Prosa - Academia Brasileira de Letras
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Elizabeth Travassos / Manoel Aranha Correa do Lago<br />
A preocupação tem origem no paradoxo do artista que invoca a cultura popular<br />
como inspiração, mantendo-se firmemente instalado no terreno da alta<br />
cultura. O music-hall fora <strong>de</strong>cantado em Le Coq et l’Arlequin como antídoto ao<br />
teatro corrompido. Mas o flerte <strong>de</strong> Cocteau com o teatro popular tinha limites.<br />
Uma coisa era absorver aspectos da atuação circense e da música popular<br />
brasileira numa obra que se pretendia classée; outra, bem diferente, a difusão<br />
<strong>de</strong>sta mesma obra fora do circuito da cultura legítima (o que po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>sclassificá-la).<br />
É como se Cocteau pressentisse que o Bœuf “<strong>de</strong>snivelado”, oferecido a<br />
um público diferente do da estréia, colocaria em risco o entendimento da farsa<br />
como mais uma ousadia mo<strong>de</strong>rnista. Enquanto o Bœuf se mantivesse no circuito<br />
da alta cultura, estaria assegurada sua interpretação como produto do gênio<br />
visionário dos artistas capazes <strong>de</strong> enxergar qualida<strong>de</strong>s na arte circense e nos<br />
longínquos airs sud-américains.<br />
Cocteau tomou suas precauções e publicou um artigo justificando sua <strong>de</strong>cisão<br />
<strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r aos apelos da diretora do Ba-Ta-Clan. Em uma intervenção preventiva,<br />
<strong>de</strong>squalificou como “erro ingênuo” qualquer confusão entre o teatro<br />
<strong>de</strong> revista e suas obras cênicas. Ao mesmo tempo, <strong>de</strong>clarava seu apreço pelo<br />
público espontâneo, sem preconceitos, que compareceria ao teatro.<br />
“Cada vez que entreguei um <strong>de</strong> meus brinquedos nas mãos do público,<br />
ouvi: ‘É music-hall’. Este erro ingênuo <strong>de</strong>ve-se ao fato <strong>de</strong> o público, incapaz<br />
<strong>de</strong> perceber certas nuanças, encontrar em Para<strong>de</strong>,noBœuf,emMariés, uma atmosfera<br />
divertida que ele julga incompatível com o sério e que só ousa admitir<br />
num palco <strong>de</strong> music-hall ou então na Comédie-Française, no museu,<br />
quando o brinquedo encontra aí seu lugar, finalmente, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos séculos<br />
<strong>de</strong> pátina [...] Mas além <strong>de</strong> os autores terem sido lisonjeados pela insistência<br />
da diretora [do Ba-Ta-Clan], agrada-lhes mostrar sua farsa numa<br />
sala <strong>de</strong> bairro que não tem preconceito. O público esnobe prejulga e não<br />
tem força <strong>de</strong> voltar atrás. O público artista prejulga e volta atrás algumas vezes.<br />
Somente o público popular não prejulga e <strong>de</strong>ixa-se levar sem cálculo.”<br />
(Cocteau, 1979, p. 194.)<br />
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