11.05.2013 Views

Ana em Veneza

Ana em Veneza

Ana em Veneza

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA<br />

CENTRO DE COMUNICAÄÅO E EXPRESSÅO<br />

CURSO DE PÇS-GRADUAÄÅO EM LITERATURA<br />

Helano Jader Ribeiro<br />

ANA EM VENEZA: EX-CÉNTRICOS ANTIMODERNOS<br />

DissertaÄÅo apresentada ao Curso de PÇs-<br />

GraduaÄÅo <strong>em</strong> Literatura como requisito parcial<br />

para obtenÄÅo do tÉtulo de Mestre <strong>em</strong> Teoria da<br />

Literatura, sob orientaÄÅo da ProfÑ DrÑ <strong>Ana</strong> Luiza<br />

Andrade.<br />

FlorianÇpolis<br />

2011


CatalogaÄÅo da fonte elaborada pela<br />

Biblioteca Central da Universidade Federal de Santa Catarina.<br />

XXXXXXXX<br />

XXXXXXXXXXXXXX<br />

DissertaÄÅo (mestrado) – Universidade Federal de Santa<br />

Catarina, Centro de ComunicaÄÅo e ExpressÅo. Programa de PÇs-<br />

GraduaÄÅo <strong>em</strong> Literatura.<br />

Inclui bibliografia


HELANO JADER RIBEIRO<br />

ANA EM VENEZA: EX-CÉNTRICOS ANTIMODERNOS<br />

Esta dissertaÄÅo foi julgada adequada para obtenÄÅo do TÉtulo de<br />

“Mestre”, e aprovada <strong>em</strong> sua forma final pelo Programa de PÇs-<br />

GraduaÄÅo <strong>em</strong> Literatura do Centro de ComunicaÄÅo e ExpressÅo da<br />

Universidade Federal de Santa Catarina.<br />

FlorianÇpolis, XX de junho de 2011.<br />

ProfÑ DrÑ <strong>Ana</strong> Luiza Andrade<br />

Orientadora<br />

Universidade Federal de Santa Catarina<br />

ProfÑ DrÑ XXXXXX<br />

Universidade XXXX<br />

ProfÑ DrÑ XXXXXX<br />

Universidade XXXX<br />

ProfÑ DrÑ XXXXXX<br />

Universidade XXXX


Aos meus pais, Maria Helena e Antonio Ribeiro.


AGRADECIMENTOS<br />

Aos meus pais, pela vida e por s<strong>em</strong>pre acreditar<strong>em</strong> <strong>em</strong> mim.<br />

Ao Kay, companheiro de todas as horas.<br />

à Prof. Dr. <strong>Ana</strong> Luiza Andrade, pela orientaÄÅo criteriosa e<br />

amiga, por ter confiado <strong>em</strong> meu projeto desde inÉcio.<br />

Ao professores Carlos Capela e Susana Scramim, pela<br />

participaÄÅo na qualificaÄÅo e pelos conselhos dados.<br />

Ao CNPq, que me concedeu uma bolsa que muito ajudou<br />

financeiramente na feitura da dissertaÄÅo.<br />

Aos meus amigos da ilha pelas conversas enriquecedoras e pelo<br />

suporte <strong>em</strong> todos os momentos. SÅo eles: Aline, pela revisÅo amiga e<br />

pelos sorrisos de sâbado; Davi, gratidÅo eterna por tudo; Eleonora, essas<br />

pâginas talvez nÅo existiss<strong>em</strong> s<strong>em</strong> ela; Jälia e Manoel, pela conversa ora<br />

intelectual ora amiga e pelo aconchego existencial; LaÉse e Jef, pelo<br />

companheirismo; Larissa, pela amizade verdadeira; Simone e Top, pelo<br />

carinho de todos os momentos; Vanessa, pelas conversas, pela confianÄa<br />

e pela admiraÄÅo. à dona Gorete, pela confianÄa. Aos meus vizinhos do<br />

CÇrrego Grande, Elisãngela e Adriano, pessoas queridas que guardarei<br />

eternamente no coraÄÅo.


RESUMO<br />

<strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> (1994), romance escrito por JoÅo Silvårio Trevisan,<br />

apresenta um conjunto b<strong>em</strong> vasto de caracterÉsticas que apontam para o<br />

t<strong>em</strong>po e o texto de agora, como a intertextualidade, o discurso parÇdico<br />

e irçnico, a fragmentaÄÅo do sujeito, t<strong>em</strong>po e espaÄo, a presenÄa dos<br />

“ex-céntricos” e discussèes acerca da modernidade. O que propomos å<br />

um estudo da modernidade a partir da Çtica do pensador Walter<br />

Benjamin e seus interlocutores, como o italiano Giorgio Agamben.<br />

Nossa anâlise parte de pr<strong>em</strong>issas baseadas <strong>em</strong> uma leitura antimoderna,<br />

que se revela <strong>em</strong> forma de oposiÄÅo ê modernidade. O discurso de<br />

negaÄÅo å construÉdo, essencialmente, a partir do personag<strong>em</strong> Alberto<br />

Nepomuceno. Por fim, t<strong>em</strong>os o intuito de armar um pequeno diâlogo<br />

intertextual entre <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> e a obra de Thomas Mann Morte <strong>em</strong><br />

<strong>Veneza</strong>, atendo-nos principalmente aos personagens Alberto<br />

Nepomuceno e Gustav von Aschenbach.<br />

Palavras-chave: JoÅo Silvårio Trevisan; <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>; modernidade;<br />

pÇs-modernidade; Thomas Mann; A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>.


ABSTRACT<br />

<strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> (1994), novel written by JoÅo Silvårio Trevisan,<br />

presents a very broad set of characteristics that indicate the time and the<br />

text now, as intertextuality, parody and ironic speech, the fragmentation<br />

of the subject, time and space, the presence of “ex-centric”, discussions<br />

of modernity. We propose a study of modernity from the perspective of<br />

philosopher Walter Benjamin and his interlocutors as the Italian Giorgio<br />

Agamben. Our analysis is based on assumptions based on an antimodernist<br />

reading, which reveals itself in the form of opposition to<br />

modernity. The discourse of denial is built mainly from the character<br />

Alberto Nepomuceno. Finally, our aim is to set an intertextual dialogue<br />

between <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> and work by Thomas Mann Death in Venice,<br />

sticking mainly to the characters Alberto Nepomuceno and Gustav von<br />

Aschenbach.<br />

Key Words: JoÅo Silvårio Trevisan; <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>; modernity;<br />

postmodernism; Thomas Mann; Death in Venice.


SUMÑRIO<br />

1 INTRODUÄÅO.................................................................................15<br />

CAPÖTULO 1: OS BASTARDOS INGLÇRIOS DA<br />

MODERNIDADE.................................................................................19<br />

O artista........................................................................................19<br />

O saturnino...................................................................................26<br />

O ser fragmentado........................................................................33<br />

O ser singular...............................................................................46<br />

O exilado......................................................................................53<br />

CAPÖTULO 2: O ATROPELO DA MODERNIDADE....................56<br />

Via Crucis da modernidade.........................................................57<br />

O ex-céntrico...............................................................................62<br />

Profanando a modernidade..........................................................66<br />

Da fundaÄÅo ê pÇs-fundaÄÅo........................................................68<br />

Romance pÇs-histÇrico................................................................72<br />

CAPÖTULO 3: O INTERTEXTO.......................................................77<br />

Colcha de retalhos intertextuais...................................................77<br />

O Aschenbach escritor: um decadente.........................................78<br />

O Aschenbach de Visconti...........................................................92<br />

Acima da decadéncia...................................................................95<br />

ALLEGRO BARBARO.....................................................................112<br />

CONSIDERAÄÜES FINAIS.............................................................113<br />

REFERÉNCIAS.................................................................................116<br />

ANEXO – ENTREVISTA COM JOëO SILVíRIO TREVISAN......124


1 INTRODUÄÅO<br />

15<br />

Este trabalho t<strong>em</strong> como objetivo analisar no romance <strong>Ana</strong> <strong>em</strong><br />

<strong>Veneza</strong> as transformaÄÅes <strong>em</strong> nome do projeto da modernidade, atravÇs<br />

de uma anÉlise minuciosa de um dos trÑs protagonistas: o mÖsico<br />

cearense Alberto Nepomuceno.<br />

A obra de JoÜo SilvÇrio Trevisan estÉ situada no que se denomina<br />

prosa cont<strong>em</strong>poránea. Assim, t<strong>em</strong>os a intenÄÜo de analisar os<br />

protagonistas do romance, essencialmente o personag<strong>em</strong> Alberto<br />

Nepomuceno, de acordo com as caracteràsticas variantes das literaturas<br />

do presente, focalizando a crise da modernidade numa perspectiva<br />

antimoderna, e tambÇm abordando a questÜo da intertextualidade com a<br />

obra do escritor Thomas Mann.<br />

Desde o seu tàtulo, <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> (1994) cita A morte <strong>em</strong><br />

<strong>Veneza</strong> (1912), do escritor al<strong>em</strong>Üo. No romance de Trevisan observamos<br />

um diÉlogo intertextual nÜo somente com A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, mas<br />

tambÇm com outras obras, como Doutor Fausto (1947). Contudo,<br />

pod<strong>em</strong>os perceber claramente que <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> Ç construàda como<br />

uma colcha de retalhos, feita com textos de diversos autores como<br />

MÉrio de Andrade e Baudelaire, que forma todo o romance. Para tal<br />

feito, no Öltimo capàtulo faz<strong>em</strong>os uma anÉlise da novela de Thomas<br />

Mann, A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> e, depois, um pequeno confronto com o<br />

personag<strong>em</strong> de Trevisan com o protagonista da novela do autor de A<br />

montanha mÄgica (1924), o artista al<strong>em</strong>Üo Gustav von Aschenbach.<br />

Cabal para nossa discussÜo Ç a travessia dos dois personagens no<br />

contexto da modernidade decadente, pois essa Ç a leitura proposta por<br />

JoÜo SilvÇrio Trevisan.<br />

<strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> apresenta um conjunto b<strong>em</strong> vasto de<br />

caracteràsticas que apontam para uma atualidade nos modos de escrever<br />

a intertextualidade, o discurso parâdico e iränico, a fragmentaÄÜo do<br />

sujeito e a preocupaÄÜo com uma “literatura menor” 1 . Nossa anÉlise<br />

parte de pr<strong>em</strong>issas baseadas <strong>em</strong> alguns teâricos que se ocuparam com a<br />

condiÄÜo pâs-moderna, que se revelam <strong>em</strong> forma de oposiÄÜo ç<br />

1 Gilles Deleuze e Pierre-FÇlix Guattari ampliam o sentido de “menor” para alÇm da condiÄÜo<br />

de inferioridade e desvalorizaÄÜo. No texto Kafka: por uma literatura menor (1977), esses<br />

autores realizam uma inversÜo do conceito “menor”, entendendo uma literatura menor nÜo<br />

como uma literatura que tenha menos valor, mas com uma làngua de uma minoria diante de<br />

uma làngua maior, sendo que uma de suas caracteràsticas Ç um forte componente de<br />

desterritorializaÄÜo.


16<br />

modernidade como uma tentativa de autoafirmaÄÜo. O discurso de<br />

negaÄÜo <strong>em</strong> relaÄÜo ç obra manniana Ç construàdo a partir do<br />

protagonista.<br />

Para nosso <strong>em</strong>basamento teârico, nos val<strong>em</strong>os de autores que se<br />

ocuparam, atravÇs de seus estudos, com questÅes tangentes ao universo<br />

das questÅes da modernidade. Aà estÉ incluàdo o poeta francÑs Charles<br />

Baudelaire, com suas consideraÄÅes sobre o artista e os seres da<br />

modernidade, b<strong>em</strong> como suas anÉlises referentes ç modernidade e ao<br />

progresso, ou seja, suas consideraÄÅes sobre a arte, o artista e a<br />

topologia da cidade moderna. O pensador al<strong>em</strong>Üo Walter Benjamin<br />

insere-se nesse contexto com seus trabalhos sobre Baudelaire e os t<strong>em</strong>as<br />

anteriormente citados, e tambÇm <strong>em</strong> suas anÉlises sobre a melancolia, o<br />

fragmento, o Barroco, s<strong>em</strong>pre os relacionando ç modernidade. NÜo<br />

bastando os autores anteriormente mencionados, pod<strong>em</strong>os incluir<br />

tambÇm Susan Buck-Morss e seu estudo sobre as imagens das<br />

Passagens 2 de Walter Benjamin. TambÇm se faz<strong>em</strong> presentes teâricos<br />

que se ocuparam com a t<strong>em</strong>Ética da melancolia, como o italiano Giorgio<br />

Agamben e seu livro EstÅncias: a palavra e o fantasma na cultura<br />

ocidental (1979); e a s<strong>em</strong>iâloga e psicanalista Julia Kristeva e seu livro<br />

Sol negro: depressÇo e melancolia (1987). Utilizamos algumas imagens<br />

para retratar a questÜo da fragmentaÄÜo do sujeito na modernidade.<br />

No concernente ç questÜo antimoderna <strong>em</strong> nosso trabalho, l<strong>em</strong>os<br />

alguns autores como Fredric Jameson e sua obra PÉs-modernismo: a<br />

lÉgica cultural do capitalismo tardio (1991); e a teârica canadense<br />

Linda Hutcheon, atravÇs de sua PoÑtica do pÉs-modernismo: histÉria,<br />

teoria, ficÖÇo (1991). NÜo pod<strong>em</strong>os nos esquecer do pensador italiano<br />

Gianni Vattimo com seu livro O fim da modernidade: Niilismo e<br />

hermenÜutica na cultura pÉs-moderna (1985), e de Zygmunt Bauman<br />

<strong>em</strong> O mal-estar da pÉs-modernidade (1997). Outros autores tambÇm se<br />

faz<strong>em</strong> presentes, como Alain Touraine e seu livro Crática de<br />

modernidade (1994), Jérgen Habermas e seu Discurso filosÉfico da<br />

modernidade (1988) e, por fim, Antoine Compagnon e Os cinco<br />

paradoxos da modernidade (1990), que nos auxiliou com a questÜo das<br />

vanguardas na modernidade.<br />

2 Benjamin trabalha <strong>em</strong> suas passagens a partir de Paris, especialmente suas galerias<br />

comerciais enquanto fantasmagorias do consumo. Ele apresenta a histâria cotidiana da<br />

modernidade e suas figuras como o fláneur, a prostituta, o jogador, o colecionador,<br />

perpassando por t<strong>em</strong>as que vÜo desde a luta de classes atÇ os fenämenos da moda e da tÇcnica.


17<br />

A respeito da intertextualidade com a obra de Thomas Mann, utilizamos<br />

o cràtico <strong>Ana</strong>tol Rosenfeld e seu livro Thomas Mann (1994). TambÇm<br />

participa de nosso quadro de teârico Georg LukÉcs com seu Thomas<br />

Mann (1953). Como obra de ficÄÜo, contamos, naturalmente, com a<br />

novela A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> e alguns contos do autor al<strong>em</strong>Üo.<br />

Este trabalho estÉ dividido <strong>em</strong> trÑs capàtulos distribuàdos da<br />

seguinte forma: <strong>em</strong> um momento inicial, <strong>em</strong> nosso primeiro capàtulo,<br />

tratamos dos filhos esquecidos da modernidade, ou melhor, das figuras<br />

pouco cont<strong>em</strong>pladas na histâria da modernidade. <strong>Ana</strong>lisamos o artista, o<br />

flÅneur, o saturnino, b<strong>em</strong> como outros que passam muitas vezes<br />

despercebidos <strong>em</strong> detrimento dos grandes nomes da histâria.<br />

Trabalhamos com conceitos e aspectos da modernidade como base para<br />

o segundo capàtulo, o qual abrange uma leitura antimoderna da<br />

modernidade, de forma que possa haver um diÉlogo entre os dois<br />

primeiros. O terceiro capàtulo segue a linha de raciocànio que opera com<br />

as teorias da modernidade 3 (sob a âtica da intertextualidade) <strong>em</strong> relaÄÜo<br />

ç intertextualidade com a obra de Thomas Mann (tambÇm com outros<br />

textos que permeiam toda a obra), mas predominant<strong>em</strong>ente com a<br />

novela A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>. V<strong>em</strong>os nesse capàtulo como o romance <strong>Ana</strong><br />

<strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> profana, desconstrâi a tradiÄÜo moderna 4 <strong>em</strong> Thomas Mann.<br />

Ver<strong>em</strong>os <strong>em</strong> quais pontos duas literaturas aparent<strong>em</strong>ente tÜo distantes,<br />

como a brasileira e a al<strong>em</strong>Ü, pod<strong>em</strong> manter um diÉlogo. Mas nÜo<br />

somente analisar<strong>em</strong>os tambÇm <strong>em</strong> quais aspectos as duas literaturas se<br />

afastam numa leitura dialÇtica, s<strong>em</strong>pre no contexto de questionamento<br />

da modernidade e do papel do artista burguÑs na sociedade.<br />

3 è necessÉrio l<strong>em</strong>brar que, se abordamos, no primeiro capàtulo, alguns dos personagens<br />

esquecidos da modernidade, fiz<strong>em</strong>os no segundo um balanÄo de alguns dos novos seres que<br />

participam deste mundo surgido no capitalismo tardio. Trabalhamos com os grupos de<br />

minorias, como os representantes maiores da chamada condiÄÜo pâs-moderna b<strong>em</strong> como<br />

outros aspectos concernentes ao t<strong>em</strong>a.<br />

4 è paradoxal o termo “tradiÄÜo moderna”, jÉ que a modernidade, <strong>em</strong> sua sede revolucionÉria<br />

por novidade, acaba por rejeitar o legado oriundo da Antiguidade; a modernidade despreza o<br />

mundo antigo e se autoafirma.


CAPÇTULO 1: OS BASTARDOS INGLÉRIOS DA<br />

MODERNIDADE 5<br />

O artista<br />

19<br />

Da figura singular de Alberto Nepomuceno apropria-se JoÜo<br />

SilvÇrio Trevisan <strong>em</strong> seu romance <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, da sua condiÄÜo de<br />

artista moderno no final do sÇculo XX, ou seja, <strong>em</strong> plena crise<br />

melancâlica de fin du siàcle. Nepomuceno Ç o personag<strong>em</strong> que abre no<br />

romance a trajetâria de um t<strong>em</strong>a nÜo menos complexo que sua prâpria<br />

condiÄÜo de artista: a modernidade. Deix<strong>em</strong>os, pois, que a condiÄÜo de<br />

artista ou, mais precisamente, de mÖsico, adentre o t<strong>em</strong>a da<br />

modernidade.<br />

Alberto Nepomuceno nasceu no dia 6 de julho de 1864, <strong>em</strong><br />

Fortaleza, filho de Vitor Augusto Nepomuceno e Maria Virgània de<br />

Oliveira Paiva. Foi iniciado nos estudos musicais por seu pai, que era<br />

violinista, professor, mestre da banda e organista da Catedral de<br />

Fortaleza. Em 1872 transferiu-se com a famàlia para Recife, onde<br />

comeÄou a estudar piano e violino. Durante sua juventude, manteve<br />

amizade com alunos e mestres da Faculdade de Direito do Recife, como<br />

Alfredo Pinto, Clâvis BevilÉcqua, Farias Brito. A Faculdade era como<br />

um centro intelectual do Paàs; lÉ nasciam ideias e anÉlises sociais de<br />

vanguarda, como os estudos sociolâgicos de Manuel Bonfim e Tobias<br />

Barreto, alÇm das teorias darwinistas e spenceristas de Silvio Romero.<br />

Foi Tobias Barreto qu<strong>em</strong> despertou <strong>em</strong> Nepomuceno o interesse pelos<br />

estudos da làngua al<strong>em</strong>Ü e da filosofia. Aos 24 anos (<strong>em</strong> 1888, ano de<br />

libertaÄÜo dos escravos) partiu para a Europa para dar continuidade aos<br />

seus estudos de piano, graÄas a uma bolsa de estudos que recebeu do<br />

governo brasileiro. LÉ comeÄaria seu exàlio.<br />

A mÖsica moderna t<strong>em</strong> no nome do compositor Richard Wagner<br />

um de seus maiores representantes. NÜo obstante seus escritos de carÉter<br />

antiss<strong>em</strong>ita e seu repÖdio por parte de vÉrios intelectuais e artistas da<br />

Çpoca 6 , Wagner foi uma das grandes influÑncias de Alberto<br />

5 ReferÑncia ao filme homänimo de Quentin Tarantino. O filme se passa na FranÄa ocupada<br />

pelos nazistas durante a Segunda Guerra, quando um grupo de soldados judeus americanos t<strong>em</strong><br />

como missÜo impor sua voz onde havia silÑncio. SÜo os renegados, os inadequados na Europa<br />

nazista.<br />

6 O filâsofo Friedrich Nietzsche Ç o melhor ex<strong>em</strong>plo desses opositores. Com a publicaÄÜo de O<br />

caso Wagner, <strong>em</strong> 1888, e a organizaÄÜo dos fragmentos que foram reunidos <strong>em</strong> Nietzsche<br />

contra Wagner, t<strong>em</strong>os os protagonistas do decadentismo burguÑs e da aurora da modernidade.


20<br />

Nepomuceno. Seu intuito era transformar a mÖsica erudita brasileira <strong>em</strong><br />

um projeto tÜo grandioso quanto o proposto por Wagner na Al<strong>em</strong>anha.<br />

Nepomuceno nÜo päde prever o fato de que seu grande àdolo seria a<br />

referÑncia musical maior do Reich nazista e aponta <strong>em</strong> Wagner como a<br />

mÖsica do futuro, a grande representaÄÜo da modernidade. Em seu<br />

discurso a respeito do pÖblico al<strong>em</strong>Üo, profere Alberto Nepomuceno:<br />

Para eles, somos o exâtico, e isso Ç o que<br />

interessa. Como jÉ perderam o sentido do<br />

fabuloso, transformam a nossa realidade <strong>em</strong><br />

fÉbula, porque parece-lhes que viv<strong>em</strong>os no<br />

passado r<strong>em</strong>oto. Para eles Ç fabuloso tudo que Ç<br />

irracional e arcaico. NÜo perceberam que, ao<br />

contrÉrio, o fabuloso estÉ no futuro. Por isso<br />

Wagner fascina tanto. Ele Ç a fÉbula do futuro.<br />

(TREVISAN, 1998, p. 581)<br />

O artista Ç um dos representantes mais paroxàsticos da civilizaÄÜo<br />

moderna. O poeta Charles Baudelaire coaduna tal pensamento, para<br />

qu<strong>em</strong> o artista Ç o grande herâi da modernidade: um ser sensàvel capaz<br />

de captar as idiossincrasias da sociedade moderna. A essa assertiva<br />

t<strong>em</strong>os o personag<strong>em</strong> Alberto Nepomuceno ao dizer que: “Ser artista Ç<br />

ter a capacidade de resistir a tudo e a todos. EntÜo, Ç isso que eu acabei<br />

descobrindo: ao contrÉrio do que se pensa, a arte e o revâlver deviam<br />

andar juntos, para o artista defender-se do massacre” (TREVISAN,<br />

1998, p. 46). Durante muitos sÇculos, o herâi foi de maneira geral um<br />

hom<strong>em</strong> de orig<strong>em</strong> nobre, um rei, um pràncipe, de modo que sua vida<br />

estava ligada ç vida da corte.<br />

Na modernidade, entretanto, esse tipo de herâi entra <strong>em</strong><br />

decadÑncia. A explicaÄÜo mais plausàvel para tal reside na burguesia e<br />

na dissoluÄÜo dos Estados absolutistas. A burguesia inicialmente t<strong>em</strong> o<br />

poder econämico e, algum t<strong>em</strong>po depois, um ou dois sÇculos, o poder<br />

polàtico. Daà surg<strong>em</strong> os contrapersonagens da modernidade, aqueles<br />

seres inadequados aos padrÅes vigentes na modernidade. è o que<br />

Benjamin destaca <strong>em</strong> seus estudos sobre Charles Baudelaire e o carÉter<br />

A querela entre esses dois criadores, na verdade, aponta para o raiar da modernidade <strong>em</strong> suas<br />

diferentes formas de expressÜo: o cartesianismo e o excesso barroco. Em 1881, Wagner<br />

publicou um ensaio onde assumia seu o antiss<strong>em</strong>itismo polàtico e classificava os judeus de<br />

“d<strong>em</strong>änio causador da decadÑncia da humanidade”.


21<br />

moderno de sua obra. Para o pensador al<strong>em</strong>Üo, a importáncia do poeta<br />

francÑs consiste exatamente no fato de ele ter trazido ç tona esses seres<br />

marginais para o mundo do progresso e da reproduÄÜo tÇcnica, tais<br />

como a prostituta, o flÅneur, o trapeiro e o artista maldito.<br />

A vestimenta Ç atribuàda por Baudelaire ao artista como sua<br />

maior marca. A moda nÜo era apenas um privilÇgio da burguesia que o<br />

poeta tanto execrava, mas representava toda a simbologia do carÉter do<br />

hom<strong>em</strong> moderno. O artista incorporava atravÇs de seu dandismo toda<br />

sua condiÄÜo de ser “gauche”.<br />

Quanto ç roupa, a pele do herâi moderno –<br />

<strong>em</strong>bora tenha passado o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que os<br />

pintores se vestiam de mamamouchi, e fumavam<br />

<strong>em</strong> “piteiras” –, os ateliÑs e o mundo ainda estÜo<br />

cheios de gente que desejaria poetizar Antony<br />

com um manto grego ou uma veste meio rasgada.<br />

E, no entanto, ela nÜo t<strong>em</strong> sua beleza e seu<br />

charme autâctone, esta roupa tÜo criticada? NÜo Ç<br />

ela a roupa necessÉria de nossa Çpoca, sofredora,<br />

e carregando atÇ <strong>em</strong> seus ombros negros e<br />

magros o sàmbolo de um luto perpÇtuo? Vede<br />

b<strong>em</strong> que a roupa negra e a sobrecasaca tÑm nÜo<br />

apenas sua beleza poÇtica, que Ç a expressÜo da<br />

alma pÖblica; – um imenso desfile de coveiros,<br />

coveiros polàticos, coveiros apaixonados,<br />

coveiros burgueses. (BAUDELAIRE, 1995, p.<br />

729)<br />

Nesse ànterim, pod<strong>em</strong>os perceber, pela descriÄÜo do narrador,<br />

como a caracterizaÄÜo do personag<strong>em</strong> Alberto Nepomuceno condiz com<br />

sua condiÄÜo de artista anteriormente descrita por Baudelaire, mostrando<br />

o diÉlogo inicial do romance com aspectos concernentes ç prâpria<br />

modernidade:<br />

Alberto Nepomuceno jÉ tinha encanecido os<br />

bastos cabelos castanhos, parcialmente cobertos<br />

por um elegante, ainda que gasto, chapÇu de<br />

feltro. A barba toda branca adicionava ao seu<br />

rosto um ar entre sÉbio e vetusto. Vestia-se com<br />

uma cerimoniosa casaca de casimira escura, um<br />

colete com corrente de ouro ç mostra e a


22<br />

indefectàvel gravata bufante de seda, que caàa-lhe<br />

sobre o peito num primoroso mas antiquado laÄo<br />

ç Lavalliëre. Apesar do porte elegante,<br />

caminhava um pouco encurvado, como se sua<br />

figura pendesse para uma introspecÄÜo<br />

compulsâria. (TREVISAN, 1998, p. 12)<br />

Se analisarmos as Öltimas linhas da citaÄÜo, pod<strong>em</strong>os nos<br />

perguntar atÇ que ponto a introspecÄÜo do mÖsico cearense nÜo deve ser<br />

entendida sob a âtica da melancolia. Se for certo afirmar que Alberto<br />

Nepomuceno segue sua vida regida pelo signo de Saturno, ver<strong>em</strong>os<br />

posteriormente qual sua relaÄÜo no contexto da modernidade.<br />

Alberto Nepomuceno figura ainda como um dándi que circula na<br />

metrâpole carioca <strong>em</strong> harmonia com os preceitos da moda de sua Çpoca,<br />

usando roupas que estivess<strong>em</strong> entre uma estÇtica da moda e o fora-d<strong>em</strong>oda,<br />

entre um ser singular e plural; ele marca um modo caracteràstico<br />

de impor sua singularidade como artista.<br />

A nova topologia das largas avenidas recÇm-construàdas no<br />

centro do Rio, inspiradas no projeto arquitetänico do BarÜo Haussmann,<br />

<strong>em</strong> Paris, determina a moderna paisag<strong>em</strong> da capital, que passa a ser<br />

povoada por tipos elegant<strong>em</strong>ente vestidos, com ternos, monâculos e<br />

bengalas chiques. Na reuniÜo de cränicas do escritor carioca A alma<br />

encantadora das ruas (1989), RaÖl Antelo descreve <strong>em</strong> seu prefÉcio o<br />

dandismo de JoÜo do Rio 7 . Para Antelo, o dándi mulato “contribuiu<br />

decisivamente a abrir janelas na modernidade brasileira” (ANTELO,<br />

1989, p.17), ele apresenta um discurso <strong>em</strong> suas cränicas que insere a voz<br />

das minorias s<strong>em</strong> histâria, mas que ao mesmo t<strong>em</strong>po buscavam escrever<br />

uma. Em algum sentido, o dandismo pode ser visto como um protesto<br />

nÜo-polàtico que reivindica igualdade, ele Ç um nostÉlgico maldito que<br />

oscila no limbo da cidade grande.<br />

Para Baudelaire, a moda revela-se como um bom ex<strong>em</strong>plo da<br />

relaÄÜo entre a dualidade do belo e a presenÄa do fugaz na modernidade,<br />

pois mostra a beleza <strong>em</strong> seu aspecto transitârio, efÑmero. Elege,<br />

destarte, a mulher como imag<strong>em</strong> dentro do dualismo entre o eterno do<br />

belo e sua fugacidade, que Ç a moda. A mulher Ç esse objeto de desejo<br />

na modernidade, de onde decorre a apologia de Baudelaire aos adornos<br />

7 Foi nas ruas da entÜo maior cidade do Paàs, o Rio de Janeiro de 1900, que JoÜo do Rio traÄou<br />

o perfil do dandismo <strong>em</strong> suas cränicas. Apresentou a cena urbana carioca com uma nova<br />

faceta, povoada por dándis e flÅneurs.


23<br />

da moda e da maquilag<strong>em</strong>. SÜo eles que a preparam e elevam-na ç<br />

condiÄÜo de obra de arte.<br />

Por um lado, hÉ um el<strong>em</strong>ento imutÉvel no belo que Ç impossàvel<br />

de ser acessado pela natureza humana. Por outro, hÉ um el<strong>em</strong>ento<br />

relativo que o encobre, que o contorna e que, apenas assim, o torna<br />

possàvel de ser experimentado, de modo que, para Baudelaire, o prâprio<br />

ser humano Ç feito dessa dualidade entre um inacessàvel e permanente, e<br />

um acessàvel e transitârio. Essa dualidade tambÇm se aplica ç arte, pois<br />

para ele “A dualidade da arte Ç uma consequÑncia fatal da dualidade do<br />

hom<strong>em</strong>” (BAUDELAIRE, 1995, p. 852).<br />

Walter Benjamin 8 nos resgata <strong>em</strong> seus estudos sobre Baudelaire e<br />

suas investigaÄÅes sobre a moda como um fenämeno inerente ç prâpria<br />

modernidade. O teârico al<strong>em</strong>Üo propÅe uma leitura de forma que a moda<br />

deixa de configurar somente como uma espÇcie de medida de t<strong>em</strong>po,<br />

mas tambÇm suscita a relaÄÜo do sujeito e com o objeto ou mercadoria.<br />

A teârica Susan Buck-Morss analisa <strong>em</strong> seu livro DialÑtica do olhar:<br />

Walter Benjamin e o projeto das Passagens o fenämeno da moda<br />

segundo o ponto de vista de Benjamin:<br />

Ora, a roupa fica, b<strong>em</strong> literalmente, na fronteira<br />

entre o sujeito e o objeto, o individual e o<br />

cosmos. Seu posicionamento certamente dÉ conta<br />

de sua significáncia <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>Ética atravÇs de toda<br />

a histâria. Na Idade MÇdia, a vestimenta<br />

“correta” era o que trazia o selo da ord<strong>em</strong> social:<br />

os adornos eram o reflexo de um cosmos<br />

divinamente ordenado e um signo da prâpria<br />

posiÄÜo ocupada nesse cosmos. è claro que a<br />

posiÄÜo social era estÉtica entÜo, assim como a<br />

natureza <strong>em</strong> que os seres humanos viam suas<br />

vidas refletidas; o acidente do nascimento<br />

determinava as suas possibilidades de morte.<br />

Contra esse pano de fundo, o momento positivo<br />

da era moderna se destaca claramente. Sua<br />

constante ánsia de “novidade”, da separaÄÜo do<br />

dado, identifica grupos geracionais cuja roupa<br />

simboliza um fim ç dependÑncia e ç firmeza<br />

8 Walter Benjamin caracteriza a modernidade atravÇs de uma consciÑncia do t<strong>em</strong>po. Valendose<br />

dessas observaÄÅes, Benjamin päde eleger a poesia de Charles Baudelaire como a que v<strong>em</strong><br />

atravÇs do olhar de um poeta moderno por excelÑncia. Benjamin identificou sua obra com o<br />

proletÉrio francÑs, com o submundo. Um herâi marcado pelo efÑmero.


24<br />

natural da infáncia, e a entrada no papel coletivo<br />

como autores sociais. Interpretada<br />

afirmativamente, a moda moderna Ç irreverente<br />

face ç tradiÄÜo, celebrativa da juventude <strong>em</strong> lugar<br />

de classe social, e assim, <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>Ética da<br />

mudanÄa social. (BUCK-MORSS, 2002, p.131)<br />

O artista moderno carrega consigo, atravÇs de sua vestimenta<br />

negra, o carma de uma Çpoca marcada pelas incertezas e angÖstias da<br />

crise do fim do sÇculo e o sinal da finitude, da morte, da ef<strong>em</strong>eridade de<br />

sua vida na terra, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a modernidade e o progresso<br />

revelam-se paradoxalmente <strong>em</strong> seu otimismo quanto ao futuro do<br />

hom<strong>em</strong>. Isso explica tanto a sua figura de dándi, entre o masculino e o<br />

f<strong>em</strong>inino, entre o irreverente e o clÉssico, entre o decadente e o ousado,<br />

o luto pelo sÇculo que se esvai e a indignaÄÜo com o novo, como um<br />

artista moderno rebelde.<br />

Uma passag<strong>em</strong> no romance de JoÜo SilvÇrio pode ser lida atravÇs<br />

das observaÄÅes de Benjamin sobre Baudelaire. O narrador faz a<br />

descriÄÜo de uma jov<strong>em</strong> mulher com suas vestimentas – um tanto<br />

quanto escandalosas – e sua entrada na famosa Confeitaria Colombo, no<br />

Rio de Janeiro. Ele faz alusÜo aos adornos irreverentes tàpicos de jovens<br />

da sociedade no fim do sÇculo XIX <strong>em</strong> sua descriÄÜo: “Na verdade,<br />

parecia difàcil definir o que era mais chocante: se a fÑmea, se sua<br />

fantasia” (TREVISAN, 1998, p.32). Em seguida, o narrador faz uma<br />

pequena explanaÄÜo a respeito das mudanÄas de padrÜo da moda do<br />

inàcio do sÇculo ao fim: “Se eu l<strong>em</strong>brar ao prezado leitor como no<br />

comeÄo do sÇculo ainda era rigorosa a moda f<strong>em</strong>inina, com seus<br />

vestidos longos de cores esmaecidas e a cabeÄa permanent<strong>em</strong>ente<br />

coberta” (TREVISAN, 1998, p. 32). A jov<strong>em</strong> que adentrara a confeitaria<br />

Ç a representaÄÜo da voracidade da modernidade por novidades,<br />

mudanÄas, escándalo, Ç esse duplo de que nos fala Baudelaire, <strong>em</strong> que a<br />

beleza natural f<strong>em</strong>inina sâ nÜo basta, os adornos sÜo imprescindàveis.<br />

Ela usava um bizarro vestido que, alÇm das cores<br />

berrantes da musseline estampada <strong>em</strong> flores,<br />

comeÄava por um atrevido decote quase no limite<br />

onde se supunha que houvesse seios, o que nÜo<br />

era muito seguro, jÉ que o târax descia reto,<br />

achatado mesmo, atÇ a altura dos quadris, onde<br />

entÜo encontrava-se a assim chamada cintura, a<br />

partir da qual a roupa abaulava-se, quase na


25<br />

forma de um barril atÇ as canelas, e aà encerravase<br />

subitamente o seu curso avassalador – com as<br />

canelas de fora! Completavam essa visÜo do<br />

outro mundo os cabelos muitos curtos,<br />

encimados por duas penas iridescentes, alÇm de<br />

um enorme colar de pÇrolas despencado quase<br />

atÇ a cintura, um leque de plumas brancas numa<br />

das mÜos e uma sombrinha fechada, na outra.<br />

(TREVISAN, 1998, p. 32)<br />

Pod<strong>em</strong>os, atravÇs deste trecho do romance, identificar a tentativa<br />

de caracterizaÄÜo de JoÜo SilvÇrio <strong>em</strong> seu romance para mostrar todos<br />

os aspectos que circundavam as indagaÄÅes inerentes ao fenämeno da<br />

modernidade, <strong>em</strong> especial aos traÄos marcantes da cultura fin du siàcle.<br />

Mais minucioso do que a simples definiÄÜo de artista para<br />

Baudelaire Ç seu conceito de hom<strong>em</strong> do mundo. Em seu texto O pintor<br />

da vida moderna, o poeta francÑs declara que o verdadeiro artista Ç<br />

aquele que se entrega ao mundo, çs multidÅes, e que se deixa levar pelos<br />

devaneios suscitados pelo frenesi da sociedade moderna: “Hom<strong>em</strong> do<br />

mundo, isto Ç, hom<strong>em</strong> do mundo inteiro, hom<strong>em</strong> que compreende o<br />

mundo e as razÅes misteriosas e legàtimas de todos seus costumes;<br />

artista, isto Ç, hom<strong>em</strong> subordinado ç sua palheta como o servo ç gleba”<br />

(BAUDELAIRE, 1995, p. 855). Tal descriÄÜo do hom<strong>em</strong> do mundo nos<br />

r<strong>em</strong>ete ç descriÄÜo da figura do flÅneur 9 , esse ser das grandes cidades<br />

que se perde <strong>em</strong> seus labirintos, galerias e passagens, e que tambÇm<br />

surge com o desenvolvimento das grandes metrâpoles, ou seja, Ç um<br />

legàtimo cidadÜo da modernidade.<br />

Ressaltamos destarte as diversas andanÄas do personag<strong>em</strong><br />

Alberto Nepomuceno nÜo somente pelo Brasil (Nepomuceno viveu <strong>em</strong><br />

Fortaleza, Recife e depois na grande metrâpole do Brasil ImpÇrio, Rio<br />

de Janeiro), mas tambÇm <strong>em</strong> seu exàlio na Europa, <strong>em</strong> Roma e <strong>em</strong><br />

Berlim. Ele poderia configurar como um flÅneur, um transeunte que se<br />

perde na multidÜo das grandes metrâpoles e atravÇs desse ato consegue<br />

seu gozo e a elaboraÄÜo de seus fantasmas, material para a criaÄÜo de<br />

suas composiÄÅes musicais: “TrÑmulo de entusiasmo, Alberto decidiu<br />

comer nalguma osteria e passar a tarde caminhando a esmo, s<strong>em</strong><br />

qualquer preocupaÄÜo <strong>em</strong> se perder – o que, ao contrÉrio, desejava”<br />

9 O flÅneur Ç alguÇm que perambula s<strong>em</strong> compromisso por uma cidade, alguÇm que percorre as<br />

ruas s<strong>em</strong> objetivo aparente, mas secretamente atento ç histâria dos lugares por onde passa. Ele<br />

tambÇm Ç outro marginal, um andarilho bastardo da cidade.


26<br />

(TREVISAN, 1998, p.361). Perdia-se, por ex<strong>em</strong>plo, na cidade de Roma,<br />

berÄo da civilizaÄÜo ocidental, test<strong>em</strong>unha voyeur da passag<strong>em</strong> da<br />

Antiguidade para a Idade Moderna: “Nos teus passeios solitÉrios por<br />

Roma (como amavas passar as tardes de primavera perambulando!)”<br />

(TREVISAN, 1998, p. 310).<br />

O saturnino<br />

Para o indivàduo<br />

nascido sob o signo<br />

de Saturno, o t<strong>em</strong>po<br />

Ç o meio de<br />

repressÜo, da<br />

inadequaÄÜo, da<br />

repetiÄÜo, mero<br />

cumprimento. No<br />

t<strong>em</strong>po somos apenas<br />

o que somos: o que<br />

s<strong>em</strong>pre fomos. No<br />

espaÄo pod<strong>em</strong>os ser<br />

outra pessoa.<br />

(Susan Sontag, Sob o signo de Saturno)<br />

Para entendermos a melancolia na modernidade, faz-se necessÉrio<br />

um diÉlogo com a psicanÉlise, <strong>em</strong> especial com o livro da s<strong>em</strong>iâloga<br />

Julia Kristeva, Sol negro: depressÇo e melancolia, b<strong>em</strong> como com o<br />

livro do pensador italiano Giorgio Agamben EstÅncias. TambÇm nÜo<br />

pod<strong>em</strong>os esquecer o teârico al<strong>em</strong>Üo Walter Benjamin e sua contribuiÄÜo<br />

sobre o t<strong>em</strong>a da melancolia atravÇs de suas imagens.<br />

Os diferentes significados da melancolia na Antiguidade e na<br />

Idade MÇdia sÜo a base inicial para o desenvolvimento do nosso<br />

raciocànio atual. Segundo Kristeva, Aristâteles vÑ a melancolia do<br />

filâsofo nÜo com uma doenÄa, mas como um carÉter inerente ao amante<br />

do saber. Na Antiguidade tardia, t<strong>em</strong>os a representaÄÜo da melancolia<br />

atravÇs do planeta Saturno, planeta do pensamento e do espàrito. Na<br />

Idade MÇdia, a teologia cristÜ fez da melancolia um pecado grave.<br />

Giorgio Agamben tambÇm analisa o fenämeno da melancolia <strong>em</strong><br />

seu livro, fazendo referÑncia ç figura do acidioso na Idade MÇdia.<br />

Segundo ele: “Se examinarmos a interpretaÄÜo que os doutores da Igreja<br />

dÜo sobre a essÑncia da acàdia, ver<strong>em</strong>os que ela nÜo Ç posta sob o signo<br />

da preguiÄa, mas sim sob o da angustiada tristeza e do desespero”


27<br />

(AGAMBEN, 2007, p. 26). Muitas vezes a figura do acidioso era<br />

confundida com a do preguiÄoso, haja vista a caracteràstica comum aos<br />

dois da divagaÄÜo, do olhar voltado para o nada. Segundo o autor<br />

italiano, o acidioso sofre por seu objeto de desejo, mas sofre por nÜo ter<br />

forÄas para alcanÄÉ-lo. Ele torna esse mesmo objeto inatingàvel.<br />

Faz<strong>em</strong>os menÄÜo a um interessante trecho do romance <strong>em</strong> que<br />

Alberto Nepomuceno, citando um pequeno verso de seu mestre Tobias<br />

Barreto, declara sua predileÄÜo por objetos inalcanÄÉveis:<br />

Esta paixÜo que me devora o peito,<br />

Esta sede que me abrasa as entranhas,<br />

Para acalmÉ-la, ao menos por instantes,<br />

Bastava um gole d’Égua <strong>em</strong> que te banhas.<br />

(Meu mestre Tobias Barreto fala por mim. A<br />

quadrinha Ç dele, que tanto se apaixonava por<br />

mulheres inalcanÄÉveis.) (TREVISAN, 1998,<br />

p.288)<br />

Nepomuceno revela-se acidioso por mostrar carÉter s<strong>em</strong>elhante<br />

ao de seu mestre. Tivera <strong>em</strong> toda a narrativa somente amores se nÜo<br />

impossàveis, inalcanÄÉveis, como a passageira do navio no qual ele<br />

<strong>em</strong>barcou para a Europa, Suzy. O mÖsico cearense Ç um solitÉrio que se<br />

perde <strong>em</strong> sua subjetividade e se deixa levar pelo turbilhÜo de fantasmas<br />

oriundos de sua existÑncia melancâlica. Ele Ç um bastardo da<br />

modernidade, porque esta nÜo abre espaÄo para sua reflexÜo fantasiosa.<br />

A modernidade exige racionalidade e pragmatismo <strong>em</strong> detrimento da<br />

atividade fantasmÉtica do acidioso.<br />

Ao referir-se a Klibansky, Panofsky e Saxl, pod<strong>em</strong>os entender<br />

atravÇs de Agamben, mais adiante, a melancolia assim como era<br />

analisada na Idade MÇdia:<br />

A melancolia, ou bàlis negra (ìέλαιναχόλη), Ç<br />

aquela cuja desord<strong>em</strong> pode provocar as<br />

conseqéÑncias mais nefastas. Na cosmologia<br />

humoral medieval, aparece associada<br />

tradicionalmente ç terra, ao outono (ou ao<br />

inverno), ao el<strong>em</strong>ento seco, ao frio, ç tramontana,<br />

ç cor preta, ç velhice (ou ç maturidade), e o seu<br />

planeta Ç Saturno, entre cujos filhos o<br />

melancâlico encontra lugar ao lado do enforcado,


28<br />

do coxo, do camponÑs, do jogador de azar, do<br />

religioso e do porqueiro. A sàndrome fisiolâgica<br />

da abbundantia melancholiae inclui o<br />

enegrecimento da pele, do sangue e da urina, o<br />

enrijecimento do pulso, a ardÑncia do estämago,<br />

a flatulÑncia, o arroto Écido, o zumbido na orelha<br />

esquerda, a prisÜo de ventre ou o excesso de<br />

fezes, os sonhos macabros e, entre as<br />

enfermidades que pod<strong>em</strong> provocar, figuram a<br />

histeria, a d<strong>em</strong>Ñncia, a epilepsia, a lepra, as<br />

h<strong>em</strong>orrâidas, a sarna e a maniasuicida.<br />

Conseqéent<strong>em</strong>ente, o t<strong>em</strong>peramento que deriva<br />

da sua prevalÑncia no corpo humano Ç<br />

apresentado sob uma luz sinistra: o melancâlico Ç<br />

pexime complexionatus, triste, invejoso, mau,<br />

Évido, fraudulento, t<strong>em</strong>eroso e terroso.<br />

(AGAMBEN, 2007, p.33 e 34)<br />

Como regente da melancolia encontramos o planeta Saturno,<br />

considerado “o planeta mais maligno” (AGAMBEN, 2007, p. 36). Ao<br />

lado do melancâlico forma-se a atmosfera de reflexÜo caracteràstica do<br />

mesmo. Agamben cita M. Ficino a respeito do humor melancâlico:<br />

A natureza do humor melancâlico segue a<br />

qualidade da terra, que nÜo se disperde nunca<br />

tanto quanto os outros el<strong>em</strong>entos, mas se<br />

concentra mais estreitamente <strong>em</strong> si mesma... tal Ç<br />

tambÇm a natureza de MercÖrio e de Saturno, <strong>em</strong><br />

virtude da qual os espàritos, reunindo-se no<br />

centro, dirig<strong>em</strong> a ponta da alma do que lhe Ç<br />

estranho para o que lhe Ç prâprio, fixando-a na<br />

cont<strong>em</strong>plaÄÜo e dispondo-a para que penetre no<br />

centro das coisas. (Id<strong>em</strong>, p.36)<br />

Captando Saturno para a modernidade, t<strong>em</strong>os a imag<strong>em</strong> do pintor<br />

espanhol Francisco de Goya 10 <strong>em</strong> seu quadro Saturno devorando um de<br />

seus filhos. Jean Starobinski atesta que Goya “pÅe <strong>em</strong> cena seres<br />

10 A obra de Goya e sua evoluÄÜo estÇtica foram essencialmente influenciadas por seu t<strong>em</strong>po de<br />

profundas transformaÄÅes. Ele imergiu atravÇs de sua criatividade na modernidade e se lanÄou<br />

perigosamente ao futuro. Goya surge nesse contexto como nÜo sâ um criador de imagens, mas<br />

tambÇm de sensaÄÅes. Seus desenhos e suas pinturas mais sombrias sÜo imagens que vÜo alÇm<br />

da tristeza e da melancolia. Por isso, Ç Goya um dos grandes representantes da modernidade.


