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Artigos 25 do CPP e 102 do CP - Emerj

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Argos <strong>25</strong> <strong>do</strong> <strong><strong>CP</strong>P</strong> e <strong>102</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>CP</strong> - Violência Domésca e<br />

Interpretação Conforme a<br />

Constuição 1<br />

Marcos Augusto Ramos Peixoto<br />

Juiz de Direito - TJRJ<br />

“É preciso reduzir o exercício de poder <strong>do</strong> sistema penal e<br />

substuí-lo por formas efevas de solução <strong>do</strong>s conflitos.”<br />

Eugenio Raúl Zaffaroni 2<br />

Dispõem os argos <strong>25</strong> <strong>do</strong> Código de Processo Penal e <strong>102</strong> <strong>do</strong> Código<br />

Penal que “a representação será irretratável, depois de oferecida a<br />

denúncia”.<br />

A representação, como sabemos, é condição específica de procedibilidade<br />

em determinadas ações penais de iniciava pública condicionada,<br />

consistente na manifestação da víma ou de quem legalmente a<br />

represente no sen<strong>do</strong> de deflagrar a persecução penal. Nas palavras de<br />

André Nicoli, “tal exigência decorre <strong>do</strong> fato de que determina<strong>do</strong>s crimes<br />

angem mais o interesse <strong>do</strong> ofendi<strong>do</strong> <strong>do</strong> que o próprio interesse público<br />

na repressão, poden<strong>do</strong> a persecução penal gerar maior dano <strong>do</strong> que o<br />

próprio crime. Portanto, exige-se a representação como pedi<strong>do</strong>-autorização<br />

da víma”. 3<br />

A seu turno, a razão de ser daqueles <strong>do</strong>is disposivos reside em<br />

não atribuir à alegada víma – naqueles crimes em que a lei respeita sua<br />

vontade quanto a prosseguir ou não na persecução – indefinidamente, o<br />

poder de dispor sobre a ação penal, o que traria prejuízos ao funciona-<br />

1 Argo em agradecimento à EMERJ pelo ensejo de parcipar como bolsista desta instuição de ensino junto ao<br />

18º Seminário Internacional de Ciências Criminais <strong>do</strong> IBCCRIM, de 28 a 31 de agosto de 2012, em São Paulo.<br />

2 Apud Sica, Leonar<strong>do</strong>, "Mediação, Processo Penal e Democracia", in: Pra<strong>do</strong>, Geral<strong>do</strong>; Malan, Diogo (Orgs.), Processo<br />

Penal e Democracia, 1ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009, p. 289.<br />

3 Nicoli, André, Manual de Processo Penal, 1ª edição, Rio de Janeiro, Elsevier, 2009, p. 117.<br />

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mento <strong>do</strong> Ministério Público e à administração da Jusça, com reflexos no<br />

princípio da indisponibilidade da ação penal pública, assim como indesejável<br />

incerteza no campo jurídico, além de severa angúsa ao indicia<strong>do</strong>.<br />

Na <strong>do</strong>utrina, poucas são as vozes que quesonam a dicção legal,<br />

caben<strong>do</strong> citar aqui a lição de Juarez Cirino <strong>do</strong>s Santos ao lembrar-nos que<br />

a regra anterior à reforma de 1984 <strong>do</strong> Código Penal era a limitação da<br />

retratação da representação até o recebimento da denúncia (não a seu<br />

oferecimento), sustentan<strong>do</strong> ser impreciso o limite atual ao não ser possível<br />

saber “se significa (a) entrega da denúncia em Cartório, ou (b) apresentação<br />

da denúncia ao Juiz, para recebimento ou rejeição” 4 , a mesma<br />

questão sen<strong>do</strong> encontrada em Delmanto, para quem “a oferta da denúncia<br />

não se equipara a sua mera feitura ou subscrição. O oferecimento da<br />

denúncia tem de ser entendi<strong>do</strong> como a sua apresentação ao juiz, ato que<br />

se prova com o despacho deste, a receben<strong>do</strong> ou rejeitan<strong>do</strong>”. 5<br />

