tratados de amor: uma análise das obras de pietro bembo
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TRATADOS DE AMOR: UMA ANÁLISE DAS OBRAS DE PIETRO BEMBO<br />
(1505) E DE TULLIA D’ARAGONA (1547) NA TRADIÇÃO FILOGRÁFICA DO<br />
RENASCIMENTO ITALIANO<br />
Aluna: Juliana Horstmann Amorim<br />
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Paula Vosne Martins<br />
Palavras chaves: H<strong>uma</strong>nismo renascentista; Tratados sobre o <strong>amor</strong>; Cortes renascentistas;<br />
Há <strong>uma</strong> longa e consolidada tradição filosófica que refletiu sobre o <strong>amor</strong>. De Safo,<br />
aos trovadores medievais, passando ainda por Dante e Petrarca o <strong>amor</strong> esteve sempre no<br />
horizonte da escrita e da sensibilida<strong>de</strong> poética. Os h<strong>uma</strong>nistas renascentistas também<br />
discorreram sobre o tema, no entanto, neste contexto o tema foi pensado através do viés<br />
filosófico, <strong>de</strong> forma bastante diferente, portanto, da escrita poética. Nesse sentido, a ênfase<br />
dos h<strong>uma</strong>nistas não recaia no sentimento <strong>amor</strong>oso, mas nas qualida<strong>de</strong>s do <strong>amor</strong> em si,<br />
compreendido como o caminho à verda<strong>de</strong> e à beleza.<br />
Com enfoque nessa tradição visamos compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> que forma o <strong>amor</strong> foi<br />
problematizado pela reflexão filosófica do século XVI através da <strong>análise</strong> <strong>de</strong> dois <strong>tratados</strong><br />
sobre o <strong>amor</strong> produzidos no Renascimento italiano, intitulados: Os Assolani 1 <strong>de</strong> 1505, do<br />
h<strong>uma</strong>nista Pietro Bembo, que foi o primeiro a estabelecer as regras da língua italiana <strong>de</strong><br />
modo seguro e coerente, com base nas práticas dos maiores escritores toscanos do<br />
Trecento, e Sobre a infinida<strong>de</strong> do Amor 2 <strong>de</strong> 1547 <strong>de</strong> Tullia D’ Aragona, <strong>uma</strong> “honesta<br />
cortesã”, como então eram chama<strong>das</strong> as cortesãs cultas, refina<strong>das</strong> e muito bem relacionada<br />
com os homens <strong>de</strong> letras e os po<strong>de</strong>rosos. A <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> <strong>amor</strong> presente nestes <strong>tratados</strong> já<br />
havia sido formulada anteriormente e os pensadores renascentistas se inspiraram<br />
particularmente nos diálogos platônicos para formular sua <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> <strong>amor</strong>. Desta forma,<br />
estruturamos a monografia em três capítulos.<br />
No primeiro capítulo consi<strong>de</strong>rarmos necessário atentar para a tradição filográfica<br />
renascentista, ressaltando o lugar da discussão sobre o <strong>amor</strong> no <strong>de</strong>bate filosófico e alguns<br />
dos seus mais importantes autores. Para tanto utilizamos como fonte primária o texto que<br />
talvez seja inaugurador <strong>de</strong>sta tradição filográfica, e que po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado <strong>uma</strong><br />
representação típica do círculo neoplatônico florentino, o De Amore, Commentariumin<br />
Convivium Platonis 3 , escrito em 1469 por Marsílio Ficino, um importante h<strong>uma</strong>nista<br />
italiano que traduziu e difundiu as principais <strong>obras</strong> <strong>de</strong> Platão.<br />
De <strong>amor</strong>e versa sobre novos sentimentos e sobre a contemplação como aspiração<br />
i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> vida. Na esfera filosófica do século XV o <strong>amor</strong> já havia merecido atenção. Fora<br />
tratado como a base da família, ou em sua função cívica 4 , a partir <strong>de</strong> Ficino, no entanto, o<br />
enfoque filosófico do <strong>amor</strong> converteu-se ao platonismo. Atentando para esse novo estilo<br />
<strong>de</strong> tratar o assunto, pon<strong>de</strong>ramos ser necessário explanar sobre pelo contexto no qual Ficino<br />
viveu e produziu.<br />
No interior <strong>de</strong> um amplo panorama cultural do Quattrocento, dominado pelas<br />
preocupações éticas sobre os homens, o trabalho <strong>de</strong> Ficino possui <strong>uma</strong> gran<strong>de</strong> importância<br />
1 BEMBO, Pietro, 1505: Gli Asolani / Los Asolanos, Ed. Bosch, Barcelon, 1990.<br />
2 D’Aragona, Tullia. Sobre a infinida<strong>de</strong> do <strong>amor</strong>. São Paulo: Martins Fontes, 2001.<br />
3 De Amore. Comentario a el Banquete <strong>de</strong> Platon/ Marsílio Ficino; tradução, apresentação e notas <strong>de</strong> Rocío<br />
<strong>de</strong> la Villa Ardura. – 3ª edição- Madrid: Editorial Tecnos, 1994.<br />
4 SKINNER, Q. “A renascença italiana”, in: As fundações do pensamento político mo<strong>de</strong>rno. São Paulo:<br />
Companhia <strong>das</strong> Letras, 1996.
