios urbanos. Muitos membros da aristocracia<br />
fogem de Paris e tornam-se emigrantes. Luís XVI aceita o cocar tricolor.<br />
Cidadão.<br />
27 agosto. A Assembleia adota a Declaração dos Direitos do Homem e do<br />
1790 1790 – janeiro. Antigas Províncias da França são substituídas por novos<br />
Departamentos administrativos.<br />
conquista.<br />
13 janeiro. Supressão dos votos monásticos e ordens religiosas.<br />
maio. A Assembleia <strong>Nacional</strong> renuncia ao envolvimento em guerras de<br />
19 maio. A Nobreza é abolida pela Assembleia <strong>Nacional</strong>.<br />
12 junho. A Constituição Civil do Clero obriga os seus membros a um<br />
juramento de lealdade para com o Estado, provocando divisões entre os<br />
sacerdotes que aceitam o juramento e aqueles que o renunciam.<br />
Jacobinos).<br />
julho. Poder crescente dos Clubes (incluindo o dos Cordeliers e o dos<br />
Reorganização de Paris.<br />
16 agosto. Os “parlements” são abolidos.<br />
36
1791 1791 – 30 janeiro. Mirabeau é eleito Presidente da Assembleia.<br />
28 fevereiro. Dia dos Punhais; Lafayette ordena a prisão de 400<br />
aristocratas armados no Palácio das Tulherias.<br />
2 abril. Morte de Mirabeau – primeira pessoa a ser enterrada no Panteão,<br />
formalmente a Igreja de Saint-Geneviève.<br />
15 julho. A Assembleia <strong>Nacional</strong> declara o rei inviolável e ele é restabelecido.<br />
17 julho. Manifestação antimonárquica no Campo de Marte (Champ de<br />
Mars); a Guarda <strong>Nacional</strong> mata 50 pessoas.<br />
13-14 setembro. Luís XVI aceita formalmente a Constituição.<br />
30 setembro. Dissolução da Assembleia <strong>Nacional</strong> Constitutiva.<br />
1 outubro. A Assembleia Legislativa reúne – muitos deputados jovens,<br />
inexperientes e radicais.<br />
A A Assembleia Assembleia Legislativa Legislativa foi foi a a legislatura legislatura de de França França desde desde<br />
outubro outubro de de 1791 1791 1791 até até<br />
até<br />
setembro setembro de de 1792 1792 e e constituiu constituiu-se constituiu se como como o o o centro centro do do debate debate político político e e do do poder poder<br />
poder<br />
legislativo. legislativo.<br />
legislativo.<br />
1792 1792 – janeiro – março. Motins alimentares em Paris.<br />
20 março. A guilhotina é adotada como instrumento oficial de execução.<br />
20 abril. A França declara guerra à Áustria.<br />
28 abril. A França invade os Países Baixos Austríacos (Bélgica).<br />
30 julho. A Áustria e a Prússia começam a invadir o território francês.<br />
julho. O cocar tricolor torna-se peça obrigatória na vestimenta masculina. A<br />
Marselhesa é cantada por voluntários de Marseilles na sua chegada a Paris.<br />
37
9 agosto. A Comuna Revolucionária toma posse do Hôtel de Ville.<br />
10-13 agosto. Tomada do Palácio das Tulherias. A Guarda Suíça é<br />
massacrada. Luís XVI de França é preso e levado, juntamente com a sua família.<br />
Georges Danton torna-se Ministro da Justiça.<br />
16 agosto. A Comuna de Paris apresenta uma petição à Assembleia<br />
Legislativa ordenando a criação de um tribunal revolucionário e convocando uma<br />
Convenção <strong>Nacional</strong>.<br />
19 agosto. Lafayette foge para a Áustria. França é invadida pelos exércitos<br />
da Coligação, encabeçados pelo Duque de Brunswick.<br />
22 agosto. Revoltas monárquicas em Brittany, La Vendée e Dauphiné.<br />
3 setembro. Conquista de Verdun pelos exércitos de Brunswick.<br />
3-7 setembro. Os massacres de setembro (Jornadas de setembro) de<br />
prisioneiros em prisões de Paris.<br />
19 setembro. Dissolução da Assembleia Legislativa.<br />
A A Convenção Convenção Convenção <strong>Nacional</strong> <strong>Nacional</strong> <strong>Nacional</strong> é é é composta composta composta pelas pelas pelas assembleias assembleias assembleias legislativa legislativa legislativa e e<br />
e<br />
constitucional. constitucional. Deteve Deteve poder poder executivo executivo em em França França desde desde 20 20 de de setembro set<br />
embro de<br />
de<br />
1792 1792 até até 26 26 de de de outubro outubro de de de 1795.<br />
1795.<br />
Francesa.<br />
21 setembro. Abolição da monarquia e proclamação da Primeira República<br />
3 dezembro. Luís XVI é levado a julgamento, aparece perante a Convenção<br />
<strong>Nacional</strong> (11 e 23 dezembro). Robespierre defende que “Luís deve morrer para que<br />
o país possa viver”.<br />
38
1793 1793 – 21 janeiro. O cidadão Louis Capet, formalmente conhecido por Luís XVI, é<br />
guilhotinado.<br />
7 março. Surto de rebelião contra a Revolução: guerra em Vendée.<br />
11 março. O Tribunal Revolucionário é estabelecido em Paris.<br />
O O Tribunal Tribunal Revolucionário Revolucionário foi foi instituído instituído pela pela Convenção Convenção <strong>Nacional</strong> <strong>Nacional</strong> e e era<br />
era<br />
destinado destinado ao ao julgamento julgamento de de infratores infratores infratores políticos.<br />
políticos.<br />
6 abril. É estabelecida a Junta de Salvação Pública.<br />
A A Junta Junta de de Salvação Salvação Pública Pública foi foi criada criada em em abril abril de de 1793 1793 e e reestruturada reestrut<br />
urada em em<br />
julho julho de de 1793, 1793, transformando<br />
transformando-se transformando se no no verdadeiro verdadeiro governo governo executivo. executivo. Um<br />
Um<br />
gabinete gabinete de de guerra guerra na na sua sua essência, essência, a a Junta Junta centralizava centralizava denúncias,<br />
denúncias,<br />
supervisionava supervisionava supervisionava julgamentos julgamentos e e comandava comandava execuções.<br />
execuções.<br />
jacobinos.<br />
30 maio. Uma revolta rebenta em Lyon.<br />
2 junho. Prisão dos deputados girondinos da Convenção <strong>Nacional</strong> pelos<br />
10 junho. Os jacobinos controlam a Junta de Salvação Pública.<br />
13 julho. Assassínio de Jean-Paul Marat por Charlotte Corday.<br />
Marat assassinado, 13 de julho de 1793.<br />
Pintura de Jacques-Louis David<br />
39
França.<br />
27 julho. Robespierre é eleito para a Junta de Salvação Pública.<br />
28 julho. A Convenção proscreve 21 deputados girondinos como inimigos da<br />
5 5 5 5 setembro. setembro setembro setembro . Início Início do do “Reino “Reino do do Terror”. Terror”.<br />
Terror”.<br />
9 setembro. Estabelecimento de forças paramilitares dos “sans-culottes” –<br />
exércitos revolucionários.<br />
22 setembro. É introduzido um novo calendário, denotando o dia 22 de<br />
setembro de 1792 como o início do ano 1.<br />
29 setembro. A Convenção estabelece o “maximum”, fixando os limites dos<br />
preços de muitos produtos e serviços.<br />
10 outubro. A Constituição é colocada em espera. Decreta-se que o governo<br />
deve ser “revolucionário até à paz”.<br />
16 outubro. <strong>Maria</strong> Antonieta é guilhotinada.<br />
21 outubro. Uma lei anticlerical é aceite, os sacerdotes e apoiantes são<br />
suscetíveis vítimas de assassínio “à vista”.<br />
24 outubro. Julgamento dos 21 deputados girondinos pelo Tribunal<br />
Revolucionário.<br />
girondinos.<br />
31 outubro. Os 21 deputados girondinos são guilhotinados.<br />
8 novembro. A Madame Roland é guilhotinada como parte da purga dos<br />
10 novembro. Celebração da Deusa da Razão na catedral de Notre-Dame,<br />
que é renomeada como o Templo da Razão.<br />
dezembro. Primeira edição de Le Vieux Cordelier de Desmoulins.<br />
4 dezembro. A lei dos 14 Frimaire (Lei do governo revolucionário) é<br />
aprovada; o poder passa a estar centralizado na Junta de Salvação Pública.<br />
40
23 dezembro. Forças antirrepublicanas em Vendée são finalmente<br />