A jurisprudência pátria por igual caminha no sen<strong>do</strong> de aplicar os<br />

cita<strong>do</strong>s ditames legais, a mais das vezes sem maiores ressalvas ou crícas,<br />

como se vê <strong>do</strong> seguinte aresto oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal:<br />

HABEAS CORPUS. CRIME DE LESÃO CORPORAL DE NATURE-<br />

ZA LEVE (CAPUT DO ART. 129 DO <strong>CP</strong>, C/C O ART. 88 DA LEI<br />

Nº 9.099/95). PEDIDO DE TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL,<br />

POR MOTIVO DE RETRATAÇÃO DO ATO DE REPRESENTAÇÃO<br />

JUNTO AO MINISTÉRIO PÚBLICO. INADMISSIBILIDADE, NOS<br />

TERMOS DO ART. <strong>25</strong> DO <strong><strong>CP</strong>P</strong>. ALEGADA NULIDADE DO JULGA-<br />

MENTO DE HABEAS CORPUS IMPETRADO PERANTE TURMA<br />

RECURSAL. NORMA REGIMENTAL QUE PERMITE AO MAGIS-<br />

TRADO PROLATOR DO ATO IMPUGNADO INTEGRAR O QUÓ-<br />

RUM DE JULGAMENTO NA TURMA RECURSAL (REGIMENTO<br />

INTERNO DAS TURMAS RECURSAIS DO ESTADO DE MINAS<br />

GERAIS - CAPÍTULO II). INCONSTITUCIONALIDADE. GARANTIA<br />

DO JUIZ NATURAL.<br />

É irretratável a representação da víma depois de oferecida<br />

a denúncia pelo Ministério Público (<strong><strong>CP</strong>P</strong>, art. <strong>25</strong>). Não gera a<br />

exnção <strong>do</strong> processo penal a retratação que, somente formalizada<br />

após o oferecimento da denúncia, tem como objevo<br />

obstar a connuidade de feito já instaura<strong>do</strong>...<br />

4 Cirino <strong>do</strong>s Santos, Juarez, Direito Penal – Parte Geral, 3ª edição, Curiba, I<strong>CP</strong>C/Lumen Juris, 2008, p. 681.<br />

5 Delmanto, Celso, et al., Código Penal Comenta<strong>do</strong>, 6ª edição, Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 193.<br />

162<br />

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Omissis....<br />

(HC 85056, Relator Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julga<strong>do</strong><br />

em 17/11/2005, DJ <strong>25</strong>-08-2006 PP-00017 EMENT VOL-<br />

02244-03 PP-00451 RTJ VOL-00201-01 PP-00189 LEXSTF v.<br />

28, n. 333, 2006, p. 387-393).<br />

Não diverge o posicionamento <strong>do</strong> Superior Tribunal de Jusça:<br />

PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO DE HABEAS COR-<br />

PUS. CRIME CONTRA OS COSTUMES. RETRATAÇÃO DA REPRE-<br />

SENTAÇÃO. OFERECIMENTO DA DENÚNCIA.<br />

I - Os arts. <strong>25</strong> <strong>do</strong> <strong><strong>CP</strong>P</strong> e <strong>102</strong> <strong>do</strong> <strong>CP</strong> deixam claro que a retratação<br />

só tem relevância jurídica se realizada antes <strong>do</strong> oferecimento<br />

da denúncia. O recebimento desta não é referencial<br />

para a verificação da eficácia da retratação. II - Oferecida a<br />

proemial acusatória, a ação penal se torna indisponível. Recurso<br />

desprovi<strong>do</strong>.<br />

(RHC 10176/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA,<br />

julga<strong>do</strong> em 07/12/2000, DJ 05/02/2001, p. 115).<br />

Ocorre que, enquanto na maioria <strong>do</strong>s casos tal opção legislava representa<br />

