O profeta do castigo divino - Pedro Almeida Vieira
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O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong><br />
recusavam. Em menos de três tempos, lhe satisfizeram os três<br />
pedi<strong>do</strong>s: foi serrada a gávea <strong>do</strong> velacho, arrumaram -se uns nacos<br />
de carne e levou -se <strong>do</strong> porão a única pipa que ainda continha algo<br />
mais <strong>do</strong> que ar. O jesuíta encheu então quatro talhas com água,<br />
dispôs os madeiros até formarem uma desengonçada árula, em<br />
volta deste arcaico altar raspou um sulco com uma navalha e, por<br />
fim, depositou a carne e uns pedaços de madeira. Termina<strong>do</strong> isto,<br />
pegou -lhes o fogo.<br />
A marinhagem nem quis acreditar nos próprios olhos. E fe charam<br />
-nos, em desespero, quan<strong>do</strong> o jesuíta derramou as talhas de<br />
água sobre aquele holocausto. Mas os seus ouvi<strong>do</strong>s tiveram, logo<br />
de seguida, motivos para também se afligirem.<br />
– Tornai a fazer o mesmo! Enchei e despejai mais quatro<br />
talhas! – ordenou -lhes Malagrida.<br />
O jesuíta viu -se obriga<strong>do</strong> a repetir mais duas vezes esta intimação<br />
perante o burburinho das protestações. E a terceira já foi<br />
com a voz escabreada e as faces ruborescidas, de mo<strong>do</strong> a que lhe<br />
obedecessem sem mais reclamações. Vi então, naquele convés,<br />
muitos pares de olhos de desespero e muitos pares de pernas com<br />
ânsias em se lançarem aos pés daquela ara para sorverem os desperdícios<br />
aquosos que dali tombavam – que punhos fecha<strong>do</strong>s de<br />
fúria, <strong>do</strong>s mais incrédulos, ainda eram poucos, embora em<br />
número crescente. O padre Malagrida parecia, contu<strong>do</strong>, indiferente<br />
aos esgares horroriza<strong>do</strong>s daqueles homens.<br />
– Fazei -o pela terceira vez! – repetiu.<br />
Desta vez, ninguém se mexeu, nem mugiu nem tugiu;<br />
somente se ouviram dentes rangen<strong>do</strong>. Somente após um penetrante<br />
olhar <strong>do</strong> jesuíta sobre o capitão, este se abalançou para,<br />
finalmente, lançar as últimas porções <strong>do</strong> líqui<strong>do</strong> que restava na<br />
pipa. Apesar deste cerimonial, e de se ter passa<strong>do</strong> uma hora a<br />
ouvir as ladainhas <strong>do</strong> padre Malagrida defronte daqueles destroços<br />
lamacentos de carnes e madeiras esturricadas, nem nuvens<br />
no horizonte assomaram, quanto mais água a cair <strong>do</strong> céu. Os mais<br />
afoitos e assanha<strong>do</strong>s de entre a marinhagem estavam já a perder<br />
a encalistração e ameaçavam avançar para junto <strong>do</strong> altar. Suspeitava<br />
eu que, desta vez, falhan<strong>do</strong> Malagrida a promessa de trazer<br />
água à nau, acabaria ele lança<strong>do</strong> da nau para a água.<br />
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