derrotadas e 6000 prisioneiros executados.<br />
1794 1794 – fevereiro – “Pacificação” final em Vendée – assassínios em massa, política<br />
mundial queimada.<br />
de Danton”.<br />
19 março. Hébert e os seus apoiantes são presos.<br />
24 março. Hébert e os líderes dos Cordeliers são guilhotinados.<br />
25 março – 5 abril. Período de tempo abrangido pela ação da peça “A Morte<br />
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves<br />
41
SÚMULA DA<br />
REVOLUÇÃO<br />
FRANCESA ATÉ À<br />
<strong>MORTE</strong> <strong>DE</strong> <strong>DANTON</strong><br />
● A Revolução Francesa Francesa (denominação que engloba revoluções parciais e<br />
sucessivas) teve por finalidades derrubar o despotismo real, o sistema feudal<br />
ainda em vigor, fazer ascender a uma posição social diferente a nova burguesia,<br />
dar melhores condições de vida ao povo. É, em resumo, uma uma revolução revolução burguesa<br />
burguesa<br />
e e e democrática<br />
democrática.<br />
democrática<br />
A Liberdade guiando o povo. Pintura de Eugène Delacroix.<br />
42
● A situação geral da França antes de 1789 tornara-se caótica. Na agricultura, o<br />
atraso técnico era enorme, devido à organização feudalista em que se apoiava.<br />
Por outro lado, a indústria, se bem que longe do florescimento industrial inglês<br />
contemporâneo, ganhava notável desenvolvimento, sucedendo-se a criação de<br />
vários complexos industriais e o aparecimento da classe operária operária. operária<br />
O regime<br />
feudal entravava, porém, o progresso industrial. A extrema miséria do camponês<br />
(a grande massa da população), a regulamentação absolutista governamental, a<br />
divisão provincial da França que estabelecia barreiras alfandegárias internas,<br />
reduziam o poder de compra. Igual crise sofria o comércio que, no entanto,<br />
antevia imensas perspetivas. A A grande grande força força do do capital capital continha continha-se, continha se, perante perante a<br />
a<br />
orgânica orgânica ffeudal<br />
f feudal<br />
eudal. eudal<br />
● O O O rei rei era era o o máximo máximo poder poder, poder sem limites, apoiado numa gigantesca máquina<br />
burocrática e num acervo de regulamentações e leis anacrónicas, tipicamente<br />
feudais.<br />
● Na organização social mantinha-se a velha distinção: o o clero clero (Primeiro (Primeiro Estado), Estado),<br />
Estado),<br />
a a nobreza nobreza (Segu (Segundo (Segu (Segundo<br />
ndo Estado) Estado) e e o o resto resto da da população população (Terceiro (Terceiro Estado). Estado)<br />
“O<br />
clero serve o rei pela oração, a nobreza pelas armas, o povo pelos bens”, era a<br />
fórmula medieval.<br />
● O Terceiro Terceiro Estado Estado representava representava mais mais de de 90 90 da da população população e compreendia<br />
todos os que não eram nobres nem religiosos, isto é, burgueses, camponeses,<br />
operários, profissões liberais, etc.<br />
● No fim do século XV<strong>II</strong>I, a a burguesia burguesia endinheirada endinheirada era era a a classe classe mais mais poderosa<br />
poderosa<br />
do do ponto ponto de de vista vista económico económico. económico económico Os camponeses, representando a maioria da<br />
população, eram os que mais dolorosamente sofriam o regime feudal.<br />
● Como consequência desta situação já em si revolucionária, a literatura, literatura, o o<br />
teatro, teatro, o o pensamento, pensamento, as as artes, artes, assumiram assumiram o o comando comando mental mental das<br />
das<br />
reivindicações<br />
reivindicações. reivindicações<br />
reivindicações Nomes como os de VAUBAN, SAINT-SIMON, LA BRUYERE, LESAGE,<br />
PERRAULT, entre os mais antigos e MESLIER, MONTESQUIEU, VOLTAIRE, DI<strong>DE</strong>ROT,<br />
D’ALEMBERT (os enciclopedistas), HELVETIUS, ROBINET, MORELLY, MABLY,<br />
ROUSSEAU (o filho do relojoeiro de Genebra de que se fala na peça),<br />
BEAUMARCHAIS, MARAT, etc., iam fundindo no cadinho do pensamento toda a<br />
envolvência revolucionária de que a França estava possuída.<br />
● No campo económico, surgiu em França o fisiocratismo (QUESNAY, NEMOURS,<br />
TURGOT, etc.), cuja doutrina se baseava nos “direitos naturais” e combatia o<br />
43
feudalismo como seu violador – o feudalismo atentava contra a liberdade pessoal,<br />
a propriedade privada, a iniciativa particular.<br />
● MARAT MARAT (o Amigo do Povo, título de um jornal que editava) é o nome principal da<br />
teorização pré-revolucionária, sendo as “Cartas Polacas” e “As cadeiras da<br />
escravidão” duas obras suas com êxito e profundamente influenciadas por<br />
Rousseau e Montesquieu.<br />
● Simultaneamente ao crescimento da miséria popular, na corte grassava a maior<br />
corrupção. O escândalo do “caso do colar”, a dívida pública que atingia a cifra de<br />
cinco biliões, o esgotamento do tesouro, a impossibilidade de contrair novos<br />
empréstimos, levaram levaram o Estado à quase bancarrota bancarrota.<br />
bancarrota<br />
● O Rei convoca a Assembleia dos Notáveis em 1787. Nela estala um conflito entre<br />
o monarca e a nobreza devido a uma proposta de alteração fiscal que iria atingir<br />
a última. A Assembleia é dissolvida e o rei consente na marcação da reunião dos<br />
Estados Gerais para 1789.<br />
● Mais do que nunca, 1789 adivinhava-se um ano de fome e crise. Rebentam<br />
revoltas camponesas e operárias por toda a França. Realizam-se as eleições eleições para<br />
para<br />
os os os Estados Estados Gerais Gerais, Gerais que abrem a 5 de maio de 1789, em Versalhes. No dia seguinte<br />
irá discutir-se a forma da verificação de poderes dos deputados o que<br />
imediatamente porá o problema problema da da forma forma de de votação votação. votação A nobreza e o clero<br />
pretendem a votação por Estados o que lhes daria a maioria, enquanto o Terceiro<br />
Estado deseja a votação por cabeça, que lhes traria o domínio da Assembleia. A<br />
discussão deste assunto arrasta-se durante um mês. O conde de MIRABEAU<br />
assume a defesa da posição do Terceiro Estado, do qual é representante.<br />
Entretanto, o povo dá mostras de impaciência. Depois de várias intervenções<br />
favoráveis ao Terceiro Estado em que se destacaram LE CHAPELIER, BARNAVE e<br />
outros, o abade SIEYÉS proclama que o Terceiro Estado irá proceder ele próprio à<br />
verificação dos poderes dos deputados de todos os Estados e ameaça aqueles que<br />
não compareçam de serem excluídos dos trabalhos. Muitos membros do baixo<br />
clero juntam-se-lhe. A 17 de junho o o Terceiro Terceiro Terceiro Estado Estado proclama proclama-se proclama se Assembleia<br />
Assembleia<br />
<strong>Nacional</strong> <strong>Nacional</strong>. <strong>Nacional</strong><br />
● O alto clero, a nobreza e o rei, aterrorizados por esta decisão, contra-atacam.<br />
No dia 20, o rei manda fechar as salas de Versalhes e impossibilita assim a reunião<br />
do Terceiro Estado. Este, amparado pelo povo, dirige-se a uma sala em Paris, onde<br />
se jogava a pela e aí se processa o juramento de que o Terceiro Estado não se<br />
deixará amedrontar com qualquer decisão régia. É o célebre juramento do jogo jogo<br />
da da da pela pela. pela A 23 de junho, o rei declara nulas todas as decisões da Assembleia<br />
44
<strong>Nacional</strong>, mas os membros desta não acatam a decisão real. O rei teve de<br />
reconhecer o novo órgão que, a 9 de julho, se proclama Assembleia Assembleia Constituinte<br />
Constituinte.<br />
Constituinte<br />
● Em Paris e na província levantava-se uma forte onda revolucionária. Entretanto,<br />
o rei concentrava em Paris e Versalhes o Exército e anunciava o despedimento de<br />