ao reavivar a tradição platônica na história do pensamento oci<strong>de</strong>ntal. Foi na conjuntura da<br />
segunda meta<strong>de</strong> do século XV que o platonismo encontrou gran<strong>de</strong> acolhida nos meios<br />
intelectuais florentinos. Sob o mecenato <strong>de</strong> Cosme <strong>de</strong> Médici gran<strong>de</strong> parte da obra <strong>de</strong><br />
Platão foi traduzida e foi criada em Florença a Aca<strong>de</strong>mia Platônica, por ação <strong>de</strong> Marsilio<br />
Ficino. Esta foi a primeira e o mo<strong>de</strong>lo <strong>das</strong> inúmeras aca<strong>de</strong>mias não oficiais do<br />
Renascimento. O seleto grupo <strong>de</strong> freqüentadores da aca<strong>de</strong>mia, encarnando os princípios do<br />
programa ficiniano, formou um foco <strong>de</strong> difusão e implantação <strong>de</strong> <strong>uma</strong> i<strong>de</strong>ologia que,<br />
soma<strong>das</strong> à ações políticas, se projetaram pela cida<strong>de</strong> florentina e também em outros<br />
estados italianos.<br />
É importante lembrar que o Renascimento é <strong>uma</strong> época complexa e abarca, como<br />
qualquer outro período, muitas diferenças cronológicas, regionais e sociais. O H<strong>uma</strong>nismo<br />
renascentista, segundo a <strong>análise</strong> do historiador Paul Oskar Kristeller 5 , po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finido <strong>de</strong><br />
acordo com sua gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> semântica. Foi um movimento cultural complexo que<br />
abarcou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a filologia às artes plásticas. Em seu interior vigoraram muitas correntes e<br />
tradições que <strong>de</strong>safiam qualquer tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição geral. É neste período que o homem<br />
adquire <strong>uma</strong> nova noção do Eu em relação ao Criador e à Sua criação e aperfeiçoa-se<br />
enquanto indivíduo na busca da plenitu<strong>de</strong>. Porém, apesar <strong>das</strong> características <strong>de</strong> reavaliação,<br />
inovação e transformação, <strong>de</strong>nunciam-se múltiplos diálogos <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> entre o<br />
homem renascentista e o seu homólogo medieval: comungam da mesma metodologia<br />
epistemológica. Portanto, a perspectiva <strong>de</strong> Kristeller acerca da História, <strong>de</strong>sconstrói noções<br />
que afirmam haver ruptura marcada entre a produção intelectual do medievo e do<br />
Renascimento. Nesse sentido, para compreen<strong>de</strong>r o mapa cultural do período mo<strong>de</strong>rno,<br />
principalmente o da Itália do século XV, o autor propõe <strong>uma</strong> reflexão sobre a herança<br />
clássica, <strong>de</strong> modo a ressaltar a proximida<strong>de</strong> cultural entre o Renascimento, Ida<strong>de</strong> Média e<br />
diferentes tradições. Se <strong>uma</strong> <strong>das</strong> características do Renascimento é a retomada dos<br />
clássicos da Antigüida<strong>de</strong>, tanto do que se refere ao universo <strong>das</strong> artes, da filosofia e da<br />
política, não se trata meramente <strong>de</strong> <strong>uma</strong> retomada dos temas, mas <strong>de</strong> <strong>uma</strong> apropriação e<br />
escolha. Portanto, com base na concepção <strong>de</strong> Kristeller, acerca da relação que<br />
estabeleceram os h<strong>uma</strong>nistas com as fontes clássicas, utilizamos seu conceito <strong>de</strong><br />
‘apropriação cultural’ para compreen<strong>de</strong>r a releitura que Ficino realizou da teoria platônica<br />
referente ao <strong>amor</strong> e à alma.<br />
Notamos que as idéias expostas por Ficino estão profundamente marca<strong>das</strong> por <strong>uma</strong><br />
vasta gama <strong>de</strong> estudos referentes a diferentes fontes, tanto antigas, quanto medievais. Em<br />
De Amore Ficino expõe <strong>uma</strong> complexa <strong>de</strong>finição filosófica do <strong>amor</strong> que formula a partir da<br />
releitura que fez <strong>de</strong> “O Banquete” <strong>de</strong> Platão, elaborando <strong>uma</strong> filosofia que contemplava<br />
tanto aspectos filosóficos referentes ao <strong>amor</strong> em Platão, quanto à espiritualida<strong>de</strong> cristã.<br />
Ficino <strong>de</strong>senvolve um marco <strong>de</strong> referência que não existia entre os primeiros h<strong>uma</strong>nistas:<br />
confere ao homem <strong>uma</strong> posição bem <strong>de</strong>finida em um esquematizado sistema metafísico do<br />
universo justificando a dignida<strong>de</strong> do homem 6 em função <strong>de</strong>sse sistema. O h<strong>uma</strong>nista é,<br />
portanto, o representante central e mais influente do neo-platonismo renascentista, já que<br />
nele se unem a herança filosófica e religiosa medieval e os ensinamentos do platonismo.<br />
Foi o único pensador <strong>de</strong> seu tempo que compôs um sistema filosófico completo e original.<br />
É importante levar em conta que o neo-platonismo renascentista não é apenas um simples<br />
5<br />
KRISTELLER, Paul Oskar. El pensamiento renacentista y sus fontes. Madrid: Fondo <strong>de</strong> Cultura<br />
Economica, 1993.<br />
6<br />
O h<strong>uma</strong>nista Picco De La Mirandola também é um gran<strong>de</strong> exemplo da gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> correntes<br />
filosóficas que permeavam o pensamento h<strong>uma</strong>nista. De La Mirandola, em sua obra A dignida<strong>de</strong> do Homem,<br />
apresenta extrema erudição ao se referir a várias correntes <strong>de</strong> pensamento. Nas diferentes fontes utiliza<strong>das</strong><br />
por Pico, bem como a ampla gama <strong>de</strong> citações no <strong>de</strong>correr do discurso, é possível verificar muitas referências<br />
justapostas, entre as quais se encontram: as clássicas, católicas, bíblicas, orientais, islâmicas, místicas,<br />
cabalísticas, pagãs, pré-socráticas e socráticas, além da gran<strong>de</strong> influência da teoria <strong>de</strong> Ficino.