29<br />

afligidos de melancolia, espetÉculos violentos, acidentes, assassinatos”<br />

(STAROBINSKI, 1989, p. 122), anunciando que a modernidade nÜo sâ<br />

representa uma mÉquina de promessas futuras e de inovaÄÜo, mas<br />

tambÇm leva consigo a melancolia. A modernidade Ç o t<strong>em</strong>po que tudo<br />

devora e nada perdoa, n<strong>em</strong> mesmo seus filhos. De acordo com <strong>Ana</strong><br />

Luiza Andrade: “Sobretudo, a pintura de Goya anteciparia a passag<strong>em</strong><br />

do pensamento clÉssico ao moderno, o ser humano entre o seu ser finito<br />

e a suspensÜo do devir, coincidente ao impasse foucaultiano do hom<strong>em</strong><br />

moderno e seu duplo (...)” (ANDRADE, 1998, p. 148).<br />

Nesse contexto Ç possàvel pensar o personag<strong>em</strong> Alberto<br />

Nepomuceno como um melancâlico, um saturnino. SÜo vÉrios os<br />

indàcios que comprovam tal assertiva, segundo uma descriÄÜo do<br />

narrador: “Alberto Nepomuceno voltou-se, agora com distraàda<br />

melancolia, para o enorme espelho belga que preenchia toda a parede<br />

diante dele” (TREVISAN, 1998, p. 17). O protagonista se autodenomina<br />

como um trÉgico e afirma:<br />

Sou mesmo um trÉgico. OuÄa tudo o que eu<br />

compus, Ç tÜo triste! Foi o melhor que pude dar<br />

de mim, a tristeza. AtÇ as minhas Valsas<br />

humorásticas, onde brinco com o Danâbio azul e<br />

Chopin, sÜo antes de tudo filhas da nostalgia.<br />

Mas se quiser um ex<strong>em</strong>plo acabado, basta ouvir a<br />

minha Sinfonia para saber como a tristeza estÉ<br />

presente <strong>em</strong> mim. E a angÖstia, o medo a<br />

incerteza. A Sinfonia exprime mais do que tudo o<br />

que fiz. è a dor de buscar definiÄÅes impossàveis.<br />

Porque dâi. Cada gesto, cada mÖsculo, cada<br />

segundo. Tudo dâi. (TREVISAN, 1998, p. 30)<br />

Essa busca do protagonista difàcil de ser definida revela-se como<br />

mais um traÄo do quadro da melancolia: “Tenho a impressÜo de que nÜo<br />

consegui definir um projeto claro” (TREVISAN, 1998, p.43). A<br />

indefiniÄÜo do objeto pode ser chamada tambÇm de indefiniÄÜo da<br />

Coisa. A Coisa Ç segundo Julia Kristeva nÜo o objeto, mas sim o que<br />

Freud chamava de Coisa com letra maiÖscula e diz: “O depressivo<br />

narcàsico estÉ de luto, nÜo de um Objeto, mas da Coisa” (KRISTEVA,<br />

1989, p.19). Susana Kampff Lages, <strong>em</strong> seu livro Walter Benjamin:<br />

traduÖÇo e melancolia, acrescenta ç noÄÜo de objeto e diz: “o Önico<br />

modo possàvel de lidar com ele Ç por meio de uma incorporaÄÜo<br />

canibalàstica, com a qual o melancâlico procura desmentir a realidade do


30<br />

objeto” (LAGES, 2007, 61). Ele mantÇm luto por um objeto, cuja<br />

definiÄÜo Ç rarefeita.<br />

Precisamos, pois, distinguir os diferentes tipos de luto. No caso<br />

de uma perda real (morte) o luto dÉ-se por um objeto real, definido. O<br />

melancâlico, por sua vez, mantÇm seu luto por um objeto difàcil der ser<br />

captado. è nesse contexto que hÉ uma identificaÄÜo narcàsica com o<br />

objeto perdido (ou com a Coisa), instalando-o dessa forma no prâprio<br />

sujeito.<br />

Julia Kristeva analisa as caracteràsticas do melancâlico, b<strong>em</strong><br />

como sua relaÄÜo com o objeto perdido e com a palavra, haja vista sua<br />

formaÄÜo de s<strong>em</strong>iâloga e psicanalista. De acordo com ela, a mÜe Ç a<br />

primeira grande perda, geradora de luto. Tal perda deve ser otimizada,<br />

de modo que o objeto perdido (a mÜe) possa ser recuperado <strong>em</strong> outro<br />

lugar e de forma erâtica. A perda Ç condiÄÜo essencial para o processo<br />

de autonomizaÄÜo tanto do hom<strong>em</strong> quanto da mulher. A crianÄa torna-se<br />

triste antes de pronunciar suas primeiras palavras. Sâ depois disso Ç que<br />

ela poderÉ tentar reencontrÉ-la, primeiramente procurarÉ outros objetos<br />

de amor. Antes da fala, pela imaginaÄÜo (formulando seus fantasmas),<br />

para somente depois encontrÉ-la no mundo das palavras. Ao ligar o<br />

objeto perdido ç produÄÜo fantasmÉtica, pronuncia Agamben:<br />

O objeto perdido nÜo Ç nada mais que a aparÑncia<br />

que o desejo cria para o prâprio cortejo do<br />

fantasma, e a introjeÄÜo da libido nada mais Ç que<br />

uma das faces do processo, no qual aquilo que Ç<br />

real perde a sua realidade, a fim de que o que Ç<br />

irreal se torne real. Se, por um lado, o mundo<br />

externo Ç narcisisticamente negado pelo<br />

melancâlico como objeto de amor, por outro, o<br />

fantasma obtÇm dessa negaÄÜo um princàpio de<br />

realidade, e sai da muda cripta interior para<br />

ingressar <strong>em</strong> uma dimensÜo nova e fundamental.<br />

NÜo sendo mais fantasma e ainda nÜo sendo signo,<br />

o objeto irreal da introjeÄÜo melancâlica abre um<br />

espaÄo que nÜo Ç n<strong>em</strong> alucinada cena onàrica de<br />

fantasmas, n<strong>em</strong> sequer o mundo indiferente dos<br />

objetos naturais. Mas Ç nesse lugar epifánico<br />

intermediÉrio, situado na terra de ninguÇm, entre o<br />

amor narcisista de si e a escolha objetal externa,<br />

que um dia poderÜo ser colocadas as criaÄÅes da<br />

cultura humana, o entrebuscar das formas<br />

simbâlicas e das prÉticas textuais, atravÇs das quais


31<br />

o ser humano entra <strong>em</strong> contato com um mundo que<br />

lhe Ç mais prâximo do que qualquer outro e do<br />

qual depend<strong>em</strong>, mais diretamente do que da<br />

natureza fàsica, a sua felicidade e a sua<br />

infelicidade. (AGAMBEN, 2007, p. 53 e 54)<br />

è atravÇs das fantasias que as imagens dos objetos vÜo e v<strong>em</strong> na<br />

mente do protagonista. Essa caracteràstica estÉ intimamente associada ç<br />

criatividade artàstica, que Ç inicialmente potencializada na infáncia, para<br />

depois diminuir na fase adulta. O melancâlico Ç, desta forma, um<br />

infantil, preso <strong>em</strong> um mundo de signos diferentes da realidade, alterado<br />

por seus fantasmas.<br />

Giorgio Agamben acrescenta ao assunto ao reservar um capàtulo<br />

de seu livro EstÅncias para a questÜo do objeto, denominando-o o<br />

“objeto perdido”. Ele faz uma anÉlise de Freud acerca do luto e da<br />

melancolia:<br />

O mecanismo dinámico da melancolia <strong>em</strong> parte<br />

toma <strong>em</strong>prestadas as suas caracteràsticas essenciais<br />

do luto e <strong>em</strong> parte da regressÜo narcisista. Assim<br />

como no luto, a libido reage diante da prova da<br />

realidade que mostra que a pessoa amada deixou<br />

de existir, fixando-se <strong>em</strong> toda l<strong>em</strong>branÄa e <strong>em</strong> todo<br />

objeto que se encontravam <strong>em</strong> relacionados com<br />

ela, assim tambÇm a melancolia Ç uma reaÄÜo<br />

diante da perda de um amor, ao que nÜo se segue,<br />

porÇm, conforme se poderia esperar, uma<br />

transferÑncia da libido para um novo objeto, mas<br />

sim o retrair-se no eu, narcisisticamente<br />

identificado com o objeto perdido. (AGAMBEN,<br />

2007, p. 43 e 44)<br />

Daà decorre a depreciaÄÜo consigo mesmo do melancâlico (jÉ que<br />

hÉ uma incorporaÄÜo do objeto, uma identificaÄÜo narcàsica com o<br />

mesmo), ao contrÉrio da outra forma de luto (pela perda real do objeto),<br />

que consiste na perda de interesse pelo mundo, e nÜo pela perda de<br />

interesse por si mesmo. Tal objeto perdido Ç indefinido, difàcil de ser<br />

explicado; muitas vezes sequer sab<strong>em</strong>os que houve uma perda. Citando<br />

Kristeva: “eu o amo (parece dizer o depressivo a propâsito de um ser ou<br />

de um objeto perdido), mas o odeio mais ainda; porque o amo, para nÜo<br />

perdÑ-lo, eu o instalo <strong>em</strong> mim, mas porque o odeio, este outro <strong>em</strong> mim Ç


32<br />

mau, sou mau, sou nulo, me mato” (KRISTEVA, 1989, p.17). Em seu<br />

diÉrio, escreve Alberto Nepomuceno: “Sinto uma raiva enorme de<br />

Alberto Nepomuceno, esse idiota!...” 11 (TREVISAN, 1998, p. 283). O<br />

mÖsico cearense incapaz de definir um objeto mostra-se tambÇm<br />

impotente <strong>em</strong> relaÄÜo a ele prâprio. Sente-se confuso, porque nÜo<br />

consegue separÉ-lo de si e acaba por se autopunir, depreciando-se.<br />

Susana Kampff Lages trabalha com a ideia de que traduÄÜo,<br />

morte e melancolia sÜo t<strong>em</strong>as que dialogam. Nas palavras de De Man,<br />

analisadas por ela:<br />

Nachreife [...] t<strong>em</strong> a melancolia, o sentimento de<br />

ligeira fadiga, da vida a que t<strong>em</strong>os direito, da<br />

felicidade a que nÜo t<strong>em</strong>os direito, o t<strong>em</strong>po<br />

passou, etc. EstÉ associada a outra palavra que<br />

Benjamin utiliza constant<strong>em</strong>ente éberleben, viver<br />

para alÇm da prâpria morte, <strong>em</strong> certo sentido. A<br />

traduÄÜo pertence nÜo ç vida do original, o original<br />

jÉ estÉ morto, mas a traduÄÜo pertence ç vida<br />

pâstuma do original, assumindo e confirmando<br />

assim a morte do original [...] Ç um olhar<br />

retrospectivo sobre um processo de maturidade<br />

que terminou [...]. (LAGES, 2007, p.174)<br />

SÇrgio Paulo Rouanet, <strong>em</strong> seu livro Riso e melancolia (2007),<br />

tambÇm elucida que a morte Ç um dos t<strong>em</strong>as favoritos do melancâlico,<br />

nÜo somente a morte, mas a transitoriedade da vida. è essa, pois, uma<br />

das maiores obsessÅes de Alberto Nepomuceno: a morte. E essa<br />

obsessÜo nÜo Ç infundada, como pod<strong>em</strong>os constatar atravÇs do relato do<br />

narrador:<br />

Mas, naquele momento foi tudo que pensaste:<br />

Ela chegou. S<strong>em</strong> monumentalidade, a Morte<br />

vinha a ti. Sorrateira, por breves momentos. Ela<br />

apossou-se do teu horizonte. Mas <strong>em</strong> tua cabeÄa,<br />

o incidente nÜo foi nada breve. Aquele era um<br />

t<strong>em</strong>po especial, quase eternidade. O t<strong>em</strong>po da<br />

11 Faz<strong>em</strong>os questÜo aqui de mencionar romance do escritor russo Dostoiveski, O idiota.<br />

Dostoievski consegue reunir esses seres angustiados da modernidade, todos envoltos sob a<br />

nÇvoa da melancolia e do desespero. O idiota t<strong>em</strong> como ideia principal o fato de que o hom<strong>em</strong><br />

bom e puro, dotado de uma compaixÜo verdadeiramente cristÜ, jamais poderÉ conviver <strong>em</strong> uma<br />

sociedade corrompida, tornando-se para seus s<strong>em</strong>elhantes um idiota, alvo de humilhaÄÜo e de<br />

aproveitadores. è o hom<strong>em</strong> moderno, um “outsider”.


33<br />

morte, diante do qual tudo se torna provisârio.<br />

(TREVISAN, 1998, p.270)<br />

A morte persegue-o durante toda a narrativa: “Porque nÜo Çs tu<br />

que olha a paisag<strong>em</strong>, mas Ç a morte, de toda parte qu<strong>em</strong> te espreita. E<br />

com ela, a noite, a escuridÜo e o desconhecido aproximam-se!”<br />

(TREVISAN, 1998, p. 310). O mÖsico parece sentir-se acuado devido<br />

ao seu probl<strong>em</strong>a cardàaco; desde sua juventude apresenta uma saÖde<br />

debilitada. A morte Ç um t<strong>em</strong>a que nÜo somente circunda o personag<strong>em</strong><br />

Alberto Nepomuceno, mas tambÇm, como ver<strong>em</strong>os posteriormente, a<br />

escrava <strong>Ana</strong>, b<strong>em</strong> como sua relaÄÜo intertextual com a obra de Thomas<br />

Mann, A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, que <strong>em</strong> seu prâprio tàtulo jÉ carrega consigo<br />

o signo de Tánatos.<br />

O ser fragmentado<br />

Freud, na modernidade, incorpora a mudanÄa de significado e<br />

atesta ç melancolia o status de patologia, ligando-a aos processos de<br />

castraÄÜo, ao fetichismo e as suas teorias acerca da sexualidade. Em seu<br />

texto Delários e sonhos na Gradiva de Jensen, a partir da narrativa do<br />

escritor al<strong>em</strong>Üo Wilhelm Jensen, Freud trabalha com a questÜo da<br />

melancolia, b<strong>em</strong> como sua relaÄÜo com o fetiche. A fixaÄÜo do<br />

arqueâlogo pelos pÇs da Gradiva revela um fetichismo inegÉvel. O<br />

protagonista sofre pelas pulsÅes reprimidas, as quais ele transfere e<br />

canaliza no trabalho. Daà v<strong>em</strong> seu estado de “delàrio”, sua melancolia.<br />

No texto Luto e melancolia, Freud descreve os traÄos do melancâlico:<br />

Os traÄos mentais distintivos da melancolia sÜo<br />

um desánimo profundamente penoso, a cessaÄÜo<br />

de interesse pelo mundo externo, a perda da<br />

capacidade de amar, a inibiÄÜo de toda e<br />

qualquer atividade, e uma diminuiÄÜo dos<br />

sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar<br />

expressÜo <strong>em</strong> auto-recriminaÄÜo e autoenvilecimento,<br />

culminando numa expectativa<br />

deliciosa de puniÄÜo. (FREUD, 1996. p. 250)<br />

Freud aponta para a inibiÄÜo da capacidade de amar por parte do<br />

melancâlico como uma condiÄÜo sine qua non de sua existÑncia. No<br />

concernente ao personag<strong>em</strong> Alberto Nepomuceno Ç importante<br />

mencionar, nÜo obstante alguns objetos de desejo que surg<strong>em</strong> durante a


34<br />

narrativa, o caso da jÉ citada passageira <strong>em</strong> seu navio para a Europa:<br />

Suzy, por qu<strong>em</strong> Alberto se apaixona, mas nada faz para conquistÉ-la 12 .<br />

O protagonista nÜo conseguiu desenvolver sua capacidade de amar n<strong>em</strong><br />

mesmo <strong>em</strong> seu casamento: “um dia selei <strong>em</strong> Kristiania (ou seria <strong>em</strong><br />

Oslo?) um amor eterno que acabou produzindo filhos e tÇdio”<br />

(TREVISAN, 1998, p. 648). TambÇm tivera que romper com a noiva<br />

que ficara no Brasil, mostrando seu desapego com as questÅes afetivas:<br />

Mas continuar na Europa significava<br />

automaticamente a ruptura com RÇria. Sofreste<br />

muito, atÇ conseguir escrever-lhe aquela carta – a<br />

Öltima – onde relatavas tua decisÜo. Nunca<br />

recebeste resposta. Tua antiga noiva deve ter se<br />

sentido lograda e, com certeza jamais te<br />

perdoarÉ. Tal qual tua âpera Porangaba, tu a<br />

sentes agora como coisa superada. Parece tÜo<br />

distante, aquela tua ligaÄÜo com a mocinha<br />

simples de Fortaleza... Sim, RÇria ficou<br />

definitivamente para trÉs. (TREVISAN, 1998,<br />

p.319)<br />

Em muitas passagens de seu texto sobre a melancolia, Freud<br />

estabelece um verdadeiro paralelo entre o procedimento do arqueâlogo e<br />

o mÇtodo psicanalàtico. O arqueâlogo Ç aquele que, plenamente fixado ç<br />

terra e ao fragmento, procura dar vida çquilo que jÉ deixou de existir. O<br />

mÇtodo psicanalàtico entra a partir do momento, <strong>em</strong> que o psicanalista<br />

“desenterra” as m<strong>em</strong>ârias do paciente, tornado-as vivas. Faz<strong>em</strong>os essa<br />

referÑncia pelo fato do protagonista do conto ser um arqueâlogo, ou<br />

seja, um ser fixado ç terra e ao fragmento, duas marcas associadas ç<br />

melancolia. Apontamos tambÇm no arqueâlogo seu carÉter nostÉlgico, jÉ<br />

que seu trabalho Ç voltado para o passado. Esse Ç mais um ponto que<br />

pod<strong>em</strong>os associar ao personag<strong>em</strong> do romance de Trevisan. Em sua<br />

partida para a Europa, jÉ se instala nele o sentimento de saudade, o<br />

banzo <strong>em</strong> relaÄÜo çs suas raàzes e os amigos que deixara <strong>em</strong> Fortaleza,<br />

Recife e Rio de Janeiro:<br />

A esteira deixada pelo navio comprovava que<br />

tinham-se rompido as amarras inextricavelmente<br />

12 NÜo nos esqueÄamos de uma das caracteràsticas do acidioso, que Ç aquele que possui um<br />

objeto de desejo, mas nada faz para obtÑ-lo, daà surge todo seu sofrimento.


35<br />

<strong>em</strong>aranhada ç paisag<strong>em</strong>, a saudade comeÄava a<br />

instaurar o seu domànio. O Adria apitou de novo,<br />

vÉrias vezes, abrindo caminho <strong>em</strong> direÄÜo ç<br />

<strong>em</strong>bocadura da baàa. Despedia-se. Havia regozijo<br />

ou melancolia nesse Adeus? NÜo sabias: tudo<br />

aquilo deixava-te muito confuso. (TREVISAN,<br />

1998, p. 231)<br />

NÜo somente o personag<strong>em</strong> Alberto Nepomuceno, mas o<br />

romance <strong>em</strong> sua completude transita sob o signo de Saturno, se<br />

pensarmos <strong>em</strong> sua disposiÄÜo fragmentÉria dividida entre os trÑs<br />

protagonistas: Alberto Nepomuceno, Julia Mann e a escrava <strong>Ana</strong>.<br />

AtravÇs de tais constataÄÅes no romance, pod<strong>em</strong>os associÉ-las ao<br />

Barroco, jÉ que ele ofereceu, atravÇs de suas reflexÅes acerca da<br />

transitoriedade da vida, el<strong>em</strong>entos favorÉveis para o desenvolvimento do<br />

culto ç alegoria e seu relacionamento com o fragmento e a ruàna. A isso<br />

juntamos o t<strong>em</strong>a da melancolia, haja vista que outra marca fundamental<br />

no quadro da depressÜo Ç a clivag<strong>em</strong>, a fragmentaÄÜo. A clivag<strong>em</strong> Ç o<br />

despedaÄar-se do ego diante da angÖstia (Fall in to pieces), afetando<br />

tambÇm o objeto. Em A orig<strong>em</strong> do drama trÄgico al<strong>em</strong>Ço, 13 pod<strong>em</strong>os<br />

associar a clivag<strong>em</strong> a uma das caracteràsticas do Barroco: a<br />

fragmentaÄÜo. Segundo Walter Benjamin:<br />

As alegorias sÜo, no reino dos pensamentos, o<br />

que as ruànas sÜo no reino das coisas (...) o olhar<br />

saturnino daquela geraÄÜo reconheceu os sinais<br />

da histâria. Nos seus monumentos, nas ruànas,<br />

escond<strong>em</strong>-se, segundo Agrippa Von Nettesheim,<br />

os animais saturninos. (...) O que jaz <strong>em</strong> ruànas, o<br />

fragmento altamente significativo, a ruàna: Ç esta<br />

a mais nobre matÇria da criaÄÜo barroca. O que Ç<br />

comum çs obras desse peràodo Ç acumular<br />

incessant<strong>em</strong>ente fragmentos, s<strong>em</strong> um objectivo<br />

preciso, e, na expectativa de um milagre, tomar<br />

os estereâtipos por uma potenciaÄÜo da<br />

criatividade. Os literatos do Barroco dev<strong>em</strong> ter<br />

13 Associado çs vanguardas modernas, Benjamin foi, no entanto, formado decisivamente pela<br />

visÜo barroca da histâria que ele procuraria transpor para o entendimento da prâpria<br />

modernidade. A leitura de Benjamin consiste <strong>em</strong> fazer uma analogia entre barroco e<br />

modernidade procurando mostrar especialmente a s<strong>em</strong>elhanÄa de condiÄÅes histâricas vividas<br />

pelo barroco e pelo moderno: a situaÄÜo de dissoluÄÜo de todas as certezas e fundamentos<br />

Öltimos.


36<br />

entendido assim, como um milagre, a obra de<br />

arte. (BENJAMIN, 2004, p.193 e 194)<br />

Os sentimentos de perda e as experiÑncias religiosas da Reforma<br />

e da Contra-Reforma levam o hom<strong>em</strong> do sÇculo XVII a uma profunda<br />

melancolia. Benjamin analisa a gravura de Dérer intitulada Melancolia<br />

para representar a apatia <strong>em</strong> que se encontrava o hom<strong>em</strong> barroco. Essa<br />

apatia, associada posteriormente ao spleen dos flÅneurs de Paris,<br />

apresenta o melancâlico como um ser que, <strong>em</strong> meio a objetos se entrega<br />

a devaneios. A alegoria barroca seria a linguag<strong>em</strong> que permitiria ao<br />

melancâlico, vivendo num cenÉrio de ruànas e cadÉveres, expressar o<br />

seu mundo sendo dilacerado. è nas possibilidades da alegoria barroca<br />

que Benjamin päde encontrar o el<strong>em</strong>ento necessÉrio para representar o<br />

desamparo de um mundo <strong>em</strong> ruànas, como o mundo moderno. Nessa<br />

perspectiva benjaminiana, tanto o hom<strong>em</strong> barroco quanto o hom<strong>em</strong><br />

moderno, cercados de objetos, estÜo sujeitos a uma apatia, uma doenÄa<br />

da alma insatisfeita pelo excesso de materialidade.<br />

A estÇtica fragmentÉria na modernidade coincide tambÇm com a<br />

evoluÄÜo da indÖstria e a divisÜo do trabalho. A divisÜo social do<br />

trabalho pode ser entendida por um sist<strong>em</strong>a complexo de todas as<br />

formas Öteis diferentes de trabalho, que sÜo realizadas<br />

independent<strong>em</strong>ente uma das outras por produtores privados, ou seja, no<br />

caso do capitalismo, uma divisÜo do trabalho que se dÉ na troca entre<br />

capitalistas individuais e independentes que compet<strong>em</strong> uns com os<br />

outros. Esse Ç, pois, o eixo de divisÜo dos donos do capital. Em outro<br />

plano, existe a divisÜo do trabalho entre os trabalhadores, cada um dos<br />

quais executa uma operaÄÜo parcial de um conjunto de operaÄÅes que<br />

sÜo, todas, executadas simultaneamente e cujo resultado Ç o produto<br />

social do trabalhador coletivo. Fragmenta-se o hom<strong>em</strong> atravÇs de sua<br />

prâpria funÄÜo social no mundo capitalista.<br />

Nesse ànterim, o artesÜo desprendido de seu ritual lento e àntimo<br />

com o objeto de trabalho, desloca-se para as massas, onde se torna mais<br />

um entre vÉrios. Walter Benjamin interpreta esse fenämeno como um<br />

indàcio do enfraquecimento da atividade narradora, haja vista termos na<br />

figura do artesÜo o encarregado de passar adiante todo o legado cultural<br />

atravÇs de suas estârias. O t<strong>em</strong>po do artesÜo era aquele <strong>em</strong> que ainda se<br />

podiam contar histârias. O hom<strong>em</strong> agora fragmentado perde-se na<br />

velocidade devoradora da modernidade e com ele morre a tradiÄÜo de<br />

narrar. O romance moderno Ç, destarte, o gÑnero mais adequado para os<br />

t<strong>em</strong>pos modernos:


37<br />

Quando esse fluxo se esgota porque a m<strong>em</strong>âria e<br />

a tradiÄÜo comuns jÉ nÜo exist<strong>em</strong>, o indivàduo<br />

isolado, desorientado e desaconselhado (o<br />

mesmo adjetivo <strong>em</strong> al<strong>em</strong>Üo: “ratlos”), reencontra<br />

entÜo o seu duplo herâi solitÉrio do romance,<br />

forma diferente de narraÄÜo que Benjamin, apâs<br />

a Teoria do romance, de LukÉcs, analisa como<br />

forma caracteràstica da sociedade burguesa<br />

moderna. (GAGNEBIN, 1996, p.11)<br />

A histâria concebida como ruànas para Benjamin encontra seu<br />

lugar na modernidade atravÇs do esfacelamento da Erfahrung<br />

(experiÑncia coletiva) <strong>em</strong> detrimento da Erlebnis (experiÑncia<br />

individual). Fragmenta-se a experiÑncia coletiva e <strong>em</strong> seu lugar entra a<br />

individual. Essa Ç mais uma caracteràstica do indivàduo moderno e<br />

solitÉrio, representado tÜo b<strong>em</strong> atravÇs do herâi do romance moderno. A<br />

simples existÑncia <strong>em</strong> uma cidade Ç suficiente para afirmar a perda da<br />

experiÑncia, seu esfacelamento e fragmentaÄÜo.<br />

Na modernidade, a ciÑncia e sua busca de resultados absolutos<br />

tomam o lugar, na forma do experimento, da experiÑncia, ou seja,<br />

experiÑncia e experimento se difer<strong>em</strong>. A experiÑncia nÜo Ç calculÉvel, Ç<br />

um deixar levar-se. A ideia defendida por Benjamin Ç a de que a Önica<br />

experiÑncia que pode ser transmitida nos dias de hoje Ç a da<br />

impossibilidade da experiÜncia como Erfahrung. O ser fragmentado e<br />

separado de sua Erfahrung despede-se tambÇm de sua capacidade<br />

imaginativa, destrâi-se consequent<strong>em</strong>ente a capacidade do hom<strong>em</strong><br />

moderno de sonhar. A este pensamento, acrescenta Agamben <strong>em</strong> seu<br />

livro InfÅncia e histÉria: destruiÖÇo da experiÜncia e orig<strong>em</strong> da<br />

histÉria: “ç expropriaÄÜo da experiÑncia, a poesia responde<br />

transformando esta expropriaÄÜo <strong>em</strong> uma razÜo de sobrevivÑncia e<br />

fazendo do inexperienciÉvel a sua condiÄÜo normal” (AGAMBEN,<br />

2005, p.52). 14<br />

14 Em InfÅncia e histÉria, Agamben trabalha a relaÄÜo entre experiÑncia e conhecimento, a<br />

importáncia do jogo como um ritual, assim como a construÄÜo do sentido de pertencimento e o<br />

reconhecimento da linguag<strong>em</strong> nesse processo. O jogo carrega <strong>em</strong> si o sagrado e por intermÇdio<br />

seu mantÇm a histâria e o passado. NÜo Ç um livro sobre a histâria da infáncia, mas um estudo<br />

que busca entender a infáncia como experiÑncia constituinte do hom<strong>em</strong>.


38<br />

A primeira parada fora do Brasil de Alberto Nepomuceno foi na<br />

cidade de Roma, depois, <strong>em</strong> um dos momentos mais importantes do<br />

romance, seguiu para a <strong>Veneza</strong>. è nessas cidades onde o encontro entre<br />

Antiguidade e modernidade se dÉ de forma mais paradoxal. Em<br />

especial, na cidade de <strong>Veneza</strong>, cuja beleza esconde-se <strong>em</strong> seus canais e<br />

suas ruànas. è nas ruànas que se dÉ a mimese da morte: “Mas se for<br />

preciso cenÉrio, ah, sim, a ItÉlia estÉ b<strong>em</strong> adequada para a morte. Tudo<br />

aqui Ç tÜo antigo que o presente parece estar sujeito ao passado. Ruànas,<br />

museus, tradiÄÅes” (TREVISAN, 1998, p.310). Mais adiante: “<strong>em</strong> Roma<br />

as ruànas sÜo onipresentes, habitando a cidade com fantasmas de vÉrias<br />

Çpocas” (Id<strong>em</strong>). Nepomuceno se desloca do novo para o velho mundo<br />

para buscar respostas para suas inquietaÄÅes nas cidades <strong>em</strong> que a<br />

modernidade pode ser explicada atravÇs das ruànas que lÉ existiram<br />

sÇculos atrÉs. è atravÇs dessa busca que o mÖsico tenta descobrir os<br />

restos de uma histâria que jÉ nÜo mais podia ser contada, mas sim<br />

fantasiada.<br />

A arte barroca, alegârica por excelÑncia, capta os animais e seres<br />

saturninos, e com eles deturpa os objetos de sua significaÄÜo original,<br />

tornando-os melancâlicos. O Anjo de Dérer, por ex<strong>em</strong>plo, t<strong>em</strong> a marca<br />

da melancolia, estado de alma atribuàdo a Saturno. O anjo Ç desvirtuado<br />

de sua significaÄÜo divina e celestial e levado ao tÇdio do acidioso. No<br />

exercàcio da arte, a espera pela inspiraÄÜo pode traduzir-se num tÇdio<br />

melancâlico. Benjamin diz que:<br />

As alegorias envelhec<strong>em</strong> porque da sua essÑncia<br />

faz parte o desconcertante. Se um objecto, sob o<br />

olhar da melancolia, se torna alegârico, se ela lhe<br />

sorve a vida e ele continua a existir como objecto<br />

morto, mas seguro para toda a eternidade, ele fica<br />

a mercÑ do artista e do seu capricho.<br />

(BENJAMIN, 2004, p.199)<br />

O melancâlico brinca e se diverte com as alegorias. è esse sÉdico<br />

jogo alegârico que o conforta. Susan Buck-Morss reserva um capàtulo<br />

de seu livro DialÑtica do olhar para a questÜo da fragmentaÄÜo e das<br />

imagens alegâricas <strong>em</strong> Benjamin, dialogando com vÉrias delas,<br />

iniciando pela imag<strong>em</strong> do fâssil:<br />

Mas na imag<strong>em</strong> do fâssil, Benjamin tambÇm<br />

captura o processo de decadÑncia natural que


39<br />

indica a sobrevivÑncia da histâria passada dentro<br />

do presente, expressando com claridade palpÉvel<br />

que o fetiche desfeito fica tÜo vazio de vida que<br />

sâ o traÄo da concha material permanece.<br />

(BUCK-MORSS, 2002, p.201)<br />

Em seguida analisa a caveira como cont<strong>em</strong>plaÄÜo barroca como<br />

“imag<strong>em</strong> da vaidade da existÑncia humana e a transitoriedade do poder<br />

terreno” (BUCK-MORSS, 2002, p.202). A caveira representa uma das<br />

imagens fundamentais do teârico al<strong>em</strong>Üo, pois carrega consigo toda<br />

carga simbâlica da modernidade, ao mostrar que tudo Ç efÑmero. Daà<br />

resulta sua forte ligaÄÜo com a histâria, pois “Na alegoria, a histâria<br />

aparece como natureza <strong>em</strong> decadÑncia ou ruàna (...)” (BUCK-MORSS,<br />

2002, p.209). No capàtulo intitulado Rumo a Roma, o narrador profere<br />

acerca de Alberto Nepomuceno que “Tratava-se de mera questÜo de<br />

t<strong>em</strong>po: na verdade, apenas algumas horas, atÇ estares ç beira – como de<br />

fato estivestes – de tornares-te parte dessa grande ruàna universal que Ç a<br />

histâria” (TREVISAN, 1998, p.324). Trevisan atravÇs deste gesto<br />

entende a histâria nÜo como um contànuo cronolâgico e unitÉrio, mas,<br />

atravÇs da imag<strong>em</strong> da ruàna, as diversas formas <strong>em</strong> que a prâpria histâria<br />

pode se manifestar.<br />

Portanto, t<strong>em</strong>os no Barroco as reflexÅes melancâlicas sobre a<br />

decadÑncia por vir. Esse Ç o elo da leitura de Benjamin sobre a<br />

modernidade atravÇs do Barroco 15 . O esfacelamento da “Erfahrung”<br />

15 A orig<strong>em</strong> do drama trÄgico al<strong>em</strong>Ço Ç a obra que lÑ a modernidade atravÇs do espectro da<br />

estÇtica do Barroco, atravÇs de suas alegorias, fragmentos, sob o olhar da melancolia e<br />

decadÑncia. Aspirando ao desabrochar na sua pâs-histâria, ou seja, na salvaÄÜo psicanalàtica da<br />

palavra. TÇdio e melancolia representam uma resposta ao tratamento fragmentÉrio sobre o<br />

conhecimento, formalizado na fundaÄÜo de teorias e princàpios de toda ciÑncia moderna que<br />

encontra sua orig<strong>em</strong> <strong>em</strong> um desvio retrabalhado por Benjamin. No Trauerspiel a melancolia<br />

constitui a desolaÄÜo da alma diante da inexorabilidade do destino. A indiferenÄa resultante<br />

desse sentimento, a sensaÄÜo de falta de sentido do esforÄo do hom<strong>em</strong>, das coisas no seu<br />

entorno preparam o t<strong>em</strong>peramento melancâlico e faz<strong>em</strong> dele a mentalidade de uma era que<br />

sucumbe desmotivada da aÄÜo, uma vez que ela Ç reprimida pelo rigor das novas teorias da<br />

Reforma Religiosa. A ideia de paraàso eterno ou de uma suspensÜo do t<strong>em</strong>po, desenvolvida por<br />

essa Çpoca, faz contraponto ç pressÜo de um destino privado de transcendÑncia e repercute na<br />

representaÄÜo panoramÉtica da histâria do Trauerspiel, liderada pelo inconsciente, pela<br />

dissoluÄÜo dos limites entre presente, passado, como um desvio da pressÜo do mundo finito e<br />

exalado no sentimento de fugacidade e ef<strong>em</strong>eridade das coisas. A leitura barroca da melancolia<br />

enquanto sentimento natural do hom<strong>em</strong> motiva a saàda no artifàcio que se realiza na estÇtica<br />

cÑnica do drama da alegoria, como expressÜo da convenÄÜo da Çpoca. Essa foi a dificuldade<br />

enfrentada por Benjamin para a aceitaÄÜo de seu trabalho, que resultou no fracasso para<br />

ingressar como professor na Universidade de Frankfurt. Benjamin propÅe, de forma corajosa,<br />

que a estÇtica barroca contrapÅe-se ao Classicismo na RepÖblica de Weimar, ou seja, <strong>em</strong> pleno


40<br />

pode, dessa forma, ser associado aos processos de fragmentaÄÜo<br />

caracteràsticos da modernidade, e sÜo analisados por Benjamin <strong>em</strong> seu<br />

famoso ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade tÑcnica. è<br />

nesse contexto que se dÉ, segundo o pensador al<strong>em</strong>Üo, a perda da aura.<br />

Mas o que entender por aura? “è uma figura singular, composta de<br />

el<strong>em</strong>entos espaciais e t<strong>em</strong>porais: a apariÄÜo Önica de uma coisa distante,<br />

por mais perto que esteja” (BENJAMIN, 1996, p.170). A aura Ç a<br />

unicidade da obra. Se a reproduÄÜo feita pelo hom<strong>em</strong> Ç apenas<br />

reproduÄÜo ou falsificaÄÜo, com o original a manter a sua autoridade, na<br />

reproduÄÜo tÇcnica nÜo hÉ original e câpia. Admite a depauperaÄÜo,<br />

porque a autenticidade de uma obra Ç o que ela contÇm de transmissàvel,<br />

de duraÄÜo material ao seu poder de test<strong>em</strong>unho histârico.<br />

Benjamin recorre ç noÄÜo de aura, rebaixada na era das tÇcnicas<br />

de reproduÄÜo. Multiplicando os ex<strong>em</strong>plares, um acontecimento que sâ<br />

se produziu uma vez constitui-se como fenämeno de massa. A<br />

reproduÄÜo de vÉrios ex<strong>em</strong>plares questiona a autenticidade, confere<br />

atualidade e implica na perda da aura.<br />

O romance de Trevisan brinca com os àcones do consumo da<br />

modernidade, abrindo espaÄo para uma dialÇtica entre a coisa (b<strong>em</strong> de<br />

consumo efÑmero e depauperado) e o sujeito (consumidor alienado), o<br />

que pode ser lido como uma interpretaÄÜo da decadÑncia vindoura (ou jÉ<br />

instalada).<br />

Vejo o co-piloto aproximar-se sorridente<br />

vestindo uma camiseta com a inscriÄÜo “Kiss me<br />

Amadeus”, entÜo imediatamente me l<strong>em</strong>bro que<br />

estamos no ano do bicentenÉrio da morte de<br />

Mozart, entÜo Ç isso, estÜo celebrando a<br />

genialidade de Amadeus Mozart, entÜo sou tirado<br />

da minha introspecÄÜo por uma aeromoÄa que me<br />

serve um cÉlice do novo licor Mozart com os<br />

cumprimentos do comandante, e que dentro de<br />

alguns segundos serÉ servido um lanche “a la<br />

Mozart”, avisa ela, mas se o senhor se interessar<br />

t<strong>em</strong>os tambÇm o legàtimo chocolate vienense<br />

marca Mozart e bombons Mozart recheados de<br />

cr<strong>em</strong>es e nozes, especialmente criados pela<br />

NestlÇ, uma delàcia! (TREVISAN, 1998, p.619).<br />

peràodo de tentativa de reinstalaÄÜo do Classicismo. Benjamin se posiciona contra esta volta<br />

dos valores clÉssicos, pois para ele estava ligada çs ideologias totalizadoras que culminariam<br />

no nazismo.


41<br />

è atravÇs desse gesto que JoÜo SilvÇrio Trevisan nos leva ç<br />

reflexÜo do objeto, mostrando que a adoraÄÜo do objeto de consumo<br />

entra no lugar da adoraÄÜo divina. <strong>Ana</strong> Luiza Andrade analisa algo<br />

s<strong>em</strong>elhante na escrita da escritora Clarice Lispector, para qu<strong>em</strong> os bens<br />

de consumo da modernidade assum<strong>em</strong> um papel importante <strong>em</strong> sua<br />

narrativa 16 :<br />

Na dialÇtica saturnina do desm<strong>em</strong>bramento,<br />

enquanto para Benjamin, pensar o objeto Ç trazÑlo<br />

de volta ç sua significaÄÜo histârica,<br />

arrancando-o do t<strong>em</strong>po contànuo de uma histâria<br />

de vencedores, para atravÇs de seus fragmentos,<br />

estabelecer a ponte histârica do vencido, para<br />

Clarice, o ato de consumir o objeto liga-o ç<br />

continuidade natural de um corpo invisàvel ao<br />

expor a continuidade interrompida do vencido no<br />

anacronismo da histâria. Se para Benjamin<br />

“somente Ç possàvel ser ler o passado porque estÉ<br />

morto” e somente se pode entender a histâria<br />

porque Ç fetichizada <strong>em</strong> objetos fàsicos”, para<br />

Clarice somente Ç possàvel ler o passado porque<br />

estÉ vivo, e o objeto sâ passa a existir com o<br />

fracasso da linguag<strong>em</strong> para incorporÉ-lo.<br />

(ANDRADE, 1998, p. 154)<br />

Cultivado desde os románticos como Friedrich Schlegel, o<br />

fragmento ganha maior forÄa atravÇs do filâsofo Nietzsche 17 e sua<br />

predileÄÜo pela estrutura do aforismo. O fragmento Ç o recurso mais<br />

apropriado para os t<strong>em</strong>pos da modernidade <strong>em</strong> ruànas. TambÇm Theodor<br />

Adorno elegeu, essencialmente atravÇs do ensaio, uma forma<br />

16 No livro A hora da estrela, Clarice Lispector tambÇm insere <strong>em</strong> seu texto el<strong>em</strong>entos da vida<br />

moderna que se tornaram parte integrante do quotidiano do consumidor, das massas. Entre<br />

outros ex<strong>em</strong>plos, t<strong>em</strong>os a personag<strong>em</strong> MacabÇa, consumidora de Coca-cola. Existe ainda um<br />

conto da autora de ägua viva chamado O relatÉrio da coisa, nele Clarice tambÇm joga com os<br />

àcones do consumo da modernidade: “Eu enjoei do cigarro Consul que Ç mentolado e doce. JÉ<br />

o cigarro Carlton Ç seco, Ç duro, Ç Éspero, e s<strong>em</strong> conivÑncia com o fumante. Como cada coisa Ç<br />

ou nÜo Ç, nÜo me incomoda de fazer propaganda de graÄa do Carlton. Mas, quanto ç Coca-cola,<br />

nÜo perdäo” (CLARICE, 1999, p.63).<br />

17 Grande parte das obras de Nietzsche sÜo aforàsticas, por ex<strong>em</strong>plo: Para alÑm do b<strong>em</strong> e do<br />

mal, Assim falou Zaratustra, A genealogia da moral e A vontade de poder.


42<br />

fragmentÉria, para ele o ensaio apresenta-se como uma forma dinámica<br />

e inquiridora. Posteriormente, Walter Benjamin 18 utilizou-se do modelo<br />

fragmentÉrio para seu projeto das Passagens. Benjamin deixou a obra<br />

inacabada, mas essa falta de acabamento corresponde de forma<br />

metafârica ç prâpria modernidade. Daà a posiÄÜo do teârico al<strong>em</strong>Üo<br />

Jérgen Habermas, para qu<strong>em</strong> a modernidade revela-se como um projeto<br />

inacabado.<br />

A cràtica da estÇtica fragmentÉria opÅe-se ç ideologia dos<br />

totalitarismos e sua verdade absoluta. A palavra al<strong>em</strong>Ü<br />

“Weltanschauung” a “visÜo de mundo” Ç representaÄÜo maior desse<br />

pensamento totalizante, pois aparece como um traÄo da ideologia nazista<br />

<strong>em</strong> busca de uma verdade universal e Önica. Na linguag<strong>em</strong> do Terceiro<br />

Reich, “Weltanschauung” passou a designar a compreensÜo intuitiva de<br />

complexos probl<strong>em</strong>as geopolàticos pelos nazistas, o que os permitiu agir<br />

<strong>em</strong> nome de um ideal maior e <strong>em</strong> conformidade com a sua visÜo de<br />

mundo.<br />

No fragmento, <strong>em</strong> vez de uma reduÄÜo de pluralidades, ocorre a<br />

abertura dialÇtica de conceitos, ou seja, a verdade Ç pensada atravÇs do<br />

transitârio, nÜo do eterno, ela foge da totalizaÄÜo. As artes de vanguarda<br />

sob esta perspectiva contribuàram para a fragmentaÄÜo ou esfacelamento<br />

do corpo <strong>em</strong> pedaÄos, pois, segundo a cràtica literÉria Eliane Moraes:<br />

“Para que as artes modernas levass<strong>em</strong> a termo seu projeto foi preciso,<br />

antes de mais nada, destruir o corpo, decompor sua matÇria, oferecÑ-lo<br />

tambÇm “<strong>em</strong> pedaÄos” (MORAES, 2002, p.60). Um quadro de RenÇ<br />

Magritte representa b<strong>em</strong> esse esfacelamento do corpo na arte moderna:<br />

18 Ainda <strong>em</strong> seus estudos sobre Baudelaire, Benjamin adota a estrutura fragmentÉria <strong>em</strong> alguns<br />

de seus textos sobre o poeta francÑs, cont<strong>em</strong>plando o modelo fragmentÉrio como caracteràstico<br />

da modernidade nas dimensÅes da arte e histâria. A histâria, agora como uma narrativa aberta,<br />

traz consigo a ideia de fragmento, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que exclui uma totalidade de sentidos,<br />

mostrando, dessa forma, o fim da univocidade da palavra e do sujeito.


RenÑ Magritte, L’Åvidence eternelle (1930) 19<br />

43<br />

A forma humana Ç destruàda e tirada do centro, e leva consigo a<br />

desumanizaÄÜo da arte. A tela de Picasso representou o afastamento<br />

inicial da forma tradicional humana, dando lugar, atravÇs de sua tÇcnica<br />

cubista, para o hom<strong>em</strong> fragmentado.<br />

Em 1925, Ortega y Gasset publica um ensaio<br />

sobre a estÇtica moderna como o expressivo<br />

19 Retirado do site.<br />

Acesso <strong>em</strong> 15 mar. 2010.