NECKER do Ministério – o povo viu nestas duas atitudes o princípio do ataque das<br />
forças contrarrevolucionárias. A 14 de julho, o Terceiro Estado agindo ainda em<br />
bloco, marcha contra a Bastilha, a fortaleza-prisão de Paris onde se encontrava<br />
grande parte do exército e, após duro combate, conquista a sua posse.<br />
● A tomada tomada da da Bastilha Bastilha marca o início da constatação do povo da sua enorme<br />
força e arrasta todo o povo de França. Em grande parte das cidades francesas as<br />
autoridades administrativas de então são destituídas e substituídas por membros<br />
eleitos pelo povo. Em toda a parte, depois do 14 de julho, as autoridades locais são<br />
burguesas. Nos campos, os camponeses pegavam em armas e rebelavam-se<br />
contra os antigos senhores feudais.<br />
● O O poder poder passa passa praticamente praticamente para para as as mãos mãos da da alta alta burguesia burguesia<br />
(aristocracia<br />
burguesa). Constitui-se a Guarda <strong>Nacional</strong> <strong>Nacional</strong>, <strong>Nacional</strong><br />
o exército da Revolução cujo comando<br />
é entregue ao marquês de LAFAYETTE. Entretanto, na Assembleia Constituinte os<br />
Estados dividem-se em duas posições: a direita (nobres e clero) e a esquerda (o<br />
Terceiro Estado). BARNAVE, LAFAYETTE e MIRABEAU são os principais chefes do<br />
Terceiro Estado, pertencentes à alta burguesia. A Assembleia, alarmada com a<br />
crescente revolta dos camponeses, resolve a 4 de agosto preocupar-se com o<br />
problema agrário, mas as decisões tomadas em nada modificaram a situação. A 16<br />
de agosto vota-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, burguesa,<br />
se bem que representasse um notável progresso na queda do feudalismo.<br />
● Entretanto, na corte, o rei opunha o seu veto às decisões da Assembleia e<br />
garantia-se do apoio do Exército. MARAT adverte o povo da ameaça que o rei<br />
prepara e incita-o a marchar sobre Versalhes. A 5 de Outubro o povo marcha para<br />
Versalhes. Chega também a Guarda <strong>Nacional</strong> mas LAFAYETTE hesita. A 6 dá-se o<br />
reencontro entre o povo e as tropas reais e o palácio de de Versalhes Versalhes é é invadido invadido. invadido O<br />
rei apressa-se a sancionar as decisões da Assembleia e muda para as Tulherias.<br />
Principia aqui a viragem política de LAFAYETTE.<br />
● Sucedendo ao clube Bretão, fundado a quando da Assembleia <strong>Nacional</strong>, surge a<br />
Sociedade dos Amigos da Constituição, também chamada o Clube Clube dos dos Jacobinos<br />
Jacobinos<br />
por as suas reuniões se efetuarem na biblioteca dos monges daquela ordem<br />
eclesiástica. O clube dos Jacobinos que, no início, agrupava todos os<br />
45
evolucionários, desde MIRABEAU, LAFAYETTE a ROBESPIERRE, <strong>DANTON</strong> e MARAT,<br />
irá desempenhar no prosseguimento da Revolução um papel fundamental.<br />
● A Assembleia Constituinte que devia a sua permanência ao movimento popular<br />
de 5 de Outubro, decreta, porém, uma lei autorizando o uso da força contra os<br />
futuros levantamentos populares. MARAT insurge-se mas é obrigado a esconder-<br />
se. A Assembleia, em dezembro de 1789, divide os cidadãos franceses franceses em em ativos<br />
ativos<br />
e e passivos passivos, passivos cabendo aos primeiros o direito a voto e a serem elegíveis, por<br />
possuírem determinados bens de fortuna (a burguesia, fundamentalmente). A<br />
maioria da população passava a ser formada por cidadãos passivos. Outras<br />
decisões da Assembleia são a abolição da nobreza hereditária e dos títulos, a<br />
reorganização administrativa da França que termina com o parcelamento feudal,<br />
barreiras alfandegárias e privilégios senhoriais, a nacionalização dos bens do<br />
clero, a reforma da igreja que passa a depender do governo e não do Papa, a<br />
venda dos bens do clero, etc.<br />
● Para pagamento da compra dos bens do clero, tornados bens nacionais, a<br />
Assembleia decretou a emissão de obrigações especiais – os assinados assinados. assinados<br />
A partir<br />
de certa altura os assinados (assignats) de tal maneira se multiplicaram que<br />
passaram a circular como moeda a par da tradicional. Esta venda dos bens<br />
nacionais aproveitou, evidentemente, à burguesia, a única que dispunha de<br />
dinheiro para os comprar.<br />
● Outra decisão importante da Assembleia é a chamada lei lei lei de de de LE LE CHAPELIER CHAPELIER que<br />
proibia os operários de se constituírem em grupos ou sociedades e interditava as<br />
greves.<br />
● Em setembro de 1791, o rei promulga a Constituição, que proclama que o poder<br />
vinha da Nação e reconhecia o rei como chefe do poder executivo.<br />
● A série de leis antidemocráticas da Assembleia tinha, no entanto, encontrado<br />
forte oposição dentro do próprio corpo de deputados. Chefiava essa oposição<br />
ROBESPIERRE (o advogado de Arras). Nos Jacobinos começavam as divergências.<br />
Fundara-se um novo clube, o dos COR<strong>DE</strong>LIERS (reunia na igreja com esse nome),<br />
ou Sociedade dos amigos dos direitos do Homem e do Cidadão. Lá encontravam-<br />
se <strong>DANTON</strong>, CAMILO <strong>DE</strong>SMOULINS, MARAT, ROBERT, MOMORO, etc., que se<br />
distinguiam pela sua oposição às leis da Assembleia e pelo seu espírito<br />
republicano. Outro clube que adquiriu grande projeção foi o CÍRCULO SOCIAL SOCIAL, SOCIAL<br />
cujos chefes FAUCHET e BONNEVILLE punham em dúvida o princípio da<br />
propriedade privada.<br />
46
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves<br />
47
● Cresciam, assim, grandes grandes discordâncias discordâncias entre entre oos<br />
o s revolucionários<br />
revolucionários. revolucionários<br />
De um lado<br />
os constitucionalistas, do outro os opositores – ou seja, a alta burguesia e as<br />
restantes classes. MIRABEAU, chefe dos primeiros, entra em conversações secretas<br />
com a corte e trai a Revolução. MARAT denuncia-o. Entretanto MIRABEAU morre.<br />
LAFAYETTE, BAILLY, LE CHAPELIER e SIEYÉS, continuam e constituem o setor<br />
jacobino da direita.<br />
● Há muito que começara a emigração dos nobres nobres. nobres<br />
Em Coblença, sob o comando<br />
do duque de ARTOIS, preparam preparam a a contrarrevolução<br />
contrarrevolução, contrarrevolução na qual o rei secretamente<br />
colabora. Fala-se de um plano para a intervenção dos estrangeiros em França. A 21<br />
de junho de 1791 o povo sabe da fuga do rei e da rainha. O clube dos Cordeliers<br />
pede à Assembleia a abolição da monarquia, sendo apoiado por BRISSOT, futuro<br />
chefe dos Girondinos. O rei é capturado em Varennes e regressa a Paris<br />
prisioneiro. O povo aguarda os resultados. O clube dos Cordeliers e o Círculo<br />
Social com CAMILO <strong>DE</strong>SMOULINS, <strong>DANTON</strong>, CHAUMETTE, CONDORCET e outros<br />
pedem o castigo do rei e a implantação da República. A Assembleia Constituinte<br />
refreia os ímpetos populares e pretende demorar a resolução do problema do rei.<br />
Pa Para Pa ra os os membros membros da da alta alta burguesia burguesia a a revolução revolução está está a a ir ir longe longe de de mais,<br />
mais,<br />
pretendem pretendem travá travá-la travá la la. la<br />
● A 17 de julho de 1791 reúnem-se no Campo de Marte milhares de parisienses para<br />
discutirem a sorte do rei e da monarquia. Por ordem da Assembleia Constituinte a<br />
Guarda <strong>Nacional</strong> comandada por LAFAYETTE carrega sobre o povo desarmado e<br />
assassina algumas dezenas. É o chamado morticínio morticínio do do Campo Campo de de Marte Marte que<br />
imediatamente adquire grande importância política. Uma parte do Terceiro<br />