um verdadeiro indiferente, em determinadas hipóteses aqueles<br />

disposivos <strong>do</strong> Código Penal e <strong>do</strong> Código de Processo Penal se chocam<br />

com princípios constucionais da maior relevância, os quais, se não são<br />

suficientes para ensejar a plena inconstucionalidade <strong>do</strong>s cita<strong>do</strong>s argos<br />

de lei em caráter abstrato, impõem que, diante de tais princípios e em<br />

determinadas condições concretas, seja feita interpretação conforme a<br />

constuição.<br />

Isto se dá precipuamente (mas não só) nas hipóteses <strong>do</strong> argo 129<br />

parágrafo 9º <strong>do</strong> Código Penal, acresci<strong>do</strong> pela Lei 10.886/2004, posteriormente<br />

altera<strong>do</strong> pela Lei 11.340/2006 – chamada “Lei Maria da Penha”<br />

– que afinal dispôs:<br />

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:<br />

Pena - detenção, de três meses a um ano.<br />

Omissis...<br />

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Violência Domésca<br />

§ 9º Se a lesão for pracada contra ascendente, descendente,<br />

irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou<br />

tenha convivi<strong>do</strong>, ou, ainda, prevalecen<strong>do</strong>-se o agente das relações<br />

<strong>do</strong>méscas, de coabitação ou de hospitalidade:<br />

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.<br />

Lembremos que o argo 88 da Lei 9.099/95 já estatuía, desde antes<br />

destas alterações no Código Penal, que “além das hipóteses <strong>do</strong> Código<br />

Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal<br />

relava aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”.<br />

Cabe aqui colocar parênteses, pois, de início, como bem sabemos, a<br />

<strong>do</strong>utrina e jurisprudência se digladiaram quanto à natureza da ação penal<br />

em crimes envolven<strong>do</strong> as circunstâncias <strong>do</strong> parágrafo 9º, pretenden<strong>do</strong> alguns<br />

(principalmente na órbita <strong>do</strong> Ministério Público) que teria ela passa<strong>do</strong><br />

a ser pública incondicionada por força <strong>do</strong> que dispõe o argo 41 da Lei<br />

11.340/2006, o qual, segun<strong>do</strong> aquele entendimento, teria afasta<strong>do</strong> por<br />

completo a aplicabilidade da Lei 9.099/95 nestas hipóteses e, portanto,<br />

também de seu argo 88. A matéria, entretanto, pacifica-se em sen<strong>do</strong><br />

diametralmente oposto, isto mesmo após o julgamento conjunto da ADIn<br />

4.424 e da ADC 19 pelo Supremo Tribunal Federal, que se limitou à esfera<br />

da Lei Maria da Penha, ao declarar constucional seu argo 41 e inconstucional<br />

seu argo 16 para tornar, dentro daquele contexto, a ação penal<br />

de iniciava pública incondicionada, decisão esta com efeitos vinculantes<br />

(e lamentáveis...).<br />

Que fique bem claro portanto: não estamos aqui no campo da Lei<br />

Maria da Penha. Ainda que se trate de disposivo altera<strong>do</strong> por aquele<br />

diploma, o argo 129, parágrafo 9º, <strong>do</strong> Código Penal trata de violência em<br />

contexto <strong>do</strong>mésco, de coabitação e hospitalidade, ainda que pracada<br />

contra homem, portanto em tu<strong>do</strong> distante <strong>do</strong> que estatuem o argo 1º da<br />

Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra<br />

a Mulher (raficada pelo Brasil em 1984), o argo 1º da Convenção Interamericana<br />

para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher<br />

(raficada pelo Brasil em 1995) e os argos 1º e 5º da Lei 11.340/2006,<br />

que têm como foco parcular a violência <strong>do</strong>mésca e familiar contra a<br />

mulher, com todas as sua especificidades vinculadas à violência de gênero<br />

e ao intuito (admi<strong>do</strong> – concordemos ou não – por nosso Tribunal<br />