44<br />

tàtulo de A desumanizaÖÇo da arte. Mais que um<br />

ensaio cràtico, o texto Ç uma espÇcie de manifesto<br />

<strong>em</strong> defesa da busca <strong>em</strong>preendida pelos artistas e<br />

escritores modernistas, no sentido de retirar o<br />

hom<strong>em</strong> do centro da cena universal <strong>em</strong> que<br />

parecia ter sido colocado desde o Renascimento.<br />

Ortega toca frontalmente nos dois pilares que a<br />

estÇtica modernista havia eleito para d<strong>em</strong>olir: o<br />

realismo e o humanismo. (MORAES, 2006, p.60)<br />

A exposiÄÜo Kãrperwelten ou Mundos dos corpos, do cientista<br />

al<strong>em</strong>Üo Gunther von Hagens 20 sâ corrobora a noÄÜo de esfacelamento<br />

dos corpos no cont<strong>em</strong>poráneo. O exagero do gosto quase bizarro por<br />

cadÉveres de humanos e animais serve como ex<strong>em</strong>plo para a experiÑncia<br />

da destruiÄÜo do corpo iniciada pelas artes de vanguarda. Na<br />

cont<strong>em</strong>poraneidade, esse processo se dÉ de forma extr<strong>em</strong>a. Na<br />

exposiÄÜo, pedaÄos ou restos humanos cadavÇricos sÜo amontoados,<br />

formando obras de artes, e expostos <strong>em</strong> museus<br />

20 Kãrperwelten, literalmente “mundos dos corpos”, Ç uma exposiÄÜo itinerante que exibe<br />

corpos humanos ou partes corpâreas preservadas e preparadas com a tÇcnica de plastinaÄÜo<br />

para revelar o interior de estruturas anatämicas. A exposiÄÜo t<strong>em</strong> como criador e promoter o<br />

anatomista al<strong>em</strong>Üo Gunther von Hagens, inventor da tÇcnica na Universidade de Heidelberg.<br />

Gerou muita polÑmica por confrontar o hom<strong>em</strong> com a morte de forma estetizada.


S<strong>em</strong> tÇtulo – CadÜver plastificado na exposiáào Mundos dos corpos 21<br />

45<br />

Pensar o abjeto no ser humano <strong>em</strong> decomposiÄÜo Ç unir a morte ç<br />

palavra, assim como entendia Georges Bataille. NÜo se trata mais<br />

somente de alterar os objetos, como fazia Duchamp, mas alterar o<br />

prâprio ser-humano para adequÉ-lo ç estÇtica da barbÉrie. Eliane Moraes<br />

acrescenta a essa idÇia, ainda a respeito das vanguardas, valendo-se de<br />

Bataille, que “de uma forma d<strong>em</strong>asiado brusca elas colocaram <strong>em</strong> cena<br />

um processo de decomposiÄÜo e destruiÄÜo que nÜo teria sido, para<br />

muitas pessoas, muito menos penoso do que a visÜo de um cadÉver <strong>em</strong><br />

estado de decomposiÄÜo” (MORAES, 2002, p.60). T<strong>em</strong>os na imag<strong>em</strong> do<br />

cadÉver, entÜo, a provaÄÜo mÉxima de reaproximaÄÜo entre espectador e<br />

morte. Depois do trauma sofrido pela humanidade na Segunda Guerra e<br />

21<br />

Retirado do site<br />

. Acesso <strong>em</strong> 13 mar. 2010.


46<br />

do extermànio de milhÅes de judeus, o que havia sido colocado ç<br />

distáncia pela modernidade, a morte, agora volta ao convàvio do hom<strong>em</strong><br />

cont<strong>em</strong>poráneo de forma estilizada, estetizada. 22<br />

Na modernidade, ao contrÉrio da Idade MÇdia, a morte<br />

desaparece da visÜo dos homens. As medidas de assepsia e limpeza<br />

exageradas <strong>em</strong> ruas e hospitais (que culminariam <strong>em</strong> Auschwitz)<br />

escond<strong>em</strong> a morte, tornando-a um mito moderno. Os corpos doentes<br />

ganham seu lugar nos sanatârios afastados da sociedade ou <strong>em</strong> hospitais.<br />

Entretanto, a morte s<strong>em</strong>pre estivera lÉ, <strong>em</strong>bora tivesse sido obliterada.<br />

Pod<strong>em</strong>os, a partir de esse pensamento, fazer uma leitura de um trecho<br />

do romance <strong>em</strong> que o narrador profere sobre Nepomuceno: “Porque nÜo<br />

Çs tu qu<strong>em</strong> olhas a paisag<strong>em</strong>, mas Ç a morte, de toda parte qu<strong>em</strong> te<br />

espreita. E, com ela, a noite, a escuridÜo e o desconhecido se<br />

aproximam” (TREVISAN, 1998, p.310).<br />

O ser singular<br />

De acordo com Trevisan, Alberto Nepomuceno vai ç Europa <strong>em</strong><br />

busca de sua singularidade, de seus fantasmas, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />

foge, t<strong>em</strong>endo ser apenas uma sombra do grande nome da histâria da<br />

mÖsica erudita brasileira, Carlos Gomes 23 : “Ainda que nunca desejasse<br />

ser um novo Carlos Gomes, este pensamento atormentava-te, como uma<br />

humilhaÄÜo com gosto de derrota” (TREVISAN, 1998, p. 318). Carlos<br />

Gomes representou para a mÖsica erudita brasileira o que, por ex<strong>em</strong>plo,<br />

o escritor Jorge Luis Borges significou para a literatura argentina, de<br />

modo que toda uma geraÄÜo que surgiu depois de Borges sentia-se<br />

22 Ora, se para Terry Eagleton a estÇtica surgiu como um discurso do corpo, o que esse tipo de<br />

arte procura Ç justamente devolver-nos a noÄÜo inicial da palavra estÇtica, que, originalmente<br />

do grego, significa αισθητική ou aisthÑsis: percepÖÇo, sensaÖÇo, atravÇs do choque. Voltar a<br />

sentir, depois da anestesia sofrida pelo corpo no peràodo das duas grandes guerras. Susan<br />

Buck-Morss <strong>em</strong> seu texto EstÑtica e anestÑtica mostra a mesma leitura <strong>em</strong> Benjamin, que<br />

preocupado com a “estetizaÄÜo da polàtica”, propÅe desfazer a alienaÄÜo do aparato sensorial<br />

do corpo consequente do fascismo.<br />

23 Antänio Carlos Gomes (1836-1896) foi um dos mais importantes compositores de âpera<br />

brasileiro. Destacou-se pelo estilo romántico, atravÇs do qual obteve carreira de destaque na<br />

Europa. Foi o primeiro compositor brasileiro a ter suas obras apresentadas no Teatro Alla<br />

Scala. è o autor da famosa âpera O Guarani, que o projetou mundialmente como compositor.<br />

O Guarani jÉ representa uma das primeiras manifestaÄÅes artàsticas nacionais <strong>em</strong> que tradiÄÜo<br />

europeia e el<strong>em</strong>entos nacionais sÜo mesclados.


47<br />

oprimida pelo “nome do pai 24 ” do autor de O Aleph 25 . Michel Foucault<br />

<strong>em</strong> seus Ditos e escritos nos descreve algo s<strong>em</strong>elhante <strong>em</strong> relaÄÜo aos<br />

poetas Húlderlin e Schiller:<br />

Húlderlin se afasta da vizinhanÄa de Schiller,<br />

porque, na imediata proximidade, ele sentia que<br />

nÜo era nada para seu herâi e que dele<br />

permaneceria indefinidamente afastado: quando<br />

buscou aproximar-se de si a afeiÄÜo de Schiller,<br />

foi porque ele prâprio queria “aproximar-se do<br />

B<strong>em</strong>” – do que precisamente estÉ fora do<br />

alcance; entÜo, ele parte de Iena para tornar mais<br />

prâximo a si esse “apego” que o liga, mas que<br />

todo elo degrada e toda proximidade recua.<br />

(FOUCAULT, 2006, p. 248)<br />

Alberto Nepomuceno mostra possuir respeito para com o mestre<br />

Carlos Gomes 26 . Segundo as palavras do narrador “Como se nÜo<br />

bastasse, desabou aos teus pÇs um àdolo da tua juventude, o idolatrado<br />

Carlos Gomes” (TREVISAN, 1998, p.247). O que nÜo significa que o<br />

mÖsico cearense desejava viver sob a sombra do compositor de O<br />

Guarani. E assim profere Nepomuceno: “NÜo quero ir para a Europa<br />

com o sonho (ou a obrigaÄÜo) de tornar-me um novo Carlos Gomes.<br />

Livrai-me Deus deste fardo” (Id<strong>em</strong>, p. 266).<br />

A contribuiÄÜo de JoÜo SilvÇrio Trevisan consiste, entre outros<br />

ex<strong>em</strong>plos, assegurar o nome de Nepomuceno na histâria da mÖsica<br />

erudita brasileira, ele que foi, possivelmente, um dos preconizadores do<br />

l<strong>em</strong>a modernista da antropofagia, atravÇs de suas obras de composiÄÜo<br />

de clÉssicos europeus e el<strong>em</strong>entos puramente nacionais.<br />

No dia 4 de agosto de 1895, Alberto Nepomuceno realizou um<br />

concerto histârico, marcando o inàcio de uma campanha que lhe rendeu<br />

24<br />

ReferÑncia ao texto de Michel Foucault traduzido <strong>em</strong> portuguÑs com o tàtulo de O nÇo do<br />

pai. O original <strong>em</strong> francÑs Le nom du pàre sugere uma ambiguidade fonÇtica que pode tanto<br />

significar “O nÜo do pai“ como “O nome do pai“.<br />

25<br />

Somente nos anos 90 Ç que alguns autores puderam ser desvencilhar dessa figura edipiana de<br />

Borges, por ex<strong>em</strong>plo, CÇsar Aira.<br />

26<br />

NÜo Ç de se admirar que Nepomuceno sentisse obnubilado pela presenÄa de Carlos Gomes.<br />

Ainda extraàdo de <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>: “Tobias Barreto pronunciou entÜo um discurso que, se b<strong>em</strong><br />

te l<strong>em</strong>bras, foi enfÉtico: “No desenvolvimento da nossa cultura, quando a âpera brasileira tiver<br />

uma histâria, quaisquer que sejam os progressos que adiante nos aguarde, o nome de Carlos<br />

Gomes serÉ s<strong>em</strong>pre o primeiro l<strong>em</strong>brado” (TREVISAN, 1998, p. 265).


48<br />

muitas cràticas e censuras. Apresentou pela primeira vez, no Instituto<br />

Nacional de MÖsica, uma sÇrie de canÄÅes de sua autoria <strong>em</strong> portuguÑs,<br />

dando inàcio ç luta pela nacionalizaÄÜo da mÖsica erudita brasileira. Ele<br />

se sentia fracassado por nÜo ter feito uma obra revolucionÉria, n<strong>em</strong> ter<br />

tido <strong>em</strong> vida a consagraÄÜo merecida: “Alberto Nepomuceno tinha a<br />

convicÄÜo de que jamais fora n<strong>em</strong> nunca seria um gÑnio” (TREVISAN,<br />

1994, p. 18). Vivia, pois, ç sombra de outros grandes nomes da Çpoca,<br />

como o jÉ citado Carlos Gomes.<br />

O prâprio Nepomuceno desarma sua singularidade, apaga sua<br />

identidade para tornÉ-la nula: “Nepomuceno tornou-se um diluidor de<br />

fârmulas, nÜo o revolucionÉrio que um dia sonhou ser, <strong>em</strong> sua<br />

juventude” (TREVISAN, 1998, p. 42). “EntÜo, o que sobrou do mito<br />

Alberto Nepomuceno? Muito pouco. Quase nada mesmo” (Id<strong>em</strong>, p. 43).<br />

Mas o que pod<strong>em</strong>os entender por uma figura singular? Gilles<br />

Deleuze, <strong>em</strong> seu livro Crática e clánica, traduz a singularidade por<br />

originalidade e diz:<br />

Cada original Ç uma potente Figura solitÉria que<br />

extravasa qualquer forma explicÉvel: lanÄa<br />

flamejantes dardos-traÄos de expressÜo, que<br />

indicam a teimosia de um pensamento s<strong>em</strong><br />

imag<strong>em</strong>, de uma questÜo s<strong>em</strong> resposta, de uma<br />

lâgica extr<strong>em</strong>a e s<strong>em</strong> racionalidade. (DELEUZE,<br />

1997, p. 95-96)<br />

Jean-Luc Nancy acrescenta ç ideia de singularidade <strong>em</strong> seu livro<br />

La creaciÉn del mundo o la mundializaciÉn.:<br />

El singular expone cada vez que se expone, y<br />

todo su sentido estÉ allà. No hay ninguna otra<br />

cosa que esperar de alguno mÉs que su seralguno,<br />

ej<strong>em</strong>plarmente. Nada mÉs, pero nada<br />

menos: cada vez, el acto de exceptuarse, y este<br />

acto, para ser en acto, no es una propiedad que se<br />

conserva sino una existencia que existe y que asà<br />

que ‘exime’, cada vez, cada hic y nunc. ûDe quÇ<br />

cosa estÉ ‘eximido’? De nada. De nada o de la<br />

inexposiciân pura, del ser que seràa intransitivo,<br />

de una masa en sà indistinta.<br />

Entonces, asà se expone una transitividad<br />

singular de ser, y cada uno compromete un<br />

testimonio de existencia. Cada uno no significa el


49<br />

significado del ser, testimonia que el sentido<br />

consiste en ser cada vez, singularmente. O mejor<br />

aÖn: que el sentido estÉ cada vez, singularmente,<br />

en el mundo. Lo que estÉ expuesto, si se quisiera<br />

darle la forma de un enunciado sensato, seràa<br />

algo asà como: “Yo estoy bien fundamentado î<br />

existir”. Pero, en primer lugar, no es cierto que el<br />

testimonio tome si<strong>em</strong>pre y solamente la forma de<br />

una enunciaciân: pues toda cosa da testimonio<br />

tambiÇn, cada vez a su manera, parlante o muda,<br />

es decir, que todo el mundo atestigua. A<br />

continuaciân yo no produzco por allÉ ningÖn<br />

fundamento de mi existencia, ni del gÇnero de la<br />

causa ni del gÇnero de la legitimaciân. Aquá, el<br />

testimonio vale por fundamente. (NANCY, 2003,<br />

p. 119-120)<br />

Se pod<strong>em</strong>os afirmar com Nancy que o sentido “somos nâs”, o<br />

sentido estÉ no mundo, tambÇm Ç possàvel fazermos um diÉlogo atravÇs<br />

do protagonista de <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> <strong>em</strong> seu discurso final com o<br />

pensamento do teârico francÑs:<br />

O centro do mundo e o prâprio eixo do universo<br />

bat<strong>em</strong> exatamente onde sou e cada um de nâs Ç a<br />

manifestaÄÜo viva do mistÇrio e eu sou a mÉscara<br />

visàvel do invisàvel e como tal estou mergulhado<br />

no Grande Enigma e me completo e sou parte de<br />

tudo e assim sinto que tudo Ç de certo modo uma<br />

extensÜo de mim, e isso nÜo Ç apenas consolo.”<br />

(TREVISAN, 1998, p.648)<br />

A proposiÄÜo de JoÜo SilvÇrio Trevisan Ç que nÜo hÉ um sentido<br />

Önico e exclusivo, mas o sentido reside dentro de todas as<br />

singularidades. Ao afirmar que nâs somos o sentido, Nancy implica na<br />

inclusÜo de uma coexistÑncia de singularidades. E esta Ç sua proposiÄÜo;<br />

o que o pensador francÑs chama de ser-singular-plural:<br />

Ser singular plural quiere decir: La esencia del<br />

ser es, y sâlo es, como co-esencia.Pero una coesencia,<br />

o ele ser-con – el ser-con-varios – apunta<br />

a su vez a ala esencia del co-, o incluso, y mÉs<br />

bien, el co-(el cum) mismo en posiciân o a la


50<br />

manera de esencia. Una co-esencialidad, en<br />

efecto, no puede consistir en un conjunto de<br />

esencias donde quedaràa por determinar la<br />

esencia del conjunto como tal: con relaciân a<br />

Çste, las esencias reunidas tendràan que ser<br />

accidentes. La co-esencialidad significa la<br />

participaciân esencial de la esencialidad, la<br />

participaciân a la manera de conjunto, si se<br />

quiere. Lo que aÖn podràa decirse de este modo:<br />

si el ser es ser-con, en ele ser-con es el “con” lo<br />

que da el ser, sin aüadirse. Aquà va de suyo lo<br />

mismo que en un poder colegial: el poder no es<br />

exterior a los mi<strong>em</strong>bros del colegio, ni interior a<br />

cada uno de os mismos, sino que consiste en la<br />

colegialidad como tal.<br />

Entonces, no el ser en primera instancia, luego<br />

una adiciân del con, sino el con en el seno del<br />

ser. A este respecto, resulta absolutamente<br />

necesario invertir por lo menos el orden de la<br />

exposiciân filosâfica, para la que, muy a<br />

menudo, el “con” – y lo otro que va con, se<br />

puede decir asà – si<strong>em</strong>pre viene en el segundo<br />

lugar, al mismo ti<strong>em</strong>po que esta sucesiân es<br />

contradicha por la lâgica profunda en cuestiân.<br />

(NANCY, 2006, p. 46)<br />

A respeito de Alberto Nepomuceno, v<strong>em</strong>os sua singularidade<br />

apenas pelo fato de ele existir, por estar lÉ. As figuras singulares surg<strong>em</strong><br />

no lugar dos grandes nomes da histâria, exatamente assim como<br />

desejaria Walter Benjamin <strong>em</strong> seus estudos sobre a modernidade 27 . è<br />

27 Walter Benjamin propÅe, sob essa âtica dos menores, dos oprimidos, que seja criado um<br />

conceito de histâria que corresponda ao “estado de exceÄÜo” <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>os, de modo que<br />

possamos nos fortalecer contra os fascismos. O estado de exceÄÜo Ç um termo essencialmente<br />

juràdico que significa uma situaÄÜo-limite, <strong>em</strong> que as leis vÉlidas sÜo aquelas impostas pelos<br />

detentores do poder que nele estÜo inseridos. Tal pensamento se ass<strong>em</strong>elha ao de Giorgio<br />

Agamben <strong>em</strong> seu livro A comunidade que v<strong>em</strong> quando ele diz que essa comunidade Ç aquela<br />

que o Estado nÜo pode tolerar. Uma singularidade qualquer que o recuse s<strong>em</strong> constituir uma<br />

câpia espelhada do prâprio Estado <strong>em</strong> uma imag<strong>em</strong> que possa ser reconhecida nesse sist<strong>em</strong>a.<br />

Jean-Luc Nancy nos d<strong>em</strong>onstra o mesmo quando nos pede para repensar a comunidade <strong>em</strong><br />

termos distintos daqueles que, na sua orig<strong>em</strong> cristÜ, religiosa, a tinham qualificado, repensÉ-la<br />

<strong>em</strong> termos do comum e a dificuldade de compreendÑ-lo <strong>em</strong> seu carÉter nÜo dado, nÜo<br />

disponàvel e, nesse sentido, o menos comum do mundo. Mesmo a comunidade inoperante,<br />

como chama Nancy a partir de seus estudos de Bataille, com sua recusa dos Estados-naÄÜo,<br />

partidos, ass<strong>em</strong>bleias, povos companhias ou fraternidades, deixava intocado esse domànio do


51<br />

nesse ànterim que JoÜo SilvÇrio Trevisan insere Alberto Nepomuceno,<br />

<strong>em</strong> busca de seu espaÄo na histâria da mÖsica brasileira. Ele nos leva ç<br />

reflexÜo atravÇs de sua singularidade, nos leva- ç porta do pensamento<br />

atravÇs de caminhos sinuosos.<br />

Pod<strong>em</strong>os relacionar a singularidade e o sacrifàcio ç morte como<br />

sâ ela sendo singular e Önica ao nÜo utilizar artifàcios, particulares ou<br />

universais. Ela prâpria Ç o que filâsofo francÑs Gilles Deleuze entende<br />

por repetiÄÜo, nÜo representa uma generalidade. A definiÄÜo de<br />

repetiÄÜo para Deleuze Ç o contrÉrio daquilo que entend<strong>em</strong>os por<br />

“repetiÄÜo” e daquilo que se compreende ordinariamente por “repetiÄÜo”<br />

sob a concepÄÜo da generalizaÄÜo e generalidade. A repetiÄÜo nÜo estÉ<br />

ligada, para Deleuze, ç reproduÄÜo do mesmo e do s<strong>em</strong>elhante, mas ç<br />

produÄÜo da singularidade e do diferente. Para isso nos val<strong>em</strong>os de<br />

Deleuze a respeito da ideia de singularidade <strong>em</strong> seu livro DiferenÖa e<br />

repetiÖÇo:<br />

Nossa vida moderna Ç tal que, quando nos<br />

encontramos diante das repetiÄÅes mais<br />

mecánicas, mais estereotipadas, fora de nâs e <strong>em</strong><br />

nâs, nÜo cessamos de extrair delas pequenas<br />

diferenÄas (...) a tarefa da vida Ç fazer que<br />

coexistam todas as repetiÄÅes num espaÄo <strong>em</strong> que<br />

se distribui a diferenÄa. (DELEZE, 2006, p.16)<br />

è na diferenÄa que pod<strong>em</strong>os encontrar o singular. Estendendo o<br />

pensamento sobre a repetiÄÜo deleuziana <strong>em</strong> seu livro LÉgica do sentido<br />

t<strong>em</strong>os: “Se a repetiÄÜo existe, ela exprime, ao mesmo t<strong>em</strong>po, uma<br />

singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular, um<br />

notÉvel contra o ordinÉrio, uma instantaneidade contra a variaÄÜo, uma<br />

eternidade contra a permanÑncia (...) a repetiÄÜo Ç a transgressÜo”<br />

(DELEUZE, 2006, p.21). A generalidade pressupÅe uma substituiÄÜo de<br />

termos. Ao contrÉrio, a repetiÄÜo deleuziana representa singularidade,<br />

<strong>em</strong> que impossibilita essa troca de termos. Ela Ç insubstituàvel, assim<br />

como Alberto Nepomuceno.<br />

O posicionamento de JoÜo SilvÇrio Trevisan nos impÅe atravÇs de<br />

suas reflexÅes sobre a singularidade do mÖsico Alberto Nepomuceno<br />

uma virada transgressora s<strong>em</strong>elhante ao que Deleuze propÅe <strong>em</strong> seu<br />

comum e o desejo (e a angÖstia) do ser-comum que os fundamentalismos instrumentalizam<br />

crescent<strong>em</strong>ente.


52<br />

livro LÉgica do sentido. Subverter o platonismo nÜo quer dizer negÉ-lo,<br />

mas sim apontar nele possibilidades que dev<strong>em</strong> ser resgatadas e lidas de<br />

outra forma na modernidade, por ex<strong>em</strong>plo, a noÄÜo de simulacro,<br />

mesmo que esta jÉ tenha sido reivindicada pelos estâicos e, segundo<br />

Foucault:<br />

Subverter, com Deleuze, o platonismo e se<br />

deslocar nele insidiosamente, descer um grau e ir<br />

atÇ esse pequeno gesto – discreto, mas moral –<br />

que exclui o simulacro (...). Perverter PlatÜo Ç<br />

deslocar-se na direÄÜo da maldade dos sofistas,<br />

dos gestos rudes dos cànicos, dos argumentos dos<br />

estâicos, das quimeras esvoaÄantes de Epicuro.<br />

(FOUCAULT, 2008, p.232)<br />

Deve-se, pois, potencializar a noÄÜo de simulacro para poder<br />

resgatÉ-lo. A simulaÄÜo nada mais Ç senÜo o prâprio fantasma; o<br />

simulacro pertence çs profundezas; o fantasma ç superfàcie, efeito do<br />

funcionamento do simulacro. Nesse sentido, a reversÜo do platonismo Ç,<br />

entÜo, na perspectiva de Deleuze, nÜo simplesmente tornar o mundo<br />

sensàvel mais importante que as ideias, mas a aceitaÄÜo do simulacro, ou<br />

seja, Ç fazer com que ele afirme seus direitos entre as câpias. NÜo<br />

somente a diferenÄa, mas tambÇm a repetiÄÜo depende da identidade de<br />

algo ou de uma singularidade na coisa, de uma representaÄÜo num<br />

conceito. O ato de pensar pode ser visto como esse jogo de espelhos<br />

entre o conceito e a pluralidade das suas referÑncias, entre o idÑntico e a<br />

multiplicidade das suas repetiÄÅes. No pensamento deleuziano, a noÄÜo<br />

de simulacro Ç a chave para o entendimento das singularidades.<br />

Com efeito, o simulacro (ou fantasma) nÜo Ç<br />

simplesmente uma câpia de câpia, uma<br />

s<strong>em</strong>elhanÄa infinita mais fraca, um àcone<br />

degradado. O catecismo, tÜo inspirado nos Padres<br />

platänicos, nos familiarizou com a ideia de uma<br />

imag<strong>em</strong> s<strong>em</strong> s<strong>em</strong>elhanÄa: o hom<strong>em</strong> foi feito ç<br />

imag<strong>em</strong> e s<strong>em</strong>elhanÄa de Deus, mas pelo pecado,<br />

perd<strong>em</strong>os a s<strong>em</strong>elhanÄa, guardando a imag<strong>em</strong>... O<br />

simulacro Ç precisamente uma imag<strong>em</strong><br />

d<strong>em</strong>onàaca, destituàda de s<strong>em</strong>elhanÄa; ou, antes,<br />

contrariamente ao àcone, ele colocou a<br />

s<strong>em</strong>elhanÄa no exterior e vive na diferenÄa.<br />

(DELEUZE, 2006, p.185-186)


53<br />

Trevisan propÅe dessa forma uma inversÜo de valores (uma<br />

espÇcie de reversÜo do platonismo deleuziana) acerca do compositor<br />

Alberto Nepomuceno 28 , ele que fora pouco aceito pelos artistas do<br />

movimento modernista no Brasil, <strong>em</strong> especial por MÉrio de Andrade:<br />

“O que sei Ç que MÉrio de Andrade nÜo gostava de mim, que eu cometia<br />

grosseiros erros prosâdicos nas canÄÅes” (TREVISAN, 1998, p.622).<br />

Uma de suas maiores queixas foi o fato da cràtica modernista ter se<br />

ocupado essencialmente com compositor Villa-Lobos e o vangloriado:<br />

“O modernismo se apossou de Villa-Lobos e tornou-o parámetro da<br />

brasilidade <strong>em</strong> mÖsica” (Id<strong>em</strong>, p. 624). O que constatamos Ç uma<br />

abertura de espaÄo para a singularidade de Alberto Nepomuceno, qu<strong>em</strong><br />

ultrapassa o movimento modernista para, <strong>em</strong> seu olhar retroativo, mirar<br />

<strong>em</strong> direÄÜo ao futuro.<br />

O exilado<br />

Toda a trajetâria no exàlio de Alberto Nepomuceno guia-se pela<br />

busca de sentido; nÜo obstante os vÉrios anos vividos na Europa, volta<br />

para sua pÉtria 29 . Retorna, dessa forma, ao lugar de suas origens, mas<br />

que jÉ nÜo podia mais ser chamado de Heimat (como, aliÉs, nunca päde<br />

ser chamado), palavra al<strong>em</strong>Ü que designaria <strong>em</strong> portuguÑs a noÄÜo que<br />

t<strong>em</strong>os de pÉtria, mas que pode significar menos o lugar onde nasc<strong>em</strong>os<br />

do que o lugar onde nos sentimos completos e felizes: “Desde que me<br />

conheÄo acompanha-me essa estranha sensaÄÜo de exàlio. Onde estÉ a<br />

pÉtria-mÜe? Em vÜo busco a minha pÉtria. è o Brasil? Ou seria este paàs<br />

a madrasta?” (TREVISAN, 1998, p. 44). NÜo se trata, contudo, no<br />

exàlio, da questÜo espacial, mas o exàlio Ç muito mais uma experiÑncia<br />

subjetiva do indivàduo <strong>em</strong> relaÄÜo a sua prâpria existÑncia.<br />

28 è preciso comentar que Alberto Nepomuceno nÜo conseguiu chegar com vida ao ano de<br />

1922, de modo que nÜo pode vivenciar a S<strong>em</strong>ana de 22. Contudo, atravÇs de um recurso de<br />

JoÜo SilvÇrio, o mÖsico cearense Ç deslocado para o ano de 1991, onde pode fazer todo o<br />

balanÄo do sÇculo XX, inclusive sobre a cràtica acerca de sua obra.<br />

29 Se fizermos uma alusÜo ç viag<strong>em</strong> de Ulisses, ver<strong>em</strong>os que o mais importante nÜo Ç o fato do<br />

retorno ç orig<strong>em</strong>, mas sim o processo da viag<strong>em</strong> <strong>em</strong> si. Cada intervalo de t<strong>em</strong>po nessa viag<strong>em</strong><br />

apresenta-se com sua diferenÄa, como se ass<strong>em</strong>elhasse a um cÉlculo de limite mat<strong>em</strong>Ético. Na<br />

mat<strong>em</strong>Ética, o conceito de limite Ç usado para descrever o comportamento de uma funÄÜo ç<br />

medida que o seu argumento se aproxima de um determinado valor, assim como o<br />

comportamento de uma sequÑncia de nÖmeros reais, ç medida que o àndice nessa escala cresce<br />

<strong>em</strong> direÄÜo ao infinito.


54<br />

O retorno Ç o retorno do sentido, mas cruzado a cada instante por<br />

um devir louco que nÜo cessa. A ideia de retorno tambÇm passa pelo<br />

pensamento benjaminiano, e Ç inerente ç prâpria modernidade, o que<br />

Friedrich Nietzsche traduziu por eterno retorno do mesmo 30 , ou seja, Ç o<br />

movimento decadente dentro das engrenagens modernas, que<br />

traduzimos pela idolatria do novo. O t<strong>em</strong>a da restauraÄÜo, da restitutio<br />

ou da apokatastasis, surge constant<strong>em</strong>ente <strong>em</strong> sua obra. Benjamin<br />

trabalha com a ideia de vontade de regresso aliada ç sua precariedade, o<br />

que quer dizer que sâ se pode, dentro desta lâgica, ser restaurado o que<br />

foi destruàdo. A restauraÄÜo Ç o reconhecimento da perda, ou seja, se o<br />

movimento da orig<strong>em</strong> se define pela restauraÄÜo, ele Ç incompleto e,<br />

portanto, aberto. è nessa precariedade que se dÉ a busca de sentido.<br />

O retorno de Nepomuceno traduz-se, desse modo, por uma busca<br />

de sentido, que Ç a essÑncia do ser exilado <strong>em</strong> si mesmo 31 . Assim afirma<br />

o narrador a respeito do protagonista:<br />

MoÄo, pobre, nortista, provinciano. E ainda por<br />

cima, mÖsico num paàs s<strong>em</strong> tradiÄÜo. SÜo tantas<br />

as maneiras de ser exilado. S<strong>em</strong>pre que o teu<br />

mundo de dentro nÜo coincide com o grande<br />

mundo de fora. EstÉ criada a condiÄÜo de<br />

estrangeiro e por extensÜo, de exilado. Por b<strong>em</strong><br />

vivida experiÑncia, tu sabes que na capital do<br />

Brasil tropeÄa-se no exàlio a cada passo.<br />

(TREVISAN, 1998, p. 253)<br />

O exàlio Ç uma condiÄÜo do hom<strong>em</strong> moderno que pode ser<br />

traduzida como uma inadequaÄÜo do prâprio hom<strong>em</strong> ao crescimento<br />

desproporcional do mundo, <strong>em</strong> que ele vive. Jean-Luc Nancy revela-nos<br />

ainda a respeito da questÜo do retorno <strong>em</strong> seu livro El olvido de la<br />

filosofia: “O retorno significa, portanto, <strong>em</strong> primeiro lugar, que nada se<br />

havia perdido verdadeiramente e que n<strong>em</strong> a duraÄÜo da crise, n<strong>em</strong> da<br />

abundáncia e a intensidade de suas manifestaÄÅes puderam alterar no<br />

fundo certa idÇia de sentido” (NANCY, 2003, p. 13).<br />

30 O devir nÜo ocorre de um modo exatamente igual, sÜo variaÄÅes de sentidos jÉ vivenciados,<br />

faces de uma mesma realidade. Sentimentos como a alegria e a tristeza que sentimos nÜo serÜo<br />

iguais no dia seguinte, mas esses mesmos sentimentos voltam a ser experimentados, s<strong>em</strong>pre<br />

com um diferencial. Nietzsche nos dÉ o Eterno Retorno como uma saàda, que consiste <strong>em</strong><br />

buscar a criaÄÜo na destruiÄÜo.<br />

31 Jean-Luc Nancy <strong>em</strong> seu texto La existencia exilada nos propÅe a ideia de que o exàlio Ç<br />

inerente ç prâpria existÑncia, <strong>em</strong> que ser exilado e existÑncia se confund<strong>em</strong>.


55<br />

O narrador afirma sobre Nepomuceno <strong>em</strong> uma passag<strong>em</strong>: “farejas um<br />

sentido que Ç contrÉrio dele mesmo: trata-se da falta de rumo, endÑmica<br />

na tua vida” (TREVISAN, 1998, p. 239). Essa busca frenÇtica por uma<br />

pÉtria condiz com a figura do hom<strong>em</strong> moderno que, livre das amarras<br />

feudais, desenvolve atravÇs de sua liberdade um despejar ontolâgico <strong>em</strong><br />

sua subjetividade 32 .<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que a modernidade avanÄa <strong>em</strong> sua marcha,<br />

deixa no sujeito a marca da subjetividade. Os eventos a que associamos<br />

essa tomada da subjetividade foram a Reforma, o Iluminismo e a<br />

RevoluÄÜo Francesa. A Reforma separou o intermÇdio da Igreja entre<br />

hom<strong>em</strong> e Deus, deixando-o livre <strong>em</strong> sua individualidade. Em seguida o<br />

Iluminismo ou Esclarecimento consolidou definitivamente o<br />

individualismo do hom<strong>em</strong> atravÇs de sua subjetividade. O Iluminismo Ç<br />

a grande mola propulsora da modernidade, que ainda pod<strong>em</strong>os resumir<br />

atravÇs da liberdade, progresso e razÜo (ou se preferirmos,<br />

acrescentando o l<strong>em</strong>a da RevoluÄÜo Francesa: liberdade, igualdade e<br />

fraternidade). NÜo obstante o fato de que as luzes objetivass<strong>em</strong> a<br />

destruiÄÜo dos mitos da Antiguidade, acabaram por construir um novo: o<br />

mito do progresso e da razÜo.<br />

A crise do pensamento desencadeada apâs as grandes guerras<br />

coincide tambÇm com a crise do sujeito. O reinado estruturalista sâ<br />

corrobora com a ideia de “morte do sujeito”. NÜo pod<strong>em</strong>os falar de crise<br />

de subjetivaÄÜo na modernidade, mas, ao contrÉrio, os processos de<br />

subjetivaÄÜo na modernidade sÜo crescentes, contudo encontram-se<br />

refÇns dos mecanismos da prâpria modernidade. A subjetividade, por<br />

sua vez, Ç a relaÄÜo consigo que se estabelece atravÇs de uma sÇrie de<br />

procedimentos que sÜo propostos e prescritos aos indivàduos, <strong>em</strong> todas<br />

as civilizaÄÅes, para fixar sua identidade, mantÑ-la ou transformÉ-la <strong>em</strong><br />

funÄÜo de certo nÖmero de fins.<br />

Alberto Nepomuceno representa o hom<strong>em</strong> que jÉ nÜo aposta mais<br />

no sentido do mundo e da ciÑncia para seguir com sua existÑncia, mas se<br />

lanÄa ç angustiosa promessa sartreana de liberdade, pois Ç este o hom<strong>em</strong><br />

do sÇculo XX, aquele que sofre da exacerbaÄÜo de subjetivismo,<br />

processo iniciado desde os primârdios da civilizaÄÜo moderna e<br />

dilacerado apâs as experiÑncias das duas grandes guerras mundiais. O<br />

hom<strong>em</strong> que se encontra sâ no mundo e livre depois da morte de Deus<br />

decretada pelo filâsofo al<strong>em</strong>Üo Friedrich Nietzsche.<br />

32 Mas aà tambÇm reside o paradoxo, que Ç exatamente o que o oprime: a descoberta de sua<br />

liberdade.


56<br />

A morte de Deus anunciada por Nietzsche pressupÅe todo um<br />

esvaziamento de sentido que era projetado <strong>em</strong> sua figura onipotente,<br />

onipresente, onisciente. A partir de entÜo, coube ao hom<strong>em</strong>, ou melhor,<br />

ao super-hom<strong>em</strong> essa tarefa quase impossàvel de refazer o mundo e darlhe<br />

sentido. O que Nietzsche proclama Ç menos a exaltaÄÜo do hom<strong>em</strong><br />

do que a prâpria superaÄÜo do humanismo. Essa interpretaÄÜo antihumanista<br />

atrelada ç questÜo da morte de Deus serÉ depois recuperada<br />

por pensadores como Michel Foucault, George Bataille, Maurice<br />

Blanchot e Jean-Luc Nancy 33 .<br />

No entanto, o ponto cabal <strong>em</strong> nossa Çpoca reside justamente no<br />

fato da suspensÜo do sentido 34 , o que tambÇm pod<strong>em</strong>os entender como<br />

niilismo.<br />

Todo esse percurso na modernidade permeado pela ideia de<br />

decadÑncia, melancolia, fragmento, ausÑncia de sentido e niilismo, levanos<br />

para a segunda parte deste trabalho. Depois das experiÑncias das<br />

duas grandes guerras, foi possàvel reformular todo o legado no ocidente<br />

da modernidade. As teorias da pâs-modernidade, de uma forma ou de<br />

outra, procuraram fazer uma leitura cràtica do que restou apâs<br />

Auschwitz. Se foram somente cinzas, ver<strong>em</strong>os onde seus restos foram<br />

espalhados. Se os relatos puderam seguir adiante 35 , ver<strong>em</strong>os de que<br />

forma a literatura os päde seguir e dialogar com eles.<br />

33 Jean-Luc Nancy mostra como, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> Blanchot o nome de Deus nÜo estÉ<br />

simplesmente ausente. Defende um ateàsmo que estÉ mais ligado a questÜo do ab-sens, ou seja,<br />

ausÑncia de sentido, que outra coisa.<br />

34 Freud entende essa busca de sentido do hom<strong>em</strong> como uma patologia, um estado<br />

caracteràstico diagnosticado por ele com sendo uma neurose.<br />

35 è nesse silenciar de vozes sufocadas que se dÉ a crise da produÄÜo narrativa, pois para<br />

Walter Benjamin a sua fonte primeira era oriunda da oralidade. As histârias anteriormente<br />

contadas oralmente perd<strong>em</strong> com essa incapacidade do hom<strong>em</strong> pâs-guerra de relatar o ocorrido.


CAPÇTULO 2: O ATROPELO DA MODERNIDADE<br />

Via Crucis da modernidade<br />

57<br />

T<strong>em</strong>poralmente, <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> situa-se na segunda metade do<br />

sÇculo XIX e, atravÇs de um recurso do autor, avanÄa <strong>em</strong> direÄÜo ao<br />

final do sÇculo XX. Como pod<strong>em</strong>os constatar, o personag<strong>em</strong> Alberto<br />

Nepomuceno, atravÇs desse deslocamento t<strong>em</strong>poral, päde vivenciar esse<br />

peràodo, no qual o pessimismo nietzschiano se faz presente; se Deus estÉ<br />

morto, dÉ-se, entÜo, o despertar para a crise da Modernidade. Ele<br />

tambÇm experimentou o resultado de duas grandes guerras, as quais<br />

puseram <strong>em</strong> dÖvida todas as verdades absolutas vigentes na<br />

modernidade. Sobreviveu permeado pelo “s<strong>em</strong>-sentir” 36 .<br />

A probl<strong>em</strong>Ética envolvendo a modernidade Ç proposta a partir das<br />

indagaÄÅes e reflexÅes de Alberto Nepomuceno, que na sua condiÄÜo de<br />

artista tece comentÉrios acerca da modernidade e do progresso:<br />

“O Rio civiliza-se!” Com que orgulho este l<strong>em</strong>a<br />

t<strong>em</strong> sido repetido desde a Çpoca das grandes<br />

reformas urbanas (...). Afinal, agora t<strong>em</strong>os o<br />

36 No ensaio intitulado EstÑtica e anestÑtica: o ‘Ensaio sobre a obra de arte’ de Walter<br />

Benjamin reconsiderado, Susan Buck-Morss (1996) traÄa uma anÉlise acerca da estetizaÄÜo da<br />

polàtica e sua consequente espetacularizaÄÜo, iniciada com os futuristas no inàcio do sÇculo, e<br />

conduzida, a posteriori, pelo regime fascista. A ocorrÑncia de tal estetizaÄÜo resulta <strong>em</strong> um<br />

processo de autoalienaÄÜo da humanidade, no qual esta passa a ser “capaz de experimentar<br />

[erleben] a sua prâpria destruiÄÜo enquanto prazer [Genuss] estÇtico da mais alta ord<strong>em</strong>. Assim<br />

tambÇm com a estetizaÄÜo da polàtica, que t<strong>em</strong> sido levada a cabo pelo fascismo.” (Ibid<strong>em</strong>, p.<br />

12). Como resposta ç alienaÄÜo sensorial que resulta desse processo, Benjamin, segundo Buck-<br />

Morss, confere ç arte a difàcil tarefa de “desfazer a alienaÄÜo do aparato sensorial do corpo,<br />

restaurar o poder instintual dos sentidos corporais humanos <strong>em</strong> nome da auto-preservaÄÜo da<br />

humanidade” (Ibid<strong>em</strong>, p. 12). NecessÉrio advertir, entretanto, que no decurso da era moderna,<br />

se deu uma inversÜo substancial no sentido do termo “estÇtica”, uma vez que ele passa a se<br />

referir antes çs formas culturais que çs experiÑncias sensàveis, ao imaginÉrio mais que ao<br />

<strong>em</strong>pàrico; o contrÉrio do que seu Çtimo precisa: Aistitikos Ç a palavra grega antiga para aquilo<br />

que Ç “perceptivo atravÇs do tato” (perceptive os feelings). Aistisis Ç a experiÑncia sensorial da<br />

percepÄÜo. O campo original da estÇtica nÜo Ç a arte, mas a realidade – a natureza corpârea<br />

material” (Ibid<strong>em</strong>., p. 13). A compreensÜo desse processo de transformaÄÜo torna-se, entÜo,<br />

imprescindàvel, afinal, segundo argumentaÄÜo benjaminiana fundamentada <strong>em</strong> Freud, a<br />

experiÑncia do campo de guerra tornou-se norma na vida moderna, impossibilitando que a<br />

consciÑncia proteja o organismo contra estàmulos excessivos recebidos do exterior e a sua<br />

consequente impressÜo na m<strong>em</strong>âria. Desse modo, s<strong>em</strong> a dimensÜo da m<strong>em</strong>âria, responder aos<br />

estàmulos externos s<strong>em</strong> pensar, estando aà implàcito um tambÇm “s<strong>em</strong> sentir”, torna-se uma<br />

necessidade de sobrevivÑncia.


58<br />

progresso com o cin<strong>em</strong>atâgrafo, o fonâgrafo, o<br />

automâvel, o aeroplano, a eletricidade, alÇm do<br />

telefone, claro. Mas o senhor jÉ viu, na avenida<br />

Central, esses homens-sanduàche, vestidos com<br />

cartazes para fazer reclame de tudo? AtÇ de<br />

charuto... è a degradaÄÜo do ser humano,<br />

transformado <strong>em</strong> reclame ambulante. E t<strong>em</strong><br />

tambÇm o sensacionalismo doentio das revistas<br />

ilustradas que invadiram o nosso paàs. A isso<br />

tudo se chama civilizaÄÜo moderna.<br />

(TREVISAN, 1998, p.23)<br />

O mÖsico cearense associa o domànio do aparato tecnolâgico ç<br />

barbÉrie ao dizer que “Descobrimos os pecados da mÉquina: a barbÉrie<br />

de nosso t<strong>em</strong>po caminha junto com a sofisticaÄÜo tecnolâgica”<br />

(TREVISAN, 1998, p.602). Uma imag<strong>em</strong> que melhor representaria a<br />

ideia de progresso no pensamento benjaminiano Ç o quadro do pintor<br />

Paul Klee, Angelus Novus.<br />

Paul Klee, Angelus Novus (1920) 37<br />

Nele, Benjamin prevÑ o curso da histâria que acabaria na<br />

Segunda Guerra Mundial.<br />

37 Retirado do site<br />

. Acesso <strong>em</strong> 15 mar. 2010.


59<br />

HÉ um quadro de Paul Klee que se chama<br />

Angelus Novus. Representa um anjo que parece<br />

querer afastar-se de algo que ele encara<br />

fixamente. Seus olhos estÜo escancarados, sua<br />

boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da<br />

histâria deve ter esse aspecto. Seu rosto estÉ<br />

dirigido para o passado. Onde nâs v<strong>em</strong>os uma<br />

cadeia de acontecimento, ele vÑ uma catÉstrofe<br />

Önica, que acumula incansavelmente ruàna sobre<br />

ruàna e as dispersa a nossos pÇs. Ele gostaria de<br />

deter-se para acordar os mortos e juntar os<br />

fragmentos. Mas uma t<strong>em</strong>pestade sopra do<br />

paraàso e prende-se <strong>em</strong> suas asas com tanta forÄa<br />

que ele nÜo pode mais fechÉ-las. Essa t<strong>em</strong>pestade<br />

o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual<br />

ele vira as costas, enquanto o amontoado de<br />

ruànas cresce atÇ o cÇu. Essa t<strong>em</strong>pestade Ç o que<br />

chamamos de progresso. (BENJAMIN, 1996,<br />

p.226)<br />

Do que nos diz Benjamin pod<strong>em</strong>os l<strong>em</strong>brar, por ex<strong>em</strong>plo, do que<br />

restou da Al<strong>em</strong>anha depois da Segunda Guerra Mundial. VÉrias de suas<br />

cidades foram quase completamente aniquiladas, sobrando somente<br />

ruànas. Entre elas, a cidade de Dresden, uma das mais destruàdas entre<br />

todas.<br />

No romance de Trevisan, hÉ um diÉlogo entre anjo de Klee 38 e o<br />

anjo apocalàptico <strong>em</strong> Dresden revisitado por Nepomuceno atravÇs das<br />

fotografias tiradas por um soldado anänimo:<br />

Mal se distingu<strong>em</strong> as ruas. Por todo lado,<br />

esqueletos cinzentos dos antigos prÇdios, uma<br />

sucessÜo de altas paredes perfuradas pelos<br />

buracos das janelas. Restos do que tinham sido<br />

uma das cidades mais belas do mundo. Em<br />

primeiro plano, no alto da prefeitura, a estÉtua de<br />

38 A alegoria do Angelus Novus apresenta o materialismo histârico e a teologia, as duas noÄÅes<br />

fundamentais que compÅ<strong>em</strong> seu pensamento <strong>em</strong> seus conceitos da histâria. O anjo de Klee<br />

encarna todo o legado dos frÉgeis, dos pequenos, dos que ficam fora da histâria, <strong>em</strong> nome dos<br />

grandes nomes. O anjo Ç feio e distorcido, mas Ç na ausÑncia de beleza <strong>em</strong> que reside sua<br />

potÑncia de resistÑncia. Ele vÑ a ruàna e a catÉstrofe (a modernidade), mas nÜo coaduna com<br />

ela, e ao mesmo t<strong>em</strong>po procura forÄas para nÜo deixar se levar pelo mal do progresso.