Estado pegava em armas contra outra. Em setembro, com a promulgação da<br />
Constituição, a Assembleia Constituinte deixa de existir.<br />
● Com a constituição da Assembleia Legislativa pelos elementos da burguesia e<br />
pelos intelectuais burgueses nasce uma nova etapa da Revolução. Como afirmou<br />
um dos deputados da Assembleia a “propriedade privada é a abóbada deste<br />
grande edifício que abrange 24 milhões de almas; abalai essa abóbada e todo o<br />
edifício desabará”. Os partidos da Assembleia não eram já os mesmos na<br />
Constituinte. A direita direita, direita em vez de ser preenchida pelos membros da nobreza e do<br />
clero passa a sê-lo pelos “feuillants feuillants” feuillants feuillants partidários acérrimos da Constituição, o que<br />
significava que a alta burguesia, acima de tudo, pretendia fazer escorar a<br />
revolução nas medidas antidemocráticas que a Constituinte decretara. A<br />
esquerda esquerda era constituída pelos Jacobinos agora divididos em duas fações: os<br />
brisso brissotinos brisso brisso tinos (chefiados por BRISSOT e também chamados Girondinos Girondinos por a maior<br />
parte pertencer ao departamento da Gironda) que representavam os interesses<br />
da burguesia provinciana, comerciante e industrial e da burguesia fundiária e os<br />
48
montanheses montanheses (por se sentarem nos lugares mais altos da Assembleia) chefiados<br />
por ROBESPIERRE que representavam a esquerda. Nela se distinguiam ainda<br />
CHABOT e COUTHON. Mas, o maior número de deputados da Assembleia situava-<br />
se ao centro e por isso se denominavam ironicamente o “pântano pântano pântano” pântano ou a “planície planície planície”. planície<br />
● Enquanto a situação económica se ia agravando e se registavam vários motins,<br />
especialmente devido à falta dos principais produtos de subsistência, na corte<br />
continuava a maquinar-se, com o conluio da nobreza, clero e alta burguesia a<br />
contrarrevolução. Os “feuillants” eram agora partidários da reação. Cada vez mais<br />
forte, sentia-se a ameaça dos exércitos de Coblença e a intervenção do<br />
estrangeiro. Por outro lado, os girondinos faziam uma propaganda de guerra<br />
chegando Brissot a sugerir que a França tomasse a iniciativa do ataque contra o<br />
despotismo estrangeiro. Embora as massas populares se deixassem sugestionar<br />
por esta chamada às armas, os jacobinos faziam constantes apelos no sentido de<br />
atrasar a guerra com o estrangeiro pois à Revolução convinha ganhar tempo e<br />
solidificar a sua posição. Nos Girondinos a intenção era convencer o povo que a<br />
Pátria estava em perigo e assim desviar a sua atenção dos problemas internos<br />
essenciais. Ao rei, convencido de que a França revolucionária perderia a guerra<br />
exterior se a ela se aventurasse, a atitude dos Girondinos interessava. Assim,<br />
apesar dos insistentes alertas que Robespierre lançava, o rei, em março de 1792,<br />
formou um ministério girondino. BRISSOT e DUMORIEZ tomaram conta do<br />
governo. governo. A 20 de abril de 1792 a França declarou guerra à Boémia e à Hungria que<br />
é o mesmo que dizer-se à Áustria visto o rei daqueles territórios ser o Imperador<br />
da Áustria. A guerra, apesar de desejada pelos girondinos, era uma guerra<br />
defensiva defensiva e e não não de de de ataque ataque. ataque O povo acolheu com entusiasmo a defesa da Pátria e<br />
armou-se. Mas, ajudados pela contrarrevolução interna, a França revolucionária foi<br />
vencida pelos exércitos estrangeiros nas primeiras batalhas travadas junto das<br />
fronteiras.<br />
● A indignação do povo francês subiu ao rubro e as advertências de MARAT e<br />
ROBESPIERRE foram finalmente ouvidas. De novo, MARAT é alvo de perseguições<br />
por parte, agora, dos girondinos. E a separação entre as duas fações dos jacobinos<br />
avizinha-se. Mas ROBESPIERRE, MARAT e <strong>DANTON</strong> exortavam o povo à guerra, já<br />
que uma vez começada havia que vencê-la. Entretanto, o rei, convicto de que as<br />
forças externas e internas iriam vencer as hostilidades demitiu o ministério<br />
girondino e chamou de de novo novo ao poder os “feuilla “feuillants” “feuilla<br />
nts” nts”. nts” Os girondinos forçaram o<br />
povo a manifestar-se contra o rei o que aconteceu em 20 de julho, oito dias depois<br />
da queda do seu ministério. ROBESPIERRE e os jacobinos não apoiaram esta<br />
manifestação.<br />
49
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves<br />
50
● As tropas inimigas conquistavam terreno rapidamente devido sobretudo às<br />
inúmeras traições dos oficiais e generais franceses. MARAT, ROBESPIERRE e<br />
<strong>DANTON</strong> chefiavam o movimento popular. Os girondinos pretendiam acalmar o<br />
povo. A 3 de agosto é divulgado em Paris o manifesto de BRUNSWICK, general ao<br />
serviço da Prússia, que demonstrava as traições internas da França, e segundo o<br />
qual a invasão se destinava a restaurar o poder absoluto do rei em França. Este<br />
manifesto provocou no povo francês uma enorme agitação. Na madrugada de 10<br />
de agosto o povo, comandado pela Comuna, invade as Tulherias e derruba o rei. A<br />
Comuna Revolucionária fica senhora da situação. O rei é preso no Palácio do<br />
Luxemburgo. A A Assembleia Assembleia nomeia nomeia novo novo governo governo girondin girondino girondin o do qual faz parte<br />
apenas, apenas, como como jacobino, jacobino, <strong>DANTON</strong> <strong>DANTON</strong>. <strong>DANTON</strong> A Comuna Revolucionária que, dirigida pelos<br />
jacobinos da Montanha, encabeçara o 10 de agosto é, agora, a par da Assembleia<br />
<strong>Nacional</strong>, o órgão da Revolução. À sua frente, além de <strong>DANTON</strong> estão os jacobinos<br />
ROBESPIERRE, MARAT, CHAUMETTE, etc. Os girondinos procuram travar a<br />
ascendência da Comuna mas nada podem fazer pois <strong>DANTON</strong> está entre eles. A<br />
luta luta entre entre a a Comuna Comuna e e a a Assembleia Assembleia Legislativa Legislativa era, era, noutro noutro plano, plano, a a luta luta entre<br />
entre<br />
girondinos girondinos e e e jacobinos jacobinos. jacobinos<br />
● A 2 de setembro Verdun é tomada pelos exércitos de BRUNSWICK. O caminho<br />
de Paris estava livre para os invasores. É nesta altura que a Comuna toma a seu<br />
cargo de maneira extraordinária a defesa da França e organiza o contra-ataque.<br />
Enquanto os girondinos propõem a retirada da Assembleia de Paris, <strong>DANTON</strong>,<br />
indignado, profere a frase que ficou na história e a que a peça de Buchner se<br />
refere: “Para vencermos, senhores, precisamos de audácia, mais audácia, sempre<br />
audácia – e a França será salva!”. Encorajado pelos jacobinos e em especial por<br />
<strong>DANTON</strong> o povo lança-se à rua e vence os exércitos invasores em Valmy. A França<br />
estava salva, realmente. São as célebres jornadas jornadas jornadas de de setembro setembro. setembro<br />
● A 21 de setembro, no dia seguinte à vitória de Valmy, por proposta de COLLOT<br />
D’HERBOIS a Convenção Convenção decreta decreta a a abolição abolição da da Monarquia Monarquia e e proclama proclama a<br />
a<br />
República República. República República Na Convenção, a nova Assembleia, as as direitas direitas direitas já já não não são são são constituídas<br />
constituídas<br />
constituídas<br />
pelos pelos pelos “feuillants” “feuillants” mas mas mas sim sim pel pelos pel os girondinos girondinos. girondinos<br />
Nas esquerdas esquerdas os os homens homens da<br />
da<br />
Montanha Montanha – os jacobinos BOBESPIERRE, <strong>DANTON</strong>, MARAT, <strong>DE</strong>SMOULINS, COLLOT,<br />