fragmento ou <strong>uma</strong> ramificação do movimento h<strong>uma</strong>nista, pois possui um lugar próprio<br />
enquanto movimento filosófico e não só como expressão erudita ou literária.<br />
Consi<strong>de</strong>ramos importante nesse aspecto <strong>uma</strong> reflexão, ainda que pormenorizada, <strong>das</strong><br />
principais idéias <strong>de</strong> Platão interpreta<strong>das</strong> por Ficino. Foi Platão que, em certo sentido,<br />
combinou as idéias religiosas e filosóficas da alma e consi<strong>de</strong>rou que esta era o princípio<br />
animador do corpo e um agente moral e metafísico. Assim, ainda no primeiro capítulo<br />
discutimos alguns conceitos elencados por Platão em O Banquete 7 e Fédon 8 . Nestas duas<br />
<strong>obras</strong> Platão refere-se a dois conceitos chave para pensar sobre a alma e o <strong>amor</strong>, o bem e o<br />
belo. Nota-se <strong>uma</strong> referência tanto ética quanto estética no que se refere à sua idéia sobre a<br />
utilida<strong>de</strong> do <strong>amor</strong> que está intrinsecamente ligado ao que é bom e belo. Sua concepção<br />
acerca <strong>de</strong> tais conceitos indica que o <strong>amor</strong> é o ápice <strong>de</strong> um trajeto <strong>de</strong> ascese espiritual que<br />
se constitui através <strong>de</strong> diferentes caminhos, sendo o da parturição <strong>das</strong> idéias o mais<br />
elevado. Observamos que o conceito platônico <strong>de</strong> <strong>amor</strong> perpassa <strong>uma</strong> idéia intelectual, já<br />
que ocorre no plano <strong>das</strong> i<strong>de</strong>ias.<br />
A leitura que Ficino realiza <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias centrais <strong>de</strong> Platão evi<strong>de</strong>ncia-se em sua<br />
concepção filosófica presente na obra que foi estudada em nossa pesquisa, na qual o<br />
h<strong>uma</strong>nista nos apresenta <strong>uma</strong> estrutura básica que correspon<strong>de</strong> à sua teoria cosmológica<br />
dos círculos, que inter-relacionam-se. No centro <strong>de</strong>sse sistema circular está o bem, que é a<br />
origem e o fim <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo. O impulso ascen<strong>de</strong>nte à origem <strong>de</strong>sse sistema circular<br />
constitui a essência do conceito <strong>de</strong> Ficino sobre o <strong>amor</strong>. Vale ressaltar que durante o<br />
Renascimento, a alma prefigurava como tema, não em termos que questionamento <strong>de</strong> sua<br />
existência, mas da <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> sua natureza. Para Ficino, a alma é a base ontológica <strong>de</strong> seu<br />
sistema, é a possibilida<strong>de</strong> da felicida<strong>de</strong> h<strong>uma</strong>na que se sobrepõe à morte física.<br />
Em sua teoria Ficino tem por princípio que o propósito último do ser h<strong>uma</strong>no é<br />
ascen<strong>de</strong>r mediante a contemplação até chegar a <strong>uma</strong> visão direta <strong>de</strong> Deus, fonte <strong>de</strong> todo o<br />