60<br />

um anjo cont<strong>em</strong>pla meio curvada, o panorama<br />

desolador. Podia ser o implacÉvel anjo do<br />

Apocalipse saudando a destruiÄÜo. Mas nÜo. Esse<br />

Ç um anjo humilhado. Sua saudaÄÜo Ç uma vÑnia<br />

de humildade, porque ele tambÇm estÉ <strong>em</strong> ruànas,<br />

meio destroÄado. Seu vago olhar parece<br />

d<strong>em</strong>onstrar piedade pelo que vÑ. (TREVISAN,<br />

1998, p.610)<br />

JoÜo SilvÇrio Trevisan faz uma leitura do anjo de Klee <strong>em</strong> seu<br />

romance. O anjo <strong>em</strong> <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> confirma o que para o Angelus<br />

Novus lido por Benjamin era apenas a previsÜo da catÉstrofe que<br />

seguiria a Segunda Grande Guerra, Ç o retrato da modernidade<br />

esfacelada, <strong>em</strong> ruànas.<br />

Mais uma vez revisitando Charles Baudelaire, para qu<strong>em</strong> o artista<br />

Ç o verdadeiro herâi da modernidade e Önico ser capaz de captar os<br />

paradoxos da sociedade moderna, encontramos Alberto Nepomuceno<br />

cÇtico, quase niilista; o artista elabora vÉrias cràticas mordazes contra os<br />

valores vigentes da modernidade, principalmente contra a ideia de<br />

progresso, que para ele simboliza tambÇm o aperfeiÄoamento das<br />

tÇcnicas artàsticas, o que acarretaria consigo o fim da arte atravÇs da<br />

banalizaÄÜo da mesma. Segundo o mÖsico, o progresso trouxe inÖmeras<br />

vantagens, mas, sobretudo, desvantagens, principalmente <strong>em</strong> relaÄÜo çs<br />

artes, as quais se tornaram mercadoria <strong>em</strong> um mundo cada vez mais<br />

consumista, o que as levaria para o caminho da extinÄÜo 39 .<br />

NÜo obstante, t<strong>em</strong>os aqui um paradoxo no que diz respeito ç<br />

condiÄÜo pâs-moderna, pois esta torna legàtima a questÜo das culturas de<br />

massa, da comercializaÄÜo da arte, da globalizaÄÜo, <strong>em</strong> um mundo<br />

repleto de novos signos verbais e nÜo-verbais, repletos de simulacros<br />

tentadores que transformam o real <strong>em</strong> virtual. Com a morte da arte<br />

39 Cabe aqui uma pequena introduÄÜo ç questÜo da pâs-modernidade. Assumimos neste<br />

trabalho o posicionamento antimoderno, ou seja, pensar a modernidade atravÇs da pâsmodernidade<br />

de forma que aquela deslegitima esta, pois Ç esta a postura cràtica verificada no<br />

romance de JoÜo SilvÇrio Trevisan. NÜo entrar<strong>em</strong>os <strong>em</strong> detalhes a respeito das aporias<br />

concernentes ç palavra pâs-modernidade. Voltando aos primârdios etimolâgicos t<strong>em</strong>os que, de<br />

modo geral, as cràticas apontam para as raàzes da maioria dos conceitos sobre o hom<strong>em</strong> e seus<br />

aspectos, constituàdas no sÇculo XV e consolidadas no sÇculo XVIII. A modernidade surgida<br />

nesse peràodo Ç criticada <strong>em</strong> seus pilares fundamentais, como a crenÄa na verdade, alcanÄÉvel<br />

pela razÜo, e na histâria <strong>em</strong> seu carÉter linear <strong>em</strong> direÄÜo ao progresso. Para substituir esses<br />

dogmas, sÜo propostos novos valores, menos hermÇticos e categorizantes. Estes serviriam de<br />

base para o peràodo que se tenta anunciar no pensamento, na ciÑncia e na tecnologia. è o que<br />

chamar<strong>em</strong>os aqui de pâs-modernidade.


61<br />

t<strong>em</strong>os, por conclusÜo, a morte do artista, pois nÜo existe arte s<strong>em</strong> artista,<br />

e vice-versa.<br />

O carÉter cÇtico do personag<strong>em</strong> faz referÑncia ao teârico francÑs<br />

Jean-FranÄois Lyotard ao dizer que “a pâs-modernidade representa o<br />

fim das metanarrativas, <strong>em</strong> que todas as formas de conhecimento<br />

estavam <strong>em</strong> questionamento” (LYOTARD, 2005, p.13). Para ele, todo o<br />

saber absoluto foi colocado <strong>em</strong> discussÜo, haja vista o impacto das<br />

ciÑncias nos conceitos de razÜo, sujeito e verdade. Em seu livro O pÉsmoderno,<br />

o teârico francÑs surge como um dos primeiros a pensar<strong>em</strong><br />

sobre a chamada “condiÄÜo pâs-moderna 40 ”, caracterizando-a pelo fim<br />

das metanarrativas 41 . Os grandes esqu<strong>em</strong>as explicativos teriam caàdo <strong>em</strong><br />

descrÇdito e nÜo haveria mais certezas, posto que ciÑncia e razÜo jÉ nÜo<br />

poderiam ser consideradas como a fonte da verdade.<br />

O fim das grandes ideologias Ç suscitado atravÇs de uma<br />

entrevista com Alberto Nepomuceno. O jornalista o indaga a respeito de<br />

sua condiÄÜo de artista e seu posicionamento a respeito da crise<br />

ideolâgica no ano de 1991: “Fala-se muito <strong>em</strong> fim das ideologias, quer<br />

dizer, os grandes referenciais polàticos se acabaram” (TREVISAN,<br />

1998, p.600).<br />

Faz<strong>em</strong>os, assim, uma leitura do mÖsico cearense como<br />

antimoderna. Se pensarmos <strong>em</strong> sua caracterizaÄÜo de artista moderno, jÉ<br />

definida anteriormente, perceb<strong>em</strong>os a condiÄÜo paradoxal <strong>em</strong> que se<br />

encontra o personag<strong>em</strong>. TambÇm Baudelaire apresentou esse duplo fado<br />

<strong>em</strong> sua condiÄÜo de artista e cràtico da modernidade; um posicionamento<br />

moderno e pâs-moderno simultaneamente. RaÖl Antelo aponta <strong>em</strong> seu<br />

livro AusÜncias essa caracteràstica no escritor de Les fleurs du mal<br />

atravÇs de uma leitura de Antoine Compagnon. Para Antelo, “Baudelaire<br />

Ç antimoderno porque Ç um moderno arrastado pela corrente histârica,<br />

permanecendo incapaz, contudo, de lamentar o passado” (ANTELO,<br />

2009, p.32). Antelo segue seu discurso, desta vez citando Compagnon:<br />

40 Termo cunhado pelo teârico David Harvey <strong>em</strong> seu livro CondiÖÇo pÉs-moderna, <strong>em</strong> que ele<br />

aborda t<strong>em</strong>as como cultura, arte, arquitetura, urbanismo, cin<strong>em</strong>a, t<strong>em</strong>po e espaÄo. Harvey<br />

busca uma reflexÜo acerca da pâs-modernidade e seus reflexos na sociedade cont<strong>em</strong>poránea.<br />

41 Um ex<strong>em</strong>plo de metanarrativa Ç a filosofia iluminista, que acreditava que a razÜo e seus<br />

produtos, o progresso cientàfico e a tecnologia levariam o hom<strong>em</strong> ç felicidade, <strong>em</strong>ancipando a<br />

humanidade dos dogmas, mitos e superstiÄÅes dos povos primitivos. O marxismo Ç outro<br />

ex<strong>em</strong>plo de metanarrativa. Para os marxistas, a histâria era impulsionada pelo confronto entre<br />

duas classes contraditârias, a burguesia e o proletariado, que resultaria, ao fim da revoluÄÜo do<br />

proletariado, numa sociedade s<strong>em</strong> classes, de plena liberdade e igualdade: o comunismo.


62<br />

O anti-moderno – diz Compagnon – Ç o moderno<br />

<strong>em</strong> liberdade para questionar a prâpria<br />

modernidade e essa disponibilidade cràtica se<br />

exprime atravÇs de quatro figuras ou argumentos:<br />

o argumento polático (o anti-moderno Ç cràtico da<br />

RevoluÄÜo), o filosâfico (o anti-moderno cÇtico<br />

diante do Iluminismo), o Ñtico (o anti-moderno Ç<br />

culturalmente pessimista e adere ao Mal), daà que<br />

o Öltimo argumento seja propriamente teolâgico<br />

(o anti-moderno nÜo cessa de se reportar ao<br />

pecado original). (ANTELO, 2009, p.32)<br />

è atravÇs do personag<strong>em</strong> Alberto Nepomuceno (cuja<br />

caracterizaÄÜo Ç puramente moderna) e de sua afirmaÄÜo “NÜo, nÜo<br />

quero ser uma personag<strong>em</strong> de Thomas Mann” (TREVISAN, 1998,<br />

p.47), que t<strong>em</strong>os a negaÄÜo da modernidade, uma das pr<strong>em</strong>issas pâsmodernas.<br />

Fazendo uma rÉpida anÉlise dos personagens mannianos Ç<br />

possàvel entender alguns dos conflitos do artista moderno, sejam eles<br />

com a prâpria modernidade, com Eros, ou com a morte. Esses t<strong>em</strong>as sÜo<br />

bastante recorrentes na obra de Thomas Mann, como na novela A morte<br />

<strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>. Ao negar as caracteràsticas dos personagens do escritor<br />

al<strong>em</strong>Üo, t<strong>em</strong>os a negaÄÜo de seus conflitos (nÜo dev<strong>em</strong>os esquecer que<br />

Thomas Mann Ç um dos Öltimos grandes expoentes da literatura<br />

moderna) e da modernidade.<br />

Na era moderna, Nietzsche profetizou atravÇs de seu Zaratustra o<br />

surgimento de um novo hom<strong>em</strong>, o Super-Hom<strong>em</strong>, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong><br />

que anuncia a morte de Deus. De acordo com Gianni Vattimo “(...) se<br />

Deus estÉ morto, qual Ç o sentido da vida?” (VATTIMO, 1987, p.4). DÉse,<br />

entÜo, o despertar para a crise da modernidade. Segundo Jérgen<br />

Habermas acerca de Adorno e Horkheimer “pretend<strong>em</strong> d<strong>em</strong>onstrar<br />

enfim que a arte, fundida com o divertimento, teria sido paralisada <strong>em</strong><br />

sua forÄa inovadora e esvaziada de todo conteÖdo cràtico e utâpico”<br />

(HABERMAS, 2002, p.160). è fÉcil, sob essa âtica, entender o<br />

pessimismo e o ceticismo do personag<strong>em</strong>. A mola propulsora que<br />

explode <strong>em</strong> criatividade na modernidade nÜo Ç o otimismo progressista,<br />

mas sim o pessimismo antimoderno do artista.<br />

O ex-cântrico<br />

Os restos ou sobras da Segunda Grande Guerra sÜo recolhidos<br />

pela arte revelando um mundo fragmentado por excelÑncia. Dos


63<br />

fragmentos surg<strong>em</strong> os seres menores anteriormente silenciados que<br />

compÅ<strong>em</strong> o espaÄo pâs-moderno: as minorias. Trata-se de uma manobra<br />

do chamado “capitalismo tardio” 42 . A entrada no mercado de consumo<br />

dos anteriormente silenciados, como homossexuais, negros,<br />

estrangeiros, nordestinos, revela-se tambÇm como a entrada de uma<br />

parcela de consumidores que, por possuàr<strong>em</strong> necessidades comuns,<br />

foram captados pelo sist<strong>em</strong>a. Se a modernidade se desenvolve a partir<br />

das luzes que se irradiam oriundas de um centro, v<strong>em</strong>os que na pâsmodernidade<br />

todas as referÑncias centrais sÜo postas <strong>em</strong><br />

questionamento 43 .<br />

Jacques Derrida, <strong>em</strong> vÉrias de suas obras como L’Ñcriture et la<br />

diffÑrence e De la grammatologie (ambos de 1967) jÉ aponta para o<br />

carÉter totalizante e centralizador do estruturalismo. Derrida continua a<br />

sua cràtica ao estruturalismo observando que, no pensamento ocidental e<br />

especialmente no pensamento francÑs, o discurso dominante continuava<br />

a ser o estruturalismo, permanecendo preso <strong>em</strong> torno da metafàsica,<br />

caracterizada pelo logocentrismo. A figura tutelar da estrutura<br />

centralizada e o triunfo do conceito de centro ajudaram a fazer desta<br />

ideia um lugar comum, porque jamais se aceita que uma estrutura nÜo<br />

possua um centro. No pensamento de Derrida, o centro representa uma<br />

contradiÄÜo esgotada: para concebermos um centro que constitua um<br />

ponto estÉvel de uma estrutura, o centro que seja ao mesmo t<strong>em</strong>po parte<br />

dessa estrutura e esteja fora dela. Qualquer que seja a forma que esse<br />

centro tomou na cultura ocidental, o resultado foi s<strong>em</strong>pre o de uma<br />

profunda contradiÄÜo. A virada derridiana consiste na mudanÄa de foco<br />

do fonocentrismo de Ferdinand de Saussure para a estrutura do texto, da<br />

escritura, fugindo, dessa forma, de uma lâgica fundada <strong>em</strong> um centro.<br />

42 ExpressÜo utilizada desde a dÇcada de 1940 pelos teâricos da Escola de Frankfurt teve um<br />

sentido diferenciado na teoria de Jérgen Habermas e ainda mais no pensamento de Jameson.<br />

Trata-se, portanto, tambÇm de uma discussÜo acerca do conceito de capitalismo. Para Jameson,<br />

por outro lado, a ruptura Ç algo que diz respeito a mudanÄas no prâprio modo de produÄÜo<br />

capitalista, e a pâs-modernidade representa um novo momento histârico, mas um momento <strong>em</strong><br />

que a pâs-modernidade se mostra como a lâgica cultural de um novo estÉgio de dominaÄÜo do<br />

capitalismo, o capitalismo tardio. è nesse sentido que hÉ, para Jameson, uma centralidade<br />

teârica da categoria modo de produÄÜo. Para ele, o capitalismo tardio Ç um novo momento no<br />

modo de produÄÜo capitalista, e sâ a partir dele pod<strong>em</strong>os compreender o que se chama de pâsmodernidade.<br />

43 è importante mencionar o livro Susan Buck-Morss, Hegel and Haiti, <strong>em</strong> que a autora<br />

defende a ideia de revoluÄÜo a partir das margens. Para a autora, <strong>em</strong> termos de revoluÄÜo<br />

popular, a revoluÄÜo no Haiti apresenta maior significaÄÜo para a modernidade que a<br />

RevoluÄÜo Francesa.


64<br />

O padrÜo hom<strong>em</strong>, branco e heterossexual desloca-se agora para<br />

fora do centro, onde se encontram, para usar o termo da teârica<br />

canadense Linda Hutcheon, os chamados “ex-cÑntricos”. A propâsito<br />

dos “ex-cÑntricos”, analisa Hutcheon <strong>em</strong> seu livro PoÑtica do pÉsmodernismo:<br />

O centro jÉ nÜo Ç totalmente vÉlido. E, a partir da<br />

perspectiva descentralizada, o “marginal” e aquilo que vou<br />

chamar (capàtulo 4) de “ex-cÑntrico” (seja <strong>em</strong> termo de<br />

classe, raÄa, gÑnero sexual ou etnia) assum<strong>em</strong> uma nova<br />

importáncia ç luz do conhecimento implàcito de que na<br />

verdade nossa cultura nÜo Ç o monâlito homogÑneo (isto Ç,<br />

masculina, classe mÇdia, heterossexual, branca e<br />

ocidental) que pod<strong>em</strong>os ter presumido. (HUTCHEON,<br />

1991, p.29)<br />

Diante do que afirma Hutcheon, Ç possàvel dizÑ-lo a respeito dos<br />

trÑs protagonistas (o mÖsico cearense Alberto Nepomuceno, a escrava<br />

<strong>Ana</strong> e Julia Mann), haja vista o fato de todos viver<strong>em</strong> na condiÄÜo de<br />

estrangeiro, encaixam-se, desse modo, perfeitamente no grupo dos “excÑntricos”,<br />

pois o estrangeiro faz parte do grupo a que se pode chamar<br />

de minorias marginalizadas ou excluàdas. è preciso tambÇm mencionar<br />

Alberto Nepomuceno e sua condiÄÜo de mÖsico nordestino <strong>em</strong> um paàs<br />

cujo eixo cultural encontra-se predominant<strong>em</strong>ente entre as cidades do<br />

Rio de Janeiro e SÜo Paulo, e que, por uma questÜo histârica, polàtica e<br />

econämica, exclui a participaÄÜo da cultura do nordeste brasileiro no<br />

contexto nacional.<br />

Ad<strong>em</strong>ais, t<strong>em</strong>os tambÇm a representaÄÜo das mulheres (atravÇs<br />

das personagens <strong>Ana</strong> e Julia Mann), dos negros (atravÇs da personag<strong>em</strong><br />

<strong>Ana</strong>). Segundo Linda Hutcheon, a partir dos anos sessenta iniciou-se o<br />

registro na histâria dos anteriormente silenciados. O que se apresenta<br />

nesse contexto Ç uma das reivindicaÄÅes de Walter Benjamin, para qu<strong>em</strong><br />

a histâria deveria inserir todos os que a constro<strong>em</strong>, incluindo, dessa<br />

maneira, os desconsiderados, os insignificantes.<br />

Pod<strong>em</strong>os nos apoiar sobre a leitura do sociâlogo George Simmel<br />

e de suas consideraÄÅes sobre o estrangeiro. Ele se vale do vocÉbulo<br />

al<strong>em</strong>Üo Fr<strong>em</strong>de 44 , cujo sentido Ç mais abrangente do que o comumente<br />

usado Auslónder. O adjetivo fr<strong>em</strong>d reÖne as significaÄÅes de<br />

“estrangeiro”, de outro paàs e de “estranho”, bizarro, esquisito. Outra<br />

denominaÄÜo dada por Simmel para o estrangeiro Ç “potentieller<br />

44 O livro de Albert Camus L’Ñtranger Ç traduzido <strong>em</strong> al<strong>em</strong>Üo por Der Fr<strong>em</strong>de.


65<br />

Wanderer”, viajante potencial. Ou seja, alguÇm que por suas constantes<br />

andanÄas e mudanÄas jamais poderia se encaixar no centro. O<br />

estrangeiro estÉ s<strong>em</strong>pre çs margens. Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que o<br />

estrangeiro parece pertencer ao centro, Ç deslocado para fora dele.<br />

Simmel fala do olhar privilegiado do estrangeiro, pela sua<br />

posiÄÜo no grupo, caracterizado pela mobilidade e ausÑncia de laÄos que<br />

<strong>em</strong> geral o constitu<strong>em</strong>. O estrangeiro Ç o que vÑ do centro e ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po fora dele, pois sua mobilidade do centro çs margens assim o<br />

permite. Valendo-nos de Zygmunt Bauman e suas consideraÄÅes sobre a<br />

pâs-modernidade <strong>em</strong> seu livro O mal-estar da pÉs-modernidade,<br />

poderàamos incluir mais dois personagens no cenÉrio dos ex-cÑntricos: o<br />

turista e o vagabundo. S<strong>em</strong>elhante ao estrangeiro, o turista e o<br />

vagabundo possu<strong>em</strong>, atravÇs de sua mobilidade nas cidades, o olhar de<br />

dentro e de fora. Com as palavras de Bauman, os “turistas e vagabundos<br />

sÜo a metÉfora da vida cont<strong>em</strong>poránea” (BAUMAN, 1998, p.119). O<br />

eixo dessas pseudo-identidades Ç justamente nÜo criar uma identidade,<br />

mas sair dela, para fora do centro <strong>em</strong> que estÜo inseridos.<br />

Foi nos anos 70 e 80 que houve uma aceleraÄÜo dos registros dos<br />

ex-cÑntricos, que desafiaram as formas s<strong>em</strong>pre dominantes (hom<strong>em</strong>,<br />

branco, heterossexual e europeu). Zygmunt Bauman chama-os de<br />

“estranhos” e diz:<br />

Todas as sociedades produz<strong>em</strong> estranhos. Mas<br />

cada espÇcie de sociedade produz sua prâpria<br />

espÇcie de estranhos e os produz de sua prâpria<br />

maneira, inimitÉvel. Se os estranhos sÜo as<br />

pessoas que nÜo se encaixam no mapa cognitivo,<br />

moral ou estÇtico do mundo – num desses mapas,<br />

<strong>em</strong> dois ou <strong>em</strong> todos trÑs; se eles, portanto, por<br />

sua simples presenÄa, deixam turvo o que deve<br />

ser transparente, confuso o que deve ser uma<br />

coerente receita para a aÄÜo, e imped<strong>em</strong> a<br />

satisfaÄÜo de ser totalmente satisfatâria; se eles<br />

polu<strong>em</strong> a alegria com a angÖstia, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po que faz<strong>em</strong> atraente o fruto proibido; se,<br />

<strong>em</strong> outras palavras, eles obscurec<strong>em</strong> e tornam<br />

tÑnues as linhas de fronteira que dev<strong>em</strong> ser<br />

claramente vistas; se, tendo feito tudo isso geram<br />

a incerteza, que por sua vez dÉ orig<strong>em</strong> ao malestar<br />

como de se sentir perdido – entÜo cada<br />

sociedade produz esses estranhos. Ao mesmo


66<br />

t<strong>em</strong>po que traÄam suas fronteiras e desenha seus<br />

mapas cognitivos, estÇticos e morais, ela nÜo<br />

pode senÜo gerar pessoas que encobr<strong>em</strong> limites<br />

julgados fundamentais para a sua vida ordeira e<br />

significativa, sendo assim acusadas de causar a<br />

experiÑncia do mal-estar como a mais dolorosa e<br />

menos tolerÉvel. (BAUMAN, 1998, p.27)<br />

O pâs-moderno Ç, pois, segundo o que diz Bauman, um espaÄo<br />

para o convàvio das diferenÄas. As lutas sociais na sociedade<br />

cont<strong>em</strong>poránea nÜo possu<strong>em</strong> mais sua base nas classes sociais, mas sim<br />

<strong>em</strong> grupos identificados por sexo, raÄa, opÄÜo sexual, educaÄÜo, funÄÜo<br />

social e outros fatores. è tipicamente pâs-moderna a participaÄÜo da<br />

periferia na contestaÄÜo do centro. NÜo hÉ apenas uma verdade, mas<br />

verdades. De acordo com Terry Eagleton, essa foi uma conquista<br />

positiva do pâs-modernismo:<br />

Profanando a modernidade<br />

O pâs-modernismo nÜo Ç, por certo, apenas uma espÇcie de<br />

equàvoco teârico. Ele Ç, entre outras coisas, a ideologia de<br />

uma Çpoca histârica especàfica do Ocidente, <strong>em</strong> que grupos<br />

vituperados e humilhados estÜo comeÄando a recuperar um<br />

pouco de sua histâria e individualidade. (EAGLETON,<br />

1996, p.118)<br />

O conceito de profanaÄÜo do pensador italiano Giorgio Agamben<br />

<strong>em</strong> seu livro ProfanaÖòes 45 Ç extraàdo do direito romano e indica o ato<br />

por meio do qual o que havia sido separado na esfera da religiÜo e do<br />

sagrado voltava a ser restituàdo ao livre uso do hom<strong>em</strong>. Agamben<br />

propÅe uma estratÇgia diferente que consiste <strong>em</strong> recorrer a esqu<strong>em</strong>as<br />

fornecidos pela tradiÄÜo religiosa a fim de pensar novas categorias para<br />

o polàtico. Novas categorias nÜo mais dependentes, por ex<strong>em</strong>plo, da<br />

noÄÜo de transgressÜo da norma ou da posiÄÜo de novas normas, mas<br />

simplesmente da anulaÄÜo do potencial jÉ existente da norma. Um ato de<br />

anulaÄÜo que Agamben chama de desativaÄÜo da norma. Assim, ele<br />

encontra atravÇs da parâdia uma forma de desativar a norma,<br />

45 O livro aborda uma pequena coletánea de ensaios de t<strong>em</strong>as aparent<strong>em</strong>ente diferentes sobre<br />

t<strong>em</strong>as “menores” como: a parâdia, a pornografia, a etimologia da palavra latina genius, entre<br />

outros. Entretanto, nÜo dev<strong>em</strong>os nos equivocar a seu respeito. A minoridade revela-se <strong>em</strong> seu<br />

aspecto maior se analisarmos cada t<strong>em</strong>a unindo-os sob uma mesma lâgica t<strong>em</strong>Ética que Ç a<br />

questÜo da profanaÄÜo.


67<br />

desconstruà-la. Agamben sugere, ao modo de Benjamin, que dev<strong>em</strong>os<br />

abandonar de vez as soluÄÅes apresentadas na modernidade, abandonar<br />

as apostas na normatividade impostas pela prâpria modernidade. Mas<br />

qual Ç a relaÄÜo da parâdia e do cánone (norma) na lâgica do pensador<br />

italiano?<br />

De qualquer modo, ficam marcadas as duas<br />

caracteràsticas canänicas da parâdia: a<br />

dependÑncia de um modelo preexistente que de<br />

sÇrio Ç transformado <strong>em</strong> cämico, e a conservaÄÜo<br />

de el<strong>em</strong>entos formais <strong>em</strong> que sÜo inseridos<br />

conteÖdos novos e incongruentes. (AGAMBEN,<br />

2007, p.38)<br />

Usar a ideia de que profanar Ç restituir as coisas (outrora<br />

separadas na dimensÜo do sagrado) ao livre uso dos homens, trata-se de<br />

pensar uma aÄÜo que instaure esse livre uso atravÇs da parâdia ou da<br />

ironizaÄÜo do que antes estava separado e sacralizado. Para tal feito,<br />

Agamben vale-se da figura do artista.<br />

Se tomarmos o personag<strong>em</strong> Alberto Nepomuceno <strong>em</strong> sua<br />

condiÄÜo de artista, pod<strong>em</strong>os analisÉ-lo segundo Giorgio Agamben<br />

(2007, p.41): “è por uma espÇcie de probidade que o artista, sentindo<br />

que nÜo pode levar seu egoàsmo a ponto de querer representar o<br />

inenarrÉvel, assume a parâdia como a forma prâpria do mistÇrio”.<br />

T<strong>em</strong>os <strong>em</strong> <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> um ex<strong>em</strong>plo de profanaÄÜo, de acordo com<br />

as palavras de Alberto Nepomuceno: “HÉ muito meu senso de humor<br />

andava encostado... Mas como chegar atÇ 22 s<strong>em</strong> senso de humor? Veja<br />

a prâpria independÑncia deste paàs Ç uma piada. Ela resultou do quÑ? Da<br />

irritaÄÜo de D. Pedro I, por causa de uma diarrÇia durante sua viag<strong>em</strong><br />

para SÜo Paulo. As famosas margens do Ipiranga foram, antes de tudo, a<br />

latrina do imperador” (TREVISAN, 1998, p.29). A leitura que faz<strong>em</strong>os<br />

como profana pod<strong>em</strong>os associar ç condiÄÜo pâs-moderna. Segundo o<br />

teârico Gilles Lipovetsky: “Humor pâs-moderno, new wave” que nÜo<br />

deve ser confundido com o humor negro: o tom Ç moroso, vagamente<br />

provocador, beira o vulgar, exibe ostensivamente a <strong>em</strong>ancipaÄÜo da<br />

linguag<strong>em</strong>, da pessoa, muitas vezes do sexo (LIPOVETSKY, 2005, p.<br />

117). Nepomuceno nÜo transgride, mas desarma, profana, dessa forma,<br />

os mecanismos do cánone moderno, da histâria.<br />

O pâs-modernismo apresenta resistÑncia; ele relÑ, dessa forma, a<br />

prâpria tradiÄÜo moderna, assim como JoÜo SilvÇrio Trevisan o faz com


68<br />

a tradiÄÜo manniana. A apropriaÄÜo do cánone e sua subversÜo parâdica<br />

sÜo, pois, uma marca da condiÄÜo pâs-moderna, e assim nos fala Sandra<br />

Contreras: “las literaturas secundarias y marginales como la argentina y<br />

la polaca, desplazadas des las grandes corrientes europeas, pueden hacer<br />

un “uso especàfico de la herencia cultural”, un “manejo prâprio”<br />

irreverente, de las grandes tradiciones” (CONTRERAS, 2008, p.27).<br />

O pensamento <strong>em</strong> torno da modernidade, sob a âtica da pâsmodernidade<br />

<strong>em</strong> volta do discurso iränico Ç uma caracteràstica que nos<br />

aponta a teârica argentina Sandra Contreras. Ao analisar o olhar pâsmoderno<br />

<strong>em</strong> Umberto Eco, profere: “La respuesta posmoderna a lo<br />

moderno consiste <strong>em</strong> reconocer que, puesto que el pasado no puede<br />

destruirse – su destrucciân conduce al silencio –, lo que hay que hacer<br />

es volver a visitarlo; con ironia, sin ingenuidad” (CONTRERAS, 2008,<br />

p.13). è isto que realiza JoÜo SilvÇrio <strong>em</strong> seu romance: apropria-se do<br />

cánone al<strong>em</strong>Üo, Thomas Mann, com o objetivo de lanÄar um olhar sobre<br />

a modernidade, mas de forma iränica, leve, contrapondo-se ç seriedade<br />

da modernidade. A tal assertiva se junta Linda Hutcheon:<br />

A parâdia intertextual dos clÉssicos canänicos<br />

americanos e europeus Ç uma das formas de se<br />

apropriar da cultura dominante branca, masculina,<br />

classe-mÇdia, heterossexual e eurocÑntrica, e<br />

reformulÉ-la – com mudanÄas significativas. Ela<br />

nÜo rejeita essa cultura, pois nÜo pode fazÑ-lo. O<br />

pâs-modernismo indica sua dependÑncia com seu<br />

uso do cánone, mas revela sua rebeliÜo com seu<br />

iränico abuso desse mesmo cánone. (Hutcheon,<br />

1991, p.170)<br />

JoÜo SilvÇrio Trevisan consegue atravÇs de seu intertexto<br />

r<strong>em</strong>exer com o cánone da literatura al<strong>em</strong>Ü, ao fazer outra leitura dos<br />

t<strong>em</strong>as mannianos <strong>em</strong> seu romance <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>. NÜo Ç de se admirar<br />

que sua obra tenha recebido cràticas negativas na Al<strong>em</strong>anha. Thomas<br />

Mann Ç o tot<strong>em</strong> sagrado profanado pela escritura de <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>.<br />

Da fundaáào ä pãs-fundaáào<br />

<strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> nos propÅe nÜo somente uma revisÜo do que o<br />

modernismo no Brasil suscitou, mas tambÇm impÅe a questÜo que<br />

Silviano Santiago evoca <strong>em</strong> seu livro Uma literatura nos trÉpicos com o


69<br />

texto O entre-lugar do discurso latino-americano. Na dÇcada de 1970,<br />

ao invÇs de recorrer aos pensadores sociais ou teâricos da literatura,<br />

Santiago almejava compreender o lugar ocupado pelo discurso literÉrio<br />

latino-americano <strong>em</strong> relaÄÜo ao europeu, nÜo mais a partir da<br />

perspectiva de que o europeu seria a fonte e a influÑncia dos textos<br />

latino-americanos, mas abordando o modo como o discurso literÉrio<br />

latino-americano reescrevia o jÉ-escrito.<br />

A AmÇrica Latina institui seu lugar no mapa da<br />

civilizaÄÜo ocidental graÄas ao movimento de<br />

desvio da norma, ativo e destruidor, que<br />

transfigura os el<strong>em</strong>entos feitos e imutÉveis que os<br />

europeus exportavam para o Novo Mundo. Em<br />

virtude do fato de que a AmÇrica Latina nÜo pode<br />

mais fechar suas portas ç invasÜo estrangeira, nÜo<br />

pode tampouco reencontrar sua condiÄÜo de<br />

“paraàso”, de isolamento e de inocÑncia, constatase<br />

com cinismo que, s<strong>em</strong> essa contribuiÄÜo, seu<br />

produto seria mera câpia – silÑncio –, uma câpia<br />

muitas vezes fora da moda, por causa desse<br />

retrocesso imperceptàvel no t<strong>em</strong>po, de que fala<br />

LÇvi-Strauss. Sua geografia deve ser uma<br />

geografia de assimilaÄÜo e de agressividade, de<br />

aprendizag<strong>em</strong> e de reaÄÜo, de falsa obediÑncia.<br />

(SANTIAGO, 1976, p.18)<br />

Em vez de deglutiÄÜo, canibalismo ou assimilaÄÜo, impäs-se,<br />

desde pelo menos os anos 1970, a metÉfora vegetal da diss<strong>em</strong>inaÄÜo da<br />

s<strong>em</strong>ente original, da perda do centro absoluto, como o rizoma que se<br />

espalha por todos os cantos. Aquele que dÉ de comer <strong>em</strong> vez de devorar<br />

o outro. Aquele que torna possàvel comer junto, para melhor viver. è o<br />

que diria o pensador Jacques Derrida, de qu<strong>em</strong> Silviano Santiago tomou<br />

como teârico aparato para a elaboraÄÜo de seu conceito de entre-lugar.<br />

Essas sÜo algumas das preocupaÄÅes cràticas que permeiam o<br />

romance de Trevisan. Alberto Nepomuceno, <strong>em</strong> sua condiÄÜo de<br />

estrangeiro na Europa, lanÄa um olhar sobre a tradiÄÜo e os movimentos<br />

de dependÑncia entre a cultura latino-americana e a europeia. Depois da<br />

afirmaÄÜo de um repârter que o Brasil ainda Ç uma colänia da Europa,<br />

Nepomuceno responde enÇrgico que:


70<br />

NÜo somos a Europa, a cultura europÇia nos Ç<br />

muito Ötil mas nÜo pod<strong>em</strong>os nos esgotar dela.<br />

Somos uma outra coisa 46 . T<strong>em</strong>os a tarefa de<br />

descobrir nossos el<strong>em</strong>entos prâprios. è verdade<br />

que, <strong>em</strong> mÖsica, o probl<strong>em</strong>a Ç achar o<br />

denominador comum entre a sofisticada<br />

harmonizaÄÜo europÇia e os modos musicais<br />

tàpicos do Brasil. (TREVISAN, 1998, p.579)<br />

Depois, ele mesmo acrescenta ç sua ideia de carÉter ambàguo da<br />

cultura nacional: “Para um paàs ambàguo, nada melhor do que uma<br />

mÖsica feita com ambiguidade” (TREVISAN, 1998, p.606).<br />

Se resgatarmos o texto de Octavio Paz Literatura de fundaÖÇo,<br />

pod<strong>em</strong>os associÉ-lo ç imag<strong>em</strong> de uma AmÇrica Latina envolta sob o<br />

manto da modernidade. A literatura de fundaÄÜo pensa o modernismo<br />

como uma literatura de formaÄÜo, isto Ç, a imposiÄÜo de um limite ç<br />

modernidade. O objetivo da literatura de fundaÄÜo Ç a criaÄÜo de uma<br />

autonomia, chama-se naÄÜo, o dentro e fora, “tupi or not tupi”,<br />

pressupÅe a existÑncia de classes e revela-se ontolâgica ao levantar<br />

questionamentos como: o que Ç nacional ou o que somos nâs, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> FormaÖÇo da Literatura Brasileira, de Antonio Candido.<br />

Flora Séssekind acresce ao t<strong>em</strong>a ao proferir que a literatura de fundaÄÜo<br />

Ç o “Recurso para anunciar uma “grandeza americana” por vir: esta Ç<br />

uma das funÄÅes bÉsicas da “cena de profÇtica de fundaÄÜo” na literatura<br />

produzida durante o peràodo colonial” (S†SSEKIND, 1994, p. 75).<br />

A necessidade de uma literatura de fundaÄÜo Ç retomada pelos<br />

modernistas brasileiros, principalmente atravÇs da obra de MÉrio de<br />

Andrade, Macunaáma. Ao contrÉrio de uma literatura de fundaÄÜo<br />

modernista, que buscava devorar outra cultura, mesclando-a a sua, a<br />

literatura pâs-fundacional Ç uma repetiÄÜo, de modo que a mesma Ç<br />

potencializada. Em detrimento da falsificaÄÜo entra um simulacro que<br />

nÜo pertence n<strong>em</strong> a um n<strong>em</strong> a outro lugar, permanece no entre-lugar, na<br />

AmÇrica Latina, que representa esse entre-lugar. Um olhar cràtico sobre<br />

a visÜo do exâtico na cultura brasileira, esse Ç um dos objetivos de JoÜo<br />

SilvÇrio Trevisan <strong>em</strong> seu romance <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>.<br />

46 Essa outra coisa de que nos fala Nepomuceno corresponde ao conceito de entre-lugar de<br />

Santiago, para qu<strong>em</strong> a cultura latino-americana apresenta-se de forma ambàgua. E isso acaba<br />

por resvalar no que Derrida explica por diffÑrance.


71<br />

Estamos copiando ou simplesmente sendo<br />

influenciados? Sim, nâs t<strong>em</strong>os que partir de um<br />

nÖcleo, enquanto naÄÜo. Mas qu<strong>em</strong> Ç que nos<br />

define? O primeiro mundo vive nos dando aula de<br />

como Ç ser brasileiro. Minha mÖsica nÜo Ç aceita<br />

senÜo enquanto tiver caracteràsticas “nacionais”.<br />

Fora disso, nÜo lhe dÜo importáncia. Por que o<br />

primeiro mundo t<strong>em</strong> que definir o que Ç nacional<br />

para nâs? (TREVISAN, 1998, p.606)<br />

Se pensarmos nossa cultura como o “outro” ou “exâtico” dentro<br />

dessa lâgica da periferia que vai ao centro, pod<strong>em</strong>os pensar o Brasil nÜo<br />

como uma exceÄÜo <strong>em</strong> relaÄÜo ç regra europeia no que tange ç nossa<br />

produÄÜo cultural, mas como algo <strong>em</strong> movimento que busca entrar <strong>em</strong><br />

um todo da divisÜo internacional da produÄÜo, inclusive a cultural. O<br />

romance nos mostra como nossa singularidade se insere nesse conjunto.<br />

O exâtico representa, pois, essa tomada de lugar que nos pertence.<br />

NÜo bastando as vÉrias caracteràsticas antimodernas encontradas<br />

no romance de JoÜo SilvÇrio Trevisan, pod<strong>em</strong>os citar ainda a cràtica çs<br />

utopias artàsticas. A cràtica çs vanguardas Ç quase uma pr<strong>em</strong>issa<br />

obrigatâria para os preceitos antimodernos de cràtica ç modernidade.<br />

Alberto Nepomuceno associa o fim da modernidade ç decadÑncia das<br />

vanguardas 47 , mostrando que estas acabaram por cair no ponto de que<br />

tanto criticavam:<br />

Talvez se trate mesmo do fim da modernidade... A<br />

vanguarda fez uma extraordinÉria revoluÄÜo que<br />

mudou a face da arte. Mas, por mais importante<br />

que ela possa ter sido para cada um de nâs, Ç<br />

preciso reconhecer que ela estÉ exaurida. Parece<br />

que <strong>em</strong> arte jÉ se inventou tudo que podia. Fiquei<br />

trÑs dias deprimido depois que vi a Gioconda<br />

bigoduda de Marcel Duchamp exposta numa<br />

bienal. Quer dizer, a vanguarda que nasceu para<br />

destruir os museus 48 , acabou indo refugiar-se nos<br />

47 Apesar do “fracasso” das vanguardas citado por Alberto Nepomuceno, nÜo pod<strong>em</strong>os deixar<br />

de ressaltar que, por um momento, a arte de vanguarda teve seu valor transgressor assegurado.<br />

48 Interessante citar uma anÉlise comparativa de Giorgio Agamben <strong>em</strong> relaÄÜo ao museu: “O<br />

museu ocupa exatamente o espaÄo e a funÄÜo <strong>em</strong> outro t<strong>em</strong>po reservado ao T<strong>em</strong>plo como lugar<br />

de sacrifàcio. Aos fiÇis no t<strong>em</strong>plo – ou aos peregrinos que percorriam a terra de T<strong>em</strong>plo <strong>em</strong><br />

T<strong>em</strong>plo, de santuÉrio <strong>em</strong> santuÉrio – correspond<strong>em</strong> hoje aos turistas, que viajam s<strong>em</strong> trÇgua<br />

num mundo estranhado <strong>em</strong> museu (AGAMBEN, 2007, p. 73). Nepomuceno utiliza-se <strong>em</strong> suas


72<br />

museus. Ela, que combatia a arte oficial, tornou-se<br />

a nova arte oficial. (TREVISAN, 1998, p.601)<br />

A prâpria ideia de vanguarda jÉ surge <strong>em</strong> um momento <strong>em</strong> que<br />

ela existe como um sinänimo de modernidade e decadÑncia. Ou seja,<br />

falar sobre a ideia de decadÑncia das vanguardas parece-nos ser<br />

redundante. Nepomuceno aponta uma possàvel soluÄÜo para a falta de<br />

sentido <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>os, esta consiste simplesmente <strong>em</strong> aceitar<br />

abandonar os manuais de estÇtica e voltar ao caos da vida, pois que para<br />

ele a funÄÜo primeira da arte Ç “iluminar o horror” (TREVISAN, 1998,<br />

p.603).<br />

Romance pãs-histãrico<br />

A ligaÄÜo entre literatura e histâria r<strong>em</strong>onta ç Antiguidade, haja<br />

vista a orig<strong>em</strong> comum de ambas: a epopeia. NÜo obstante o fato de A<br />

Odisseia nÜo poder ser tomada como um documento histârico, nÜo<br />

pod<strong>em</strong>os descartar a hipâtese que a histâria sirva de fundo para o<br />

desenvolvimento da obra de Homero. Mas foi com o avanÄo da<br />

sociedade moderna que a histâria se separou da literatura atravÇs dos<br />

processos de definiÄÜo das ciÑncias epist<strong>em</strong>olâgicas. Esses processos de<br />

cisÜo sÜo analisados por Michel Foucault <strong>em</strong> seu livro Arqueologia do<br />

saber, publicado <strong>em</strong> 1969. Nele, Foucault combate a ideia tradicional de<br />

histâria e a substitui pela “arqueologia”. Com esse termo descarta todo o<br />

legado da histâria sucessiva e as tradiÄÅes. Para ele a necessidade <strong>em</strong><br />

fatos sucessivos do historiador tradicional estÉ associada a um mal a que<br />

chama “agorafobia t<strong>em</strong>poral”. Aproxima-se, desse modo, ao mÇtodo de<br />

anÉlise de Walter Benjamin e sua cràtica aos mÇtodos de estudo da<br />

histâria. Foucault descarta a m<strong>em</strong>âria da histâria baseada <strong>em</strong><br />

monumentos e propÅe uma escavaÄÜo desconstrucionista, no modelo do<br />

arqueâlogo, dos documentos. O que precisa ficar claro Ç que a histâria,<br />

segundo Foucault, nÜo obedece ç ord<strong>em</strong> progressiva de acontecimentos<br />

contànuos. O que verdadeiramente prevalece nela sÜo as rupturas, as<br />

relaÄÅes de forÄa. Pouco importando os grandes nomes e monumentos.<br />

De acordo com Georg LukÉcs, a RevoluÄÜo Francesa<br />

apresentou a histâria <strong>em</strong> seu papel ininterrupto de mudanÄas e<br />

cràticas do museu, que de certa forma, recebe sua sacralizaÄÜo der acordo com o discurso de<br />

Agamben, se pensarmos nele como um t<strong>em</strong>plo sagrado. Nepomuceno mexe nessa forma no<br />

sagrado.