BILLAUD-VARENNES. Ainda aqui, porém, a maioria pertencia ao centro, o pântano,<br />
a planície. CHAUMETTE é eleito procurador da Comuna e HERBET seu substituto.<br />
Finalmente, no clube dos jacobinos dá-se a cisão. Os girondinos saem e<br />
advogavam o perdão do rei. Mas os jacobinos decretam a sua morte, por traição à<br />
Pátria. Em 21 de janeiro de 1793 Luís XVI é guilhotinado<br />
guilhotinado.<br />
guilhotinado<br />
● Em consequência da guerra a situação económica do país piora e as lutas de<br />
classes agravam-se. A situação miserável do povo dá lugar ao aparecimento de<br />
51
uma nova fação extremista, os “furiosos furiosos furiosos”, furiosos chefiados por ROUX, VARLET, a atriz<br />
CLAIRE LACOMBE, etc., que pretendiam a abolição da aristocracia e a concessão<br />
de regalias ao povo. Os girondinos foram os primeiros a combater os “furiosos”. Os<br />
jacobinos, embora não os apoiassem claramente, favoreceram-nos enquanto estes<br />
foram úteis na sua luta contra os girondinos (porém entre os jacobinos havia uma<br />
extrema esquerda – CHAUMETTE, PACHE, CHALIER – que mais sinceramente os<br />
incitava). A principal reivindicação dos “furiosos” era o limite dos preços dos<br />
géneros (maximum), também defendido por ROBESPIERRE, MARAT, SAINT-JUST,<br />
etc.<br />
● A Inglaterra, com PITT no governo, assim como a Espanha e a Holanda<br />
intervieram na guerra contra a França. Em março de 1793, DUMOURIEZ que<br />
gozava da confiança dos girondinos trai a Revolução, encaminhando o seu<br />
exército para a tomada de Paris após sucessivas derrotas – falhada a tentativa, foi<br />
obrigado a exilar-se junto do inimigo. Os jacobinos tomam a seu cargo a defesa do<br />
país, cuja independência estava ainda mais ameaçada que em 1792. Nomeia Nomeia-se Nomeia se<br />
então então então a a a primeira primeira Junta Junta de de Salvação Salvação Salvação Pública Pública Pública ccujo<br />
cc<br />
ujo ujo elemento elemento elemento mais mais influente influente influente é<br />
é<br />
<strong>DANTON</strong> <strong>DANTON</strong>. <strong>DANTON</strong> <strong>DANTON</strong> O exército é reorganizado. A Convenção, satisfazendo os “furiosos”,<br />
estabelece o maximum do trigo. Entretanto, os girondinos tentavam acusar os<br />
jacobinos de várias traições. No entanto, MARAT é libertado da acusação e levado<br />
em triunfo pelo povo que em 31 de maio e 2 de junho se amotina e pede o castigo<br />
dos girondinos. Estes motins marcam a queda definitiva dos girondinos e a<br />
chegada ao poder dos jacobinos que mais tarde governarão em ditadura.<br />
● Mas Mas a a a Junta Junta de de Salvaçã Salvação Salvaçã Salvação<br />
o Pública Pública dirigida dirigida por por <strong>DANTON</strong> <strong>DANTON</strong> não não conseguiu conseguiu ter ter a a<br />
energia energia suficiente suficiente para para resolver resolver os os problemas problemas do do país país. país Promulga-se em 1793 a<br />
Constituição que tem o nome desse ano e foi considerada uma das mais<br />
democráticas de sempre. ROBESPIERRE e SAINT-JUST são as figuras dominantes<br />
desta época. A lei agrária de 10 de Junho, de inspiração jacobina, atribuía os bens<br />
comunais aos camponeses e distribuía a terra em partes iguais para cada<br />
habitante. O problema do povo, dos sans culottes que haviam sido a base das<br />
insurreições de maio e junho continuava por resolver devido à fraqueza da Junta<br />
de <strong>DANTON</strong>. Os “furiosos” e ROUX fazem de novo as suas reivindicações mas<br />
apresentam-nas como combate à política dos jacobinos e como crítica à nova<br />
Constituição – daí terem caído em desgraça.<br />
● A 10 de Junho <strong>DANTON</strong> e a sua sua Junta são afastados do poder pela Convenção.<br />
Da nova Junta irão fazer parte ROBESPIERRE, BARÈRE, COUTHON, CARNOT<br />
D’HERBOIS, SAINT-JUST, BILLAUD-VARENNES, entre outros. A esta Junta virá a<br />
chamar-se “a a Grande Grande” Grande pela firmeza, energia e disposição postas na luta.<br />
ROBESPIERRE será o cérebro máximo desta Junta.<br />
52
● A nova Junta liquidará, sucessivamente, os “furiosos”, os dantonistas e os<br />
hebertistas. A ditadura jacobina afastará pelo terror terror todos todos os os que que considerou<br />
considerou<br />
inimigos inimigos da da da Revolu Revolução Revolu Revolução<br />
ção. ção Assim aconteceu com <strong>DANTON</strong>, que se havia retirado<br />
para usufruir dos prazeres de uma vida calma. Para este o tempo das audácias<br />
passara, e embora fazendo parte da Montanha ele estivera sempre mais próximo<br />
da Planície. Apesar disso continuava a gozar de grande prestígio. A partir de<br />
outubro de 1793 <strong>DANTON</strong> <strong>DANTON</strong> e e os os seus seus amigos amigos (CAMILO <strong>DE</strong>SMOULINS, FABRE<br />
D’EGLANTINE, LEGENDRE, <strong>DE</strong>LAUNAY, etc.) tornaram tornaram-se tornaram se adeptos adeptos adeptos da da moderação moderação.<br />
moderação<br />
Pediram o abrandamento da ditadura revolucionária, o fim do terror, a criação de<br />
uma comissão de clemência, etc. Embora atacando ROBESPIERRE faziam também<br />
incidir os seus ataques sobre os ultrarrevolucionários, HERBERT e os jacobinos de<br />
esquerda. CHABOT e FABRE tinham adquirido grandes fortunas por processos nem<br />
sempre honestos; criava criava-se criava<br />
se se uuma<br />
u<br />
ma nova burguesia especuladora<br />
especuladora. especuladora<br />
Contra ela<br />
ROBESPIERRE irá lançar o seu fogo assim como o fará contra os hebertistas que se<br />
situavam no pólo oposto a <strong>DANTON</strong> na medida em que levavam ao extremo as<br />
reformas que preconizavam, que iam desde a abolição do tribunal revolucionário e<br />
respetiva substituição por tribunais populares improvisados, à perseguição da<br />
Igreja, ao culto da “santa guilhotina”, etc. Em 30 de março de 1794 HEBERT e<br />
alguns dos seus partidários são executados e seis dias depois <strong>DANTON</strong>,<br />
<strong>DE</strong>SMOULINS <strong>DE</strong>SMOULINS e PHILIPPEAU PHILIPPEAU são são presos presos. presos<br />
<strong>DANTON</strong> estivera até ao fim convencido<br />
que os membros da Junta e da Convenção não ousariam tocar-lhe, e quando o<br />
aconselharam a fugir este declarou: “acaso se leva a pátria agarrada à sola dos<br />
sapatos?”. A 16 de de abril <strong>DANTON</strong> e os sseus<br />
s<br />
eus amigos amigos são são executados<br />
executados. executados A 13 de junho<br />
é executado CHAUMETTE.<br />
● Entretanto, no campo das reformas e da luta contra o estrangeiro, a ditadura<br />
jacobina prosseguia, vitoriosa, a sua caminhada. Mas ROBESPIERRE não dominara<br />
completamente os hebertistas e os dantonistas. Tinham ficado de fora homens<br />
como COLLOT, CARRIER, LEGENDRE, TALLIEN, THURIOT, que irão tomar conta da<br />
Revolução: executarão ROBESPIERRE e darão àquela definitivamente um caminho<br />
burguês, com o regresso ao poder da alta burguesia e culminando na Constituição<br />
antidemocrática de 1795.<br />
53
<strong>DANTON</strong>,<br />
ROBESPIERRE E A<br />
REVOLUÇÃO<br />
RUTH SCURR<br />
Em A Morte de Danton, Buchner apresenta-nos um retrato brilhante de<br />
Robespierre, como um gatuno de sangue frio, hipócrita e fanático – a antítese de<br />
Danton, homem viril e amante da sua mulher embora mulherengo. A peça atribui<br />
uma mistura de motivos pessoais e políticos a ambos os revolucionários e captura<br />
o drama da sua irremediavelmente deformada amizade. A amizade, a confiança, a<br />
partilha de ideais, uniam os revolucionários quando estes começaram a trabalhar<br />