bem. É perceptível aqui <strong>uma</strong> distinção clara <strong>de</strong> Ficino em relação à idéia platônica <strong>de</strong><br />
ascese espiritual: Platão <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> <strong>uma</strong> ascese espiritual com vistas ao inteligível, on<strong>de</strong> a<br />
verda<strong>de</strong>ira realida<strong>de</strong> é obtida e que é o motivo para tal ascensão. Não há em Platão<br />
referência ao retorno a Deus. Ficino, por sua vez, insere o elemento cristão nesse processo<br />
<strong>de</strong> ascendência, sua i<strong>de</strong>ia central a respeito do <strong>amor</strong> platônico é enfatizar que o <strong>amor</strong><br />
espiritual <strong>de</strong> um ser h<strong>uma</strong>no por outro é na realida<strong>de</strong> o anseio, o <strong>amor</strong> da alma por Deus. A<br />
linha argumentativa presente na obra <strong>de</strong> Ficino aponta para <strong>uma</strong> questão muito cara ao<br />
pensamento h<strong>uma</strong>nista renascentista: a dignida<strong>de</strong> do homem. Toda a ontologia ficiniana<br />
está pautada na idéia <strong>de</strong> que o homem é um microcosmo, o que justifica seu lugar<br />
privilegiado no universo e seu <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> harmonizar-se com o ritmo universal. A obra <strong>de</strong><br />
Ficino nos oferece <strong>uma</strong> ontologia, <strong>uma</strong> cosmologia, <strong>uma</strong> ética, <strong>uma</strong> estética e <strong>uma</strong> teoria<br />
sobre o <strong>amor</strong>. O tratado é abundante em alegorias. A conjunção que Ficino tece entre<br />
filosofia e religião em seu trabalho po<strong>de</strong> ser relacionada ao fato <strong>de</strong> que a doutrina platônica<br />
oferecia o fundamento racional para superar a angústia frente à condição efêmera da<br />
existência h<strong>uma</strong>na. Desse modo, o pensamento do h<strong>uma</strong>nista não é apenas teórico, é<br />
também apologético, <strong>uma</strong> vez que aponta para <strong>uma</strong> reforma espiritual. É inegável que o<br />
entendimento da filosofia clássica, efetuado por Ficino, bem como as questões emergentes,<br />
com que se confrontava, foram pensa<strong>das</strong> <strong>de</strong> acordo com os mol<strong>de</strong>s da tradição, em<br />
<strong>de</strong>corrência do <strong>de</strong>senvolvimento da cultura cristã.<br />
Certamente esta visão extremamente espiritualizada e filosófica do <strong>amor</strong> era muito<br />
restrita aos círculos h<strong>uma</strong>nistas <strong>das</strong> cortes renascentistas italianas, mas ela fez fortuna,<br />
tendo em vista as publicações durante o século XVI <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> <strong>obras</strong> em<br />
7<br />
PLATÃO. O Banquete; tradução, introdução e notas do Prof. J. Cavalcanti <strong>de</strong> Souza. 9ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Bertrand Brasil, 1999.<br />
8<br />
PLATÃO. Fédon. Tradução Heloísa da Graça Burati. São Paulo: Ri<strong>de</strong>el, 2005. Biblioteca Clássica.
