O profeta do castigo divino - Pedro Almeida Vieira
O profeta do castigo divino - Pedro Almeida Vieira
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Capítulo I<br />
À entrada da barra de Lisboa, enxergar um navio com casco<br />
despedaça<strong>do</strong>, velas esmolambadas e leme parti<strong>do</strong> deveria significar,<br />
pelas leis da marinhagem, naufrágio à vista. O primeiro dia<br />
de Fevereiro de 1750 deveria ter si<strong>do</strong>, por isso, o último da vida<br />
<strong>do</strong>s marinheiros e passageiros daquela nau que, há <strong>do</strong>is meses,<br />
rumara de Belém <strong>do</strong> Pará.<br />
Perante aquele previsível soçobro, no princípio daquela tarde,<br />
magotes acorreram às praias <strong>do</strong> Tejo. Uns por sentida inquietação,<br />
outros pelo fascínio <strong>do</strong> triste espectáculo, aqueloutros esperançosos<br />
em recolher os despojos da embarcação que derribariam aos<br />
roche<strong>do</strong>s. Para matar o tédio, que o navio an<strong>do</strong>u em rebuliço desgoverna<strong>do</strong>,<br />
surgiram então as apostas sobre o salva -se, não se<br />
salva. Estavam quase equilibradas, mas logo que o navio a<strong>do</strong>rnou<br />
num escolho, ainda por cima haven<strong>do</strong> maré vazante, os palpites<br />
guindaram também. Criou -se então uma nova variante: o acerto no<br />
número de mortes, pois apenas um joga<strong>do</strong>r, com mais fé, insistiu<br />
em manter empenha<strong>do</strong> meia dúzia de réis a favor de um salvatério.<br />
Lance mais arrisca<strong>do</strong> por os aposta<strong>do</strong>res nem sequer saberem ao<br />
certo quantos homens trazia a nau, mas, de qualquer mo<strong>do</strong>, com<br />
direito a um prémio mais apetecível para os sortu<strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res.<br />
Tão animada estava esta jogatina que poucos se aperceberam<br />
<strong>do</strong> instante em que, num repente, a embarcação se soltou <strong>do</strong> roche<strong>do</strong>.<br />
E muitos nem repararam, de início, que derivou contra a maré<br />
vazante – estan<strong>do</strong> ainda por cima o vento a bater de leste – como se<br />
propulsada por mão invisível, começan<strong>do</strong> a entrar barra adentro com<br />
a popa a fazer de proa. O pasmo foi enorme e teria si<strong>do</strong> ainda maior,<br />
não fosse ter -se vislumbra<strong>do</strong>, no cimo <strong>do</strong> convés <strong>do</strong> navio, conduzin<strong>do</strong><br />
aqueles madeiros flutuantes como cavaleiro destro, um homem<br />
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