por uma melhor e mais justa França em 1789. Amizades intensas que terminam<br />
muito mal são histórias centrais da Revolução. Tendo em conta que as políticas<br />
revolucionárias desenvolvem-se em inesperadas e muitas vezes violentas<br />
direções, e tendo a França caído simultaneamente em guerra civil e estrangeira,<br />
as velhas amizades, mesmo aquelas que tiveram o seu início nos dias de escola,<br />
tornaram-se frágeis, partindo-se tantas vezes. Os amigos, afinal, guardam<br />
oportunidades de traição com as quais os inimigos podem apenas sonhar.<br />
Danton, Marat e Robespierre<br />
54
Quando eles se conheceram no início da Revolução em 1789, Robespierre tinha 31<br />
anos e Danton 30; eram ambos advogados, assim como politicamente radicais e<br />
nenhum deles tinha sido famoso à guarda do ancien régime. À parte das suas<br />
fisionomias – Robespierre perto das proporções corretas, Danton um pouco maior<br />
– os dois homens foram descobrindo ter cada vez mais em comum: dedicados ao<br />
povo, ativos no clube dos Jacobinos, temendo que as forças da Contrarrevolução<br />
triunfassem com a invasão estrangeira, lutaram juntos para derrubar a monarquia,<br />
estabilizar a república e projetar as instituições do Terror.<br />
Numa das raras ocasiões em que Danton falou sobre si mesmo em público,<br />
suplicou: “Se eu tivesse sido levado pelo entusiasmo nos primeiros dias da nossa<br />
regeneração, não teria expiado por isso? Não teria sido ostracizado?”. Robespierre<br />
não poderia ter dito estas palavras. A expiação – por toda a sua carga religiosa –<br />
estava para além do repertório de Robespierre; a retórica do martírio era mais o<br />
seu estilo. Como Danton, ele tinha-se oferecido ao povo e conseguia imaginar<br />
morrer por ele; mas ao contrário de Danton, ele não conseguiu nunca admitir que<br />
poderia ter estado errado: “Quem diz que alguém inocente pereceu?”, perguntou<br />
com gelada confiança. Danton foi guilhotinado a 5 de abril de 1794, Robespierre a<br />
28 de julho do mesmo ano. “É o sangue de Danton que vos está a chocar!”, alguém<br />
rosnou quando Robespierre caiu do poder. “Danton! – É então Danton que vos<br />
pesa?”, respondeu ele, “Covardes – porque não o defenderam?”<br />
Outra das amizades de Robespierre, com o poeta e jornalista Camille Desmoulins,<br />
recua até aos seus dias de escola parisiense em Louis-le-Grand. Robespierre<br />
esteve presente no casamento de Camille com Lucile Duplessis em 1790, e foi<br />
padrinho do seu filho Horace, que cresceu órfão pelo Terror e frequentou a antiga<br />
escola do seu pai e padrinho. Era óbvio que Robespierre gostava realmente de<br />
Camille, mas orgulhava-se da sua imparcialidade e incorruptibilidade.<br />
Depois de Camille ter publicado Le Vieux Cordelier, e de se ter juntado a Danton<br />
no pedido por clemência e fim da mortandade em dezembro de 1793, Robespierre<br />
foi persuadido para se movimentar contra ele. Nenhuma amizade, nenhum<br />
suborno, prazer ou dor conseguiriam afastá-lo daquilo que ele acreditava ser do<br />
melhor interesse para o povo e para a Revolução. Mais ninguém falou tão<br />
insistentemente, previsivelmente ou prolongadamente sobre si mesmo na<br />
Revolução. Ainda assim mais ninguém poderia ser convocado a colocar de parte<br />
os seus sentimentos pessoais como Robespierre, continuamente comprometido<br />
com a ideia do bem comum; ele adquiriu a alcunha de “O incorruptível”. Ele podia<br />
falar de si mesmo tão frequentemente porque se identificava completamente com<br />
a Revolução. Peculiarmente, era acompanhado por jacobinos e outros que<br />
acreditavam nesta coincidência entre a pessoa de Robespierre e a Revolução.<br />
55
Antes de se conhecerem, Saint-Just, destinado a ser mais um amigo dramático de<br />
Robespierre, escreveu-lhe em 1790: “Eu não te conheço, mas tu és um grande<br />
homem. Não és apenas o deputado de uma província, mas sim o deputado da<br />
república e da humanidade.” Saint-Just era nove anos mais novo que Robespierre:<br />
selvagem, bonito e transgressor. O vínculo entre eles era tão improvável como<br />
importante para a Revolução. Para além da poderosa coincidência das suas<br />
opiniões sobre o julgamento e execução de Luís XVI, eles partilhavam uma<br />
obsessão pela “vertu”, virtude em português. Os dois homens falavam muito e com<br />
frequência. Saint-Just foi a única pessoa que se atreveu a subir em corrida a<br />
escada exterior que conduzia até aos quartos privados de Robespierre, na Rue<br />
Saint-Honoré (qualquer outra pessoa se aproximou de forma mais indireta através<br />
da casa do seu senhorio). Saint-Just tinha sobre ele o fascínio de um pecador<br />
reformado – “Eu agi mal, mas serei capaz de fazer melhor”, dizia ele com 20 anos.<br />
Três anos depois Saint-Just era o aliado político mais próximo do Incorruptível.<br />
Na Convenção, na manhã de 21 de março de 1794, Saint-Just leu um relatório<br />
contra Danton, Camille Desmoulins e os seus associados. Manteve-se rígido na<br />
tribuna, segurando o texto sem emoção numa mão que não tremia, enquanto<br />
usava a outra para enfatizar os mais importantes tópicos com um gesto cortante<br />
que relembrava a sua audiência da guilhotina. “Se salvarem Danton salvam uma<br />
personalidade – alguém que conheceram e admiraram; prestam respeito ao<br />
talento individual mas destroem a tentativa quase vitoriosa. Por amor a um<br />
homem vão sacrificar toda a nova liberdade que estavam a dar para todo o<br />
mundo”. Terminou devastadoramente: “As palavras que dissemos nunca serão<br />
esquecidas na terra”. A Convenção sentou-se num silêncio atordoado. O discurso<br />
de Saint-Just baseava-se numa série de notas apressadas que Robespierre tinha<br />
anotado para ele: notas que ainda existem, e que mostram para além de qualquer<br />
dúvida a profundidade da cumplicidade do Incorruptível nos ataques aos seus<br />
antigos amigos.<br />
Uma das notas incriminatórias de Robespierre era relativa à memória de uma<br />
conversa na qual este falava, como era frequente, sobre a importância da virtude<br />
e o seu papel nas políticas revolucionárias, quando Danton gracejou: “A virtude é o<br />
que eu faço todas as noites na cama com a minha mulher”. Robespierre, pouco<br />
agradado, tinha escrito isto no seu caderno para futura referência. Talvez Danton<br />
não o tivesse dito como uma piada. Nas circunstâncias em que este se encontrava,<br />
tendo em conta o seu contexto de vida desde 1789 – todo esse derramamento de<br />
sangue, todos os sonhos destruídos, a esquiva luta revolucionária ainda tão longe<br />
da vitória – o amor da intimidade sexual poderia na verdade parecer-lhe o melhor<br />
que há a esperar para os seres humanos.<br />
56
Quando se virou contra ele, Robespierre afirmou que a reputação patriota de<br />
Danton era injustificável; que este não teria contribuído para o crescer que<br />
provocou o final da monarquia em 10 de agosto de 1792, antes de mais porque<br />
teria partido de Paris para visitar a sua mãe em Arcis, e por outro lado na noite em<br />
questão teve de ser arrastado da cama para comparecer à reunião da sua Secção.<br />
No entanto ninguém arrastou Robespierre da sua cama nessa noite. Ele nunca<br />
participou em qualquer violência revolucionária. Danton e Camille tinham saído<br />
com as suas armas; Danton tinha sancionado assassínio nos degraus do Hôtel de<br />
Ville; tinha estado na primeira linha na guerra estrangeira e visto sangue a correr<br />
livremente. Como se atrevia Robespierre, entre todas as pessoas, a censurá-lo com<br />
covardia física? Ele também se queixou do corpo gordo de Danton, do facto de ele<br />