73<br />

modificador da vida do indivàduo. O romance burguÑs surgiu nesse<br />

contexto, representando para a modernidade o que a epopeia<br />

representava para a Idade Antiga 49 . A orig<strong>em</strong> do romance histârico v<strong>em</strong><br />

diretamente do romance social realista do sÇculo XVIII, porÇm, fincado<br />

na histâria. O nome de Sir Walter Scott (1771-1832) desponta de<br />

imediato no cenÉrio do romance histârico; foi ele o grande difusor desse<br />

gÑnero para o mundo. O romance scottiano prima pelo trato com<br />

personagens histâricos vivificados. Seu heroi, contudo, nÜo Ç oriundo da<br />

corte, dos grandes nomes da histâria, mas de nomes simples, mostrando<br />

jÉ o inàcio da crise da sociedade da corte.<br />

NÜo obstante o alto grau de verossimilhanÄa entre relato histârico e<br />

literatura, assim como o uso de documentos que comprov<strong>em</strong> os fatos<br />

apresentados, permanec<strong>em</strong>os ainda no campo da literatura. O autor<br />

sente-se livre para alterar os fatos por ele investigados e descritos. O<br />

romance histârico, nÜo obstante sua aproximaÄÜo com os fatos da<br />

histâria, mantÇm-se fiel aos traÄos literÉrios, de forma que o historiador<br />

necessita averiguar atravÇs de fontes seguras a veracidade dos fatos<br />

narrados. Nesse tipo de narraÄÜo o t<strong>em</strong>po de narrar do historiador e<br />

romancista se equival<strong>em</strong>, mostrando a histâria como uma sucessÜo de<br />

fatos que se desenvolv<strong>em</strong> normalmente <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po – espaÄo.<br />

Walter Benjamin surge com sua cràtica a esse modelo da<br />

histâria. Para ele nÜo havia somente uma histâria maior e oficial, mas<br />

vÉrias histârias menores que se contrapÅ<strong>em</strong> ç “Histâria”. Benjamin<br />

proclama uma avaliaÄÜo da histâria nÜo <strong>em</strong> seu carÉter cronolâgico, mas<br />

<strong>em</strong> seu carÉter de intensidade. Dele resgatamos tambÇm a palavra al<strong>em</strong>Ü<br />

Ursprung (Orig<strong>em</strong>). O Ursprung benjaminiano Ç a saàda encontrada<br />

para fugir do esqu<strong>em</strong>a tradicional da histâria linear. O Ursprung Ç o<br />

salto (Sprung) para fora da sucessÜo cronolâgica, e Ç exatamente nesse<br />

ponto que reside o carÉter antimoderno de Benjamin, no concernente ç<br />

histâria, jÉ que ele vai de encontro ç lâgica de t<strong>em</strong>po sucessivo da<br />

modernidade. Jeanne Marie Gagnebin, <strong>em</strong> seu livro HistÉria e narraÖÇo<br />

<strong>em</strong> Walter Benjamin, pode nos ajudar a entender melhor a noÄÜo de<br />

Ursprung de Benjamin <strong>em</strong> relaÄÜo ç histâria.<br />

49 S<strong>em</strong>, contudo, cumprir com a funÄÜo da epopeia.<br />

O Ursprung nÜo Ç simples restauraÄÜo do<br />

idÑntico esquecido, mas igualmente, e de maneira<br />

inseparÉvel, <strong>em</strong>ergÑncia do diferente. Esta<br />

estrutura paradoxal Ç a do instante decisivo, do


74<br />

Kairos. A histâria nÜo Ç aqui simplesmente o<br />

lugar doloroso do declànio ou da Queda que o<br />

desejo da restauraÄÜo queria abolir: tampouco Ç<br />

ela o espaÄo neutro e homogÑneo de uma<br />

acumulaÄÜo contànua e progressiva <strong>em</strong> vista da<br />

salvaÄÜo. O Ursprung nÜo preexiste ç histâria,<br />

numa at<strong>em</strong>poralidade paradisàaca, mas, pelo seu<br />

surgimento, inscreve no e pelo histârico a<br />

recordaÄÜo e a promessa de um t<strong>em</strong>po redimido.<br />

(GAGNEBIN, 1999, p.18-19)<br />

No romance <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, os pulos t<strong>em</strong>porais de Alberto<br />

Nepomuceno acenam para o seu deslocamento do sÇculo XIX atÇ o ano<br />

de 1991, de modo que ele possa fazer sua cràtica do sÇculo XX. O<br />

passado perdido Ç, assim, reencontrado, Ç relido e modificado para ser<br />

transformado com o presente.<br />

è a partir de uma reavaliaÄÜo da compreensÜo do t<strong>em</strong>po, da<br />

literatura e da histâria que surge uma nova proposta de ficÄÜo histârica<br />

no final do sÇculo XX. Destarte, analisamos as caracteràsticas do<br />

romance histârico cont<strong>em</strong>poráneo, fazendo uma alusÜo ao tradicional<br />

romance histârico. Linda Hutcheon analisa, <strong>em</strong> sua obra PoÑtica do pÉsmodernismo,<br />

questÅes pertinentes ç histâria e ç literatura,<br />

caracterizando-as dentro do seu conceito de metaficÄÜo historiogrÉfica:<br />

“Na ficÄÜo pâs-moderna, o literÉrio e o historiogrÉfico sÜo s<strong>em</strong>pre<br />

reunidos” (HUTCHEON, 1991, p.136).<br />

A metaficÄÜo historiogrÉfica, nÜo obstante sua s<strong>em</strong>elhanÄa com<br />

o romance histârico tradicional, repensa os fatos do passado, mas de<br />

forma paroxàstica, e subverte-os. è nesse momento que o intertexto e<br />

seu uso parâdico se inser<strong>em</strong> na narrativa com o objetivo de gerar uma<br />

reflexÜo a respeito dos fatos relatados. Disso surg<strong>em</strong> as noÄÅes de<br />

contestaÄÜo da originalidade e da autoria, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que os<br />

grandes nomes sÜo questionados. Do uso abusivo do intertexto e sua<br />

multiplicidade surg<strong>em</strong> cràticas a respeito do sentido Önico e dos sujeitos<br />

individuais, dando lugar aos jÉ citados excluàdos ou ex-cÑntricos.<br />

Em <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> t<strong>em</strong>os a existÑncia de personagens que<br />

realmente existiram (Alberto Nepomuceno, Julia Mann, Thomas Mann,<br />

a escrava <strong>Ana</strong>) e que desenvolv<strong>em</strong> um discurso que mistura ficÄÜo e<br />

fatos histâricos, alguns deles relacionados, por ex<strong>em</strong>plo, ç histâria do<br />

Brasil, fazendo, atravÇs do seu discurso, uma desmistificaÄÜo iränica<br />

dos grandes nomes da Histâria.


75<br />

Todavia, Ç atravÇs da intertextualidade que as noÄÅes de autoria<br />

e originalidade sÜo contestadas. De acordo com uma entrevista<br />

concedida por JoÜo SilvÇrio Trevisan, o escritor revela ter pesquisado<br />

<strong>em</strong> vÉrias bibliotecas textos sobre a histâria da famàlia Mann (arquivo da<br />

famàlia Mann <strong>em</strong> Zurique), <strong>em</strong> especial sobre Julia Mann (BRUNN,<br />

1997, p.125). VÉrios detalhes esboÄados no romance acerca, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, da famàlia de Julia e sua casa <strong>em</strong> Paraty correspond<strong>em</strong> ç<br />

realidade. Detalhes minuciosos surg<strong>em</strong> como fruto dessa pesquisa junto<br />

a fatos histâricos que realmente aconteceram, como a libertaÄÜo dos<br />

escravos <strong>em</strong> 1888. Nas notas finais do autor, Trevisan alega ser<strong>em</strong> os<br />

personagens fictàcios, mas fruto de vÉrias pesquisas atravÇs de uma<br />

bolsa que fora a ele concedida para a elaboraÄÜo do romance. A<br />

dimensÜo histârica no romance vai alÇm de fatos biogrÉficos capturados<br />

pelo autor. A histâria oficial tambÇm surge no romance e dela se<br />

apropria Trevisan. O que nos sugere o autor Ç uma revisÜo desses<br />

grandes nomes da histâria oficial, daà a apropriaÄÜo tàpica da metaficÄÜo<br />

historiogrÉfica. No seu discurso final, Alberto Nepomuceno invoca a<br />

figura do presidente GetÖlio Vargas como uma espÇcie de mÉrtir da<br />

histâria.<br />

GetÖlio morto, morto e pronto para o enterro no<br />

coraÄÜo das cenas brasileiras, preparado,<br />

banhado e limpo, depois talvez de ter defecado<br />

ou mijado nas calÄas do pijama quando o projÇtil<br />

perfurou seu tàmpano e o cÇrebro, mas apesar de<br />

tudo GetÖlio inacabado com seu braÄo solto<br />

sobre a prancha que Ç tambÇm a mesa de tortura<br />

da InquisiÄÜo brasileira, b<strong>em</strong> tropical tropical<br />

melancolia, um pouco zonzo eu e o autor das<br />

cenas entra <strong>em</strong> cena e levanta a mÜo como para<br />

uma benÄÜo e a manhÜ tropical se inicia, a<br />

tragÇdia e o pintor experimenta as variadas<br />

gradaÄÅes das cores, mas sua benÄÜo talvez seja<br />

apenas um gesto de indecisÜo ou impotÑncia<br />

mesmo diante da histâria que tropical continua.<br />

(TREVISAN, 1998, p.630-631)<br />

Essa revisÜo da histâria nÜo fica livre de sua parcela de ironia,<br />

tàpica da metaficÄÜo historiogrÉfica analisada anteriormente por Linda<br />

Hutcheon. Ainda fazendo referÑncia a GetÖlio Vargas, ç sua carta de<br />

suicàdio, prossegue Nepomuceno


76<br />

A notÉvel garota Carm<strong>em</strong>, ela e sâ ela, a<br />

namorada Miranda do Brasil, pode ler <strong>em</strong> alto e<br />

bom som dos saltos plataforma, tailleur<br />

trespassado batom NanÉ nos lÉbios e trunfa, quer<br />

dizer turbante na cabeÄa e por toda parte<br />

balangandÜs, entÜo: cada gota do meu sangue<br />

serÉ uma chama imortal... hoje me liberto para a<br />

vida eterna... eu agora ofereÄo-vos a minha<br />

morte... saio da vida para entrar na Histâria 50 ,<br />

titibum, titibum, titibum, titibum <strong>em</strong> 78 rotaÄÅes.<br />

(TREVISAN, 1998, p.631)<br />

JoÜo SilvÇrio Trevisan apâia-se no diÉlogo intertextual das mais<br />

variadas formas. Contudo, ir<strong>em</strong>os nos deter essencialmente no intertexto<br />

com a obra do escritor Thomas Mann. Esse Ç, pois, o tâpico de nosso<br />

terceiro capàtulo: um diÉlogo intertextual com sua obra.<br />

50 CÇlebre frase da carta de suicàdio de GetÖlio Vargas.


CAPÇTULO 3: O INTERTEXTO<br />

Colcha de retalhos intertextuais<br />

77<br />

O tàtulo <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> nos r<strong>em</strong>ete imediatamente ç obra do<br />

escritor al<strong>em</strong>Üo Thomas Mann, A Morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>. Pod<strong>em</strong>os perceber<br />

claramente que <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> Ç construàda como uma colcha de<br />

retalhos, uma montag<strong>em</strong> de textos de diversos autores, como MÉrio de<br />

Andrade e Oswald de Andrade, que vÜo compor todo o romance. Acerca<br />

da intertextualidade, jÉ pod<strong>em</strong>os constatar, de forma consciente, a<br />

intenÄÜo de nossos artistas da S<strong>em</strong>ana de 22 que, atravÇs do Manifesto<br />

AntropofÄgico de Oswald de Andrade, faziam quase uma apologia ç<br />

apropriaÄÜo criativa de outras culturas: Tupi or not Tupi, that’s the<br />

question; “Sâ me interessa o que nÜo Ç meu. Lei do hom<strong>em</strong>. Lei do<br />

antropâfago” (TELES, 2005, p.353). Por antropofagia pod<strong>em</strong>os<br />

entender a deglutiÄÜo de outra cultura para desenvolver a nossa prâpria<br />

identidade. A respeito da intertextualidade, Hutcheon afirma:<br />

A parâdia intertextual dos clÉssicos canänicos<br />

americanos e europeus Ç uma das formas de se<br />

apropriar da cultura dominante branca,<br />

masculina, classe-mÇdia, heterossexual e<br />

eurocÑntrica, e reformulÉ-la – com mudanÄas<br />

significativas. Ela nÜo rejeita essa cultura, pois<br />

nÜo pode fazÑ-lo. O pâs-modernismo indica sua<br />

dependÑncia com seu uso do cánone, mas revela<br />

sua rebeliÜo com seu iränico abuso desse mesmo<br />

cánone. (HUTCHEON, 1991, p.170)<br />

Essa rebeliÜo de que Hutcheon nos fala <strong>em</strong> relaÄÜo ao uso do<br />

cánone; pod<strong>em</strong>os ler no diÉlogo intertextual entre <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> e os<br />

artistas do modernismo brasileiro, como Oswald de Andrade: “No<br />

horizonte, ficam abandonados os Öltimos vestàgios do Brasil, essa<br />

colänia escravista cheia de rochas, Érvores e gente dizendo Adeus”<br />

(TREVISAN, 1998, p.278). E tambÇm <strong>em</strong> MÉrio de Andrade e seu<br />

Macunaáma: “Se para Wagner o andamento al<strong>em</strong>Üo por excelÑncia era o<br />

andante, imagino que o andamento tàpico brasileiro seria o alegretto.<br />

Talvez alegretto con variazioni – de humor, rumor, calor, ai que<br />

preguiÄa!” (TREVISAN, 1998, p.281).


78<br />

NÜo obstante a contribuiÄÜo de outros textos <strong>em</strong> <strong>Ana</strong> <strong>em</strong><br />

<strong>Veneza</strong>, dar<strong>em</strong>os Ñnfase <strong>em</strong> nosso trabalho ç construÄÜo intertextual<br />

entre os personagens Alberto Nepomuceno e Gustav von Aschenbach da<br />

novela do escritor al<strong>em</strong>Üo. AtÇ que ponto, na construÄÜo do romance, os<br />

dois personagens se aproximam <strong>em</strong> um diÉlogo de s<strong>em</strong>elhanÄas e<br />

diferenÄas? Alberto Nepomuceno, inicialmente, se aproxima do autor de<br />

Tonio Kroeger ao dizer: “Acho que fui me tornar um personag<strong>em</strong> de<br />

Thomas Mann” (TREVISAN, 1998, p.45), para logo <strong>em</strong> seguida negÉlo:<br />

“NÜo, nÜo quero ser um personag<strong>em</strong> de Thomas Mann”<br />

(TREVISAN, 1998, p.47). Esse Öltimo Ç o ponto que mais nos interessa,<br />

jÉ que nosso texto se baseia no discurso antimoderno trabalhado no<br />

romance por JoÜo SilvÇrio Trevisan. Para tal feito, ir<strong>em</strong>os analisar, de<br />

inàcio, a novela Morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> e seu protagonista Gustav von<br />

Aschenbach.<br />

O Aschenbach escritor: um decadente<br />

Na novela A Morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> 51 (1912) t<strong>em</strong>os o protagonista, o<br />

escritor Gustav von Aschenbach. Ele Ç um hom<strong>em</strong> dominado pelo dever<br />

kantiano de trabalhar, produzir literatura, nÜo obstante, encontra-se <strong>em</strong><br />

meio a uma crise criativa 52 . O que Thomas Mann desenvolve nessa<br />

novela, que Ç um dos seus primeiros trabalhos literÉrios, Ç a relaÄÜo do<br />

artista da arte moderna 53 e toda a crise de sua subjetividade.<br />

51 Thomas Mann comeÄou a trabalhar <strong>em</strong> A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> na primavera de 1911, durante<br />

uma estada no Lido, perto de <strong>Veneza</strong>, e teve sua primeira histâria como um trabalho<br />

despretensioso e planejado para ser realizado rapidamente. No entanto, desenvolveu a novela,<br />

<strong>em</strong> torno de um ano, logo apâs sua orig<strong>em</strong>.<br />

52 A crise criativa <strong>em</strong> que Aschenbach tinha se inserido, Ç um quadro fiel da crise sentida por<br />

vÉrios artistas burgueses que pareciam pressentir a guerra que estava por acontecer. A crise se<br />

revelava, sobretudo, atravÇs das rÉpidas transformaÄÅes econämicas da Çpoca, o que indicava<br />

seu medo <strong>em</strong> relaÄÜo ao futuro incerto. AlÇm dessa incerteza do futuro, os escritores se<br />

deslocaram do campo para as grandes cidades, afundando-os mais ainda <strong>em</strong> processos<br />

subjetivos (L°KACS, 1965, p.185).<br />

53 A imag<strong>em</strong> do hom<strong>em</strong> criado como uma mÉquina, sob as impressÅes da industrializaÄÜo e do<br />

avanÄo da mecanizaÄÜo: o hom<strong>em</strong> cria a mÉquina, aperfeiÄoa a tÇcnica e a tÇcnica se volta<br />

contra ele. Era assim que entendia Benjamin <strong>em</strong> seu texto A obra de arte na era de sua<br />

reprodutibilidade tÑcnica. Para ele, as novas tÇcnicas de reproduÄÜo alteram o carÉter da obra<br />

de arte. Se de alguma maneira a obra de arte s<strong>em</strong>pre foi reprodutàvel, o fato Ç que a câpia jÉ<br />

nÜo Ç vista como algo imperfeito ou falso. A possibilidade de reproduzir infinitamente uma<br />

obra, como desde o inàcio dos processos de câpia com a xilogravura, passando pela fotografia,<br />

chegando atÇ o cin<strong>em</strong>a, torna a ideia de câpia ultrapassada. A aura representa, na lâgica<br />

benjaminiana, uma figura singular, e t<strong>em</strong> seu conceito abalado pela reproduÄÜo de imagens. A<br />

reprodutibilidade seria o fim da arte aurÉtica, do culto ao objeto Önico e da autenticidade. A<br />

obra de arte reproduzida Ç cada vez mais a reproduÄÜo de uma obra de arte criada para ser


79<br />

O artista manniano alÇm de um trÉgico Ç tambÇm um iränico; o<br />

iränico, nesse sentido, Ç aquele que mesmo conhecendo os augÖrios da<br />

vida, ama-a <strong>em</strong> forma de arte. AlÇm disso, essa ironia Ç erâtica.<br />

Esta ironia erâtica Ç um dos maiores encantos da<br />

obra de Mann. Ela Ç expressÜo pura de um<br />

espàrito que despreza a grandiloqéÑncia, o pathos<br />

que ferve ao foguinho de um isqueiro, o<br />

sentimentalismo que se adquire por dois<br />

cruzeiros, a poltrona de cin<strong>em</strong>a ou teatro<br />

(ROSENFELD, 1994, p.105)<br />

Seu carÉter “esclarecedor” encaixa-se nos princàpios do<br />

iluminismo al<strong>em</strong>Üo ao que diz respeito çs chamadas Deutsche ou<br />

Preuöische Tugenden (virtudes al<strong>em</strong>Üs, prussianas) 54 . O Gustav von<br />

Aschenbach que Ç apresentado ao leitor nos primeiros capàtulos da<br />

novela Ç representado quase s<strong>em</strong> <strong>em</strong>oÄÜo, o que parece ser paradoxal<br />

para um artista.<br />

Desde jov<strong>em</strong>, por ter uma constituiÄÜo fàsica pouco robusta, foi<br />

sujeito a vÉrios tratamentos mÇdicos que o privaram de contatos sociais.<br />

Ainda sobre Gustav von Aschenbach, profere LÖcia Borges:<br />

Morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, escrita antes da I Guerra<br />

Mundial, identifica-se com a postura<br />

nacionalista, que Mann tinha no peràodo. Seu<br />

protagonista Gustav Von Aschenbach era um<br />

al<strong>em</strong>Üo orgulhoso de seu paàs e sua histâria, tanto<br />

que escreveu obras sobre grandes personalidades<br />

histâricas, como Frederico da PrÖssia. Ele nunca<br />

havia deixado o continente europeu, e<br />

considerava que isso seria totalmente desprovido<br />

de valor, alÇm de desagradÉvel, ver-se cercado de<br />

uma cultura diferente da sua. Seu universo era<br />

circunscrito a seu paàs e quando muito a paàses<br />

prâximos. Sendo mais especàfico, seu mundo<br />

limitava-se a ele mesmo, pois Aschenbach era o<br />

reproduzida: “no momento <strong>em</strong> que o critÇrio de autenticidade deixa de aplicar-se ç produÄÜo<br />

artàstica, toda a funÄÜo social da arte se transforma” (BENJAMIN, 1996, p. 171).<br />

54 Seguindo ainda a linha de pensamento de LukÉcs, pod<strong>em</strong>os entender por “virtudes<br />

prussianas” o cánone adquirido pela Çtica protestante calvinista e as virtudes do Iluminismo.<br />

Em termos cotidianos, se traduziriam <strong>em</strong> valores como pontualidade, honestidade, <strong>em</strong>penho,<br />

corag<strong>em</strong>, determinaÄÜo, lealdade, dedicaÄÜo, entre outras (1965, p.185).


80<br />

ex<strong>em</strong>plo do artista isolado do mundo e de sua<br />

realidade. Ele era um ser isolado, como artista e<br />

hom<strong>em</strong>, que nÜo encontrava seu lugar entre os<br />

homens, um outsider frente ç diferente de<br />

adequar a prÉtica artàstica com a realidade<br />

circundante e seu papel nessa realidade. Esse ser<br />

deslocado se refugiava no trabalho, no impulso<br />

da criaÄÜo, como princàpio e estilo da vida, e seus<br />

desafios mais simples. Compreendia que seu<br />

papel no mundo tinha valor de uma grande<br />

missÜo, e esta era criar obras que outros mortais<br />

nÜo seriam capazes de criar. Vaidoso e orgulhoso<br />

desse papel, ele trabalhava atÇ o esgotamento, o<br />

esforÄo mÉximo que um ser humano seria capaz.<br />

(BORGES, 1999, p.99)<br />

Aschenbach aprendeu desde cedo o significado da palavra<br />

“disciplina” e incorporou-a naturalmente com uma parte inerente a sua<br />

vida. A novela Ç uma cràtica ç Çtica da burguesia. O escritor<br />

Aschenbach, autor de um trabalho sobre o rei prussiano Frederico, o<br />

Grande, t<strong>em</strong> a palavra “perseveranÄa” como seu l<strong>em</strong>a de vida. Para ele,<br />

“atitude” Ç ferramenta essencial para a existÑncia. Essa atitude da<br />

sociedade convencional contribui para que ele nÜo se renda ç arte<br />

anÉrquica. A partir de seu nome faz-se visàvel sua posiÄÜo aristocrÉtica,<br />

atravÇs da preposiÄÜo al<strong>em</strong>Ü “von”, que indica orig<strong>em</strong> nobre. è um<br />

hom<strong>em</strong> dedicado a sua arte, disciplinado ao extr<strong>em</strong>o.<br />

Gustav von Aschenbach, ou von Aschenbach,<br />

como era oficialmente seu nome desde seu<br />

qéinquagÇsimo aniversÉrio, fizera um longo<br />

passeio sozinho, de sua residÑncia na<br />

Prinzregentenstrasse, <strong>em</strong> Munique, numa tarde<br />

primaveril de 19..., que, durante meses mostrara<br />

ao nosso continente uma figura anunciadora de<br />

conflitos. Sobreexcitado pelo difàcil e perigoso<br />

trabalho das horas matinais, que exigia,<br />

justamente agora, extr<strong>em</strong>a cautela, prudÑncia<br />

energia e precisÜo da vontade, o literato nÜo<br />

conseguira deter o movimento do mecanismo<br />

produtivo no seu interior, aquele inotus animi<br />

continuus, no qual, de acordo com Càcero,


81<br />

consiste a natureza da eloqéÑncia; tampouco<br />

conseguira detÑ-lo depois do almoÄo, nÜo<br />

encontrando o sono reparador, que lhe era tÜo<br />

necessÉrio durante o dia, quando suas forÄas se<br />

desgastavam. (MANN, 1971, p.89)<br />

O primeiro capàtulo Ç importante para a funÄÜo interpretativa da<br />

novela e narra o passeio de Gustav von Aschenbach, que sai de casa na<br />

esperanÄa de ganhar um novo Çlan para sua produÄÜo escrita. No<br />

c<strong>em</strong>itÇrio, ele conhece um andarilho. è um hom<strong>em</strong> de aspecto estranho<br />

e misterioso 55 que sai de uma capela mortuÉria. Por alguma analogia de<br />

ideias do momento, resolve viajar no verÜo, para o sul, de modo que<br />

decide ir a <strong>Veneza</strong>. O c<strong>em</strong>itÇrio surge claramente como um dos<br />

primeiros indàcios de morte e decadÑncia como o Leitmotiv da novela,<br />

que tambÇm se revela, especialmente, atravÇs do cansaÄo de<br />

Aschenbach, do t<strong>em</strong>po e atmosfera lÖgubres: “Era o princàpio de maio e,<br />

depois de s<strong>em</strong>anas Ömidas e frias, aparecera um falso verÜo” (MANN,<br />

1971, p.89). A arquitetura bizantina da capela mortuÉria Ç mais uma<br />

referÑncia ç morte. Ela representa antecipadamente a cultura clÉssica<br />

que permeia o resto da novela e encarna a antecipaÄÜo da Basàlica de<br />

SÜo Marcos <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>. A capela tambÇm pode ser lida como um àcone<br />

da arquitetura ao levarmos <strong>em</strong> conta a questÜo da forma na arte. A<br />

referÑncia ç Antiguidade se une ç questÜo da beleza na arte clÉssica. A<br />

capela funerÉria carrega o sàmbolo duplo: sua funÄÜo interna representa<br />

a morte e sua funÄÜo externa diz respeito ç beleza e ç aparÑncia.<br />

Aschenbach mostra desde inàcio seu carÉter saturnino e,<br />

segundo o narrador, ainda na passag<strong>em</strong> no c<strong>em</strong>itÇrio:<br />

Ficou cänscio de uma estranha expansÜo de seu<br />

àntimo, uma espÇcie de vago desassossego, um<br />

desejo juvenil e sedento para a distáncia, um<br />

sentimento tÜo vivo, tÜo novo ou hÉ tanto t<strong>em</strong>po<br />

desacostumado e desaprendido, que ele, com as<br />

mÜos nas costas e o olhar para o chÜo, parou<br />

cativado, para examinar a natureza e o objetivo<br />

da <strong>em</strong>oÄÜo. (MANN, 1971, p. 92)<br />

55 Aschenbach Ç um servo da morte e por ela Ç acompanhado durante toda a narrativa. O<br />

desconhecido no c<strong>em</strong>itÇrio, com sua bengala encostada obliquamente no chÜo, sua muleta<br />

inclinada, as pernas cruzadas sobre o quadril e os dentes visàveis sÜo uma referÑncia ç morte.


82<br />

NÜo pod<strong>em</strong>os esquecer que o olhar vago, voltado para o chÜo Ç<br />

uma caracteràstica marcante do saturnino. O hom<strong>em</strong> do c<strong>em</strong>itÇrio Ç<br />

apenas o primeiro de vÉrios outros personagens que povoam a novela<br />

como um anÖncio da morte, que se faz presente a partir do tàtulo. O<br />

funcionÉrio do c<strong>em</strong>itÇrio <strong>em</strong> Munique, o gondoleiro, o velho, o mÖsico,<br />

entre outros, provocam <strong>em</strong> Aschenbach desconforto e representam o<br />

prelÖdio de um iminente desastre, que passa pelo protagonista<br />

despercebido.<br />

JÉ a caminho de <strong>Veneza</strong> vÑ um idoso acompanhado por um grupo<br />

de jovens, que se esforÄa para criar a ilusÜo da juventude com uma<br />

peruca, dentes falsos, maquiag<strong>em</strong> e trajes exuberantes, tàpicos da<br />

juventude, que pod<strong>em</strong> ser lidos como traÄos de decadÑncia. O escritor<br />

repudia com asco aquele hom<strong>em</strong>.<br />

Mal, porÇm, Aschenbach o observara melhor,<br />

notou, com uma espÇcie de horror, que o jov<strong>em</strong><br />

era falso. Era velho, nÜo havia dÖvida. Rugas<br />

rodeavam seus olhos e sua boca. O leve<br />

carmesim era rouge, o cabelo castanho sob o<br />

chapÇu de palha com fita colorida era uma<br />

cabeleira, seu pescoÄo flÉcido e nervudo, seu<br />

bigodinho e a mosca no queixo eram pintados,<br />

sua dentadura amarela e completa, que mostrava<br />

rindo, um serviÄo barato de prâtese, e suas mÜos,<br />

com anÇis brasÅes <strong>em</strong> ambos os indicadores,<br />

eram as de um anciÜo. (MANN, 1971, p. 105 )<br />

Seu asco pelo velho Ç desencadeado pela falsa maquiag<strong>em</strong> e os<br />

artifàcios que mascaram sua verdadeira idade, julgando-o decadente. O<br />

que tanto lhe incomoda serÉ incorporado por ele mesmo algum t<strong>em</strong>po<br />

depois, jÉ que Aschenbach, posteriormente no barbeiro, vale-se dos<br />

mesmos subterfÖgios para maquiar os efeitos do t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> seu rosto.<br />

Para JosÇ Miguel Rasia, o velho com aparÑncia juvenil Ç o contraponto<br />

entre o racional e a indisciplina ou a morte.<br />

O falso jov<strong>em</strong>, desde o momento <strong>em</strong> que seus<br />

companheiros perceberam que o que estava<br />

representando ali era a velhice disfarÄada <strong>em</strong><br />

juventude, permanecera como metÉfora da<br />

sexualidade indisciplinada e da morte. O falso<br />

jov<strong>em</strong> seria, daà pra frente, o companheiro de


83<br />

viag<strong>em</strong> que nÜo abandonaria Aschenbach.<br />

(RASIA, 2001, p.62)<br />

Sua chegada a <strong>Veneza</strong> se mostra diferente do que ele havia<br />

esperado: a cidade lhe parece rodeada por uma atmosfera escura,<br />

deprimente, nÜo obstante sua beleza milenar. NÜo Ç sua primeira visita,<br />

a Öltima vez que ele teve que deixar a cidade, por nÜo ter se sentido b<strong>em</strong><br />

devido ao clima. Interessante Ç a atraÄÜo que a cidade exerce <strong>em</strong><br />

Aschenbach, atravÇs da atmosfera misteriosa. Ao chegar, depara-se com<br />

um dos sàmbolos da cidade: uma gändola veneziana, outro argumento<br />

importante que se junta ao aspecto de decadÑncia presente na novela. è<br />

interessante l<strong>em</strong>brar que o nome de Aschenbach traduzido para o<br />

portuguÑs significa “rio de cinzas”. T<strong>em</strong>os assim a marca da<br />

obscuridade e do sombrio jÉ <strong>em</strong> seu nome. Da morte vÑm as cinzas.<br />

A primeira grande mÉ impressÜo de sua viag<strong>em</strong> a <strong>Veneza</strong> surge a<br />

partir de um estranho gondoleiro que nÜo cumpre o percurso que lhe Ç<br />

exigido. Ele faz Aschenbach sentir-se impotente na gändola; sujeito<br />

mesmo a ser assassinado pelo hom<strong>em</strong> que parece ter mÉs intenÄÅes.<br />

Interessante l<strong>em</strong>brar, que para Gustav von Aschenbach, a gändola Ç um<br />

meio de transporte cuja forma lhe sugere imediatamente ç imag<strong>em</strong> de<br />

um caixÜo.<br />

Como um sàmbolo de <strong>Veneza</strong>, a gändola r<strong>em</strong>ete-nos, dessa<br />

forma, ç morte. As gändolas nos apontam, portanto, para a morte de<br />

Aschenbach e sÜo lidas por nâs como um sàmbolo de decadÑncia.<br />

Qu<strong>em</strong> nÜo teria de combater um ligeiro arrepio,<br />

um secreto medo e opressÜo quando, pela<br />

primeira vez ou depois de longo desÉbito, tivesse<br />

que subir para uma gändola veneziana? A<br />

estranha <strong>em</strong>barcaÄÜo de t<strong>em</strong>pos baladescos,<br />

tradicionalmente inalterada e tÜo singularmente<br />

preta como entre todas as coisas sâ os sÜo os<br />

ataÖdes – cÜibra, caladas e criminosas aventuras<br />

<strong>em</strong> noites murmurantes, l<strong>em</strong>bra mais ainda a<br />

prâpria morte, macas e execuÄÅes sombrias e a<br />

Öltima silenciosa viag<strong>em</strong>; (MANN, 1971, p.109-<br />

110)<br />

O sentido de decadÑncia para as gändolas funciona como um<br />

l<strong>em</strong>brete da ameaÄadora morte que passeia pela cidade disfarÄada pela<br />

doenÄa; enquanto o povo ignorante aprecia a beleza de <strong>Veneza</strong>.


84<br />

Whereas ships and boats generally represent a<br />

voyage through life, in Aschenbach¢s case, the<br />

ship and the gondola do not carry him to the<br />

harbour of eternal life […], but rather to the<br />

realm of the dead. (EUCHNER, 2005, p.199) 56<br />

<strong>Veneza</strong> parece ser caracterizada por dois aspectos que estÜo<br />

unidos sob o signo da decadÑncia: a doenÄa que estÉ s<strong>em</strong>pre presente, e<br />

o outro, a opacidade da cidade que existe <strong>em</strong> virtude da arquitetura<br />

caracteràstica. <strong>Ana</strong>tol Rosenfeld, grande estudioso da obra de Thomas<br />

Mann analisa o t<strong>em</strong>a <strong>em</strong> seu livro Thomas Mann <strong>em</strong> um capàtulo<br />

especial intitulado: A doenÖa na obra de Thomas Mann. Para ele,<br />

Thomas Mann compartilha as grandes influÑncias de Nietzsche,<br />

Schopenhauer e Wagner, tendo com eles <strong>em</strong> comum a predileÄÜo por<br />

t<strong>em</strong>as como a decadÑncia, a doenÄa, o sofrimento e a morte. as grandes<br />

influÑncias de Thomas Mann Nietzsche, Schopenhauer e Wagner. NÜo<br />

obstante a presenÄa de tais motivos <strong>em</strong> Morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, pod<strong>em</strong>os<br />

encontrÉ-los <strong>em</strong> outras obras do autor al<strong>em</strong>Üo como <strong>em</strong> Doutor Fausto<br />

(1947) 57 , cujo protagonista, o mÖsico Adrian Leverkéhn padece <strong>em</strong><br />

virtude da sàfilis. A doenÄa tambÇm se faz presente significativamente<br />

atravÇs do romance de formaÄÜo A montanha mÄgica (1924). Nele,<br />

Mann constrâi a histâria do jov<strong>em</strong> engenheiro Hans Castorp que, ao<br />

visitar o primo Joachim Zi<strong>em</strong>ssen num sanatârio destinado ao<br />

tratamento de doenÄas respiratârias, acaba ficando doente e permanece<br />

lÉ, onde o contato com a doenÄa e a morte faz<strong>em</strong> parte de cotidiano.<br />

Segundo <strong>Ana</strong>tol Rosenfeld:<br />

A atmosfera da deterioraÄÜo e putrefaÄÜo, fixada<br />

de modo magnàfico na novela Morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>,<br />

56 “Considerando que os navios e barcos geralmente representam uma viag<strong>em</strong> atravÇs da vida,<br />

no caso de Aschenbach, o navio e a gändola nÜo irÜo levÉ-lo ao porto da vida eterna (...), mas<br />

sim para o reino dos mortos” (traduÄÜo livre). Pode-se fazer aqui uma referÑncia a barca de<br />

Caronte,figura mitolâgica do mundo inferior grego ou Hades, que transportava os recÇmmortos<br />

na sua barca atravÇs do Aqueronte, atÇ o local no Hades que lhes era destinado.<br />

57 Considerado um dos sàmbolos da modernidade, Fausto Ç um po<strong>em</strong>a que relata a histâria do<br />

Dr. Fausto, hom<strong>em</strong> das ciÑncias que, desiludido com o conhecimento de seu t<strong>em</strong>po, faz um<br />

pacto com o d<strong>em</strong>änio Mefistâfeles, que o corrompe ao lhe mostrar as maravilhas da tÇcnica e<br />

do progresso. A escolha deste entre outros aspectos faz<strong>em</strong> de Thomas Mann um legàtimo<br />

representante da modernidade, assim como Baudelaire, o autor das Flores do mal citado por<br />

Benjamin <strong>em</strong> seu livro A modernidade e os modernos: “A imag<strong>em</strong> do artista de Baudelaire<br />

aproxima-se da imag<strong>em</strong> do herâi” (BENJAMIN, 2000, p.7), ou seja, o herâi da modernidade.


85<br />

era, aliÉs, um dos t<strong>em</strong>as prediletos na Çpoca da<br />

publicaÄÜo dessa obra. NÜo resta a menor dÖvida<br />

de que nos livros de Mann se percebe uma<br />

simpatia acentuada pela doenÄa, pelo caos, pela<br />

morte – equilibrada, contudo, pela ord<strong>em</strong> e pela<br />

vida. A doenÄa t<strong>em</strong>, na obra de Mann, um valor<br />

funcional extr<strong>em</strong>amente ambàguo, representando<br />

simbolicamente o espàrito especulativo, marginal<br />

afastado da vida e oposto a ela. (ROSENFELD,<br />

1994, p. 149)<br />

A doenÄa ameaÄadora <strong>em</strong> A Morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> se faz pressentir<br />

atravÇs do mau cheiro que a cidade exala e que se propaga atravÇs do<br />

sirocco. A câlera sâ se faz presente atravÇs do cheiro, ela Ç invisàvel. O<br />

olfato de Aschenbach a capta, mas nÜo consegue interpretar de forma<br />

racional: “Quando Aschenbach abriu sua janela, acreditou sentir o<br />

cheiro podre da laguna (MANN, 1971, p.118). <strong>Veneza</strong> Ç uma cidade<br />

ambàgua “eine Mischung von Glanz und Sordit§t” 58 (REED, 1983, p.<br />

153). Essa ambiguidade seduz Aschenbach, que se deixa levar por seus<br />

labirintos, perde-se neles e tira sua mÉscara, pois na cidade do carnaval<br />

europeu, onde as pessoas pÅ<strong>em</strong> suas mÉscaras, os al<strong>em</strong>Ües tiram as<br />

suas 59 :<br />

Isto era <strong>Veneza</strong>, a bela, aduladora e suspeita –<br />

esta cidade meio conto de fadas, meio armadilha<br />

para forasteiros, <strong>em</strong> cujo ar pÖtrido a arte outrora<br />

pululara luxuriosamente, e que inspirava sons aos<br />

mÖsicos, que <strong>em</strong>balavam e arrumavam, solàcitos.<br />

Ao aventureiro parecia que os seus olhos bebiam<br />

s<strong>em</strong>elhante exuberáncia, que os seus ouvidos<br />

eram cortejados por tais melodias; l<strong>em</strong>brou-se<br />

tambÇm de que a cidade estava doente e o<br />

ocultava por ganáncia. (MANN, 1971, p.149)<br />

58 “Um mistura de brilho e sordidez” (traduÄÜo livre).<br />

59 A ItÉlia costuma ser o paàs escolhido por intelectuais al<strong>em</strong>Ües que, ç procura de novas<br />

experiÑncias, entregam-se ç ensolarada ItÉlia, livres das amarras da severa cultura al<strong>em</strong>Ü.<br />

Pod<strong>em</strong>os citar os nomes de Friedrich Nietzsche, Richard Wagner, Arthur Schopenhauer e<br />

Goethe, entre outros. Ibsen e Burckhardt sÜo outros ex<strong>em</strong>plos daquela atraÄÜo exercida pela<br />

ItÉlia. Wagner encontrou <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> a inspiraÄÜo para seu “TristÜo e Isolda” e, <strong>em</strong> 1883,<br />

morreu naquela cidade. Strauss chegou a manifestar o desejo de compor uma peÄa sobre CÇsar<br />

Bârgia ou Savonarola. A ItÉlia era o outro, o diferente. O sol, no lugar do frio; a extroversÜo,<br />

no lugar da frieza; a paixÜo, no lugar do cÉlculo. è exatamente a busca do el<strong>em</strong>ento diferente<br />

relaÄÜo que leva o protagonista da histâria de Thomas Mann a <strong>Veneza</strong>.


86<br />

A novela Ç construàda sobre um contexto de referÑncias ç<br />

mitologia grega. A paixÜo amalgamada por imagens da mitologia grega<br />

dissolve lentamente a racionalidade de Aschenbach:<br />

E, do Ñxtase do mar e do brilho do sol, formou-se<br />

no seu àntimo um lindo quadro. Era o velho<br />

plÉtano perto dos muros de Atenas – era aquele<br />

sagrado sombreado lugar, cheio do perfume das<br />

flores do agnocasÉto, enfeitado por ex-votos e<br />

dÉdivas piedosas <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> çs ninfas e ao<br />

Aqueläo. (MANN, 1971, p. 137)<br />

Paras entender essa relaÄÜo da cultura grega com a narrativa<br />

b<strong>em</strong> como com sua relaÄÜo com a modernidade, nos val<strong>em</strong>os de<br />

Friedrich Nietzsche e seu estudo a tragÇdia grega. Ele estabelece a<br />

diferenÄa entre o apolàneo e o dionisàaco <strong>em</strong> seu primeiro livro O<br />

nascimento da tragÑdia: ou helenismo e pessimismo, escrito <strong>em</strong> 1871. O<br />

Nascimento da TragÑdia, no contexto geral da produÄÜo de figuras<br />

filosâficas nietzschianas, representa um momento decisivo da filosofia<br />

de Nietzsche: o aparecimento de Dionàsio. Como se viria a tornar<br />

comum na sua filosofia, Dionàsio surge numa dialÇtica de movimentos e<br />

velocidades tàpicas de uma luta, nesse caso, diante de Apolo.<br />

Nietzsche aponta para a tragÇdia grega como o auge da<br />

perfeiÄÜo cultural grega, apâs ter juntado a <strong>em</strong>briaguez dionisàaca e a<br />

forma apolànea. Depois desse apogeu, t<strong>em</strong>os o declànio da cultura grega<br />

que se deu atravÇs da entrada do racionalismo crescente. Apolo Ç<br />

apresentado por Nietzsche como o deus do sonho, das formas, das<br />

regras, das medidas, dos limites individuais. O apolàneo Ç a aparÑncia, a<br />

individualidade, o jogo das figuras b<strong>em</strong> delineadas. Apolo Ç a<br />

representaÄÜo da forÄa da imag<strong>em</strong>, da metÉfora, isto Ç, da dissimulaÄÜo.<br />

Esta categorizaÄÜo identifica a conceptualizaÄÜo com a aparÑncia. Mas<br />

Apolo incorpora tambÇm o equilàbrio, a moderaÄÜo dos sentidos.<br />

Dioniso, por sua vez Ç apresentado como o gÑnio ou impulso do<br />

exagero, da fruiÄÜo da vida, da <strong>em</strong>briaguez extÉtica, do sentido màstico<br />

que existe no mundo, da libertaÄÜo dos instintos. è o deus do vinho, da<br />

danÄa, da mÖsica para qu<strong>em</strong> as representaÄÅes das tragÇdias eram<br />

dedicadas. Para o autor de Ecce Homo (1908), Apolo nÜo Ç o contrÉrio<br />

de Dionàsio, mas sim um compl<strong>em</strong>ento, <strong>em</strong> que um Ç uma parte distinta


87<br />

do outro. Nietzsche vÑ essas duas forÄas num constante combate, mas<br />

que se fund<strong>em</strong>.<br />

De acordo com a mitologia, Apolo Ç o deus do dia, revela-se<br />

atravÇs do sol. Zeus, seu pai, era o cÇu de onde nos v<strong>em</strong> a luz, e sua<br />

mÜe. Apolo Ç o ser absoluto da luz Ç o deus que aquece a terra, Ç<br />

considerado o deus da poesia e da intelligentia. Como deus da mÖsica,<br />

Apolo tornou-se, consequent<strong>em</strong>ente, o deus da danÄa. A serenidade<br />

apolànea representa para o hom<strong>em</strong> grego o sàmbolo da perfeiÄÜo<br />

espiritual.<br />

Dionàsio por sua vez simboliza as forÄas obscuras que surg<strong>em</strong><br />

do inconsciente, pois se trata de um deus que preside a liberaÄÜo<br />

provocada pela <strong>em</strong>briaguez, por todas as formas de <strong>em</strong>briaguez, a que se<br />

apossa dos que beb<strong>em</strong>, daqueles que se entregam ç danÄa e ç mÖsica.<br />

Pune aqueles que, insolent<strong>em</strong>ente, desprezam seu culto. De acordo com<br />

Fernanda Gontijo:<br />

Retirar Apolo ou Dionàsio da tragÇdia significa<br />

condenar-lhe ao acaso. S<strong>em</strong> Apolo ela perde seu<br />

carÉter mimÇtico - ilusârio e deixa de ser arte,<br />

pois s<strong>em</strong> a medida apolànea ela retorna ao seu<br />

estado primitivo de ritual Dionisàaco, no qual os<br />

instintos vitais eram vivamente celebrados. Por<br />

outro lado, s<strong>em</strong> Dionàsio (e s<strong>em</strong> mÖsica) a<br />

tragÇdia perde seu vigor e deixa de ser uma<br />

expressÜo da vida, pois torna-se expressÜo da<br />

forma, da mÇtrica e, consequent<strong>em</strong>ente, da<br />

supr<strong>em</strong>acia da razÜo, o que, para Nietzsche, faz<br />

com que a tragÇdia perca seu status de arte.<br />

(GONTIJO, 2006, p. 6)<br />

Nietzsche afirma que a relaÄÜo conflituosa entre Apolo e Dionàsio<br />

serÉ de criaÄÜo, pois a eterna luta entre eles cria s<strong>em</strong>pre coisas novas, eis<br />

o ponto no qual a arte se insere. Segundo o filâsofo al<strong>em</strong>Üo, sâ a arte Ç<br />

capaz de levar o hom<strong>em</strong> ao encontro do seu nirvana. Dessa forma, o<br />

apolàneo e o dionisàaco sÜo avaliados como saàdas estÇticas. Nietzsche<br />

defendia que, no coro ditirámbico, o pÖblico era arrebatado por uma<br />

transmissÜo s<strong>em</strong> comunicaÄÜo, ou seja, por uma espÇcie de<br />

comunicaÄÜo. O enredo perde a sua primazia face ao el<strong>em</strong>ento estÉtico e<br />

o pÖblico confunde-se com o conjunto. Contrariamente ao el<strong>em</strong>ento<br />

apolàneo, consagrado çs formas, ç harmonia e ç prevalÑncia da imag<strong>em</strong>,<br />

o el<strong>em</strong>ento dionisàaco destaca-se precisamente pela diluiÄÜo da imag<strong>em</strong>


88<br />

e na absorÄÜo pelo fundo primordial. O mÖsico dionisàaco era, assim,<br />

destituàdo dos limites de identidade, ficando ele prâprio s<strong>em</strong> imagens:<br />

um sofrimento puro e primordial num estado Ñxtase màstico e de<br />

unidade. Esta teorizaÄÜo representa simultaneamente uma metafàsica da<br />

mÖsica e uma teoria da linguag<strong>em</strong>.<br />

Aschenbach surge como um mero mortal que segue seu destino<br />

cruel entre os deuses Apolo e Dionàsio. Ao dedicar-se a Apolo, o deus<br />

da razÜo, ele negou o poder de Dionàsio, o deus da irracionalidade e da<br />

paixÜo. Sua arte era apolànea, baseada na harmonia, disciplina, que<br />

possibilitam aos estetas da forma e do conteÖdo a ascensÜo ao mundo do<br />

ideal de perfeiÄÜo grega. Segundo a leitura de Nietzsche, a arte precisa<br />

de ambas as forÄas para sua completude. O artista apolàneo almeja a bela<br />

aparÑncia. Representa figuras b<strong>em</strong> delimitadas na sua individualidade,<br />

puras na sua beleza, caracterizadas pelo equilàbrio e pela harmonia. O<br />

artista apolàneo representa todos os valores tradicionalmente<br />

reconhecidos aos gregos. O criador dionisàaco eleva a dissoluÄÜo do<br />

indivàduo e o exagero. Em Aschenbach v<strong>em</strong>os a falta da <strong>em</strong>briaguez<br />

orgàaca do deus Dionàsio. O deus da danÄa parece ter enviado<br />

Aschenbach a <strong>Veneza</strong> com a intenÄÜo de destruà-lo, de castigÉ-lo, pois<br />

“Aschenbach nÜo amava o prazer”. (MANN, 1971 p. 134)<br />

JÉ <strong>em</strong> seu hotel, Gustav von Aschenbach observa durante o jantar<br />

uma famàlia aristocrÉtica de estrangeiros <strong>em</strong> uma mesa prâxima. Entre<br />

eles hÉ um adolescente <strong>em</strong> traje de marinheiro. Aschenbach, atänito,<br />

encanta-se por sua beleza. Em sua quinquagÇsima primavera, o escritor<br />

conhece o poder de Eros, descobre no jov<strong>em</strong> seu objeto de desejo, fica<br />

obcecado por ele.<br />

Sua ida <strong>em</strong> direÄÜo ao mar pode ser lida como uma busca por sua<br />

relaÄÜo primitiva consigo e livre da modernidade e de sua disciplina<br />

iluminista; ao optar pelo mar <strong>em</strong> vez do campo e ter conhecido Tadzio,<br />

sabia que sua escolha tinha sido b<strong>em</strong> sucedida, pois <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> ele<br />

encontrara o objeto que o satisfazia.<br />

Se fizermos uma leitura freudiana sobre o princàpio do prazer, pod<strong>em</strong>os<br />

afirmar que ele seria a satisfaÄÜo imediata do desejo. Tal desejo leva o<br />

indivàduo a buscar o prazer e evitar a dor. O princàpio de prazer opÅe-se<br />

ao princàpio de realidade, o qual se caracteriza pelo adiamento da<br />

satisfaÄÜo. Em relaÄÜo ç novela, t<strong>em</strong>os que:<br />

A narrativa, nesse ponto, deixa clara a relaÄÜo<br />

entre Aschenbach e o princàpio do prazer,<br />

enunciado por Freud <strong>em</strong> 1920. Neste texto Freud


89<br />

completa sua teoria das pulsÅes, abandona as<br />

pulsÅes parciais e estabelece a dualidade<br />

pulsional: PulsÜo de Vida e PulsÜo de Morte. O<br />

princàpio do prazer se pÅe a serviÄo da pulsÜo de<br />

morte, nÜo reconhecendo nenhum obstÉculo ç<br />

satisfaÄÜo. Como contraponto a esse princàpio,<br />

Freud estabelece o princàpio da realidade, que<br />

t<strong>em</strong> como funÄÜo barrar o excesso de prazer, que<br />

poderÉ levar ç morte. (RASIA, 2001, p.67)<br />

O encontro com Tadzio nÜo se baseia somente <strong>em</strong> puro<br />

voyeurismo conformado, de um artista que se contenta com sua obra<br />

acabada, mas representa, na obra, o encontro com a pulsÜo de morte.<br />

Possuir Eros, satisfazer a pulsÜo, significa uma entrega a Thánatos. Para<br />

Aschenbach, Tadzio Ç a representaÄÜo de vitalidade, de<br />

rejuvenescimento, pois ele lhe devolve a jovialidade presa na razÜo;<br />

processo desenvolvido atravÇs de uma identificaÄÜo narcàsica do<br />

escritor: “Encontrar Tadzio Ç superar o horror da morte, identificado no<br />

falso jov<strong>em</strong>, por um lado, e, por outro, recriar, pela via narcàsica, a<br />

possibilidade de outra morte, representada pela paixÜo devotada ao<br />

amado” (RASIA, 2001, p.68). Aschenbach deseja Tadzio de tal maneira<br />

que a pulsÜo consegue triunfar sobre a razÜo. Tadzio representa o objeto<br />

passivo graÄas ç perspectiva narrativa, ao modo de enunciar do<br />

narrador.<br />

O sol que ilumina a cidade como sàmbolo da razÜo (o sol ilumina,<br />

esclarece) Ç ao mesmo t<strong>em</strong>po o el<strong>em</strong>ento paradoxal que alegra a alma e<br />

confunde os sentidos 60 ao lado do deus Apolo:<br />

NÜo estava escrito que o sol desviava nossa<br />

atenÄÜo do intelectual para as coisas sensuais?<br />

Diz<strong>em</strong> que ele atordoa e encanta o intelecto e a<br />

m<strong>em</strong>âria de tal maneira, que a alma, de alegria,<br />

esquece completamente sua verdadeira condiÄÜo<br />

e, com espantada admiraÄÜo, fica presa no mais<br />

belo dos objetos banhados pelo sol e sâ com o<br />

auxàlio de um corpo ela consegue elevar-se para<br />

60 L<strong>em</strong>br<strong>em</strong>os aqui do personag<strong>em</strong> do escritor Albert Camus, Meursault, do livro O<br />

estrangeiro. Meursault <strong>em</strong> um episâdio na praia e, <strong>em</strong> um delàrio induzido pelo calor e pela luz<br />

forte do sol, mata um Érabe. Posteriormente, essa seria sua defesa no tribunal ao afirmar que o<br />

sol o teria incomodado ao ponto de cometer o assassinato.


