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O profeta do castigo divino - Pedro Almeida Vieira

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O <strong>profeta</strong> <strong>do</strong> <strong>castigo</strong> <strong>divino</strong><br />

com ele e não tinham que comer, também Deus, por meu intermédio,<br />

de vós tem piedade por há três semanas quase não beberem –<br />

anunciou, por fim, Malagrida.<br />

E, acto contínuo, abrin<strong>do</strong> uma das pipas, supostamente<br />

vazias para os incrédulos marinheiros, meteu lá dentro um<br />

caneco, dan<strong>do</strong> -o ao capitão.<br />

– Creia que temos, agora, água de sobra! Seja mais generoso<br />

para as suas gentes.<br />

O homem hesitou antes de meter os beiços na água. O seu céptico<br />

cérebro ainda obrigou a língua a tilintar, por momentos, na<br />

superfície daquele líqui<strong>do</strong> e somente quan<strong>do</strong> as suas papilas gustativas<br />

ratificaram o grau de salinidade, se abriram então as goelas de<br />

satisfação. Escusa<strong>do</strong> será relatar pormenores da reacção daquele<br />

convés pelo tão extraordinário surgimento de água <strong>do</strong>ce. Nunca<br />

Deus foi tão glorifica<strong>do</strong> e Malagrida tão abençoa<strong>do</strong>. E como também<br />

no dia seguinte – depois de alguns inchaços aquosos e muitos,<br />

untuosos e babosos beijos na roupeta <strong>do</strong> jesuíta –, o vento também<br />

surgiu, cheguei à conclusão de que seria uma perda de tempo intentar<br />

qualquer nova tentativa para abortar aquela viagem.<br />

Contu<strong>do</strong>, os percalços não terminaram. Aliás, pioraram.<br />

E, por ironia, após eu ter jura<strong>do</strong>, a mim mesmo, que nem por pensamentos<br />

ou desejos meteria mais o bedelho naquela travessia.<br />

Chegada a nau ao mar de Cádis, a leve bafagem passou a uma aragem<br />

mais rija, a seguir o vento mu<strong>do</strong>u para fresco, depois para<br />

forte, mais tarde a muito forte e, daí a nada, a duro e muito duro,<br />

chegan<strong>do</strong> ao esta<strong>do</strong> de tempestuoso, crian<strong>do</strong> vagalhões enormes,<br />

encurtan<strong>do</strong> a visibilidade e, enfim, quase fazen<strong>do</strong> sumir o navio no<br />

cava<strong>do</strong> das ondas. Cabos e velas, tu<strong>do</strong> se despedaçou, <strong>do</strong>is <strong>do</strong>s<br />

três mastaréus ameaçaram desarvorar – o terceiro, se se recordam,<br />

serviu para o holocausto – e o cadaste partiu -se. Ou seja, o<br />

leme foi de vela.<br />

De repente, como é comum em circunstâncias similares,<br />

uma descarga eléctrica de corona – resultante de uma grande<br />

diferença de potencial que se estabelece entre as nuvens e um<br />

objecto condutor – ionizou o ar em torno <strong>do</strong> mastro e surgiu uma<br />

chama cor azul -violeta – o lume vivo que a marítima gente tem<br />

por santo, como escreveu o poeta Camões.<br />

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