ser amoroso e indolente. Havia mau génio e um toque de maldade neste<br />
documento; até Saint-Just poderia ver que apenas partes dele poderiam ser<br />
incorporadas no relatório oficial.<br />
Robespierre seguiu Danton na guilhotina, sobrevivendo-lhe por pouco mais que<br />
quatro meses. Danton e Camille Desmoulins tinham 34 anos quando morreram;<br />
Lucile Desmoulins tinha 23; Saint-Just tinha 26; e Robespierre tinha 36 anos. Em A<br />
Morte de Danton os revolucionários jogam um jogo perdido contra a mortalidade e<br />
cada um deles sabe disso. O génio dramático Buchner morreu de tifo com 23 anos<br />
e também o sabia: “Nós não temos muita dor, temos muito pouca. Porque através<br />
da dor chegamos a Deus. Nós somos morte, pó, cinzas. Como podemos reclamar?”.<br />
Ruth Scurr, junho 2010<br />
Fotografia de ensaio © Jorge Gonçalves<br />
57
<strong>DANTON</strong><br />
SIMON SCHAMA<br />
Uma semana depois, Danton e alguns dos seus amigos mais próximos, incluindo<br />
Desmoulins, Lacroix, Philippeau e (num dia diferente) Hérault de Séchelles são por<br />
sua vez detidos. A morte dos hébertistas implicara sempre o fim dos Indulgents,<br />
pois ter atacado uns e não os outros teria sido alienar fatalmente os Terroristas da<br />
linha dura presentes nos dois comités. No dia 29 de março, há um último encontro<br />
entre os gigantes. Danton tenta persuadir Robespierre de que a sua amizade foi<br />
intencionalmente destruída por Collot e Billaud, que semearam a discórdia entre<br />
eles para se exonerarem dos excessos terroristas. Mas Robespierre não está a<br />
ouvir. Exige que Danton sacrifique os corruptos para se salvar a si próprio. É um<br />
diálogo de surdos. Segundo uma versão convincente da noite da detenção,<br />
Albertine, irmã de Marat, avisa Danton e insta-o a apresentar-se na Convenção<br />
para denunciar o Comité. Ele começa por demonstrar alguma relutância – fazê-lo<br />
significará a proscrição de Robespierre – mas depois, convencido de que não lhe<br />
restam alternativas, acede. Ao chegar à assembleia, Danton vê Robespierre numa<br />
conversa tão amistosa com Camille Desmoulins que baixa a guarda e vai-se<br />
embora para casa. É detido nessa mesma noite.<br />
58
Os caçadores sabiam que não ia ser fácil. Hébert fora uma fuinha (mas com dentes<br />
afiados). Danton será um leão ferido cujos rugidos beligerantes poderão ecoar por<br />
toda a cidade de Paris. Na noite de 25 de março, os dois comités consideraram em<br />
sessão conjunta a tática a utilizar. Saint-Just levou a acusação – da qual<br />
injustamente se orgulhava – e disse que a leria na Convenção no dia seguinte,<br />
após o que poderiam prender Danton e os amigos. Vadier e Amar olharam para<br />
ele como se não estivesse bom da cabeça. Primeiro, havia que prender Danton,<br />
depois logo se denunciaria. Qualquer outra tática seria potencialmente desastrosa.<br />
Face à ofensa aos seus poderes de persuação, para não falar da comparação<br />
negativa da sua virilidade com a de Danton, Saint-Just ficou incaracteristicamente<br />
colérico mas os polícias da Segurança Geral impuseram o seu método.<br />
A acusação contra Danton, corrigida para a sua forma final por Robespierre, é –<br />
mesmo pelos padrões do Tribunal Revolucionário – um documento incrivelmente<br />
fraco. As acusações contra Hérault de Séchelles são ainda mais capciosas.<br />
Acusado de ser um aristocrata, ele invoca a memória do seu melhor amigo, Michel<br />
Lepeletier, um ci-devant de linhagem ainda mais ilustre. Mas Danton é acusado de<br />
toda a espécie de perfídias: de conspirar para colocar o duque de Orleães no<br />
trono, de salvar pessoas, incluindo Brissot, dos massacres de setembro, de se rir<br />
sempre que é mencionada a palavra “virtude”. Em suma, é má rês. O Comité<br />
espera obviamente que enquadrando Danton e Desmoulins nos vigaristas da<br />
fraude da Companhia das Índias, incluindo toda uma gama de estrangeiros<br />
diversos – os irmãos Frey, o espanhol Guzmán, o dinamarquês Friedrichsen, o<br />
belga Simon –, a culpa da vigarice se cole ao seu principal adversário, embora não<br />
disponham da mínima prova que o ligue ao esquema.<br />
No dia 2 de abril, o tribunal enche-se com uma multidão enorme – Danton tem um<br />
número de seguidores formidável. Fouquier-Tinville tentou conter o interesse<br />
popular até ao último minuto antes de anunciar o julgamento mas vê-se a braços<br />
com um tribunal tumultuoso que ofende profundamente a sua noção de<br />
procedimentos ordeiros. Até o número dos réus parece não bater certo:<br />
Westermann, velho camarada de Danton, insiste em ser acusado com o amigo.<br />
Quando o presidente do tribunal lhe garante que isso é “apenas uma formalidade”,<br />
Danton comenta: “A nossa presença aqui é apenas uma formalidade”. Sucedem-se<br />
as interrupções e as confusões, revelando o sentido assustadoramente poderoso<br />
que Danton tem do teatro público. Ao não conseguir interromper uma das tiradas<br />
tonitruantes de Danton, o presidente, Herman, pergunta-lhe: “Não ouviste a<br />
sineta?” Danton replica: “A voz de um homem que está a defender a vida e a honra<br />
tem de se impor ao som do vosso sininho”. Danton está efetivamente decidido a<br />
explorar a vantagem que tem sobre os juízes em termos de volume, ciente de que<br />
uma voz sonora e profunda, além de fazer os seus interrogadores parecerem<br />
ridículos, dá testemunho dos recursos de poder viril que a cultura republicana<br />
59
associa à virtude. Trovejar é ser patriótico. No dia seguinte, no princípio da defesa,<br />
dirigindo-se mais ao público do que aos juízes ou ao júri, Danton declara: “Povo,<br />
julgar-me-eis depois de me ouvires; a minha voz será ouvida por vós e em toda a<br />
França”.<br />
É exatamente isto que o tribunal teme, e não está disposto a deixar Danton dirigir<br />
o julgamento. Desdenha da sua exigência de convocar uma longa lista de<br />
testemunhas, incluindo membros do Comité de Salvação Pública como o próprio<br />
Robespierre e Robert Lindet, o único dos colegas de Danton que se negou a<br />
assinar o mandato de detenção. Não sobreviveu nenhum registo completo dos<br />
trabalhos mas ao que parece Danton falou quase o dia inteiro e com um efeito<br />
tremendo, sacudindo as acusações como se estivesse a sacudir insetos do casaco.<br />
“Será que os cobardes que me estão a caluniar se atrevem a atacar-me cara a<br />
cara?”, exige ele, e numa veia mais estoico-romântica: “O meu domicílio será em<br />
breve no esquecimento, com o meu nome no Panteão… Eis a minha cabeça para<br />
responder por tudo”. Danton parece querer elevar a miséria moral da ocasião ao<br />
nível da retórica trágica, transformando o seu fim em algo tão importante e<br />
memorável como o de um herói homérico, um patriota dos anais de Roma.<br />
Durante os últimos dois dias, o tribunal ficou a conhecer Danton. Amanhã, ele conta<br />
dormir no seio da glória. Nunca pediu perdão e vê-lo-eis subir para o patíbulo com<br />
a sua serenidade habitual e a calma de uma consciência limpa.<br />
Durante o seu período de detenção e julgamento, os dantonistas estão<br />
encarcerados no Luxemburgo. É talvez a menos miserável de todas as prisões do<br />
Terror, e aqueles que os lá veem recordarão Danton e Phillippeaux afetando uma<br />
espécie de alegria forçada. Danton, em particular, parece resignado a separar-se<br />
da sua segunda mulher, Louise, uma rapariga de apenas dezasseis anos. Camille<br />
Desmoulins, no entanto, cai no mais profundo desalento ao ter de se separar de<br />