90<br />

uma cont<strong>em</strong>plaÄÜo ainda mais alta. (MANN,<br />

1971, p. 137)<br />

Tadzio pode ser lido tambÇm como esse sol que encanta e ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po confunde os sentidos do artista al<strong>em</strong>Üo. O jov<strong>em</strong> polonÑs<br />

Ç uma espÇcie de lÖcifer: um anjo banido do cÇu, ou aquele que porta a<br />

luz. Tadzio parece-nos corresponder ç explanaÄÜo de Giorgio Agamben<br />

sobre o fantasma de Eros, os d<strong>em</strong>änios do meridiano. Gustav von<br />

Aschenbach perde-se <strong>em</strong> momentos acidiosos atravÇs da perturbadora<br />

figura de Tadzio: “a acàdia Ç o vertiginoso e o assustado retrair-se<br />

(recessus) frente ao compromisso da estaÄÜo do hom<strong>em</strong> diante de Deus”<br />

(AGAMBEN, 2007, p. 24). Tadzio Ç a luz que Ç razÜo, mas ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po cega e confunde os sentidos.<br />

Para Aschenbach, a beleza de Tadzio representa tudo aquilo que<br />

ele buscara na arte. O jov<strong>em</strong> polonÑs sâ pode ser analisado atravÇs de<br />

suas observaÄÅes. E elas sÜo todas proferidas atravÇs das palavras de um<br />

esteta implacÉvel, um conhecedor da arte. O menino tambÇm carrega<br />

consigo, nÜo obstante sua beleza, o signo da decadÑncia:<br />

“Beleza faz ser pudico”, pensou Aschenbach, e<br />

refletiu penetrado, porque notara que os dentes<br />

de Tadzio nÜo eram muito bons: um tanto<br />

pontudos e pÉlidos, s<strong>em</strong> aquele esmalte da saÖde<br />

e de singular transparÑncia que tÑm, çs vezes, os<br />

dos anÑmicos. “ele Ç muito delicado, ele Ç<br />

doentio”, pensou Aschenbach. (MANN, 1971,<br />

p.125)<br />

Dessa forma, a descriÄÜo de Tadzio parece-nos aproximar a de<br />

<strong>Veneza</strong>, que leva consigo o signo paradoxal da beleza e da decadÑncia<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po. Segundo Vera LÖcia Borges, “Tadzio Ç assim,<br />

paradoxalmente angelical e voluptuoso, Ç de uma imag<strong>em</strong> assexuada e<br />

inspira desejos sexuais adormecidos, instiga desejos de vida e causa<br />

morte” (BORGES, 1999, p. 102). Thomas Mann considerava o belo<br />

duvidoso. A adoraÄÜo de um corpo puro da imag<strong>em</strong> de Deus Ç<br />

probl<strong>em</strong>Ética. Ele nÜo acreditava que o hom<strong>em</strong> pudesse capturar <strong>em</strong> si a<br />

forma da glâria divina.<br />

A beleza de Tadzio consegue atÇ mesmo distrair Aschenbach de<br />

seu trabalho; o que antes tinha sido a maior prioridade da sua vida,<br />

agora passa a ser secundÉrio. Prova maior de que Tadzio exerce uma


91<br />

forÄa superior sobre o escritor. Tadzio parece ser uma das faces do deus<br />

Dionàsio que o afasta de Apolo e o leva para um mundo desconhecido.<br />

O t<strong>em</strong>po constant<strong>em</strong>ente Ömido comeÄa a afetar a saÖde de<br />

Aschenbach, ele decide, entÜo, deixar <strong>Veneza</strong> mais cedo do que o<br />

planejado. Na manhÜ de sua partida, vÑ Tadzio mais uma vez e um<br />

sentimento mais forte que sua decisÜo apodera-se dele. Quando chega ç<br />

estaÄÜo, descobre ter tido probl<strong>em</strong>as com sua bagag<strong>em</strong>; parece irritado,<br />

mas sente uma alegria exagerada, que ele mesmo nÜo sabia explicar<br />

conscient<strong>em</strong>ente; decide ficar <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> e esperar por sua bagag<strong>em</strong><br />

perdida. Retorna ao hotel extasiado.<br />

Com o passar de sua estadia <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, o interesse de<br />

Aschenbach pelo pequeno Narciso torna-se uma necessidade vital.<br />

Presta atenÄÜo <strong>em</strong> seus passos constant<strong>em</strong>ente e o segue secretamente<br />

<strong>em</strong> torno de <strong>Veneza</strong>. Em determinada ocasiÜo, o menino lhe dirige um<br />

sorriso charmoso, pueril, ambàguo. Olhando-o, Aschenbach pensa nele<br />

como um Narciso sorrindo <strong>em</strong> sua prâpria reflexÜo. Desconcertado,<br />

apressa-se, e, no jardim vazio, sussurra: “Eu te amo!” (MANN, 1971, p.<br />

145).<br />

Em outro episâdio hÉ o saltimbanco de aparÑncia lÖgubre e<br />

miserÉvel, <strong>em</strong> contraste com a alegria fingida das melodias vulgares que<br />

canta e que desagradam Aschenbach. TambÇm pod<strong>em</strong>os associar o<br />

mÖsico ç doenÄa e a decadÑncia, ao lado de seu mau cheiro 61 . Pod<strong>em</strong>os<br />

notar que o cheiro representa o anÖncio do mal que se espalha. Sua<br />

aparÑncia peculiar suscita <strong>em</strong> Aschenbach a ideia de sua possàvel<br />

orig<strong>em</strong> <strong>em</strong> NÉpoles, onde a câlera encontrou seu ponto de partida na<br />

ItÉlia.<br />

Mas o que propriamente fez o solitÉrio<br />

concentrar sua atenÄÜo nele foi a observaÄÜo de<br />

que a figura suspeita parecia trazer tambÇm sua<br />

prâpria atmosfera suspeita. Pois todas as vezes<br />

que o estribilho entrava, o cantor <strong>em</strong>preendia,<br />

sob caretas e saudaÄÅes, agitando as mÜos, uma<br />

grotesca volta ao redor, que o levava çs<br />

mediaÄÅes de Aschenbach, e, s<strong>em</strong>pre que isto<br />

acontecia, exalava de suas roupas, de seu corpo,<br />

uma nuv<strong>em</strong> do cheiro forte de Écido fÑnico, para<br />

o terraÄo. (MANN, 1971, p.154-155)<br />

61 Como o diabo, que se faz perceptàvel atravÇs do seu cheiro forte de enxofre.


92<br />

AtravÇs de seu discurso, o cantor ilude Aschenbach sobre a<br />

doenÄa que jÉ se espalhara por toda a cidade. Desvirtuando-o, destarte,<br />

de uma possàvel saàda de <strong>Veneza</strong>. Ao ser indagado por Aschenbach<br />

sobre as medidas de limpeza feitas pela polàcia responde: “O senhor<br />

graceja! Um mal? Esta agora! Uma medida preventiva, compreende,<br />

meu senhor?” (MANN, 1971, p.156). Esse Ç outro <strong>em</strong>issÉrio da morte.<br />

SÜo trÑs apariÄÅes da morte, <strong>em</strong>issÉrios de Dionàsio, como trÑs<br />

badaladas de um sino trÉgico, o prelÖdio do fim da existÑncia de<br />

Aschenbach.<br />

Aschenbach comeÄa a se preocupar com o seu envelhecimento facial e<br />

corporal. Em uma tentativa de parecer mais atraente, ele visita a<br />

barbearia do hotel quase diariamente, onde o barbeiro finalmente<br />

consegue convencÑ-lo a ter seu cabelo tingido e seu rosto pintado para<br />

parecer mais jov<strong>em</strong>. O resultado Ç uma aproximaÄÜo bastante prâxima<br />

com o hom<strong>em</strong> velho a bordo do navio que tinha causado tanto asco nele.<br />

AtÇ mesmo o detalhe da gravata vermelha aproxima de Aschenbach<br />

aquele que outrora fora visto por ele como um ser decadente. Maquiado<br />

e com tintura para cobrir os cabelos brancos continua a seguir Tadzio<br />

pela cidade. Essa cena representa o pacto decisivo entre Aschenbach e<br />

sua queda.<br />

A novela inicia-se por seu tàtulo com a palavra “morte” e finda,<br />

com o triunfo da pulsÜo com a palavra “morte”: “E, ainda no mesmo<br />

dia, um mundo respeitosamente comovido recebeu a notàcia de sua<br />

morte (MANN, 1971, p. 172). A morte de Aschenbach Ç o poder da<br />

rebeliÜo romántica de Dionàsio contra a regra da mente iluminada de<br />

Apolo <strong>em</strong> um decadente, mostrando a desintegraÄÜo do burguÑs na<br />

sociedade. Em nome de Eros.<br />

O Aschenbach de Visconti<br />

O filme Morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> Ç uma produÄÜo do diretor italiano<br />

Luchino Visconti, de 1971, e pertence a uma sÇrie de outras<br />

transposiÄÅes para o cin<strong>em</strong>a da obra de Thomas Mann, Ç, no entanto, a<br />

mais famosa filmag<strong>em</strong>. Trata-se de um ambicioso projeto que levanta<br />

questionamentos a respeito da adaptaÄÜo de obras literÉrias para o<br />

cin<strong>em</strong>a.<br />

A primeira grande diferenÄa surge no tàtulo Morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> se<br />

diferindo do tàtulo da novela A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>. O romance de Thomas<br />

Mann refere-se, principalmente, ç morte de Gustav von Aschenbach e ç<br />

destruiÄÜo do artista burguÑs. Ao contrÉrio, Visconti renuncia ao uso do


93<br />

artigo e procura uma dar maior Ñnfase ç <strong>Veneza</strong> e ç Çpoca. Morte <strong>em</strong><br />

<strong>Veneza</strong> pode ser considerado um filme sobre a beleza e sobre a perda da<br />

beleza. Aschenbach, assim como na novela, Ç um hom<strong>em</strong> sensàvel,<br />

culto, criador. Ama a beleza acima de tudo. è um hom<strong>em</strong> extr<strong>em</strong>amente<br />

solitÉrio: fala pouco e, quando o faz, fala o mànimo necessÉrio, muitas<br />

vezes com ar de aborrecimento, como se o interlocutor estivesse tirandoo<br />

forÄosamente da solidÜo <strong>em</strong> que se recolheu. Apresenta um ar<br />

melancâlico, cansado e abatido, com olhar marcado por profundas<br />

olheiras.<br />

Os primeiros dois capàtulos da novela sÜo desconsiderados, mas o<br />

diretor usa as informaÄÅes a partir destes, como a descriÄÜo externa de<br />

Aschenbach. No filme Aschenbach surge como um grande compositor e<br />

nÜo como um escritor, diferent<strong>em</strong>ente da novela. Faz-se notar no filme<br />

uma identificaÄÜo de Aschenbach com o compositor Gustav Mahler, que<br />

jÉ se fazia presente no livro, mas Ç intensificada no filme atravÇs do<br />

nome do personag<strong>em</strong> e da fisionomia do ator Dirk Bogarde, b<strong>em</strong> como a<br />

utilizaÄÜo das terceira e quinta sinfonias do compositor al<strong>em</strong>Üo.<br />

Segundo <strong>Ana</strong>tol Rosenfeld:<br />

A transformaÄÜo do escritor da novela <strong>em</strong><br />

compositor Ç certamente hÉbil, visto que, <strong>em</strong><br />

termos de cin<strong>em</strong>a sonoro, o mÖsico rende muito<br />

mais que o escritor, cuja atividade nÜo apresenta<br />

encantos audiovisuais. Tampouco se pode objetar<br />

algo contra a identificaÄÜo do protagonista com o<br />

compositor Gustav Mahler, nÜo porque Mann de<br />

fato se referiu a ele, mas porque na sua obra se<br />

encontram fort<strong>em</strong>ente acentuados os motivos da<br />

glorificaÄÜo da beleza e do anseio da morte.<br />

Nota-se nela a decomposiÄÜo da heranÄa clÉssica<br />

e certa influÑncia oriental, aliÉs caracteràstica da<br />

arte da Çpoca. (ROSENFELD, 1994, p. 185)<br />

O que torna qualquer forma de leitura entre os dois mÖsicos<br />

possàvel Ç o fato do mÖsico al<strong>em</strong>Üo buscar <strong>em</strong> sua obra a indagaÄÜo <strong>em</strong><br />

torno de t<strong>em</strong>as puramente existenciais, nÜo descrevendo-os<br />

musicalmente, mas traduzindo suas sensaÄÅes interpretadas e<br />

relacionadas <strong>em</strong> todo o seu inconsciente; Ç o jogo de subjetividades<br />

sensàveis que aproxima o personag<strong>em</strong> do filme de Visconti e Gustav<br />

Mahler.


94<br />

O debate sobre a definiÄÜo da obra de arte literÉria, a beleza, o<br />

dever, paixÜo e poder aparec<strong>em</strong> muito pouco na adaptaÄÜo para o<br />

cin<strong>em</strong>a. De acordo com Michael Schlappner:<br />

Die gro•en Auseinandersetzungen, die sich<br />

anhand des platonischen Phaidros-Dialogs éber<br />

die Kunst, die Schúnheit, die Pflicht und die<br />

Leidenschaft durch die ganze Novelle zieht, und<br />

die nitzscheanische Polarit§t von Dionysisch<strong>em</strong><br />

und Apollinisch<strong>em</strong> in der Kunst diskutiert, zu<br />

kurzen, unglécklich chargierten Réckblenden<br />

verkémmert, welche das Bewu•tsein<br />

Aschenbachs wie versprengte Gewissensreste<br />

durchziehen. (SCHLAPPNER, 1975, p.118) 62<br />

O belo Tadzio de Visconti Ç retratado de forma mais presente.<br />

O simbolismo do personag<strong>em</strong> Tadzio, a sua funÄÜo como a<br />

personificaÄÜo da beleza como um ideal antigo, Ç, portanto, <strong>em</strong> grande<br />

parte perdido. JÉ no primeiro encontro entre o protagonista e Tadzio<br />

perdeu <strong>em</strong> profundidade de estÇtica <strong>em</strong> relaÄÜo ao livro. NÜo obstante a<br />

tÇcnica de ediÄÜo e da atuaÄÜo de Dirk Bogarde, hÉ um afastamento<br />

natural do Aschenbach escritor do Aschenbach mÖsico.<br />

O trabalho de Visconti na retrataÄÜo da atmosfera de decadÑncia<br />

de <strong>Veneza</strong> Ç bastante hÉbil. Ele consegue criar uma atmosfera de<br />

decadÑncia no filme, que Ç gerado nÜo sâ por meio de tomadas de<br />

cámera selecionada de <strong>Veneza</strong>, mas tambÇm pelo excelente uso de<br />

adereÄos. Deve levar as marcas da decadÑncia o salÜo marcado por<br />

instalaÄÅes luxuosas com mosaicos de vidro colorido, mâveis de couro<br />

escuro e flores extraordinÉrias.<br />

Visconti usa muitas imagens do modelo literÉrio como, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, a fisionomia dos vÉrios mensageiros da morte. Algumas das<br />

interpretaÄÅes e metÉforas ficam a cargo de sua imaginaÄÜo.<br />

Acrescentou tambÇm um hom<strong>em</strong> morrendo na estaÄÜo quando<br />

Aschenbach estÉ prestes a deixar <strong>Veneza</strong>. Visconti brinca com as cores<br />

que sÜo uma constante <strong>em</strong> seus trabalhos. Ele utiliza o branco e<br />

62 “Os grandes conflitos que funcionam na base do diÉlogo Fedro de PlatÜo sobre a arte, a<br />

beleza, o dever e a paixÜo por toda a novela, e a polaridade nietzschiana de dionisàaco e<br />

apolàneo discutido na arte, surg<strong>em</strong> de forma atrofiada ao lado de flashbacks infelizes e<br />

caricatos que permeiam a consciÑncia de Aschenbach como restos espalhados de consciÑncia.”<br />

(traduÄÜo livre)


95<br />

vermelho associados ç doenÄa e a morte, mostra o quÜo atraente essas<br />

cores pod<strong>em</strong> ser. Seja atravÇs da palidez de Tadzio, ou do terno branco,<br />

o rosto maquiado e vermelho, a gravata vermelha, entre outros<br />

ex<strong>em</strong>plos, que mostram a entrada do deus Dionàsio.<br />

NÜo obstante todas as cràticas e alguns elogios acerca do filme de<br />

Visconti, dev<strong>em</strong>os l<strong>em</strong>brar que cada adaptaÄÜo literÉria Ç<br />

necessariamente uma interpretaÄÜo ou uma leitura do original. Alguns<br />

diretores procuram chegar o mais prâximo possàvel do texto base, mas<br />

mesmo assim nÜo deixam de trabalhar com uma interpretaÄÜo pessoal,<br />

de modo que a mesma Ç transmitida de acordo com os recursos e a<br />

imaginaÄÜo de cada um. No entanto, Visconti consegue captar<br />

majestosamente, atravÇs de sensàveis imagens da cidade de <strong>Veneza</strong>, o<br />

clima de decadÑncia e morbidez que para muito leitores da novela sÜo a<br />

ideia central. A cena final Ç um deslumbre de sensaÄÅes, visuais,<br />

auditivas. Uma <strong>em</strong>briaguez de imagens que Dionàsio certamente<br />

celebrou.<br />

Acima da decadância<br />

O modernismo e o pâs-modernismo nÜo sÜo eras<br />

cronolâgicas, mas posiÄÅes polàticas na luta, que<br />

jÉ leva um sÇculo, entre a arte e a tecnologia. Se o<br />

modernismo expressa uma nostalgia utâpica que<br />

antecipa a reconciliaÄÜo da funÄÜo social com a<br />

forma estÇtica, o pâs-modernismo reconhece sua<br />

falta de identidade e mantÇm viva a fantasia.<br />

(BUCK-MORSS, 2002, p. 424)<br />

O diÉlogo intertextual com a obra de Mann vai alÇm de A morte<br />

<strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> e revela-se tambÇm <strong>em</strong> outras formas narrativas do autor<br />

al<strong>em</strong>Üo, por ex<strong>em</strong>plo, os romances Doutor Fausto (1947) 63 e A<br />

63 Fausto Ç o protagonista de uma lenda popular al<strong>em</strong>Ü de um pacto com o d<strong>em</strong>änio, baseada no<br />

mÇdico, mÉgico e alquimista al<strong>em</strong>Üo Dr. Johannes Georg Faust (1480-1540). O nome Fausto<br />

t<strong>em</strong> sido resgatado como base de diversos romances, sendo o de Johann Wolfgang von Goethe<br />

um dos mais conhecidos. Sua versÜo foi lanÄada <strong>em</strong> duas partes. A primeira parte e tambÇm a<br />

mais famosa foi publicada <strong>em</strong> 1806 e a segunda, <strong>em</strong> 1832, çs vÇsperas da morte do autor.<br />

Considerado um dos maiores sàmbolos da modernidade, Fausto Ç um po<strong>em</strong>a quase Çpico que<br />

descreve a tragÇdia do Dr. Fausto, hom<strong>em</strong> das ciÑncias que, desiludido com o conhecimento de


96<br />

Montanha mÄgica (1924) e o conto Tõnio Kroger (1903), transformando<br />

o romance de Trevisan uma obra bastante diversa. No entanto, como jÉ<br />

declaramos anteriormente, ir<strong>em</strong>os dar Ñnfase ao intertexto entre os<br />

personagens Alberto Nepomuceno e Gustav von Aschenbach.<br />

A identificaÄÜo de Nepomuceno com Aschenbach Ç parte de uma<br />

leitura sobre o hom<strong>em</strong> e o artista do inàcio do sÇculo, caracteràstica<br />

comum aos dois personagens. O artista Ç visto como o herâi da<br />

modernidade, de acordo com Baudelaire, o ser que Ç capaz de captar as<br />

int<strong>em</strong>pÇries da sociedade e transformÉ-la <strong>em</strong> algo belo. AlÇm disso, a<br />

descriÄÜo do artista <strong>em</strong> Nepomuceno Ç trabalhada como um ser<br />

inconformado que vivia sob o signo do fracasso <strong>em</strong> relaÄÜo a sua obra.<br />

Talvez ele se considere um artista fracassado por nÜo ter conseguido<br />

produzir uma obra arrebatadora e por ter mergulhado no seu Eu <strong>em</strong><br />

d<strong>em</strong>asia, afundando-se <strong>em</strong> sua subjetividade, que Ç para alguns<br />

estudiosos uma das caracteràsticas do hom<strong>em</strong> moderno. Nesse sentido, o<br />

compositor Gustav Mahler tambÇm poderia fazer parte dessa lâgica<br />

subjetiva, sob a perspectiva de sua obra moderna. Cada sinfonia sua<br />

apresenta uma espÇcie de filosofia fundamental do compositor no<br />

concernente ç vida e morte, ao herâico e pessoal, que Ç profundamente<br />

enraizado na mÖsica. Mahler foi possivelmente um dos primeiros<br />

existencialistas, usando suas composiÄÅes com uma carga de<br />

subjetivismo que traduziam as angÖstias do hom<strong>em</strong> que vivia a crise fin<br />

du siàcle. Mahler <strong>em</strong> um gesto puramente moderno busca superar os<br />

limites da tonalidade, o que pode ser percebido <strong>em</strong> muitas de suas obras<br />

devido a presenÄa de longos trechos que parec<strong>em</strong> nÜo estar <strong>em</strong> tom<br />

algum. Outra marca de sua composiÄÜo Ç seu carÉter melancâlico e<br />

sombrio, muitas vezes, quase funesto. Suas sinfonias sÜo t<strong>em</strong>Éticas e<br />

geralmente influcenciadas pela literatura ou pela filosofia. Ele<br />

costumava usar melodias folclâricas, marchas que davam o colorido<br />

especial a suas composiÄÅes. Suas sinfonias bastante vivas, com<br />

alternáncias rÉpidas e inesperadas de notas altas e baixas, sons fortes e<br />

fracos, momentos de tragÇdia, de triunfo. Pod<strong>em</strong>os dizer que Mahler Ç<br />

um trÉgico na modernidade, um legàtimo filho de Saturno.<br />

A primeira anÉlise que faz<strong>em</strong>os acerca da vida do compositor<br />

austràaco Ç que ela era simples e s<strong>em</strong> grandes atribulaÄÅes:<br />

“Soziokulturell stellt Mahler in vielen Punkten das Gegenbild eines<br />

seu t<strong>em</strong>po, faz um pacto com Mefistâfeles, que o enche com o encanta atravÇs das promessas<br />

apaixonadas pela tÇcnica e o progresso.


97<br />

DÇcadent dar“ 64<br />

(DANUSER, 2004, p.821). No entanto, seu<br />

relacionamento conturbado com a esposa dezoito anos mais jov<strong>em</strong> era<br />

motivo para fazÑ-lo afundar <strong>em</strong> sua subjetividade e acidia: “Die Aff§re<br />

seiner lebenshungrigen Gattin mit Walter Gropius stérzte Mahler in tiefe<br />

Verzweiflung und erschéttelte sein Innerstes“ 65 (DANUSER, 2004,<br />

p.823).<br />

Em suas composiÄÅes presenciamos constat<strong>em</strong>ente passagens<br />

alegres que sÜo substituàdas por outras trÉgicas, ou seja, sÜo um reflexo<br />

de sua vida conjugal conturbada. Mahler teve uma infáncia difàcil: seu<br />

pai espancava a mulher, seu irmÜo irmÜo morreu precoc<strong>em</strong>ente e logo<br />

depois seus pais morreram bastante jov<strong>em</strong>. NÜo nos admira que a morte<br />

surja constant<strong>em</strong>ente <strong>em</strong> sua obra. Para Theodor Adorno, <strong>em</strong> seus<br />

estudos sobre a mÖsica a composiÄÜo de Mahler 66 , sua obra Ç uma ferida<br />

aberta que se revela de forma trÉgica. De acordo com Adorno: “Der Ton<br />

des Traumatischen an Mahlers Musik, ein subjektives Moment der<br />

Gebrochenheit, ist nicht zu verleugnen, und er hat ihn gegen die<br />

Ideologie der mens sana in corpore sano gefestigt” (ADORNO, 1985,<br />

p.173). 67<br />

Em sua terceira sinfonia, que foi composta entre 1893 e 1895,<br />

Mahler utilizou-se, <strong>em</strong> seu quarto movimento, de um trecho para<br />

contralto do Zaratustra de Nietzsche. Nele hÉ todo um contexto maior,<br />

relacionado tambÇm çs l<strong>em</strong>branÄas da infáncia e ç associaÄÜo com a<br />

morte e o amor, sugerindo uma interpretaÄÜo muito mais particular do<br />

texto do autor de A gaia ciÜncia. Mahler foi levado por objetivos prÇconcebidos<br />

de sua sinfonia que nÜo tinha a ver com o “super-hom<strong>em</strong>”<br />

nietzschiano. Como mencionado anteriormente, a doutrina de Nietzsche<br />

do “super-hom<strong>em</strong>” veio de sua crenÄa na morte de Deus 68 . Mahler, no<br />

64<br />

Mahler representava <strong>em</strong> vÉrios aspectos sâcio-culturais o contrÉrio de um decadente<br />

(TraduÄÜo livre).<br />

65<br />

Os casos de sua esposa sedenta por aventuras com Walter Gropius lanÄavam-no <strong>em</strong> profundo<br />

desespero e r<strong>em</strong>exiam seu interior (TraduÄÜo livre).<br />

66<br />

A histâria da mÖsica erudita no sÇculo 20 conta com a contribuiÄÜo do teârico al<strong>em</strong>Üo<br />

Theodor Adorno. Em 1949 lanÄou sua obra Filosofia da Nova Mâsica (seu tàtulo original<br />

Philosophie der Neuen Musik), <strong>em</strong> que ele analisa os novos caminhos da mÖsica do sÇculo 20 e<br />

uma sociedade cada vez mais dominada pela cultura de massas. As novas màdias transformam<br />

nÜo sâ a mÖsica, mas a concepÄÜo de obra de arte. Nesse ànterim, Adorno lanÄa<br />

questionamentos sobre o papel do artista, no concernente ç banalizaÄÜo dos valores culturais<br />

<strong>em</strong> nome de sua relaÄÜo com o mercado de consumo.<br />

67<br />

NÜo pod<strong>em</strong>os negar o tom do traumÉtico <strong>em</strong> Mahler e o momento subjetivo do cansaÄo e ele<br />

o fixou contra a ideologia do mens sana in corpore sano. (traduÄÜo livre)<br />

68<br />

Essa frase foi proferia pelo protagonista de Assim falou Zaratustra. A afirmaÄÜo da morte de<br />

Deus tambÇm se encontra <strong>em</strong> outra obra do pensador al<strong>em</strong>Üo, A gaia ciÜncia. Nietzsche nÜo


entanto, rejeitava Nietzsche no peràdo <strong>em</strong> que compäs essa sinfonia.<br />

Segundo Nathanael J. Oster, <strong>em</strong> seu artigo sobre o mÖsico austràaco:<br />

98<br />

Mahler believed that love, compassion and childlike<br />

faith were all serious and important, in fact<br />

necessary, to human life. Nietzsche denied these<br />

sentiments and even laughed at th<strong>em</strong>. Nietzsche<br />

thought of love as a terribly unashamed<br />

stat<strong>em</strong>ent of arrogance while Mahler took<br />

Schopenhauer’s idea that all love is selfless<br />

compassion. (OSTER, 2001, p. 15)<br />

Na abertura do filme Morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, entramos <strong>em</strong> Ñxtase<br />

graÄas ç belàssima composiÄÜo de Gustav Mahler, o adagietto da<br />

Sinfonia n. 5. Segundo Visconti, a intenÄÜo de Thomas Mann ao<br />

retratar Gustav von Aschenbach era, na verdade, de retratar Mahler 69 .<br />

<strong>Ana</strong>tol Rosenfeld coaduna essa ideia ao dizer que<br />

Tampouco se pode objetar algo contra a<br />

identificaÄÜo do protagonista com o compositor<br />

Gustav Mahler, nÜo porque Mann de fato se<br />

referiu a ele, mas porque na sua obra se<br />

encontram fort<strong>em</strong>ente acentuados os motivos da<br />

glorificaÄÜo da beleza e do anseio da morte.<br />

(ROSENFELD, 1994, p. 185)<br />

NÜo nos admira o fato de que Visconti tenha se apropriado da 5.ß<br />

e da 3.ß sinfonias, que sÜo, respectivamente, referÑncia ç morte e ç<br />

encarnaÄÜo dionisàaca. A morte e as reflexÅes saturninas que se revelam<br />

atravÇs da melancolia criadora sÜo o traÄo fundamental entre os trÑs<br />

afirma que o hom<strong>em</strong> matou Deus, eles e refere ao que Deus representava para a cultura<br />

europeia, ç crenÄa cultural compartilhada <strong>em</strong> Deus que no passado havia sido a caracteràstica<br />

que unia e definia a Europa. Nietzsche estava falando da cultura ocidental s<strong>em</strong> Deus, falando<br />

que a noÄÜo cristÜ de Deus estava morta, que nÜo podia mais ser racionalmente aceita. Ele fala<br />

da decadÑncia da metafàsica no pensamento ocidental.<br />

69 Embora A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> tenha sido escrito durante 1911 e 1912 e publicado no Öltimo<br />

ano, a associaÄÜo entre Gustav von Aschenbach e Gustav Mahler ficou conhecido somente <strong>em</strong><br />

1921. Naquele ano, surgiu <strong>em</strong> Munique um Élbum de ilustraÄÅes para novela de Thomas Mann,<br />

cujo criador foi o pintor e artista grÉfico al<strong>em</strong>Üo Wolfgang Born. Mann escreveu uma carta de<br />

agradecimento a Born que o artista incorporou ao Élbum como um prefÉcio intitulado Der<br />

Dichter an den Maler. Nesta carta, Thomas Mann, pela primeira vez, revela que sua<br />

interpretaÄÜo de Gustav von Aschenbach incorpora certos el<strong>em</strong>entos de Gustav Mahler.


99<br />

artistas. Gustav von Aschenbach, Alberto Nepomuceno e Gustav Mahler<br />

revelam-se regidos pelo signo de saturno, nÜo somente pelo carÉter<br />

acidioso, melancâlico, solitÉrio e criativo, mas porque partilham a dor<br />

paroxàstica da busca de um objeto impossàvel. Aschenbach deseja<br />

Tadzio, Nepomuceno deseja a mulher <strong>em</strong> seu navio para a Europa e<br />

Mahler a prâpria mulher que nÜo o amava. O melancâlico conserva seu<br />

luto por um objeto difàcil der ser re-capturado depois de sua perda. è<br />

nesse contexto que hÉ uma identificaÄÜo narcàsica com o objeto perdido<br />

(ou com a Coisa), instalando-o dessa forma no prâprio sujeito. è o que<br />

marca a dor trÉgica dos trÑs artistas: amam um objeto impossàvel e se<br />

deliciam, ao mesmo t<strong>em</strong>po, com os prazeres da busca desencantada.<br />

HÉ outro interessante elo entre Mahler e Nepomuceno, nÜo<br />

obstante sua condiÄÜo de artista imerso <strong>em</strong> uma profunda subjetividade:<br />

Mahler nasceu curiosamente no dia 7 de julho de 1860 e Alberto<br />

Nepomuceno no dia 6 de julho de 1864, ambos vivenciaram os conflitos<br />

da crise de fin du siàcle incorporada pelos artistas. Em meio a tanta dor,<br />

surge a exigÑncia de uma veia alegre <strong>em</strong> suas composiÄÅes, que Ç um<br />

suspiro Öltimo de alegria, pois pincela ambas as obras: a preferÑncia dos<br />

dois artistas por el<strong>em</strong>entos folclâricos lhes distribui cor num Étimo de<br />

vida.<br />

Depois da morte de Deus decretada por Nietzsche, o hom<strong>em</strong> sâ<br />

volta para si <strong>em</strong> busca de respostas e afunda-se <strong>em</strong> um subjetivismo<br />

irreversàvel. Pod<strong>em</strong>os, desse modo, dizer que Nepomuceno, Aschenbach<br />

e Mahler sÜo vàtimas dessa virada subjetiva. Afirmamos que ambos, nÜo<br />

somente por sua condiÄÜo de artista, mas tambÇm por sua profunda<br />

busca <strong>em</strong> sua subjetividade, sÜo representantes da modernidade; atravÇs<br />

de suas autorreflexÅes pod<strong>em</strong>os perceber seu carÉter subjetivo.<br />

Sou mesmo um trÉgico. OuÄa tudo que eu<br />

compus. è tÜo triste! Foi o melhor que pude dar<br />

de mim, a tristeza. AtÇ as minhas valsas<br />

humorásticas, onde brinco com o Danâbio azul e<br />

Chopin sÜo antes de tudo, filhas da nostalgia.<br />

Mas se quiser um ex<strong>em</strong>plo acabado, basta ouvir<br />

minha Sinfonia para saber como a tristeza estÉ<br />

presente <strong>em</strong> mim. E a angÖstia, o medo a<br />

incerteza (...). è o medo de buscar definiÄÅes<br />

impossàveis 70 . Porque dâi. Cada gesto, cada<br />

70 Esse medo por definiÄÅes Ç uma das pr<strong>em</strong>issas pâs-modernas. è uma cràtica ao racionalismo<br />

ocidental, ç modernidade e sua necessidade de verdades indiscutàveis e inabalÉveis. Linda


100<br />

mÖsculo, cada segundo. Tudo dâi. (TREVISAN,<br />

1998, p. 30)<br />

Outro ex<strong>em</strong>plo, desta vez atravÇs do discurso do narrador sobre<br />

Nepomuceno:<br />

Cheio de saudosa melancolia, que se materializa<br />

<strong>em</strong> vÉrios suspiros por minuto, tu te retiras para<br />

um canto mais sossegado dos jardins, onde<br />

possas entregar-te a ti mesmo. Caminhas, olhas e,<br />

na tua intimidade, saboreias a irrupÄÜo da<br />

primavera... (TREVISAN, 1998, p. 342)<br />

O subjetivista, <strong>em</strong> sua intimidade “saboreia a irrupÄÜo da<br />

primavera”, a alegria que v<strong>em</strong> depois da tristeza diz que a melancolia<br />

nÜo Ç sâ passiva, ela tambÇm Ç ativa, Ç potÑncia enquanto resistÑncia de<br />

um real totalizante.<br />

Ex<strong>em</strong>plificamos <strong>em</strong> A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> atravÇs do narrador sobre<br />

Aschenbach para podermos perceber o mergulho subjetivo do<br />

personag<strong>em</strong>: (...) esperando, encontrara, durante alguns minutos, uma<br />

distraÄÜo sÇria, lendo as fârmulas e deixando seu espàrito perder-se na<br />

transparÑncia màstica (...). (MANN, 1971, p. 90)<br />

A leitura intertextual com a novela de Thomas Mann apresenta<br />

recursos estÇticos importantes que ligam as duas obras. De inàcio t<strong>em</strong>os<br />

o tàtulo s<strong>em</strong>elhante atravÇs do nome “<strong>Veneza</strong>”. A chegada ç cidade<br />

italiana para Alberto Nepomuceno dÉ-se de forma s<strong>em</strong>elhante ç de<br />

Aschenbach: “Os gondoleiros discutiam entre si, com gestos<br />

ameaÄadores e gritos <strong>em</strong> seu dialeto seco, disputando os forasteiros<br />

recÇm-chegados, enquanto dois guardas tentavam <strong>em</strong> vÜo organizar o<br />

<strong>em</strong>barque”. (TREVISAN, 1998, p. 349)<br />

Para melhor elucidarmos nossa comparaÄÜo, apresentamos um<br />

trecho de A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>: “Os gondoleiros continuavam brigando,<br />

rudes, incompreensàveis, com gestos ameaÄadores” (MANN, 1971, p.<br />

110). <strong>Veneza</strong> desperta <strong>em</strong> ambos os personagens admiraÄÜo e medo. A<br />

Hutcheon, <strong>em</strong> sua PoÑtica do pÉs-modernismo, aponta para essa caracteràstica da condiÄÜo<br />

pâs-moderna. Citando Bertens, ela diz: “O pâs-modernismo questiona sist<strong>em</strong>as centralizados,<br />

totalizados, hierarquizados e fechados: questiona, mas nÜo destrâi (BERTENS 1986, apud<br />

HUTCHEON, 1991, p.65). Pod<strong>em</strong>os interpretar, a partir do discurso de Nepomuceno que o<br />

subjetivista nÜo t<strong>em</strong> a certeza dos modernistas.


101<br />

cidade poderia ser lida como outro personag<strong>em</strong> que interfere <strong>em</strong> seus<br />

destinos. Como indica o tàtulo, <strong>Veneza</strong> Ç nas duas narrativas o prenÖncio<br />

de algo ruim, da morte. HÉ, nessa cidade, um detestÉvel estado causado<br />

pelo ar marinho e uma malÇfica intervenÄÜo da laguna com sua<br />

atmosfera de febre. O sol e o mar pod<strong>em</strong> ser considerados tambÇm como<br />

personagens secundÉrios, haja vista as inÖmeras referÑncias a eles e<br />

tamanha a sua importáncia para as duas narrativas.<br />

<strong>Veneza</strong> reluzia, ao sol da manhÜ, quase<br />

<strong>em</strong>ergindo da Égua, que Ç aqui um el<strong>em</strong>ento<br />

onipresente, acentuado mais ainda pelo odor da<br />

maresia (....). Ali debaixo da luz matinal que na<br />

tudo dourava, tua boca mantinha-se escancarada,<br />

enquanto teus olhos locupletavam-se com<br />

aquelas portas, escadas, janelas e balcÅes<br />

requintados. (TREVISAN, 1998, p. 350)<br />

A capital do VÑneto nos sugere uma leitura da imag<strong>em</strong><br />

benjaminiana da ruàna, porque <strong>Veneza</strong> Ç a ruàna, Ç a sobrevivÑncia da<br />

histâria que passou tentando resistir na modernidade, que tambÇm jÉ nÜo<br />

se apresenta de forma infalàvel. Segundo Susan Buck-Morss: “De modo<br />

geral, atravÇs de todo o material do Passagen-Werk, a imag<strong>em</strong> da<br />

“ruàna”, como <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>a nÜo sâ da fragilidade e transitoriedade da<br />

cultura capitalista, mas tambÇm de sua destrutibilidade”. (BUCK-<br />

MORSS 1994, p. 350)<br />

è <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> <strong>em</strong> que ambos os personagens compartilham sua<br />

condiÄÜo de exilado. A condiÄÜo de exàlio vai muito alÇm do ato<br />

migratârio, ou seja, Ç possàvel sentir-se exilado na prâpria terra. O exàlio<br />

pode atÇ mesmo apresentar vÉrias facetas: como a separaÄÜo de si<br />

mesmo, a desterritorializaÄÜo, ou a separaÄÜo do Outro.<br />

Esse Ç um dos t<strong>em</strong>as mais importantes para a elaboraÄÜo de <strong>Ana</strong><br />

<strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>. Em uma entrevista de JoÜo SilvÇrio Trevisan concedida ç<br />

Vera LÖcia de Souza Borges, ele afirma que no que diz respeito ç<br />

questÜo dos chamados “ex-cÑntricos”, ou grupo de excluàdos do centro,<br />

nÜo houve uma tentativa consciente sua de falar sobre as minorias, mas<br />

que eles surg<strong>em</strong> no romance tacitamente, jÉ que eles carregam <strong>em</strong> si a<br />

marca do exàlio. Ele revela que: “sâ consegui escrever o <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>,<br />

um livro sobre exàlio, porque eu sou homossexual, ou seja, me sinto um<br />

exilado” (BORGES, 1999, p. 149). O exàlio de que nos fala JoÜo<br />

SilvÇrio Ç a separaÄÜo social, Ç a exclusÜo por nÜo poder pertencer ao


102<br />

todo. NÜo somente Nepomuceno, mas tambÇm a escrava <strong>Ana</strong> e Julia<br />

compartilham o exàlio. Os trÑs personagens apresentam histârias de<br />

vidas bastante diferentes, mas que se encontram e des<strong>em</strong>bocam na dor<br />

invisàvel da saudade e do estranhamento. O percorrer por novas cidades<br />

sâ contribui para arrancar do peito as m<strong>em</strong>ârias da pÉtria abandonada: a<br />

Paraty de <strong>Ana</strong> e Julia, b<strong>em</strong> como o exàlio linguàstico que as cala e as<br />

torna ainda mais impotentes; a Fortaleza de Alberto Nepomuceno, seus<br />

ventos e suas jangadas. E eis que t<strong>em</strong>os o paradoxo da existÑncia exilada<br />

de Nepomuceno, que almejava uma obra puramente brasileira, com a<br />

cor e o calor do Brasil, mas sâ podia sentir o sirocco de <strong>Veneza</strong>. O exàlio<br />

que une os personagens de Trevisan a Gustav von Aschenbach Ç o exàlio<br />

do ser exilado <strong>em</strong> si mesmo 71 . Nepomuceno Ç o Önico que consegue<br />

voltar para sua pÉtria abandonada. Volta a suas origens, mas descobre<br />

que nÜo podia mais chamÉ-las de pÉtria: “è assim, comigo: estou<br />

dividido entre dois mundos, s<strong>em</strong> pertencer a lugar nenhum”<br />

(TREVISAN, 1998, p. 44). O exàlio Ç muito menos uma questÜo<br />

espacial do que uma experiÑncia ontolâgica do indivàduo <strong>em</strong> relaÄÜo a<br />

sua prâpria existÑncia; “Ah, Alberto Nepomuceno! ®s vezes andas pelas<br />

ruas e de repente te perguntas: onde estou? Qu<strong>em</strong> sou eu?” (Id<strong>em</strong>).<br />

A virada mais importante <strong>em</strong> nosso trabalho surge entre os dois<br />

tàtulos, atravÇs das palavras “morte” e “<strong>Ana</strong>”. Alberto Nepomuceno Ç<br />

um hom<strong>em</strong> desencantado: “deparei-me com o hom<strong>em</strong> porventura mais<br />

desencantado do que tive conhecimento” (TREVISAN, 1998, p. 10).<br />

Um desencantado e melancâlico que, nÜo obstante as tentativas da morte<br />

para seduzi-lo e levÉ-lo ao baile orgiÉtico de Dionàsio, consegue vencÑlas<br />

atravÇs da alegria e vivacidade de sua mÖsica. A morte ainda Ç um<br />

motivo comum aos dois personagens: Gustav von Aschenbach e Alberto<br />

Nepomuceno, mas com um diferencial ontolâgico fundamental: a<br />

afirmaÄÜo da vida <strong>em</strong> Nepomuceno.<br />

O mÖsico cearense, assim como Aschenbach, recebe <strong>em</strong> sua<br />

caminhada no exàlio os sinais de Tánato. A morte torna-se-lhe<br />

consciente e ao mesmo t<strong>em</strong>po uma obsessÜo: “Deixar Roma trouxe-me<br />

um grande abatimento. Ainda vejo a morte por toda parte. Tornou-se<br />

uma obsessÜo” (TREVISAN, 1998, p.333). Em seguida prossegue com<br />

seu discurso:<br />

71 Ver capàtulo sobre o ser exilado.<br />

Serei pranteado quando morrer? Sim, creio que<br />

conheÄo alguns humanos – insensatos, na


103<br />

verdade – que irÜo chorar a minha perda. Tal<br />

pensamento me consola, ah, consola-me tanto,<br />

como se eu tivesse nascido sâ para merecer essa<br />

parcela de amor que eles me devotam, os pobres<br />

e queridos insensatos do meu coraÄÜo!<br />

(TREVISAN, 1998, p. 333)<br />

Alguns objetos cuja simbologia estÉ ligada ç morte tambÇm<br />

surg<strong>em</strong> no romance de Trevisan, como a gändola 72 :<br />

Estavas desnorteado, <strong>em</strong> meio çquela discussÜo<br />

que, de tÜo intensa parecia um espetÉculo<br />

encenado, quase uma festa disfarÄada, quando<br />

um deles, mais afoito, tomou-te pelo braÄo atÇ a<br />

sua gändola. Penetraste assustado naquele<br />

pequeno ámbito de laca negra, reluzente: um<br />

ataÖde de luxo. (TREVISAN, 1998, p. 349)<br />

A personag<strong>em</strong> <strong>Ana</strong>, a escrava de Julia Mann, morreu ç beira do<br />

mar, assim como Aschenbach. <strong>Ana</strong> fora para Europa e abraÄara o signo<br />

de Eros, por isso padeceu de forma trÉgica, assim como Aschenbach,<br />

que se entregara a Tadzio. A escrava rendeu-se a Eros a partir do<br />

momento <strong>em</strong> que decide amar o artista Gustav Sternkopf 73 e por ele ser<br />

amada.<br />

A morte transita nas duas obras e se manifesta sobre a forma da<br />

doenÄa, outro t<strong>em</strong>a que liga a obra manniana ao romance de Trevisan. A<br />

doenÄa como uma entidade que personifica a decadÑncia. Nesse sentido,<br />

o romance A montanha mÄgica talvez seja um dos mais <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>Éticos<br />

da obra de Thomas Mann. Nele, as anÉlises da experiÑncia de Hans<br />

Castorp no Sanatârio Berghof, na cidade de Davos, SuàÄa, acumulou<br />

certo padrÜo interpretativo ao longo da segunda metade do sÇculo XX.<br />

A primeira interpretaÄÜo sobre o personag<strong>em</strong> Hans Castorp Ç a de um<br />

72 A gändola Ç um dos grandes sàmbolos da cidade de <strong>Veneza</strong>. Impressionam pelo seu formato<br />

que l<strong>em</strong>bra um sarcâfago. O gondoleiro Ç uma figura que, <strong>em</strong> seu ofàcio, nos l<strong>em</strong>bra o<br />

barqueiro de Caronte. Caronte era encarregado de realizar a travessia dos mortos pelo Rio<br />

Estige (Styx), e sâ transportava almas cujos corpos tivess<strong>em</strong> sido enterrados com uma moeda<br />

(âbolo) debaixo da làngua, com a qual deveriam pagar a travessia. è um el<strong>em</strong>ento a mais da<br />

paradoxal <strong>Veneza</strong>: bela e mârbida.<br />

73 Note-se que Trevisan utiliza os nomes dos personagens mannianos, por ex<strong>em</strong>plo, o nome do<br />

amante de <strong>Ana</strong>, Gustav; ou o repârter que entrevista Alberto Nepomuceno, chamado Adriano e<br />

faz uma referÑncia ao personag<strong>em</strong> Adrian Leverkéhn (o sobrenome significa algo parecido<br />

com “viva audaciosamente”) do livro de Mann, Dr. Fausto.


