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O profeta do castigo divino - Pedro Almeida Vieira

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O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong><br />

carne e apagar o fogo com água fora parte de uma encenação.<br />

E as ameaças aos marinheiros para não fixarem o líqui<strong>do</strong> salga<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> mar constituía o segun<strong>do</strong> acto – embora também com acção<br />

profiláctica. De facto, sem água <strong>do</strong>ce e sem aquelas advertências,<br />

certo seria alguns desespera<strong>do</strong>s lançarem baldes ao mar para se<br />

saciarem, transforman<strong>do</strong> -se, senão em estátuas salgadas, pelo<br />

menos em rijos cadáveres salmoura<strong>do</strong>s.<br />

A estratégia de Malagrida, disso fiquei depois ciente, já há<br />

muito estaria conjecturada. Como <strong>do</strong>s céus não lhe surgia água<br />

<strong>do</strong>ce, então congeminara que <strong>do</strong> mar viesse, conquanto se lhe<br />

tirasse o sal, por um méto<strong>do</strong> subtilíssimo, para que o paladar não<br />

o sentisse. Mas para que o coração saboreasse como sen<strong>do</strong> uma<br />

dádiva divina – que é deste conduto que se alimenta a fé – ser -lhe-<br />

-ia ponderoso que nenhuns olhos vissem como surgira a manipulação.<br />

Na verdade, na verdade vos digo: o padre Malagrida era um<br />

embusteiro, mas com fidúcia e, em seu abono, letra<strong>do</strong>.<br />

Há alguns anos atrás, lera ele um livro, intitula<strong>do</strong> Silva de<br />

varia lección, escrito por um sevilhano de nome <strong>Pedro</strong> Mexía, cronista<br />

régio de D. Carlos V de Castela, que explicava como se<br />

poderia sacar no mar alguma quantidade de água <strong>do</strong>ce. Esta obra<br />

continha um amontoa<strong>do</strong> de patetices, mas o capítulo sobre a dessalga<br />

<strong>do</strong> mar – que antecedia uma dissertação sobre a razão e<br />

causa de to<strong>do</strong>s os animais locomotores terem pés pares – tinha<br />

algum senti<strong>do</strong>. Através <strong>do</strong> receituário de Gaius Plinius Secundus,<br />

incluí<strong>do</strong> no seu trigésimo primeiro livro da Historia Naturalis,<br />

Mexía sugerira que se usassem filtros de argila. Não os haven<strong>do</strong>,<br />

recomendava um méto<strong>do</strong> semelhante ao proposto por Aristóteles:<br />

umas bolas de cera delgadas, ocas por dentro, sem boca e respira<strong>do</strong>r,<br />

que deveriam ser metidas no mar, dentro de uma rede,<br />

pelo espaço de um dia natural. Abertas, escreveu <strong>Pedro</strong> Mexía,<br />

sairia uma água tão <strong>do</strong>ce e tão boa como a de uma fonte.<br />

Embora Mexía avisasse nunca ter opera<strong>do</strong> aquela experiência,<br />

para o padre Malagrida a receita soava -lhe a mel na sopa.<br />

Cera oca era, por acaso, ingrediente abundante na sua bagagem,<br />

pois trouxera abundantes bolas vazias para, em Lisboa, as inocular<br />

de água benta e as vender como milagrosas. Duzentas e trinta<br />

e oito bolas, contei -as então eu, foram lançadas ao mar pelo padre<br />

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