prosa que surgiram ao redor <strong>das</strong> aca<strong>de</strong>mias literárias: os Tratatti d’<strong>amor</strong>e. A influência<br />
ficiniana possibilitou a jovens autores do Cinquettento a pensar o conceito <strong>de</strong> <strong>amor</strong> como<br />
algo mais espiritual do que físico.<br />
Assim, no segundo capítulo da monografia analisamos o tratado Os Assolani <strong>de</strong><br />
Pietro Bembo, publicado em 1505. Para tanto, não <strong>de</strong>scuidamos <strong>de</strong> relacionar a produção<br />
tratadística do período com os círculos <strong>das</strong> cortes renascentistas italianas, que passam a se<br />
configurar no contexto da produção dos <strong>tratados</strong> analisados, e seu novo i<strong>de</strong>al <strong>de</strong><br />
sociabilida<strong>de</strong>. Neste aspecto, utilizamos como referência a obra O processo civilizador <strong>de</strong><br />
Norbert Elias 9 , a qual traz importantes elucubrações acerca <strong>das</strong> relações sociais nos meios<br />
renascentistas, <strong>uma</strong> vez que o autor afirma que a civilida<strong>de</strong> é um longo processo histórico<br />
datado, que começa a se configurar no Renascimento. Mudanças que ocorreram nos<br />
padrões <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> entre os séculos XIV e XVII são marca<strong>das</strong> pela importância que<br />
se passa a <strong>de</strong>stinar ao comportamento. Alguns autores se tornaram muito famosos pela<br />
<strong>de</strong>scrição e i<strong>de</strong>alização <strong>de</strong>stes espaços <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>s e dos indivíduos que neles viviam<br />
como Pietro Bembo.<br />
Nascido em 1470 em Veneza, Bembo foi um patrício veneziano e é consi<strong>de</strong>rado<br />
<strong>uma</strong> figura representativa da classe intelectual do final do século XV e início <strong>de</strong> XVI.<br />
Levou a cabo <strong>uma</strong> admirável aproximação <strong>de</strong> diversas teorias sobre a linguagem e tentou<br />
construir <strong>uma</strong> gramática <strong>de</strong> <strong>uma</strong> língua italiana que não existia, dispersa como estava em<br />
numerosos dialetos. Os Assolani é consi<strong>de</strong>rado um dos primeiros gran<strong>de</strong>s <strong>tratados</strong><br />
filográficos do Renascimento. Na obra, Bembo <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que o <strong>amor</strong> é um meio <strong>de</strong> salvação<br />
espiritual propiciada aos homens. De um ponto <strong>de</strong> vista filosófico-literário, o tratado possui<br />
influências oriun<strong>das</strong> dos estudos da filosofia neoplatônica e do profundo conhecimento <strong>de</strong><br />
Bembo a respeito <strong>de</strong> Petrarca. Com esta redação Bembo constrói um diálogo sobre o <strong>amor</strong>,<br />
mas também um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> comportamento cortesão, <strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> microcosmos em que<br />
a conversação se dá <strong>de</strong> forma dialética sobre temas que muito agradavam o público <strong>das</strong><br />
cortes. Ao tratar do <strong>amor</strong> como questão central em Os Assolani Bembo aborda a questão<br />
<strong>das</strong> relações e convivências <strong>de</strong> indivíduos que compartilham <strong>de</strong> um código social comum.<br />
Bembo atenta, portanto, para a questão da comunicação do indivíduo com o outro e com o<br />
mundo através do enfoque na configuração dos espaços sociais <strong>das</strong> cortes. Observamos<br />
<strong>uma</strong> estreita relação entre a concepção <strong>de</strong> Bembo referente ao <strong>amor</strong> e a da Marsílio Ficino,<br />
<strong>uma</strong> vez que ambos afirmam ser o retorno à Deus o ato supremo <strong>de</strong> <strong>amor</strong>. A influência<br />