104<br />

sujeito medàocre incapaz de reconhecer a transcendÑncia da vida, imerso<br />

<strong>em</strong> um mundo burguÑs e decadente. Castorp, no entanto, graÄas ao<br />

contato com a doenÄa (tuberculose) e com a morte consegue alcanÄar<br />

certo estado de “ascensÜo” a um plano transcendental. Assim como<br />

Aschenbach, Castorp se desloca do norte para o sul, da saÖde e<br />

seguranÄa, para o desconhecido, doenÄa e morte. O que difere os dois Ç<br />

justamente o fato de que Aschenbach parte a caminho da decadÑncia<br />

enquanto que Hans Castorp, nÜo obstante seu contato com a doenÄa,<br />

busca uma superaÄÜo de seus valores fàsicos, morais e psicolâgicos, de<br />

forma que a A montanha mÄgica pode ser interpretada como um<br />

romance de formaÄÜo. De acordo com Malcolm Bradbury:<br />

As experiÑncias de Hans durante os sete anos que<br />

ali passa constitu<strong>em</strong> um processo de crescimento<br />

como pessoa. No entanto, sÜo tambÇm as<br />

descobertas <strong>em</strong>ocionais, intelectuais e polàticas<br />

de toda uma era, um mundo de prÇ-guerra<br />

obcecado com morte e desord<strong>em</strong>, caminhando<br />

rumo ao conflito. (BRADBURY, 1989, p. 102)<br />

Alberto Nepomuceno aproxima-se mais de Castorp nesse sentido,<br />

a partir do momento <strong>em</strong> que o protagonista vai a <strong>Veneza</strong> e lÉ consegue<br />

superar seu pessimismo melancâlico; nele pod<strong>em</strong>os ler uma necessidade<br />

de ascender a um plano superior, mesmo que Nepomuceno apresente,<br />

<strong>em</strong> seu ceticismo, durante quase todo o romance uma obsessÜo pela<br />

morte. Ainda sobre a doenÄa na obra de Thomas Mann, profere <strong>Ana</strong>tol<br />

Rosenfeld:<br />

A morbidezza, a decadÑncia, o sofrimento, a<br />

doenÄa, a morte sÜo “constantes” nas obras de<br />

Nietzsche, Schopenhauer e Wagner, os vultos<br />

que, depois de Goethe, marcaram o espàrito de<br />

Mann, e o sofrimento de uma mulher tuberculosa<br />

foi descrito com minÖcia por Theodor Fontane,<br />

outro escritor al<strong>em</strong>Üo que muito o influenciou.<br />

(ROSENFELD, 1994, p. 149)<br />

Faz-se necessÉrio l<strong>em</strong>brar que no romance <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, a<br />

personag<strong>em</strong> <strong>Ana</strong> morre de tuberculose: “No Diretârio dos Pobres, dona<br />

<strong>Ana</strong> ficara sabendo que estava infectada pela tuberculose” (TREVISAN,


105<br />

1998, p. 499). JoÜo SilvÇrio se afasta do modelo manniano e da<br />

referÑncia e culto ç morte e ç doenÄa. Alberto Nepomuceno, por sua vez,<br />

continua <strong>em</strong> sua trilha s<strong>em</strong> Eros e consegue defender com seu discurso<br />

final a vida:<br />

Pois ainda que os espasmos do amor e da morte<br />

sejam sim s<strong>em</strong>elhantes os espasmos do amor<br />

superam os da morte, isso eu sei, e ainda que eu<br />

tenha compreendido todos os mistÇrios se nÜo<br />

tiver amor nada terei compreendido e portanto eu<br />

sei que Ç um SIM, sim faÄo hoje vinte e sete anos<br />

brasileiros, um brinde a isso ou seria, cinqéenta<br />

estrangeiros ou entÜo... (TREVISAN, 1998, p.<br />

649)<br />

O “SIM” de Nepomuceno Ç um sim que exalta a vida e o amor, a<br />

celebraÄÜo da vida assim como desejaria Dionàsio. A afirmaÄÜo da vida<br />

<strong>em</strong> Nepomuceno pode ser lida como uma vitâria do projeto nietzschiano<br />

<strong>em</strong> relaÄÜo ç mÖsica como fundamento primeiro para o projeto da<br />

modernidade. Para Nietzsche a mÖsica Ç a arte mais arrebatadora porque<br />

nos oferece momentos de sentimentos intensos. Para ele a vida s<strong>em</strong> a<br />

mÖsica Ç simplesmente um erro. Em O nascimento da tragÑdia no<br />

Espárito da Mâsica, Nietzsche mostra sua concepÄÜo de que a tragÇdia<br />

era baseada numa visÜo fundamentalmente nova da GrÇcia, ou seja, o<br />

sentimento trÉgico da vida e sua celebraÄÜo. Ao resgatar o valor do<br />

hom<strong>em</strong> trÉgico grego, Nietzsche elege a mÖsica e seus significados para<br />

a afirmaÄÜo da vida: amor e liberdade criadora.<br />

Desde cedo, o pensador al<strong>em</strong>Üo identifica-se com a mÖsica do<br />

compositor Richard Wagner (para depois negÉ-lo), quando este redige,<br />

<strong>em</strong> 1870, um escrito <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> ao centenÉrio de Beethoven. O<br />

pensador al<strong>em</strong>Üo passa, entÜo, a vislumbrar o drama musical wagneriano<br />

enquanto possibilidade de uma reforma e revoluÄÜo na cultura a partir<br />

de sua arte. A tragÇdia jÉ nÜo Ç a negaÄÜo da existÑncia, mas sim uma<br />

afirmaÄÜo contrÉria ç cultura metafàsica cristÜ-platänica, a qual padecia<br />

a cultura ocidental. Para ele a mÖsica de Wagner era o caminho<br />

necessÉrio para esse fim. Se o projeto da modernidade mostra-se<br />

apoiado nessa lâgica do fim da tragÇdia e a instauraÄÜo do racionalismo<br />

da cultura cristÜ-platänica, pod<strong>em</strong>os concluir que Nietzsche revela-se<br />

como um dos primeiros pensadores antimodernos. A esse pensamento<br />

junta-se a anÉlise de Jérgen Habermas, para qu<strong>em</strong> Nietzsche foi o


106<br />

primeiro teârico “de tendÑncia pâs-moderna”. Segundo Habermas<br />

(1989, p.112-113):<br />

Nietzsche se sirve de la escalera de la razân<br />

histârica para al cabo tirarla y hacer pie en el<br />

mito, en lo otro de la razân: ©Pues el origen de la<br />

cultura historiogrÉfica —y de su, en el fondo,<br />

absoluta y radical contradicciân contra el espàritu<br />

de la "Edad Moderna", de una "conciencia<br />

moderna", ese origen tiene que ser aprehendido a<br />

su vez en tÇrminos historiogrÉficos; es el saber<br />

histârico el que tiene que resolver el probl<strong>em</strong>a<br />

del saber histârico; el saber tiene que volver su<br />

aguijân contra sà mismo —este triple "tiene que"<br />

es el imperativo del espàritu de la "Edad<br />

Moderna", en caso de que esta Edad Moderna<br />

entraüe algo realmente nuevo, poderoso,<br />

rometedor para la vida, y originario.<br />

Nturalmente, Nietzsche tiene aquà en mientes su<br />

Origen de la tragedia, una investigaciân<br />

practicada con medios histÇrico- filolâgicos, que<br />

pasando por detrÉs del mundo alejandrino, y del<br />

mundo romano-cristiano transporta a Nietzsche a<br />

los oràgenes, a la Grecia arcaica, al protomundo<br />

de lo grande, lo natural y lo humano. Este<br />

camino es el que han de <strong>em</strong>prender tambiÇn los<br />

©retoüos tardàos´ de la modernidad, atrapados<br />

ahora en um pensamiento practicado en actitud<br />

de anticuario, para convertirse en los ©primeros<br />

retoüos´ de una Çpoca postmoderna.<br />

Alberto Nepomuceno Ç, deste modo, um trÉgico no sentido<br />

nietzschiano, que celebra a vida, que a afirma e propÅe a mÖsica como<br />

potÑncia transformadora do universo. è nietzschiano porque se mostra<br />

inconformado com a racionalizaÄÜo do mundo e conseqéent<strong>em</strong>ente com<br />

sua desumanizaÄÜo. Nepomuceno Ç um antimoderno, porque jÉ nÜo se<br />

deixa levar pelo racionalismo iluminista que fundamenta a modernidade.<br />

O “SIM” de Nepomuceno, no entanto, Ç fruto de seu encontro<br />

com a escrava negra <strong>Ana</strong>, com qu<strong>em</strong> ele desenvolve amizade e<br />

admiraÄÜo profundas. <strong>Ana</strong> Ç o el<strong>em</strong>ento no romance que foge a todo o<br />

racionalismo moderno e consegue convencer o mÖsico cearense de que<br />

apesar de toda dor e sofrimento a vida vale a pena. Ela Ç a representaÄÜo


107<br />

maior no romance de Trevisan da superaÄÜo do pessimismo manniano, e<br />

assim diz ela ao mÖsico cearense: “A canoa virou? Deixa virar. è daà<br />

que nasce a fÇ” (TREVISAN, 1998, p.551). Se <strong>em</strong> A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>,<br />

Gustav von Aschenbach Ç confrontado com os mensageiros da morte,<br />

t<strong>em</strong>os que a personag<strong>em</strong> <strong>Ana</strong> de Trevisan Ç paradoxalmente a<br />

mensageira da vida, nÜo nos admira que o tàtulo do romance traga seu<br />

nome. Esse Ç o momento de ascensÜo que o mÖsico cearense atinge.<br />

Alberto Nepomuceno, Hans Castorp e o mÖsico Gustav Mahler<br />

partilham dessa necessidade de transcendÑncia, de ascensÜo a um plano<br />

superior. Para eles o transcendente deve levar ao pessoal.<br />

Ao analisarmos, por ex<strong>em</strong>plo, as sinfonias de Mahler, nÜo<br />

pod<strong>em</strong>os ter um conhecimento mais profundo do mundo como ele Ç,<br />

mas apenas como Mahler viu. Talvez seja um conhecimento mais<br />

profundo do que imaginamos, pois Ç o que caracteriza a subjetividade<br />

comum aos trÑs. A busca de uma compreensÜo pelo amor ç vida e ao<br />

eterno Ç o que aproxima Nepomuceno e Mahler, o “SIM” de<br />

Nepomuceno Ç a permissÜo para se deixar viver. JÉ quanto a Mahler,<br />

segundo Nathanael J. Oster (2001, p.36): “He could not separate love<br />

for this world from the longing for eternity. It is possible that eternity<br />

for Mahler was only a continuation of what was good in this life”. A<br />

vida sâ existe como uma necessidade de transcendÑncia, que se dÉ<br />

atravÇs do amor por ela.<br />

è sobre a negaÄÜo de Nepomuceno, nÜo aceitando ser um<br />

personag<strong>em</strong> de Mann, e negando-se a se entregar a Eros e morrer como<br />

Aschenbach que Nepomuceno subverte, profana o escritor al<strong>em</strong>Üo.<br />

Trevisan busca construir o sentido para seu romance a partir da obra de<br />

Thomas Mann, apropria-se dela, para <strong>em</strong> seguida rejeitÉ-la, Ç uma<br />

resposta antimoderna ao autor de Os Buddenbrook (1901). Nepomuceno<br />

Ç um hom<strong>em</strong> obcecado pela morte, mas que se lanÄa, ao mesmo t<strong>em</strong>po,<br />

ç vida. Esse hom<strong>em</strong> Ç ele negando Thomas Mann e seus personagens<br />

obscuros e decadentes: “NÜo, nÜo quero ser um personag<strong>em</strong> de Thomas<br />

Mann” (TREVISAN, 1998, p.43) 74 .<br />

De volta a sua entrevista, Trevisan assume que um dos pontos<br />

fundamentais de <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> Ç a cràtica que ele procura tecer acerca<br />

74 Essa cràtica t<strong>em</strong> dois lados, ou seja, nÜo querer ser um personag<strong>em</strong> de Thomas Mann pode<br />

dizer exatamente o contrÉrio, pois o prâprio personag<strong>em</strong> manniano se revoltaria contra ele; ou<br />

entÜo como o filho contra o pai, como aquele que nÜo quer olhar o futuro com tal pessimismo.


108<br />

do pessimismo na obra de Thomas Mann, <strong>em</strong> especial ao do romance<br />

Dr. Fausto:<br />

E a minha resposta do romance <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> Ç<br />

uma resposta ao Thomas Mann, de Dr. Fausto<br />

que Ç um profundo pessimismo. Foi um livro<br />

escrito durante a guerra... nÜo existe e ele nunca<br />

conseguiu aceitar a entrada do artista nesse<br />

conceito de arte moderna e a prâpria<br />

conceituaÄÜo de arte moderna que ela dÉ, Ç de<br />

uma extr<strong>em</strong>a ironia. (BORGES, 1999, p. 145)<br />

Trevisan ex<strong>em</strong>plifica atravÇs de seu personag<strong>em</strong> Alberto<br />

Nepomuceno, que Ç o responsÉvel pela desconstruÄÜo do protagonista<br />

artista de Dr. Fausto, Adrian Leverkéhn. O mÖsico cearense, nÜo<br />

obstante seu carÉter melancâlico e cÇtico, possui uma veia naif que Ç o<br />

contraponto dos seres obscuros mannianos. <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, segundo a<br />

entrevista de JoÜo SilvÇrio Trevisan, recebeu algumas cràticas bastante<br />

negativas na Al<strong>em</strong>anha, <strong>em</strong> alguns jornais como Frankfurter Allg<strong>em</strong>eine<br />

Zeitung e o Súddeutsche Zeitung. Ele aponta esse fato como uma reaÄÜo<br />

normal, jÉ que Thomas Mann Ç uma espÇcie de tot<strong>em</strong> sagrado para a<br />

literatura al<strong>em</strong>Ü, o que torna uma leitura iränica e profana do clÉssico<br />

al<strong>em</strong>Üo algo quase herÇtico. O escritor de Seis balas num buraco sÉ: a<br />

crise do masculino alega tambÇm que uma leitura sobre Thomas Mann<br />

vinda de um escritor latino americano e homossexual nÜo estaria livre de<br />

polÑmica. Ainda <strong>em</strong> sua entrevista fala sobre as cràticas na Al<strong>em</strong>anha:<br />

As duas sÜo exatamente irritadiÄas, comeÄam<br />

com referÑncias iränicas a meu respeito e vÜo atÇ<br />

o final e uma delas termina da seguinte maneira<br />

que Ç muito grosseira: “O autor Ç um autor<br />

pretensioso que pretendeu escrever um romance<br />

com uma proposta nÜo sei b<strong>em</strong> como Ç...”, mas<br />

qu<strong>em</strong> traduziu isso foi um amigo de Colänia que<br />

fala muitàssimo b<strong>em</strong> portuguÑs inclusive, ele<br />

estava no Brasil, justamente quando chegaram as<br />

duas cràticas e eu dei pra ele ler e ele me<br />

traduziu, e aà ele disse: “...ele Ç um pretensioso,<br />

que resolveu escrever um livro dessa estatura, ele<br />

jÉ Escreveu um livro que estÉ publicado <strong>em</strong><br />

portuguÑs, um livro que estÉ publicado pela<br />

editora Gay, Schwule”, ele diz, porque nÜo v<strong>em</strong>


109<br />

ao caso a editora Gay o que v<strong>em</strong> ao caso Ç o que<br />

estÉ <strong>em</strong> seguida, ele disse: o autor deveria<br />

continuar escrevendo esse tipo de livrinho, e<br />

termina a resenha aà. Aquilo que eu disse ont<strong>em</strong><br />

na palestra, eu fiquei muito chocado e me<br />

disseram exatamente o seguinte: o lugar de bicha<br />

Ç lÉ e nÜo aqui. Contente-se com o lugar que te<br />

deram, porque vocÑ escreve b<strong>em</strong> romance pra<br />

viado. (BORGES, 1999, p. 148)<br />

JoÜo SilvÇrio Trevisan entende essas cràticas como uma resposta<br />

cheia de ressentimento da sociedade manniana ferida.<br />

Ainda <strong>em</strong> sua entrevista, Trevisan revela que alÇm de Dr. Fausto<br />

e A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, outra narrativa de Thomas Mann que o<br />

influenciou profundamente foi o conto Enttóuschung 75 , no concernente<br />

ao t<strong>em</strong>a do pessimismo e da desilusÜo. Nele, o narrador observa na<br />

Piazza San Marco, <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, um senhor curioso que parece se ocupar<br />

todos os dias apenas com o bom ou mau t<strong>em</strong>po, s<strong>em</strong>pre sozinho e com o<br />

mesmo comportamento estranho: ele t<strong>em</strong> os olhos fixados para o chÜo 76 ,<br />

parecendo, atÇ mesmo, estar <strong>em</strong> algum tipo de transe. Em certa noite,<br />

sentado <strong>em</strong> um cafÇ na praÄa, o narrador Ç abordado por esse estranho<br />

que comeÄa a relatar a histâria de suas decepÄÅes. O que surge do seu<br />

discuro Ç um pessimismo caracteràstico de Schopenhauer 77 :<br />

Ich tr§ume davon, und ich erwarte den Tod. Ach,<br />

ich kenne ihn bereits so genau, den Tod, diese<br />

letzte Entt§uschung! Das ist der Tod? werde ich<br />

im letzten Augenblicke zu mir sprechen; nun<br />

75<br />

O tàtulo significa “decepÄÜo”, mas foi traduzido <strong>em</strong> sua ediÄÜo <strong>em</strong> portuguÑs por<br />

“desilusÜo”, o conto foi publicado <strong>em</strong> 1898 na coleÄÜo de novelas O pequeno Sr. Fried<strong>em</strong>ann.<br />

76<br />

L<strong>em</strong>br<strong>em</strong>os que essa Ç uma das caracteràsticas do saturnino, os olhos s<strong>em</strong>pre voltados para a<br />

terra.<br />

77<br />

NÜo pod<strong>em</strong>os esquecer que, alÇm de Nietzsche, outra grande influÑncia de Thomas Mann foi<br />

o filâsofo Arthur Schopenhauer. Para ele a vida consiste apenas <strong>em</strong> sofrimento. Trata-se do<br />

modo como ele concebe a existÑncia, ou seja, a vida sentida como uma dor infinita e<br />

inexorÉvel. A felicidade, prazer ou b<strong>em</strong>-estar, Ç lida por ele como ausÑncia de sofrimento.<br />

Nesse sentido, o fundamento destes Ç negativo, <strong>em</strong> oposiÄÜo ç positividade da dor. Para<br />

Schopenhauer o sofrimento engloba o mundo. A existÑncia Ç falta, carÑncia, desejo insaciÉvel e<br />

necessidade. No fim o que prevalece sÜo apenas dor e sofrimento.


110<br />

erlebe ich ihn! – Was ist das nun eigentlich?<br />

(MANN, 1991, p.101) 78<br />

Em <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, Alberto Nepomuceno faz uma leitura dos<br />

personagens mannianos, o que nos parece ser uma referÑncia ao conto<br />

DesilusÇo:<br />

Um personag<strong>em</strong> de Thomas Mann, qu<strong>em</strong> diria...<br />

Desses habitantes do mundo que acabou,<br />

desencantados com tudo, atÇ com a morte, da<br />

qual nada esperam. Sab<strong>em</strong> que nÜo serÉ mais<br />

desagradÉvel do que a vida. N<strong>em</strong> mais grandioso,<br />

apesar do que diz<strong>em</strong>. Que grande desilusÜo, a<br />

morte! Os olhos fecham-se pela Öltima vez e... E<br />

entÜo... acabou mesmo? Quer dizer, tudo?<br />

(TREVISAN 1998, p. 45-46)<br />

Para logo <strong>em</strong> seguida afirmar: “NÜo, nÜo quero ser um<br />

personag<strong>em</strong> de Thomas Mann” (TREVISAN, 1998, p.47). è nesse<br />

momento que se realiza a cràtica ao pessimismo <strong>em</strong> Thomas Mann<br />

atravÇs do diÉlogo intertextual.<br />

Ainda <strong>em</strong> torno da intertextualidade, nÜo pod<strong>em</strong>os deixar de fazer uma<br />

pequena anÉlise da personag<strong>em</strong> Julia Mann. Ela foi a mÜe dos escritores<br />

Thomas e Heinrich Mann e teve como berÄo a cidade de Paraty, no Rio<br />

de Janeiro. Era filha de Johann Ludwig Hermann Bruhns (no Brasil era<br />

conhecido por JoÜo Luiz Germano), fazendeiro que possuàa plantaÄÅes<br />

de aÄÖcar entre Santos e o Rio de Janeiro, e de Maria Luàsa da Silva,<br />

brasileira com sangue portuguÑs e indàgena, morta quando Julia tinha<br />

cinco anos.<br />

Heinrich e Thomas Mann criaram personagens inspirados por ela<br />

<strong>em</strong> vÉrios de seus livros, referindo-se afetivamente ao seu sangue sulamericano<br />

e ao t<strong>em</strong>peramento artàstico apaixonado. Em sua<br />

autobiografia, Thomas Mann apresenta Julia como uma portuguesacrioula-brasileira.<br />

Julia tinha uma notÉvel musicalidade, a qual<br />

expressava tocando piano. Essa heranÄa Ç associada, geralmente, ao<br />

carÉter criativo e literÉrio dos irmÜos Thomas e Heinrich.<br />

78 “Assim, eu sonho e espero que a morte venha. Ah, jÉ a conheÄo b<strong>em</strong>, a morte, essa Öltima<br />

decepÄÜo! No meu Öltimo momento, direi para mim mesmo: EntÜo Ç esta a grande experiÑncia<br />

– b<strong>em</strong>, e que t<strong>em</strong> isso? Que Ç isso, no fim de contas?” (traduÄÜo livre)


111<br />

Em Os Buddenbrook, ela foi a inspiraÄÜo para a personag<strong>em</strong><br />

Gerda Arnoldsen Buddenbrook e Toni. Em Doutor Fausto, ela se tornou<br />

a esposa do senador Rodde. Em Tonio Krãger, ela era Consuelo, a mÜe.<br />

Em A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>, ela aparece como a mÜe do protagonista,<br />

Gustav von Aschenbach: “Dela descendiam os sinais de raÄa estranha<br />

no seu aspecto. O casamento de consciÑncia oficiosa e sâbria com<br />

impulsos acentuados e ardentes geraram um artista, este artista<br />

particular” (MANN, 1971, p.96). Julia Mann e sua latinidade s<strong>em</strong>pre<br />

surg<strong>em</strong> nas obras de Thomas Mann <strong>em</strong> contraste ao carÉter severo e<br />

disciplinado do pai: “necessitava altamente de disciplina – e disciplina,<br />

por sorte, era heranÄa nata por parte de pai” (MANN, 1971, p. 97).<br />

No conto Tonio Kroeger, Thomas Mann narra o amadurecimento<br />

intelectual do protagonista Tonio, filho de uma famàlia tradicional que<br />

termina como um escritor cÇlebre. SÜo marcos afetivos de sua trajetâria<br />

as paixÅes juvenis por Hans Hansen, um colega de escola, e pela linda<br />

Inge Holm, atraÄÅes depois substituàdas pela amizade com a pintora<br />

Lisaweta Iwanova. No conto, Julia Mann surge como a mÜe do<br />

protagonista:<br />

Mas, para a mÜe de Tonio, sua mÜe bonita de<br />

cabelos negros que tinha o nome de Consuelo e<br />

que de qualquer maneira era tÜo diferente das<br />

outras senhoras da cidade, porque seu pai, hÉ<br />

t<strong>em</strong>pos, fora buscÉ-la b<strong>em</strong> lÉ <strong>em</strong>baixo no mapa<br />

(...). (MANN, 1971, p.15)<br />

A construÄÜo de Julia <strong>em</strong> <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> deu-se atravÇs de uma<br />

larga pesquisa realizada por JoÜo SilvÇrio <strong>em</strong> arquivos da famàlia Mann,<br />

atravÇs dos quais päde melhor elaborar sua personag<strong>em</strong>. Uma das fontes<br />

de pesquisa para o trabalho da personag<strong>em</strong> de JoÜo SilvÇrio foi seu<br />

diÉrio e as cartas que Julia trocava com seu pai que ficara no Brasil.<br />

A Julia da Silva Bruhns de <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> Ç, incialmente, a<br />

menina Dodä, levada para a Al<strong>em</strong>anha, no ano de 1858, aos seis anos de<br />

idade, para viver <strong>em</strong> grande parte de sua vida <strong>em</strong> um internato. O exàlio<br />

forÄado de Julia foi tambÇm o exàlio linguàstico. O leitor acompanha o<br />

desenvolvimento sofrido da aquisiÄÜo da nova làngua (al<strong>em</strong>Ü) e da dor<br />

pela perda da làngua materna, aquela que a unia ao Brasil e ç infáncia. O<br />

exàlio, a perda da làngua materna e perda da sua identidade sÜo os traÄos<br />

da menina que agora vivia na fria cidade de Lébeck.


112<br />

Eu Dodä a partir de agora nÜo sou mais eu. Sou<br />

ich. NÜo Ç assim que eles viv<strong>em</strong> dizendo por<br />

aqui? E jÉ pensou como vai ser? Eu ich vou ter<br />

que arranjar outra vida com outra mÜe outra avâ<br />

outros tios... e outro Deus (...). (TREVISAN,<br />

1998, p. 134)<br />

Seu exàlio estÉ explàcito <strong>em</strong> sua prâpria pele morena e <strong>em</strong> seus<br />

cabelos escuros. Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que nÜo era considerada uma<br />

al<strong>em</strong>Ü na conservadora Lébeck, tinha que se comportar e se tornar uma<br />

al<strong>em</strong>Ü luterana. Seu t<strong>em</strong>peramento e exotismo eram os el<strong>em</strong>entos que<br />

dificultavam mais ainda a sua assimilaÄÜo naquela cultura tÜo hermÇtica.<br />

ALLEGRO BARBARO<br />

Allegro Ç um andamento musical leve e ligeiro, mais rÉpido que o<br />

allegreto e mais lento que o presto. O primeiro ou Öltimo movimento de<br />

sonatas, sinfonias e concertos costumam ser nesse andamento. Berlin, a<br />

passag<strong>em</strong> (allegro barbaro) Ç o tàtulo do Öltimo capàtulo de <strong>Ana</strong> <strong>em</strong><br />

<strong>Veneza</strong>. JoÜo SilvÇrio Trevisan o encerra fazendo um convite para<br />

abandonarmos a modernidade e adentrarmos o caos: “cada um de nâs<br />

vai descobrindo como deixar o seu sÇculo das luzes e pisar no chÜo<br />

espinhoso da realidade, o que nÜo significa cair na real mas cair no<br />

caos” (TREVISAN, 1998, p.635). A passag<strong>em</strong> da qual fala Trevisan<br />

tambÇm poderia figurar no plural: passagens, ou uma compreensÜo ao<br />

modo de Benjamin de entender a modernidade.


CONSIDERAÄåES FINAIS<br />

113<br />

Uma pesquisa que comeÄou com uma afirmaÄÜo: “NÜo, eu nÜo<br />

quero ser um personag<strong>em</strong> de Thomas Mann” (TREVISAN, 1998, p.47).<br />

A partir dela procuramos recuperar toda a ideia de negaÄÜo <strong>em</strong> relaÄÜo<br />

ao autor de Dr. Fausto que JoÜo SilvÇrio Trevisan tece <strong>em</strong> seu romance<br />

<strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>. Mas nÜo somente isso, o tàtulo do romance nos inquieta,<br />

ao mesmo t<strong>em</strong>po, por aproximar-se da obra de Thomas Mann, como a<br />

novela analisada A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>. Mas qual foi a intenÄÜo do autor?<br />

To be or not to be Thomas Mann? A questÜo Ç menos negar todo o<br />

legado manniano que fazer dele um modelo de reflexÜo para<br />

entendermos os conflitos do artista moderno e do ser exilado <strong>em</strong> si. O<br />

que interessa <strong>em</strong> <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> Ç o hom<strong>em</strong>, Ç a vida. Os obscuros e<br />

atormentados seres mannianos serv<strong>em</strong> de modelo para uma cràtica ç<br />

modernidade e uma reflexÜo sobre a prâpria existÑncia. Ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que JoÜo SilvÇrio lanÄa a pergunta: O que Ç ser brasileiro? O<br />

que Ç nacional? SerÉ que ter<strong>em</strong>os que viver no eterno lugar de indecisÜo,<br />

se t<strong>em</strong>os permissÜo ou nÜo para usufruir do legado europeu? E se o<br />

fizermos, serÉ que o denegrimos, faz<strong>em</strong>os chacota dele?<br />

Desse modo, val<strong>em</strong>o-nos do diÉlogo intertextual, sobretudo<br />

entre A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> e <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> e seus respectivos<br />

protagonistas. O que pud<strong>em</strong>os ver foi um relacionamento de<br />

aproximaÄÜo entre Gustav von Aschenbach e Alberto Nepomuceno, no<br />

concernente ç condiÄÜo de artista e ao carÉter melancâlico comum aos<br />

dois personagens. Aproximar para depois se afastar, esse foi o mÇtodo<br />

do escritor de Em nome do desejo. Ele se apropria da norma, abusa do<br />

intertexto, se apodera do tot<strong>em</strong> e o devolve ao uso popular de forma<br />

iränica. Parece-nos um ciclo, porque esse Ç o mÇtodo de um de seus<br />

protagonistas, Alberto Nepomuceno. O mÖsico cearense nÜo nega sua<br />

influÑncia wagneriana e a transforma atravÇs de seus batuques e<br />

atabaques tupiniquins <strong>em</strong> produto brasileiro. Ele pega a suposta norma e<br />

a torna nacional s<strong>em</strong> segundos pensamentos (e a S<strong>em</strong>ana de 22, o que<br />

fez depois?). Assim realiza-se uma nova leitura de Thomas Mann e da<br />

modernidade: uma leitura nacional e despreocupada: “Ai, que<br />

preguiÄa!”. Concluàmos que <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> representa uma virada do<br />

pessimismo e desencanto manniano <strong>em</strong> graÄa, ironia e otimismo. A vida<br />

vista como uma sinfonia alegre repleta de folclore e cores.<br />

Apropriar-se de Thomas Mann e rejeitar seu modelo significa<br />

questionar um dos grandes escritores representantes do modernismo.


114<br />

Desse modo, <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> revela-se <strong>em</strong> nosso trabalho como um<br />

romance antimoderno. Alberto Nepomuceno apresenta-se como um<br />

trÉgico nietzschiano, que celebra a vida, que a afirma e propÅe a mÖsica<br />

como potÑncia transformadora da prâpria existÑncia. Nepomuceno Ç um<br />

antimoderno, porque jÉ nÜo se deixa levar pelo racionalismo iluminista<br />

que fundamenta a modernidade. Ele se apropria dela, deglute-a para<br />

poder traÄar sua cràtica. Concluàmos que o romance apâia-se <strong>em</strong> uma<br />

leitura pâs-moderna, no sentido <strong>em</strong> que tece cràticas aos valores vigentes<br />

da modernidade, por ex<strong>em</strong>plo, a questÜo do progresso e o fim das<br />

metanarrativas. Os bastardos inglârios foram lidos como os<br />

representantes malditos do mundo moderno, e, a partir deles, pud<strong>em</strong>os<br />

traÄar um perfil concernente ç modernidade, <strong>em</strong> especial o artista, o<br />

flÅneur, o saturnino e o exilado; sÜo eles que ajudam a narrativa a<br />

desenvolver o tecido antimoderno, contestador e reflexivo <strong>em</strong> <strong>Ana</strong> <strong>em</strong><br />

<strong>Veneza</strong>.<br />

Pud<strong>em</strong>os concluir que a modernidade Ç formada tambÇm por<br />

esses seres estranhos que sa<strong>em</strong> dos fragmentos e das ruànas, frutos do<br />

despedaÄamento barroco. A forma do romance fragmentÉria, dividida<br />

entre os trÑs protagonistas sâ corrobora os aspectos da modernidade<br />

trabalhados no romance de Trevisan.<br />

Vimos o trabalho de resgate <strong>em</strong> torno da singularidade de Alberto<br />

Nepomuceno e sua busca <strong>em</strong> fugir do nome do grande Carlos Gomes. O<br />

autor de O rei do cheiro lhe assegura um lugar na histâria da mÖsica<br />

erudita brasileira, ele que foi, possivelmente, um dos preconizadores dos<br />

ideais de antropofagia, atravÇs de suas obras de composiÄÜo de clÉssicos<br />

europeus e el<strong>em</strong>entos originalmente nacionais.<br />

Concluàmos que os trÑs personagens Alberto Nepomuceno, a<br />

escrava <strong>Ana</strong> e Julia Mann partilham nÜo sâ o exàlio espacial e<br />

linguàstico, mas tambÇm o exàlio existencial. SÜo trÑs identidades<br />

fragmentadas pela experiÑncia do exàlio <strong>em</strong> busca de uma pÉtria e de si<br />

mesmos.<br />

O que constatamos <strong>em</strong> nosso trabalho foi a leitura do autor de<br />

teorias que discut<strong>em</strong> nÜo sâ as questÅes pertinentes ç modernidade, mas<br />

tambÇm ç condiÄÜo pâs-moderna como uma forma de reaÄÜo<br />

antimoderna e iränica dos grandes nomes. è esse o papel da literatura do<br />

t<strong>em</strong>po de agora, ela insere, o que muito agradaria Benjamin, os<br />

pequenos ao lado dos supostos grandes nomes, pois os outsiders sÜo os<br />

grandes representantes da comunidade que v<strong>em</strong>. <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> aponta<br />

para uma crise nÜo somente da modernidade, mas do pensamento. O que<br />

JoÜo SilvÇrio Trevisan propÅe Ç uma nova leitura dos valores


115<br />

incontestÉveis da modernidade. è nessa lâgica pâs-moderna trabalhada<br />

no romance que a histâria dÉ voz aos anteriormente silenciados: os excÑntricos:<br />

os Albertos, as Julias e as <strong>Ana</strong>s.


REFERçNCIAS<br />

116<br />

ADORNO, Theodor W. Die musikalischen Monographien. Editora<br />

Suhrkamp. Frankfurt, 1985.<br />

AGAMBEN, Giorgio. EstÅncias: a palavra e o fantasma na cultura<br />

ocidental. Trad. Selvino J. Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG,<br />

2007.<br />

__________. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a test<strong>em</strong>unha. In:<br />

Homo Saccer III. Trad. Selvino J. Assman. SÜo Paulo: Boit<strong>em</strong>po, 2008.<br />

__________. ProfanaÖòes. Trad. Selvino J. Assmann. SÜo Paulo:<br />

Boit<strong>em</strong>po, 2007.<br />

__________. O que Ñ o cont<strong>em</strong>porÅneo? e outros ensaios. Trad.<br />

Vinàcius Nicastro Honesko. Chapecâ: Argos, 2009.<br />

__________. InfÅncia e histÉria: destruiÄÜo da experiÑncia e orig<strong>em</strong> da<br />

histâria. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.<br />

ANDRADE, <strong>Ana</strong> Luiza. Saturno devorador da modernidade:<br />

imagens/sensaÄÅes”. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada,<br />

n¨4, 1998.<br />

ANTELO, RaÖl. AusÜncias. Florianâpolis: Editora da Casa, 2009.<br />

__________. In: RIO, JoÜo do. A alma encantadora das ruas. Org. RaÖl<br />

Antelo. SÜo Paulo: Cia. das Letras, 1989.<br />

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida<br />

moderna. Org. Teixeira Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.<br />

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pÉs-modernidade. Trad. Mauro<br />

Gama e ClÉudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.<br />

BENJAMIN, Walter. Orig<strong>em</strong> do drama trÄgico al<strong>em</strong>Ço. Trad. JoÜo<br />

Barreto. Lisboa: Assàrio e Alvim, 2004.


117<br />

__________. A arte na era da reprodutibilidade tÇcnica. In: Magia e<br />

tÑcnica Arte e Polática. Obras Escolhidas, vol 1. Trad. Sergio Paulo<br />

Rouanet. SÜo Paulo: Brasiliense, 1994.<br />

__________. Tese sobre o conceito da Histâria. In Magia e TÑcnica Arte<br />

e Polática. Obras Escolhidas, vol 1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. SÜo<br />

Paulo: Brasiliense, 1994.<br />

__________. O autor produtor. In: Magia e TÑcnica Arte e Polática.<br />

Trad. SÇrgio Paulo Rouanet. Obras Escolhidas I, vol. I. SÜo Paulo:<br />

Brasiliense, 1996.<br />

__________. A modernidade e os modernos. Trad. Heindrun Krieger<br />

Mendes da Silva, Arlete de Brito e Tánia JatobÉ. Rio de Janeiro:<br />

EdiÄÅes T<strong>em</strong>po Brasileiro, 2000.<br />

BORGES, Vera LÖcia de Souza. DissertaÄÜo de mestrado. <strong>Ana</strong> <strong>em</strong><br />

<strong>Veneza</strong>: Uma trilha literÉria da modernidade ç pâs-modernidade.<br />

Universidade Federal do CearÉ. Fortaleza, out. 1999.<br />

BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno:dez grandes escritores.<br />

Trad. Paulo Henrique Britto. SÜo Paulo: Companhia das Letras, 1989.<br />

BUCK-MORSS, Susan. DialÑtica do olhar: Walter Benjamin e o<br />

projeto das Passagens. Trad. <strong>Ana</strong> Luiza Andrade. Belo Horizonte:<br />

Editora UFMG; Chapecâ: Argos, 2002.<br />

__________. EstÇtica e anestÇtica: o ‘Ensaio sobre a obra de arte’ de<br />

Walter Benjamin reconsiderado. In: FicÖòes: Revista de literatura. N.<br />

33. Trad. Rafael Lopes Azize. Florianâpolis, ago.-dez. 1996.<br />

BRUNN, A. Moderne Brasilianische Literatur (1960-1990): Essays zu<br />

neuen Werken Brasilianischer Autoren. Mettingen: Brasilien Kunden<br />

Verlag, 1997.<br />

CONTRERAS, Sandra. Las vueltas de CÑsar Aira. Rosario: Beatriz<br />

Viterbo Editora, 2008.


118<br />

DANUSER, Hermann. “Mahler”. In: Die Musik in Geschichte und<br />

Gegenwart: allg<strong>em</strong>eine Enzyklopódie der Musik. Stuttgart: Editora<br />

B§renreiter, 2004.<br />

DELEUZE, Gilles. Crática e clánica. Trad. Peter PÉl Pebart. SÜo Paulo:<br />

Ed.34, 1997.<br />

__________. LÉgica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. SÜo<br />

Paulo: Perspectiva, 1998.<br />

__________. DiferenÖa e repetiÖÇo. Trad. Luiz Orlandi e Roberto<br />

Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.<br />

DELEUZE, Gilles e Guattari, FÇlix. Kafka: por uma literatura menor.<br />

Trad. JÖlio Castaüon GuimarÜes. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977.<br />

EAGLETON, Terry. As ilusòes do pÉs-modernismo. Trad. Elisabeth<br />

Barbosa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.<br />

EUCHNER, Maria. Life, Longing und Liebestod: Richard Wagner in<br />

Thomas Mann’s Tristan and Tod in Venedig. In: The germanic review.<br />

80; 3, S. 18 –213. 2005.<br />

FOUCAULT, Michel. O “nÜo” do pai. In: Ditos e escritos, vol. I. Trad.<br />

Vera LÖcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense UniversitÉria,<br />

2006.<br />

__________. Teatrum philosophicum. In: Ditos e escritos, vol. II. Trad.<br />

Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense UniversitÉria, 2008.<br />

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: EdiÖÇo standard brasileira<br />

das obras completas, vol. XIV. Trad. Jayme SalomÜo. Rio de Janeiro:<br />

Imago, 1996.<br />

__________. Delàrios e sonhos na “Gradiva” de Jensen. In: EdiÖÇo<br />

standard brasileira das obras completas, vol. IX. Rio de Janeiro:<br />

Imago, 1976.


119<br />

GAGNEBIN, J. M. HistÉria e narraÖÇo <strong>em</strong> Walter Benjamin. SÜo<br />

Paulo: Perspectiva: Campinas: Unicamp, 1994.<br />

GONTIJO, F. B. O Apolàneo e o Dionisàaco como manifestaÄÅes da arte<br />

e vida. In: ExistÜncia e Arte - Revista Eletränica do Grupo PET -<br />

CiÑncias Humanas, EstÇtica e Artes da Universidade Federal de SÜo<br />

JoÜo Del-Rei - Ano II - NÖmero II, 2006.<br />

HABERMAS, Jérgen. O discurso filosÉfico da modernidade: doze<br />

liÖòes. Trad. Luiz SÇrgio Repa e Rodnei Nascimento. SÜo Paulo:<br />

Martins Fontes, 2002.<br />

HABERMAS, Jérgen. El discurso filosÉfico de la modernidade: doce<br />

lecciones. Trad. Manuel JimÇnez Redondo. Madrid: Taurus Ediciones,<br />

1989.<br />

HUTCHEON, Linda. PoÑtica do pÉs-modernismo: histâria, teoria,<br />

ficÄÜo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.<br />

JAMESON, FranÄois. PÉs-modernismo: a lâgica cultural do capitalismo<br />

tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. SÜo Paulo: tica, 2007.<br />

KRISTEVA, Julia. Sol Negro: depressÜo e melancolia. Trad. Carlota<br />

Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.<br />

LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: traduÄÜo e melancolia. SÜo<br />

Paulo: Edusp, 2007.<br />

LUK CS, G. Romance histÉrico. 3 ed. MÇxico: Era, 1977.<br />

__________. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro: CivilizaÄÜo<br />

Brasileira, 1965.<br />

LYOTARD, Jean-FranÄois. O pÉs-moderno. Trad. Ricardo CorrÑa<br />

Barbosa. 3 ed. Rio de Janeiro: JosÇ Olympio, 1990.<br />

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.


120<br />

__________. O relatârio da coisa. In: Onde estivestes de noite. Rio de<br />

Janeiro: Rocco, 1999.<br />

MANN, Thomas. A morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>. TraduÄÜo de Maria Deling. SÜo<br />

Paulo: Editora Abril, 1971.<br />

__________. Tonio Kroeger. TraduÄÜo de Maria Deling. SÜo Paulo:<br />

Editora Abril, 1971.<br />

__________. Die Entt§uschung. In: Der Wille zum Glúck und andere<br />

Erzóhlungen. Frankfurt am Main, Fischer Verlag, 1991.<br />

__________. A montanha mÄgica. Rio de Janeiro: Editora Nova<br />

Fronteira, 2000.<br />

__________. Doutor Fausto. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,<br />

2000.<br />

MORAES, Eliane Robert. O corpo impossável. A decomposiÖÇo da<br />

figura humana: de LautrÇamont a Bataille. SÜo Paulo: Editora<br />

Iluminuras, 2002.<br />

NANCY, Jean-Luc. La creaciÉn del mundo o la mundializaciÉn. Trad.<br />

Pablo Perera VelamazÉn. Barcelona: Ediciân Paidâs IbÇrica, 2003.<br />

__________. Ser singular plural. Trad. Antonio Tudela Sancho.<br />

Madrid: Arena Libros, 2006.<br />

__________. El olvido de la filosofia. Trad. Pablo Perera VelamazÉn.<br />

Madrid: Arena Libros, 2003.<br />

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da tragÑdia ou Helenismo e<br />

Pessimismo. SÜo Paulo, Companhia das Letras, 1992.<br />

OSTER, Nathanael J. “Gustav Mahler: The meaning behind the<br />

symphonies”. Em: .<br />

Acesso <strong>em</strong> 16 jun. 2011.<br />

PAZ, Octavio. Literatura de fundaÄÜo. In: Signos <strong>em</strong> rotaÖÇo. Trad.<br />

SebastiÜo Uchoa Leite. SÜo Paulo: Perspectiva, 2006.