Lucile, da qual continua muito apaixonado. Ela visita-o sempre que pode,<br />
mantendo-se de pé, à distância prescrita, o que causa ao marido um intenso<br />
prazer mas também um terrível tormento emocional. Na sua última carta, escrita<br />
antes da execução, Danton diz a Lucile que ao vê-la e à mãe dela se atirou<br />
desesperado contra as grades. É uma carta espantosa, o jorro de um homem<br />
completamente desfeito pela tristeza e pelo remorso, caído nas profundezas de<br />
uma espécie de fantasmagoria romântica e que deseja renunciar a toda a sua vida<br />
pública para poder ter uma vida privada de paz.<br />
Minha Lucile, ma poule, apesar do meu tormento acredito na existência de um<br />
Deus; o meu sangue lavará as minhas falhas; voltarei a ver-te um dia, minha<br />
Lucile… a morte que me vai libertar do espetáculo de tantos crimes é uma<br />
desgraça? Adeus, Lulu, adeus, minha vida, minha alma, minha divindade na terra…<br />
Sinto as margens do rio da vida ficar para trás, vejo-te de novo, Lucile, vejo os<br />
60
meus braços à tua volta, as minhas mãos atadas a abraçarem-te, a minha cabeça<br />
cortada apoiada em ti. Vou morrer…<br />
Lutador até ao fim, Danton continua a exigir o direito de convocar testemunhas. A<br />
sua insistência é tão veemente e o público é-lhe tão simpático que Saint-Just,<br />
temendo o colapso do julgamento, se apresenta na Convenção e diz que os<br />
detidos estão a fomentar uma insurreição contra o tribunal e que a mulher de<br />
Desmoulins está envolvida numa conspiração para assassinar membros do Comité<br />
de Salvação Pública. São afirmações absurdas mas dão ao Comité a autoridade<br />
suficiente para regressar ao tribunal e instruir Fouquier a empregar o seu habitual<br />
“atalho” de perguntar ao júri se já foi suficientemente “iluminado”. Foi. Ao saber<br />
que perdeu um último recurso, Danton resigna-se. Na prisão, segundo Riouffe, que<br />
dirá que o ouviu através da parede, ele lamenta-se por deixar a República em tão<br />
mau estado, governada por homens que não fazem a mínima ideia do que é<br />
governar. “Se eu pudesse deixar os tomates ao Robespierre e as pernas ao<br />
Couthon, o Comité talvez durasse mais algum tempo”.<br />
No dia 5 de abril, Danton, Hérault, Desmoulins e os outros vão ao encontro da<br />
morte. Observados por uma enorme multidão praticamente silenciosa,<br />
comportam-se com grande dignidade e compostura. Danton está decidido a<br />
mostrar afeto e amizade. Ele e Hérault de Séchelles, o prodígio do Parlamento<br />
tornado jacobino regicida, tentam abraçar-se mas são bruscamente separados<br />
pelo carrasco, Sanson. “Não impedirão as nossas cabeças de se encontrarem no<br />
cesto”, terá dito Danton. Mas o seu último comentário é o melhor. Ao colocar-se à<br />
frente da prancha, com a camisa manchada com o sangue dos seus melhores<br />
amigos, Danton diz a Sanson: “Não te esqueças de mostrar a minha cabeça ao<br />
povo. Olha que vale a pena”.<br />
Simon Schama, Cidadãos – Uma Crónica da Revolução Francesa, Porto,<br />
Civilização Editora, 2001.<br />
Fotografias de ensaios © Jorge Gonçalves<br />
61
SUGESTÃO <strong>DE</strong><br />
ATIVIDA<strong>DE</strong>S<br />
ESCREVER<br />
TAREFAS A <strong>DE</strong>SENVOLVER COM OS ALUNOS<br />
Solicitar que os alunos façam um levantamento das principais ideias que foram a<br />
base da Revolução Francesa. A partir dessas ideias, os alunos deverão fazer, em<br />
pequenos grupos, um panfleto. Segue-se o debate e discussão em torno das<br />
escolhas de cada grupo.<br />
ANALISAR<br />
Analisar com os alunos algumas imagens sobre a Revolução Francesa: a Pirâmide<br />
social da França do séc. XV<strong>II</strong>I (fig. 1); os Sans Culottes (fig. 2); a tomada da Bastilha<br />
(fig. 3).<br />
Fig.1 Fig. 2<br />
Fig. 3<br />
62
INVESTIGAR<br />
Pedir aos alunos breves biografias de algumas das principais personagens da<br />
Revolução Francesa e interpretadas no espetáculo A Morte de Danton, tais como:<br />
Georges Danton; Legendre; Camille Desmoulins; Hérault-Séchelles; Thomas Payne;<br />
Robespierre; Saint-Just; Collot d´Herbois; Billaud Varennes, entre outras.<br />
DRAMATIZAR<br />
Apresentar aos alunos a seguinte proposta do trabalho: preparação e execução<br />
de um debate sobre as posições defendidas por cada grupo social durante a<br />
Revolução Francesa. A turma é dividida em grupos, consoante os grupos sociais<br />
que participaram da Revolução Francesa. Assim, um grupo representará os<br />
interesses dos camponeses, outro da nobreza, outro da burguesia, outro do clero e<br />
outro dos sans culottes.<br />
Estabelecer uma Assembleia para discutir com os alunos quais seriam as regras<br />
necessárias para se realizar um debate. É realizada uma votação para o<br />
estabelecimento dessas regras.<br />
LER<br />
Ler e analisar com os alunos a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,<br />
um documento culminante da Revolução Francesa, que define os direitos<br />
individuais e coletivos dos homens como universais.<br />
VISIONAR<br />
Após a assistência ao espetáculo A Morte de Danton, visionar com os alunos o filme<br />
Danton, de Adrzej Wajda (1982), e discutir em aula o perfil da personagem Danton<br />
em ambos os casos.<br />
63
EQUIPA TEATRO NACIONAL D. MARIA <strong>II</strong>, E.P.E.<br />
direção artística JOÃO MOTA<br />
conselho de administração CARLOS VARGAS, ANTÓNIO PIGNATELLI, SANDRA SIMÕES<br />
secretariado CONCEIÇÃO LUCAS<br />
motorista RICARDO COSTA<br />
atores JOÃO GROSSO, JOSÉ NEVES, LÚCIA MARIA, MANUEL COELHO, MARIA AMÉLIA MATTA,<br />
PAULA MORA<br />
direção de produção CARLA RUIZ, MANUELA SÁ PEREIRA, RITA FORJAZ<br />
direção de cena ANDRÉ PATO, CARLOS FREITAS, ISABEL INÁCIO, MANUEL GUICHO, PAULA<br />
MARTINS, PEDRO LEITE<br />
auxiliar de camarim PAULA MIRANDA, PATRÍCIA ANDRÉ<br />
pontos CRISTINA VIDAL, JOÃO COELHO<br />
guarda-roupa GRAÇA CUNHA<br />
direção técnica JOSÉ CARLOS NASCIMENTO, ERIC DA COSTA, VERA AZEVEDO<br />
maquinaria e mecânica de cena VÍTOR GAMEIRO, JORGE AGUIAR, MARCO RIBEIRO, PAULO<br />
BRITO, NUNO COSTA, RUI CARVALHEIRA<br />
iluminação JOÃO <strong>DE</strong> ALMEIDA, DANIEL VARELA, FELICIANO BRANCO, LUÍS LOPES, PEDRO ALVES<br />
som / audiovisual RUI DÂMASO, PEDRO COSTA, SÉRGIO HENRIQUES<br />
manutenção técnica MANUEL BEITO, MIGUEL CARRETO<br />
adereços VIRGÍNIA RICO<br />
motorista CARLOS LUÍS<br />
direção de comunicação e imagem RAQUEL GUIMARÃES, TIAGO MANSILHA<br />
assessoria de imprensa JOÃO PEDRO AMARAL<br />
produção de conteúdos MARGARIDA GIL DOS REIS*<br />
design gráfico JOÃO NUNO REPRESAS*, MARGARIDA KOL*<br />
direção administrativa e financeira CARLOS SILVA, EULÁLIA RIBEIRO, ISABEL ESTEVENS<br />
controlo de gestão MARGARIDA GUERREIRO<br />
tesouraria IVONE PAIVA E PONA<br />
recursos humanos ANTÓNIO MONTEIRO, MADALENA DOMINGUES<br />
direção de manutenção SUSANA COSTA, ALBERTINA PATRÍCIO<br />
manutenção geral CARLOS HENRIQUES, LUÍS SOUTA, RAUL REBELO, VÍTOR SILVA<br />
informática NUNO VIANA<br />
técnicas de limpeza ANA PAULA COSTA, CARLA TORRES, LUZIA MESQUITA, SOCORRO SILVA<br />
vigilância GRUPO 8*<br />
direção de relações externas e frente de casa ANA ASCENSÃO, CARLOS MARTINS,<br />
<strong>DE</strong>OLINDA MEN<strong>DE</strong>S, FERNANDA LIMA<br />
bilheteira RUI JORGE, CARLA CEREJO, NUNO FERREIRA<br />
receção <strong>DE</strong>LFINA PINTO, ISABEL CAMPOS, LUR<strong>DE</strong>S FONSECA, PAULA LEAL<br />
assistência de sala COMPLET’ARTE*<br />
direção de documentação e património CRISTINA FARIA, RITA CARPINHA*<br />
livraria MARIA SOUSA<br />
biblioteca | arquivo ANA CATARINA PEREIRA, RICARDO CABAÇA<br />
* prestações de serviços<br />
64