platônica no tratado <strong>de</strong> Bembo é perceptível através do caráter temático, e também <strong>de</strong><br />
elementos técnicos que aparecem na forma do diálogo como as diferentes perspectivas<br />
elenca<strong>das</strong> sobre um mesmo tema, as interrupções <strong>das</strong> personagens ao longo <strong>das</strong><br />
exposições, além do <strong>de</strong>staque <strong>de</strong> <strong>uma</strong> personagem que acaba por conduzir o diálogo. Esta<br />
estrutura também é perceptível no tratado Sobre a Infinida<strong>de</strong> do Amor, cuja <strong>análise</strong> é tema<br />
do terceiro capítulo.<br />
Neste capítulo em que analisamos a obra <strong>de</strong> Tullia D’Aragona, consi<strong>de</strong>ramos<br />
importante fazer <strong>uma</strong> reflexão sobre a inserção <strong>das</strong> mulheres nos espaços cultos<br />
renascentistas 10 . Desse modo, é importante <strong>de</strong>stacar que houve a participação <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong>s<br />
mulheres nos espaços <strong>das</strong> cortes renascentistas, mais pluralistas, voltados à cultura<br />
h<strong>uma</strong>nista. A ascensão da mulher erudita e escritora ocorreu neste cenário h<strong>uma</strong>nista e<br />
muitas <strong>de</strong>las conseguiram publicar livros, alcançaram a notorieda<strong>de</strong> e foram reconheci<strong>das</strong><br />
9<br />
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Volume 1, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1994. “A civilização como<br />
transformação do comportamento h<strong>uma</strong>no.”<br />
10<br />
SMARR, Janet L. “Dialogue of Dialogues: Tullia D’Aragona and Sperone Speroni.” MLN 113 (1998)<br />
204-212; CURTIS-WENDLANDT, Lisa. “Conversing on love: text and subtext in Tullia D’Aragona Dialogo<br />
<strong>de</strong>lla Infinità d’Amore.” Hypatia Vol.19, n.4 (Fall 2004).
pela qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus escritos e pelo talento com que escreveram e se <strong>de</strong>dicaram às letras.<br />
Este foi o caso <strong>de</strong> Túllia que expôs suas idéias através <strong>de</strong> seus escritos.<br />
Tullia D’Aragona nasceu provavelmente em 1508 em Roma, filha da cortesã Giulia<br />
Campana e do Car<strong>de</strong>al Luigi D’Aragona. Tullia exerceu a mesma profissão da mãe.<br />
Recebeu <strong>uma</strong> educação h<strong>uma</strong>nista patrocinada por seu pai, o que lhe propiciou um<br />
equilíbrio entre a profissão <strong>de</strong> cortesã e as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> poeta e pensadora. Ela viajou para<br />
as principais cida<strong>de</strong>s italianas e soube tecer ligações <strong>amor</strong>osas, <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> e <strong>de</strong> proteção<br />
dos po<strong>de</strong>rosos. Cabe ressaltar que sua presença nestes círculos se <strong>de</strong>ve em parte à sua<br />
profissão <strong>de</strong> cortesã, mas foi garantida porque ela foi reconhecida pelos contemporâneos<br />
como poeta <strong>de</strong> talento e como h<strong>uma</strong>nista.<br />
Sobre a Infinida<strong>de</strong> do Amor estrutura-se a partir <strong>de</strong> três interlocutores: Tullia, seu<br />
amigo, o filósofo aristotélico Varchi, um <strong>de</strong> seus ex-amantes, Benucci. A questão principal<br />
da obra, como já sugere o título, é saber se o <strong>amor</strong> tem fim ou não. Utilizando estratégias<br />
discursivas muito bem elabora<strong>das</strong>, Tullia en<strong>de</strong>reça a pergunta a seu convidado Varchi,<br />
entretanto, ao longo da obra observamos que Tullia não apenas ativa o diálogo com suas<br />
questões, mas assume o papel <strong>de</strong> autora. É perceptível, <strong>de</strong>ssa forma, a complexida<strong>de</strong> dos<br />
temas abordados por ela, que para além da discussão sobre o <strong>amor</strong>, discorre também sobre<br />