121<br />

PERRONE-MOISèS. L. Altas literaturas: escolha e valor na obra<br />

cràtica de escritores modernos. SÜo Paulo: Companhia da Letras, 1998.<br />

RASIA, JosÇ. Morte <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>: desejo e interdiÄÜo. In: Revista Letras,<br />

n. 55. Curitiba: Editora da UFPR, 2001.<br />

REED, Terence James. Thomas Mann: Der Tod in Venedig. Text,<br />

Materialien, Kommentar mit den bisher unverãffentlichten Arbeitsnotizen<br />

Thomas Manns. Ménchen/Wien, 1983.<br />

ROSENFELD, <strong>Ana</strong>tol. Thomas Mann. SÜo Paulo: Perspectiva, 1994.<br />

ROUANET, Sergio Paulo. Riso e melancolia: a forma shandiana <strong>em</strong><br />

Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garret e Machado de Assis.<br />

SÜo Paulo: Companhia da Letras, 2007.<br />

SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino americano. In:<br />

Por uma literatura nos trÉpicos: ensaios sobre dependÑncia cultural.<br />

SÜo Paulo: Perspectiva, 1978.<br />

SCHLAPPNER, Michael. Luccino Visconti. Reihe Film 4. Ménchen,<br />

1975.<br />

SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. Trad. <strong>Ana</strong> Maria Capovilla e<br />

Albino Poli Jr. Porto Alegre: L&PM, 1986.<br />

STAROBINSKI, Jean. 1789: os <strong>em</strong>bl<strong>em</strong>as da razÇo. Trad. Maria Lucia<br />

Machado. SÜo Paulo: Companhia da Letras 1989.<br />

S†SSEKIND, Flora. Cenas de fundaÄÜo. In: Modernidade e<br />

modernismo no Brasil. Campinas: Mercado de Letras, 1994.<br />

TELLES, G. M. Vanguarda europÑia e modernismo brasileiro:<br />

apresentaÄÜo dos principais po<strong>em</strong>as, manifestos, prefÉcios e<br />

conferÑncias vanguardistas de 1857 a 1972. 18. ed. Petrâpolis: Vozes,<br />

2005.<br />

TREVISAN, J. S. <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong>. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.


122<br />

VATTIMO, G. O fim da modernidade. nihilismo e hermenÜutica na<br />

cultura pÉs-moderna. Trad. Maria de FÉtima Boavida. Lisboa: PresenÄa,<br />

1987.


123


ANEXO<br />

Entrevista com JoÜo SilvÇrio Trevisan concedida no dia 4 de julho de<br />

2011, atravÇs do MSN Messenger. O autor preferiu o texto <strong>em</strong> caixa<br />

alta.<br />

124<br />

(01:05) Helano Jader: BOM, ANTES DE TUDO, MUITO OBRIGADO<br />

POR SUA DISPONIBILIDADE E VONTADE<br />

EM ME AJUDAR.<br />

(01:05) Joào SilvÑrio: SEM PROBLEMA.<br />

(01:05) Joào SilvÑrio: PEÆO QUE VOCØ ME FAÆA UM RESUMO DO<br />

TEU TEMA E O OBJETIVO.<br />

S PRA REFRESCAR A MEM RIA.<br />

(01:06) Helano Jader: <strong>Ana</strong> <strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> (1994), romance escrito por JoÜo<br />

SilvÇrio Trevisan, apresenta um conjunto b<strong>em</strong><br />

vasto de caracteràsticas que apontam para o t<strong>em</strong>po<br />

e o texto de agora, como a intertextualidade, o<br />

discurso parâdico e iränico, a fragmentaÄÜo do<br />

sujeito, t<strong>em</strong>po e espaÄo, a presenÄa dos “excÑntricos”,<br />

discussÅes acerca da modernidade. O<br />

que propomos Ç um estudo da modernidade a partir<br />

da âtica do pensador Walter Benjamin e seus<br />

interlocutores como o italiano Giorgio Agamben.<br />

Nossa anÉlise parte de pr<strong>em</strong>issas baseadas <strong>em</strong> uma<br />

leitura antimoderna, que se revela <strong>em</strong> forma de<br />

oposiÄÜo ç modernidade. O discurso de negaÄÜo Ç<br />

construàdo, essencialmente, a partir do personag<strong>em</strong><br />

Alberto Nepomuceno. Por fim, t<strong>em</strong>os o intuito de<br />

armar um pequeno diÉlogo intertextual entre <strong>Ana</strong><br />

<strong>em</strong> <strong>Veneza</strong> e a obra de Thomas Mann Morte <strong>em</strong><br />

<strong>Veneza</strong>, atendo-se principalmente aos personagens<br />

Alberto Nepomuceno e Gustav von Aschenbach.<br />

(01:37) Helano Jader: E AO MESMO TEMPO ESTAVA


125<br />

CONCENTRADO EM LEITURAS SOBRE A<br />

MODERNIDADE E ACHO QUE è O MAIOR<br />

TEMA DO ANA, N±O?<br />

(01:37) Joào SilvÑrio: MAS NADA A VER COM UMA POSS VEL<br />

MODERNIDADE BRASILEIRA...<br />

(01:37) Helano Jader: OU UM DOS.<br />

(01:37) Joào SilvÑrio: DIGO, A SUA PREOCUPAƱO COM<br />

MODERNIDADE.<br />

(01:38) Helano Jader: N±O, A MODERNIDADE NO SENTIDO DE<br />

BENJAMIN MESMO, DE UMA ENTRADA DOS<br />

MENORES NA HIST RIA, QUE PRA MIM FOI<br />

O ALBERTO NEPOMUCENO.<br />

(01:38) Joào SilvÑrio: OK. EU POSSO EXPLICAR?<br />

(01:38) Helano Jader: SIM, POR FAVOR.<br />

(01:39) Joào SilvÑrio: EU PENSEI NESSE ROMANCE TAMBèM<br />

COMO UMA MEDITAƱO (DOLOROSA)<br />

SOBRE O BRASIL.<br />

(01:39) Joào SilvÑrio: ESCREVI UM LIVRO QUE VOCØ TALVEZ<br />

CONHEÆA, AINDA NA DèCADA DE 80.<br />

DEPOIS REEDITADO EM 2000. BASTANTE<br />

AMPLIADO: DEVASSOS NO PARA SO.<br />

(01:40) Helano Jader: CLARO. QUE TAMBèM è UM CALHAMAÆO<br />

E MEXE COM MUITA GENTE.<br />

(01:40) Joào SilvÑrio: AQUILO FOI MINHA TENTATIVA DE<br />

ENTENDER ONDE EU ESTAVA SITUADO<br />

ENQUANTO HOMOSSEXUAL BRASILEIRO.<br />

ERA UM POUCO A VIS±O DE UM EXILADO


EM SUA PR PRIA TERRA.<br />

126<br />

(01:41) Joào SilvÑrio: COM ANA, AO CONTR RIO, EU PARTI PARA<br />

FORA, NA TENTATIVA DE ENTENDER ESSE<br />

EX LIO.<br />

(01:41) Helano Jader: EXILADO PELA CONDIƱO<br />

HOMOSSEXUAL.<br />

(01:41) Joào SilvÑrio: EXATO. MAIS CLARAMENTE EM<br />

DEVASSOS. MAS ANA è UM LIVRO DE UM<br />

HOMOSSEXUAL, ANTES DE TUDO. N±O<br />

TENHO D°VIDA DISSO.<br />

(01:42) Joào SilvÑrio: MEU CONTATO COM THOMAS MANN<br />

PASSA POR A TAMBèM. N±O S , è CLARO.<br />

(01:42) Helano Jader: CLARO, MAS O EX LIO (RETRATADO NOS<br />

TRØS PERSONAGENS) è UM EX LIO MENOS<br />

TERRITORIAL DO QUE EXISTENCIAL,<br />

CORRETO?<br />

(01:42) Joào SilvÑrio: EM TERMOS. ANA è UMA TENTATIVA<br />

DESESPERADA DE ENTENDER O BRASIL.<br />

NESSE SENTIDO, TERRITORIALMENTE<br />

TAMBèM.<br />

(01:43) Helano Jader: ENTENDO SEU PONTO DE VISTA, PORQUE<br />

TAMBèM SOU UM EXILADO, E HOJE VEJO O<br />

BRASIL COM UMA VIS±O DE QUEM EST<br />

FORA.<br />

(01:43) Joào SilvÑrio: PARTI DO PRINC PIO DE QUE SER<br />

BRASILEIRO J è ESTAR EM ESTADO DE<br />

EX LIO.<br />

(01:43) Joào SilvÑrio: TENHO UM CAP TULO NA INTRODUƱO DE<br />

DEVASSOS QUE EXAMINA ISSO DE UM


127<br />

MODO QUE ME AGRADA MUITO. O SER<br />

BRASILEIRO APROXIMADO AO SER<br />

HOMOSSEXUAL.<br />

(01:44) Joào SilvÑrio: DOIS ESTADOS DE DEVIR.<br />

(01:45) Helano Jader: VOCØ CONCORDARIA COM O CONCEITO DE<br />

SILVIANO SANTIAGO DE "ENTRE-LUGAR"<br />

PORQUE è ISSO MESMO O SER BRASILEIRO,<br />

N±O? ESSE ETERNO DEVIR.<br />

(01:45) Joào SilvÑrio: N±O LEMBRO DO CONCEITO DO SILVIANO.<br />

E N±O SEI SE COINCIDE COM O MEU DE<br />

ESTAR EXILADO.<br />

(01:46) Helano Jader:<br />

MAS è A IDEIA DE QUE O CENTRO<br />

TAMBèM è NOSSO, N±O SOMOS MAIS<br />

COL NIA, T±O POUCO METR POLE,<br />

ESTAMOS NUM ESPèCIE DE LIMBO. PARA<br />

SILVIANO SANTIAGO, FAZ-SE NECESS RIA<br />

UMA INVERS±O DE VALORES, A AMèRICA<br />

LATINA DEVE BUSCAR SEU LUGAR NO<br />

MUNDO DA CULTURA E DA LITERATURA.<br />

(01:47) Helano Jader: PRA MIM ISSO è O EX LIO<br />

(01:47) Joào SilvÑrio: ESSE ME PARECE UM CONCEITO MAIS<br />

SOCIOL GICO, ACHO. MINHA QUEST±O<br />

SERIA MAIS.... ANTROPOL GICA TALVEZ.<br />

(01:48) Joào SilvÑrio: QUERO DIZER QUE O EX LIO BRASILEIRO è<br />

M°LTIPLO. PRIMEIRO, PORQUE SOMOS UM<br />

CONTINENTE.<br />

(01:48) Joào SilvÑrio: SEGUNDO, PORQUE SOMOS FILHOS DE UM<br />

PAI ESTUPRADOR. TERCEIRO, PORQUE<br />

NOSSOS ASCENDENTES S±O


BASICAMENTE IMIGRANTES.<br />

(01:49) Joào SilvÑrio: QUARTO, PORQUE è UM PA S QUE<br />

ASSASSINA SEUS FILHOS, DAS MAIS<br />

DIVERSAS MANEIRAS.<br />

128<br />

(01:49) Joào SilvÑrio: E ESTE è O MAIS IMPORTANTE: O<br />

DESINTERESSE DO BRASIL POR SEUS<br />

FILHOS. NESSE ITEM è QUE EST MINHA<br />

HOMOSSEXUALIDADE, COM TOTAL<br />

FORÆA. MAS N±O S ELE.<br />

(01:50) Joào SilvÑrio: A EXPERIØNCIA DE SER ARTISTA OU<br />

"ARTISTA" NESTE PA S è DILACERANTE.<br />

(01:50) Joào SilvÑrio: E DEIXA O EX LIO BRASILEIRO ® FLOR DA<br />

PELE.<br />

(01:50) Helano Jader: EU LEMBRO QUE VOCØ NO ANA CITA O<br />

OSWALD: "O BRASIL è UM PA S CHEIO<br />

RVORES E GENTE DIZENDO ADEUS",<br />

ACHO QUE è ISSO O QUE VOCØ QUER<br />

DIZER.<br />

(01:51) Joào SilvÑrio: ENTRE OUTRAS COISAS, SIM.<br />

(01:51) Joào SilvÑrio: TENHO MUITA DOR EM SER BRASILEIRO,<br />

HELANO. E MUITA PENA DO BRASIL. ME<br />

ACREDITE.<br />

(01:51) Helano Jader: MAS è UM PARADOXO ABSURDO, PORQUE<br />

A GENTE PRECISA DO BRASIL, ELE N±O<br />

SAI DA GENTE.<br />

(01:52) Joào SilvÑrio: è UM PA S DA M SCARA E DA<br />

MISTIFICAƱO. NOSSA HIST RIA è UM<br />

DESENROLAR DE EVENTOS NESSE ESTILO.


129<br />

(01:52) Joào SilvÑrio: NOSSA HIST RIA è UM DESFIAR DE FATOS<br />

MASCARADOS E DE MISTIFICAÆ¥ES. TOME<br />

APENAS COMO EXEMPLO A NOSSA<br />

LIBERTAƱO DOS ESCRAVOS.<br />

(01:52) Joào SilvÑrio: è SIMPLESMENTE VERGONHOSO, ATè<br />

HOJE. ENT±O, VOU TENTAR RESUMIR.<br />

(01:53) Joào SilvÑrio: SER BRASILEIRO è ESTAR NO EX LIO<br />

PORQUE O BRASIL D I. ISSO SERIA<br />

ANTROPOLOGIA? OU METAF SICA?<br />

(01:53) Helano Jader: E N±O ADIANTA SAIR. PORQUE ELE TE<br />

ACOMPANHA.<br />

(01:53) Joào SilvÑrio: SIM, J MOREI V RIAS VEZES FORA DO<br />

BRASIL. MAS N±O CONSEGUIRIA<br />

CONTINUAR. COMO N±O CONSEGUI.<br />

(01:54) Helano Jader: POR QUØ?<br />

(01:54) Joào SilvÑrio: PORQUE è UMA QUEST±O BVIA. EST , EU<br />

ACHO, NUMA EP GRAFE DOS DEVASSOS.<br />

(01:54) Joào SilvÑrio: S±O DUAS EP GRAFES.<br />

(01:55) Joào SilvÑrio: DE CARLOS DRUMMOND: "Onde Ç Brasil?/<br />

Que importa este lugar/<br />

(01:56) Joào SilvÑrio: se todo lugar/<br />

Ç ponto de ver e nÜo de ser?"<br />

(01:56) Joào SilvÑrio: E H UMA OUTRA EP GRAFE NUM DOS<br />

CAP TULOS REVELADORA DESSE<br />

SENTIMENTO.


130<br />

(01:57) Joào SilvÑrio: DE JOMARD MUNIZ DE BRITTO, POETA<br />

PERNAMBUCANO CONTEMPORµNEO:<br />

(01:57) Joào SilvÑrio: "O Brasil nÜo Ç meu paàs: Ç meu abismo/meu<br />

veneno/nosso cáncer."<br />

(01:58) Joào SilvÑrio: è ISSO. è COMO UM ABISMO ONDE A<br />

GENTE FOI JOGADO. OU SE JOGOU.<br />

(01:58) Joào SilvÑrio: E è UM CµNCER QUE VAI TOMANDO<br />

NOSSAS CèLULAS.<br />

(01:58) Helano Jader: E COMO DISSE, N±O CONSEGUE SAIR<br />

DELE.<br />

(01:59) Joào SilvÑrio: EXATAMENTE. N±O QUERO DIZER QUE<br />

TODO MUNDO SINTA ASSIM.<br />

(01:59) Helano Jader: MAS PRA MIM ESSA è A L GICA DO<br />

MISANTROPO: QUE ODEIA O HOMEM, MAS<br />

PORQUE O AMA, VOCØ N±O ACHA?<br />

(01:59) Joào SilvÑrio: MAS ESSA è A EXPERIØNCIA QUE, COMO<br />

BRASILEIRO, JOGUEI NAS COSTAS DE ANA,<br />

POR INTERMèDIO DE SEU AMANTE<br />

ALEM±O.<br />

(02:00) Joào SilvÑrio: ACHO QUE è UMA VIS±O MEIO POèTICA,<br />

MEIO PROFèTICA. TALVEZ AS DUAS, QUE<br />

SE JUNTAM E SOMAM.<br />

(02:01) Helano Jader: MAS AS INDAGAÆ¥ES SOBRE O EX LIO<br />

S±O EM SUA MAIORIA DO ALBERTO<br />

NEPOMUCENO, COMO VOCØ TRABALHOU<br />

O EX LIO NELE?<br />

(02:02) Joào SilvÑrio: ELE TEM O EX LIO MAIS PARECIDO COM O


131<br />

MEU. E MAIS TIPICAMENTE BRASILEIRO: è<br />

AQUELE QUE VAI BUSCAR SINAIS DO<br />

BRASIL FORA DO BRASIL.<br />

(02:02) Joào SilvÑrio: O PARADOXO BRASILEIRO.<br />

(02:02) Helano Jader: è, PORQUE ELE FOI O °NICO DOS 3 QUE<br />

OPTOU PELO EX LIO.<br />

(02:02) Joào SilvÑrio: O PERSONAGEM HIST RICO ALBERTO FOI<br />

UM DOS INICIADORES DO NACIONALISMO<br />

MUSICAL BRASILEIRO.<br />

(02:03) Joào SilvÑrio: ELE COMEÆOU PELA EUROPA, PARA<br />

ENTENDER O BRASIL.<br />

(02:03) Joào SilvÑrio: UMA DE SUAS PRIMEIRAS PEÆAS, SE N±O<br />

ME ENGANO FEITA EM BERLIN, è A SUITE<br />

ANTIGA.<br />

(02:03) Helano Jader: FALO SOBRE ISSO NO MEU TRABALHO,<br />

QUE ERA O PARADOXO DELE PORQUE<br />

QUERIA COMPOR COM ELEMENTOS<br />

NACIONAIS, MAS A °NICA COISA QUE<br />

SENTIA ERA O SIROCCO ITALIANO.<br />

(02:04) Joào SilvÑrio: ELE TENTOU MIMETIZAR BACH, PARA<br />

COMEÆAR A ENTENDER O BRASIL PELO<br />

COMEÆO DAS SUAS RA ZES. N±O ACHO<br />

QUE ESTIVESSE T±O DESENCAMINHADO.<br />

(02:04) Joào SilvÑrio: FOI MUITO PARADOXAL PORQUE J SABIA<br />

QUE O BRASIL ERA PARADOXO.<br />

(02:04) Helano Jader: N±O, MAS FOI O QUE OS MODERNISTAS<br />

FIZERAM DEPOIS.


132<br />

(02:05) Joào SilvÑrio: A SU TE ANTIGA,SE VOCØ CONHECE, è<br />

UMA TENTATIVA DE SE APROXIMAR DE<br />

BACH. ACHO QUE FOI O TRABALHO DE<br />

FINAL DE CURSO DELE EM BERLIN.<br />

(02:05) Joào SilvÑrio: SIM, O QUE OS MODERNISTAS FIZERAM FOI<br />

BASTANTE MAIS AVANÆADO E ATREVIDO.<br />

(02:06) Helano Jader: COMO FOI REUNIR MATERIAL DE ARQUIVO<br />

SOBRE ELE, PORQUE EU MESMO PROCUREI<br />

E ACHEI S UM LIVRINHO.<br />

(02:06) Joào SilvÑrio: ELES ACHARAM JUSTAMENTE O OVO DE<br />

COLOMBO BRASILEIRO.<br />

(02:06) Joào SilvÑrio: VOU S TERMINAR A IDEIA ANTERIOR. OS<br />

MODERNISTAS FORAM ® EUROPA PARA<br />

DEVORAR. ESSE FOI O GRANDE X DA<br />

QUEST±O. A GRANDE SACADA.<br />

(02:06) Joào SilvÑrio: OSWALD è O GRANDE PROFETA DA<br />

DEVORAƱO BRASILEIRA.<br />

(02:07) Joào SilvÑrio: E CAETANO (QUE EST NO FINAL DE ANA)<br />

CONTINUOU ESSA MESMA IDEIA,<br />

RECUPERANDO OS MODERNISTAS NA<br />

TROPIC LIA. SOBRE A PESQUISA DE<br />

ALBERTO:<br />

(02:07) Joào SilvÑrio: FIZ CONTATO COM O NETO DELE, SèRGIO<br />

NEPOMUCENO, NO RJ.<br />

(02:08) Joào SilvÑrio: SERGIO, MUITO DESCONFIADO A<br />

PRINC PIO, LOGO ME ABRIU A CASA DELE.<br />

(02:08) Joào SilvÑrio: ELE PR PRIO J TINHA ESCRITO UM<br />

LIVRINHO MUITO ESPECIAL E PRECIOSO


133<br />

SOBRE O AV . J ENT±O O NETO ERA UM<br />

SENHOR. DEVE ESTAR AGORA BEM<br />

VELHINHO.<br />

(02:08) Joào SilvÑrio: CONFESSO QUE N±O HAVIA MUITA COISA.<br />

VOCØ VAI RIR. MAS NO ANA EM VENEZA<br />

RECORRI A TUDO O QUE PUDE.<br />

(02:09) Joào SilvÑrio: IA TRABALHAR COM 3 PERSONAGENS QUE<br />

TINHAM EXISTIDO.<br />

(02:09) Joào SilvÑrio: PRECISA TRANSFORM -LOS EM MEUS<br />

PERSONAGENS E MOLD -LOS A PARTIR DA<br />

SUA VIDA, MAS COM INGREDIENTES DE<br />

MINHA PR PRIA PERSONALIDADE E<br />

BRASILIDADE. FIZ O MAPA SOLAR DE<br />

NEPOMUCENO.<br />

(02:10) Joào SilvÑrio: JOGUEI B°ZIOS PARA SABER SEU ORIX .<br />

XANG , COMO UM DOS MEUS.<br />

(02:10) Joào SilvÑrio: JOGUEI TAMBèM I CHING.<br />

(02:10) Helano Jader: CLARO, PORQUE ESSE è O ROMANCE<br />

CONTEMPORµNEO, QUE SE VALE DE<br />

TODOS OS ARTIF CIOS, DO INTERTEXTO,<br />

ETC.<br />

(02:10) Joào SilvÑrio: TANTO PARA ELE QUANTO PARA ANA E<br />

JULIA.<br />

(02:10) Helano Jader: QUE INTERESSANTE.<br />

(02:11) Joào SilvÑrio: ANA è OBVIAMENTE A ORIX DO MAR,<br />

SENHORA DO MAR.<br />

(02:11) Helano Jader: E POR ISSO MORRE NO MAR.


(02:11) Joào SilvÑrio: JULIA ERA OXUM, OBVIAMENTE. QUE<br />

MAIS...<br />

134<br />

(02:11) Joào SilvÑrio: EU TINHA O RETRATO DELA, O RETRATO<br />

DO NEPO E UM DESENHO DA ANA NA<br />

REDE, QUE EU PR PRIO FIZ. MORAVA NUM<br />

PARDIEIRO.<br />

(02:12) Joào SilvÑrio: SABIA QUE N±O IA TER DINHEIRO<br />

SOBRANDO. SEMPRE PASTEI MUITO. COM<br />

GRANA. E DIFICULDADES PROFISSIONAIS<br />

COMO ESCRITOR.<br />

(02:12) Joào SilvÑrio: MAS ENT±O EU MORAVA NESSE AP E<br />

DIANTE DA MINHA MESA ARMEI UM<br />

VARAL ONDE DEPENDUREI AS 3 FOTOS.<br />

(02:13) Joào SilvÑrio: ANTES DE COMEÆAR A ESCREVER (TODOS<br />

OS DIAS A PARTIR DAS 9, POR 4 ANOS), EU<br />

SAUDAVA O ORIX DE CADA UM DELES.<br />

ERA MINHA MANEIRA DE PEDIR LICENÆA<br />

PARA INVADIR SUAS VIDAS.<br />

(02:13) Helano Jader: NOSSA, MAS ISSO è T±O THOMAS MANN,<br />

ELE QUEM TINHA ESSA ROTINA<br />

DISCIPLINADA PARA ESCREVER.<br />

(02:14) Joào SilvÑrio: SIM, EU S ESCREVO ASSIM. COM IMENSO<br />

RIGOR. ACHO QUE N±O D PRA LER<br />

(MOSTRA UMA AGENDA CHEIA DE<br />

COMPROMISSOS).<br />

(02:14) Helano Jader: SIM, EU VEJO OS HOR RIOS.<br />

(02:14) Joào SilvÑrio: SAI AO CONTR RIO? POR QUØ?<br />

(02:15) Joào SilvÑrio: ISTO FOI PARA REI DO CHEIRO


135<br />

(02:16) Joào SilvÑrio: DE MANH± N±O TENDO TELEFONE,<br />

ALMOÆO, TENHO HOR RIO PRA SESTA<br />

RESTRITO PARA SESTA, ATè ®S 19 HS. SA A<br />

® TARDE PARA COMPROMISSOS DE CASA:<br />

MERCADO, BANCO, ETC.<br />

(02:16) Helano Jader: ENT±O, QUERO PEGAR O MOTE E FALAR<br />

SOBRE UM TEMA QUE PRA MIM è<br />

ESSENCIAL PARA SUA ESCRITA, QUE ME<br />

CHAMOU A ATENÆAO TAMBèM NO REI DO<br />

CHEIRO, QUE è A VIDA. è O “SIM” DE<br />

NEPOMUCENO.<br />

(02:17) Joào SilvÑrio: E TRØS VEZES POR SEMANA, ACADEMIA,<br />

AS 12,30 ®S 13,30.<br />

(02:17) Joào SilvÑrio: EU N±O SEI SE ESCREVERIA AQUELE “SIM”<br />

HOJE.<br />

(02:17) Helano Jader: POR QUE N±O?<br />

(02:18) Joào SilvÑrio: MEU "SIM" EST NO FINAL DO REI DO<br />

CHEIRO, QUE è TERR VEL. O LIVRO TEM<br />

SIDO UM FIASCO.<br />

(02:18) Joào SilvÑrio: A CR TICA O IGNOROU TO-TAL-MEN-TE.<br />

GRAVEI UM PRØMIO DE CONSOLAƱO,<br />

SEM UM TOST±O.<br />

(02:18) Joào SilvÑrio: E QUASE N±O ENTREI NEM NA FINAL DOS<br />

DEMAIS, QUE VALIAM A PENA PELA<br />

GRANA. BOM, AS LIVRARIAS<br />

DEVOLVERAM.<br />

è UM LIVRO PESSIMISTA SOBRE O BRASIL,<br />

DIRIAM MUITOS. EU ACHO QUE è<br />

PROFèTICO.


136<br />

(02:19) Joào SilvÑrio: N±O ME JACTO DE DIZER ISSO. D I MUITO.<br />

(02:19) Joào SilvÑrio: MAS O “SIM” DE NEPOMUCENO FOI<br />

AUTØNTICO.<br />

(02:19) Helano Jader: MAS ENT±O, EU ACHO QUE UMA LEITURA<br />

PESSIMISTA è N±O ENTENDER JO±O<br />

SILVèRIO, PORQUE AQUELE FINAL COM A<br />

SA DA PARA A PAULISTA è TUDO MENOS<br />

PESSIMISTA.<br />

(02:20) Joào SilvÑrio: S±O OS DOIS MENINOS DE RUA MAMANDO<br />

NA CADELA SARNENTA. è A FUNDAƱO<br />

DE ROMA AO CONTR RIO. è A<br />

AFUNDAƱO DO BRASIL.<br />

ESTE PA S N±O TEM PROJETO. TUDO O QUE<br />

SE FAZ NELE è FRUTO DE FATOS<br />

CONSUMADOS.<br />

(02:21) Helano Jader: N±O, MAS ESSE FOI O DES-PROJETO DOS<br />

PORTUGUESES, O BRASIL.<br />

(02:21) Joào SilvÑrio: A CRISE DO MENSAL±O FOI UMA DAS<br />

COISAS MAIS TR GICAS PARA A POLITICA<br />

BRASILEIRA. EXATO. VOCØ SE LEMBRA DO<br />

CONDE BASUCELLO?<br />

(02:21) Joào SilvÑrio: DO JANTAR MANNIANO EM VENEZA?<br />

(02:22) Joào SilvÑrio: (H 3 NO ROMANCE: UM EM PARATY, UM<br />

EM L†BECK, OUTRO EM VENEZA). O<br />

CONDE è UM DOS TRIPèS DO ROMANCE,<br />

JUNTO COM O CASTRATO.<br />

(02:22) Joào SilvÑrio: ELE è AMIGO DOS MANN E FOI<br />

DIPLOMATA NO BRASIL.


137<br />

(02:23) Joào SilvÑrio: PERSONAGEM FICT CIO, BASEADO NUM<br />

AMIGO MEU ITALIANO.<br />

(02:23) Joào SilvÑrio: E NUM BARONETE QUE CONHECI EM<br />

VENEZA.<br />

(02:23) Joào SilvÑrio: ELE TEM UMA TEORIA SOBRE O BRASIL<br />

COMO UMA ILHA ® DERIVA.<br />

ESTUDEI MUITO ISSO, INCLUSIVE COM UM<br />

PROFESSOR BRASILEIRO EM VENEZA.<br />

(02:24) Joào SilvÑrio: QUE TRABALHAVA O TEMA DO MITO DA<br />

ILHA BRASIL. SE LEMBRA DESSE TRECHO<br />

EM ANA?<br />

(02:24) Joào SilvÑrio: RETOME, SE ACHAR NECESS RIO, O<br />

JANTAR EM VENEZA. EST TUDO L . O<br />

CONDE FALANDO SOBRE O BRASIL.<br />

(02:25) Joào SilvÑrio: ELE è UM PERFEITO INTèRPRETE DAQUILO<br />

QUE EU ENTENDO DO BRASIL COMO UM<br />

PA S ® DERIVA.<br />

(02:25) Joào SilvÑrio: (AGORA ESTAMOS ® DERIVA DA CHINA,<br />

N±O SE ILUDA) (RISOS).<br />

(02:25) Helano Jader: è VERDADE, MAS O BRASIL SOA COMO<br />

UMA PROMESSA AQUI NA ALEMANHA.<br />

(02:26) Helano Jader: N±O SERIA O PROFèTICO DE REI DO<br />

CHEIRO?<br />

(02:27) Joào SilvÑrio: POIS è, HELANO. ESSES EUROPEUS NOS<br />

CRIARAM COMO PRODUTO DA SUA<br />

FANTASIA, NA ILHA BRASIL.


138<br />

(02:27) Joào SilvÑrio: E CONTINUAM NOS ENTENDENDO COMO<br />

PRODUTO DA FANTASIA DELES. VOCØ<br />

CONHECE MEU LIVRO "PEDAÆO DE MIM"?<br />

S±O ENSAIOS E ARTIGOS.<br />

(02:27) Joào SilvÑrio: OK.<br />

(02:27) Helano Jader: H UM ENSAIO SOBRE A JULIA<br />

(02:28) Joào SilvÑrio: N±O è ESSE. è OUTRO QUE SE CHAMA: "O<br />

BRASIL N±O FICA EM MARTE." è UM<br />

ENSAIO MUITO EMBLEM TICO DO QUE EU<br />

ENTENDO SOBRE O OLHAR EUROPEU EM<br />

RELAƱO AO BRASIL.<br />

(02:29) Joào SilvÑrio: CITO INCLUSIVE MINHA EXPERIØNCIA<br />

ALEM±, ENQUANTO BRASILEIRO, DO<br />

PER ODO EM QUE MOREI EM M†NCHEN.<br />

(02:30) Helano Jader: JO±O, ALGO ME INTRIGA, QUE è UM DOS<br />

PONTOS EM MEU TRABALHO, QUE è SUA<br />

RESPOSTA EM RELAƱO AO PESSIMISMO<br />

DE THOMAS MANN, PARECE-ME QUE VOCØ<br />

TAMBèM INCORPORA ESSE PESSIMISMO?<br />

N±O OBSTANTE O "SIM" DE NEPOMUCENO?<br />

(02:30) Joào SilvÑrio: ESSA è UMA PERGUNTA INTRIGANTE PRA<br />

MIM TAMBèM.<br />

(02:31) Joào SilvÑrio: VOCØ ME CHAMA A ATENƱO SOBRE<br />

COMO EU ESTAVA PREOCUPADO EM<br />

SUPERAR O PESSIMISMO MANNIANO DE<br />

"DOCTOR FAUSTUS".<br />

(02:31) Joào SilvÑrio: CHEGUEI ATè A ME APROPRIAR DO SEU<br />

PERSONAGEM.


139<br />

(02:31) Helano Jader: E DAQUELE CONTO "ENTT USCHUNG".<br />

(02:32) Joào SilvÑrio: ADRIAN LEVERK†HN: AQUELE CONTO<br />

EST RELIDO INTEIRINHO NO EPIS DIO DO<br />

CASTRATO.<br />

(02:32) Joào SilvÑrio: MAS è NO FINAL QUE EU APROXIMO O<br />

MEU “SIM” DO PESSIMISMO DE THOMAS<br />

MANN.<br />

(02:33) Joào SilvÑrio: è O EMBATE ENTRE NEPO E O SEU<br />

ENTREVISTADOR (O DOUTOR FAUSTO<br />

TORNADO MEFIST FELES). LEMBRA-SE?<br />

EU ADORO AQUILO.<br />

(02:33) Joào SilvÑrio: O TRECHO SOBRE AS V RIAS "GRAÆAS".<br />

(02:34) Joào SilvÑrio: BRINCO COM A POLISSEMIA DE "GRAÆA"<br />

EM PORTUGUØS.<br />

(02:34) Helano Jader: SIM, CLARO, MAS A MINHA POSIƱO è QUE<br />

ELE, DEPOIS DE SUA MELANCOLIA E<br />

PESSIMISMO INICIAIS, SOFRE UMA ESPèCIE<br />

DE "TRANSCENDØNCIA" GRAÆAS ® ANA.<br />

(02:35) Joào SilvÑrio: DO PONTO DE VISTA DE NEPO, TRATA-SE<br />

DE UM BILDUNGSROMAN. E ANA EST NO<br />

CENTRO DELE. ANA è SEU MESTRE.<br />

(02:35) Helano Jader: EXATO, EU O COMPARO ® MONTANHA<br />

M GICA NESSE SENTIDO.<br />

(02:36) Helano Jader: HANS CASTORP CHEGA ® MONTANHA,<br />

NAIF, E SA "ELEVADO", GRAÆAS ®S SUAS<br />

CONVERSAS COM SETTEMBRINI E AO<br />

CONTATO COM A DOENÆA, CLARO.


140<br />

(02:36) Joào SilvÑrio: E GRAÆAS ® DOENÆA. ESSE è O<br />

DIFERENCIAL DIAB LICO DE THOMAS<br />

MANN. A DOENÆA NOS SALVA.<br />

(02:37) Helano Jader: EXATO.<br />

(02:37) Joào SilvÑrio: ACHO ISSO FASCINANTE. GOSTARIA DE<br />

PODER ESCREVER TODA MINHA OBRA EM<br />

TORNO DISSO.<br />

(02:37) Joào SilvÑrio: TALVEZ NESSE SENTIDO REI DO CHEIRO<br />

SEJA T±O OTIMISTA QUANTO ANA EM<br />

VENEZA.<br />

(02:38) Joào SilvÑrio: O REI MORRE DA DOENÆA QUE N±O è A<br />

AIDS, MAS O BRASIL.<br />

(02:38) Helano Jader: O BRASIL SALVA?<br />

(02:38) Joào SilvÑrio: N±O, O BRASIL MATA. SALVA SE A GENTE<br />

O DESVENDAR.<br />

(02:38) Joào SilvÑrio: MAS TRATA-SE DE UM GRANDE MISTèRIO:<br />

A ILHA ® DERIVA NA HIST RIA.<br />

(02:39) Joào SilvÑrio: è EXATAMENTE O QUE DIZ O POEMA DO<br />

JOMARD CITADO EM DEVASSOS.<br />

(02:39) Helano Jader: ENT±O VOCØ ACHA QUE "EST TUDO<br />

DOMINADO" MESMO?<br />

(02:39) Joào SilvÑrio: SIMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM.<br />

ACHO QUE N±O è UM BOM MOMENTO<br />

PARA FALAR DISSO AGORA. OU TALVEZ<br />

SEJA O MELHOR.


141<br />

(02:40) Joào SilvÑrio: EU ESTOU ME DEBATENDO COM UMA<br />

CRISE DE DEPRESS±O. ACABEI DE FAZER<br />

67 ANOS.<br />

(02:40) Joào SilvÑrio: E PRECISEI PEDIR SOCORRO AO MEU<br />

MèDICO PARA ME MEDICAR. SEN±O EU<br />

N±O CONSEGUIRIA SEGURAR O TRANCO.<br />

(02:41) Joào SilvÑrio: O RESULTADO IMEDIATO FOI O<br />

DESENCANTO COM REI DO CHEIRO, MAS A<br />

COISA VEM DO MENSAL±O. CLARO QUE<br />

TEM MEU TEMPERAMENTO PROP CIO A<br />

ISSO.<br />

(02:41) Joào SilvÑrio: J DISCUTI ESSE TEMA NOS MEUS 289<br />

ANOS DE AN LISE... MAS N±O ADIANTOU<br />

NADA. A CONSCIØNCIA è UMA DOR<br />

INSUPORT VEL.<br />

(02:42) Joào SilvÑrio: TER CONSCIØNCIA DO DEVIR BRASILEIRO<br />

è ISSO: INSUPORT VEL.<br />

(02:42) Helano Jader: EXISTE UM CAP TULO EM MINHA<br />

DISSERTAƱO QUE SE CHAMA O<br />

SATURNINO.<br />

(02:43) Helano Jader: DO SUJEITO QUE SE SUBMETE AO SIGNO<br />

DE SATURNO: LUTO, MELANCOLIA E<br />

DEPRESS±O.<br />

(02:43) Helano Jader: QUE è O NEPOMUCENO.<br />

(02:43) Joào SilvÑrio: E AINDA POR CIMA EU SOU DO SIGNO DE<br />

CµNCER.<br />

(02:43) Joào SilvÑrio: NEPOMUCENO DE FATO SOFRIA DO<br />

CORAƱO. E DE FATO VIVEU AQUELE


142<br />

EPIS DIO NO VES°VIO. ACHEI AQUILO<br />

FANT STICO.<br />

(02:44) Joào SilvÑrio: DA TER ESTUDADO TANTO O TURISMO AO<br />

VES°VIO NA èPOCA.<br />

(02:44) Helano Jader: MAS è INCR VEL, COMO ISSO O LIGA AO<br />

ASCHENBACH, QUE TAMBèM è DESCRITO<br />

COMO UMA PESSOA DE POUCA SA°DE.<br />

(02:45) Joào SilvÑrio: SIM, EXCETO QUE ASCHENBACH ERA UM<br />

VELHO QUE SE SENTIA DECADENTE. NEPO<br />

TINHA SUA JUVENTUDE. ESTAVA NUM<br />

PROCESSO DE APRENDIZADO.<br />

(02:45) Joào SilvÑrio: AS FOTOS DELE JOVEM S±O<br />

IMPRESSIONANTES. ERA DE UMA BELEZA<br />

INCR VEL.<br />

(02:46) Helano Jader: ELE TINHA UMA POSTURA FANT STICA,<br />

UMA NOBREZA NO OLHAR.<br />

(02:46) Joào SilvÑrio: EU ATè DOU A ENTENDER ALGUMA COISA<br />

RELACIONADA ® UMA POSS VEL RELAƱO<br />

HOMOSSEXUAL ENTRE ELE E O PINTOR<br />

QUE O HOSPEDOU NO RIO DE JANEIRO.<br />

CLARO QUE ISSO N±O ME INTERESSAVA<br />

NO ROMANCE.<br />

(02:46) Joào SilvÑrio: POR ISSO N±O FIZ NENHUM ESFORÆO EM<br />

APROFUNDAR. SERIA UM DESVIO DE<br />

ROTA.<br />

(02:47) Helano Jader: MAS J AO THOMAS MANN VOCØ N±O DEU<br />

PERD±O.<br />

(02:47) Joào SilvÑrio: EM QUE SENTIDO?


143<br />

(02:48) Helano Jader: DA HOMOSSEXUALIDADE, QUANDO VOCØ<br />

RELATA SOBRE ELE AINDA GAROTO E SUA<br />

PAIX±O PELO COLEGA.<br />

(02:48) Joào SilvÑrio: TOMAS MANN RELATA ISSO NUMA DE<br />

SUAS PRIMEIRAS NOVELAS, DIGO, ESSE<br />

CASO.<br />

(02:48) Helano Jader: TONIO KROEGER.<br />

(02:48) Joào SilvÑrio: JA. AQUILO è UM RELATO QUASE<br />

AUTOBIOGR FICO.<br />

(02:49) Joào SilvÑrio: ASSIM COMO TEM MUITO DE<br />

AUTOBIOGRAFIA NO MORTE EM VENEZA.<br />

(02:49) Helano Jader: CLARO, A PR PRIA FILHA (A °LTIMA A<br />

FALECER), COMENTA UM EPIS DIO COM O<br />

PAI EM VENEZA EM QUE HOUVE UM<br />

FASC NIO DELE EM TORNO DE UM JOVEM<br />

BELO.<br />

(02:50) Joào SilvÑrio: A HOMOSSEXUALIDADE TAMBèM EST<br />

PRESENTE NO CONDE BASUCELLO E SEU<br />

AMANTE, UM GONDOLEIRO VENEZIANO,<br />

SE VOCØ SE LEMBRA. è UM TRECHO DO<br />

ROMANCE QUE ACHO LINDO. ELE<br />

DECLARANDO SEU AMOR AO<br />

GONDOLEIRO, NO MOMENTO DE IR<br />

EMBORA.<br />

(02:50) Joào SilvÑrio: SE VOCØ VIU A MINI SèRIE "DIE MANN",<br />

EST TUDO L .<br />

(02:50) Helano Jader: EXATO.<br />

(02:50) Joào SilvÑrio: BOM, N±O SEI SE DESVIEI MUITO DAS


SUAS PERGUNTAS.<br />

(02:51) Helano Jader: N±O, N±O.<br />

144<br />

(02:53) Helano Jader: OLHA, PRA N±O TE CANSAR MUITO EU<br />

GOSTARIA DE ENCERRAR COM UMA<br />

PERGUNTA, QUE ME INQUIETA, QUE è A<br />

RESPEITO DE SUA LEITURA TE RICA,<br />

PORQUE EU LI ALGUNS AUTORES COMO<br />

LYOTARD, ETC, QUANDO VOCØ FALA<br />

SOBRE O FIM DAS METANARRATIVAS E<br />

TAL. EXISTIU UMA LEITURA EM TORNO DO<br />

TEMA "P S-MODERNIDADE"?<br />

(02:53) Helano Jader: OU MODERNIDADE.<br />

(02:54) Helano Jader: ME PARECE QUE A MODERNIDADE TE<br />

INCOMODA.<br />

(02:54) Joào SilvÑrio: EXISTE SIM UMA PREOCUPAƱO<br />

CONSTANTE E ANTIGA COM A P S<br />

MODERNIDADE. N±O S UM AUTOR<br />

ESPEC FICO, MAS MUITAS DISCUSS¥ES<br />

ESPARSAS. LYOTARD FOI O PRIMEIRO QUE<br />

ME CHAMOU A ATENƱO SOBRE ISSO.<br />

N±O, AMO A MODERNIDADE. S QUE ELA<br />

EST ESGOTADA. E N±O D PRA FICAR<br />

OLHANDO PRA TR S.<br />

(02:54) Joào SilvÑrio: O QUE ME INCOMODA è A AUSØNCIA DE<br />

PERSPECTIVAS NESTA FASE P S.<br />

(02:55) Joào SilvÑrio: EM LITERATURA ESTUDEI MUITO ISSO.<br />

ALI S, NAS VANGUARDAS EM GERAL, N±O<br />

APENAS AS LITER RIAS.<br />

(02:55) Joào SilvÑrio: H UM ESGOTAMENTO QUE SE ABATE


145<br />

SOBRE NOSSAS CABEÆAS HOJE. EM TRØS<br />

SEGMENTOS: AS ARTES, A POL TICA E A<br />

NATUREZA.<br />

(02:55) Joào SilvÑrio: ACHO QUE ESTAMOS NUM BECO SEM<br />

SA DA. TALVEZ EU N±O TIVESSE ESSA<br />

CONSCIØNCIA T±O CLARA EM ANA.<br />

(02:56) Joào SilvÑrio: MAS MINHA PREOCUPAƱO COM O P S<br />

MODERNO COMEÆA COM MEU PRIMEIRO<br />

ROMANCE ESCRITO E O SEGUNDO<br />

PUBLICADO.<br />

(02:56) Helano Jader: PORQUE PARA MIM AINDA, VOCØ APONTA<br />

PARA UMA SA DA EM ANA, QUE è<br />

ENTREGAR-SE AO CAOS, QUE è UMA<br />

SA DA.<br />

(02:56) Joào SilvÑrio: CHAMA-SE "VAGAS NOT CIAS DE MELINHA<br />

MARCHIOTTI".<br />

(02:57) Joào SilvÑrio: SIM, HELANO. OBRIGADO POR ME<br />

LEMBRAR DISSO. EU TENHO FORMAƱO<br />

CAT LICA E ANARQUISTA.<br />

(02:57) Joào SilvÑrio: AMO BU UEL E BRESSON, DOIS POLOS<br />

OPOSTOS QUE SE COMPLETAM.<br />

O CAOS è PARA MIM FUNDAMENTAL.<br />

(02:58) Joào SilvÑrio: MEUS 289 ANOS DE AN LISE FORAM UMA<br />

TENTATIVA DE DIALOGAR COM O MEU<br />

CAOS. E EU SABIA QUE NO FINAL DELE<br />

EST A MORTE.<br />

(02:58) Joào SilvÑrio: VOCØ LEU MEU CONTO "DOIS CORPOS QUE<br />

CAEM"?


146<br />

(02:58) Helano Jader: SEU COMBATE DION SIO VERSUS APOLO.<br />

(02:58) Joào SilvÑrio: è UM COMBATE HOMOSSEXUAL. SE VOCØ<br />

ME ENTENDE (RISOS) COMO NA GUERRA:<br />

H EROS E ANTEROS.<br />

(02:59) Joào SilvÑrio: NESSE CONTO, EU NARRO IPSIS LITTERIS A<br />

QUEDA NO ABISMO. VOCØ CONHECE?<br />

(03:00) Joào SilvÑrio: EST NO MEU LIVRO "TROÆOS &<br />

DESTROÆOS" E TAMBèM è MUITO<br />

CONHECIDO POR COMPOR A ANTOLOGIA<br />

DOS 100 MELHORES CONTOS BRASILEIROS<br />

DO SèCULO 230. MAS POSSO LHE MANDAR.<br />

è DE CERTO MODO UMA VERS±O DO<br />

FINAL DE ANA, POR OUTRO µNGULO.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!