o conhecimento e sobre as relações <strong>de</strong> gênero.<br />
Concluímos que nesta tradição renascentista as mulheres têm lugar nos diálogos,<br />
como observamos na obra <strong>de</strong> Bembo. No entanto, o papel <strong>de</strong>las é secundário. São os<br />
homens (ficcionais ou não) que <strong>de</strong>sempenham o papel mais importante na condução do<br />
discurso filosófico sobre o <strong>amor</strong>. As mulheres geralmente são ativadoras do diálogo, fazem<br />
perguntas que permitem aos interlocutores masculinos o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> seus<br />
argumentos. Já reconhecida por seus contemporâneos e como boa conhecedora dos<br />
diálogos sobre o <strong>amor</strong> e dos poetas clássicos, principalmente <strong>de</strong> Petrarca, ao escrever<br />
Sobre a infinida<strong>de</strong> do <strong>amor</strong> Tullia inseriu-se na tradição dialógica <strong>de</strong> <strong>uma</strong> maneira própria<br />
e original. Po<strong>de</strong>mos aferir, nesse sentido, que com sua obra, Tullia institui um outro lugar<br />
nesta tradição porque observamos <strong>uma</strong> mescla entre poesia, filosofia e a própria<br />
experiência <strong>de</strong> Tullia, que aponta, <strong>de</strong>ssa forma, para os limites do saber douto e para as<br />
limitações <strong>das</strong> <strong>de</strong>finições fecha<strong>das</strong>, que não levam conta as múltiplas fontes do<br />
conhecimento. A autora tece, assim, <strong>uma</strong> sofisticada crítica às limitações da filosofia<br />
praticada por homens como Varchi (um dos interlocutores <strong>de</strong> seu diálogo).<br />
Nesse sentido ao cruzar as <strong>análise</strong>s dos dois <strong>tratados</strong> escolhidos, pu<strong>de</strong>mos verificar<br />
que ambos os autores versam sobre o <strong>amor</strong>, no entanto <strong>de</strong> formas muito diferentes. Esse<br />
distanciamento se dá, justamente pela problematização dos respectivos lugares <strong>de</strong><br />
enunciação: Bembo, poeta <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> renome, com acentuada respeitabilida<strong>de</strong> nos meios<br />
cultos renascentistas que através <strong>de</strong> um <strong>de</strong>nso discurso sobre o <strong>amor</strong>, aponta para <strong>uma</strong><br />
perspectiva unilinear que não leva em consi<strong>de</strong>ração as múltiplas fontes do conhecimento,<br />
entre elas a experiência. Por outro lado temos o lugar <strong>de</strong> Tullia, <strong>uma</strong> cortesã que possuía<br />
<strong>uma</strong> sólida formação cultural e que construiu se lugar no interior da produção do discurso<br />
poético e literário nos ambientes <strong>das</strong> cortes renascentistas. A alterida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua escrita<br />
repousa não só no fato <strong>de</strong> escrever sobre um tema tão caro aos h<strong>uma</strong>nistas da época, mas<br />
também na maneira como problematiza as relações sociais. Ela conseguiu inserir-se num<br />
espaço masculino, no qual raramente <strong>uma</strong> mulher era aceita. Levou para o <strong>de</strong>bate um<br />
elemento central, que era sua experiência como cortesã. 11 Procurar enten<strong>de</strong>r como o acesso<br />
<strong>de</strong> D’Aragona à escrita ocorreu, bem como os questionamentos e estratégias discursivas<br />
por ela apresentados, forçam os limites <strong>das</strong> convenções e dos cânones renascentistas.<br />
Atentar para tal fato po<strong>de</strong> levar a <strong>uma</strong> compreensão mais plural do Renascimento.<br />
11 MARTINS, Ana Paula V. Tratados <strong>de</strong> Amor: <strong>uma</strong> <strong>análise</strong> da inserção <strong>de</strong> Tullia d’Aragona (1547) na<br />
tradição filográfica do renascimento italiano. DEHIS-UFPR.