164<br />

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Constucional 6 ) de conferir à mulher tutela especial <strong>do</strong> direito infracons-<br />

tucional enquanto “pessoa vulnerável e hipossuficiente” em situações<br />

de violência de gênero.<br />

Em resumo, caracterizada a violência <strong>do</strong>mésca e familiar contra a<br />

mulher como de gênero na hipótese <strong>do</strong> crime de lesão corporal, aplicase<br />

o argo 41 da Lei Maria da Penha, passan<strong>do</strong> a ação penal a ser pública<br />

incondicionada, em conformidade com o julga<strong>do</strong> <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal.<br />

Do contrário, será pública condicionada à representação, ainda que<br />

nas hipóteses <strong>do</strong> argo 129, parágrafo 9º, <strong>do</strong> Código Penal exista víma<br />

<strong>do</strong> sexo feminino. 7<br />

Fecha<strong>do</strong>s os parênteses, em se tratan<strong>do</strong> – conforme demonstra<strong>do</strong><br />

– de crimes afetos a ação penal de iniciava pública condicionada à representação,<br />

seria o caso de aplicar às hipóteses <strong>do</strong> argo 129, parágrafo 9º,<br />

<strong>do</strong> Código Penal o que estatuem os argos <strong>102</strong> <strong>do</strong> mesmo ordenamento<br />

e <strong>25</strong> <strong>do</strong> Código de Processo Penal, i.e., limitan<strong>do</strong> a possibilidade de retratação<br />

à oferta da denúncia.<br />

Ocorre que em tal contexto o posicionamento <strong>do</strong>utrinário e jurisprudencial<br />

usual envolven<strong>do</strong> estes úlmos disposivos legais traz inúmeros<br />

percalços e profundas preocupações. Aventemos a seguinte hipótese:<br />

A, embriaga<strong>do</strong>, em uma festa familiar, agride B, seu irmão, causan<strong>do</strong>-lhe<br />

lesão leve; B, irrita<strong>do</strong> e no calor <strong>do</strong>s fatos, procura a Delegacia Policial<br />

onde registra a ocorrência e oferta representação; após a regular (e usualmente<br />

demorada) tramitação <strong>do</strong> respecvo Inquérito Policial, é oferecida<br />

pelo Ministério Público denúncia em face de A, a qual, ultrapassa<strong>do</strong>s os<br />

trâmites iniciais, é recebida pelo Juízo competente; em audiência, entretanto,<br />

B esclarece que, ainda que sejam verdadeiros os fatos elenca<strong>do</strong>s na<br />

inicial, tu<strong>do</strong> já está supera<strong>do</strong> no contexto familiar, que os irmãos alcança-<br />

6 “O Tribunal, por maioria e nos termos <strong>do</strong> voto <strong>do</strong> Relator, julgou procedente a ação direta para, dan<strong>do</strong> interpretação<br />

conforme aos argos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei nº 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da<br />

ação penal em caso de crime de lesão, pouco importan<strong>do</strong> a extensão desta, praca<strong>do</strong> contra a mulher no ambiente<br />

<strong>do</strong>mésco, contra o voto <strong>do</strong> Senhor Ministro Cezar Peluso (Presidente). Falaram, pelo Ministério Público Federal (ADI<br />

4424), o Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, Procura<strong>do</strong>r-Geral da República; pela Advocacia-Geral da União, a Dra.<br />

Grace Maria Fernandes Men<strong>do</strong>nça, Secretária-Geral de Contencioso; pelo interessa<strong>do</strong> (ADC 19), Conselho Federal da<br />

Ordem <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Brasil, o Dr. Ophir Cavalcante Júnior e, pelo interessa<strong>do</strong> (ADI 4424), Congresso Nacional,<br />

o Dr. Alberto Cascais, Advoga<strong>do</strong>-Geral <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>. Plenário, 09.02.2012” (em hp://www.s.jus.br/portal/processo/<br />

verProcessoTexto.aspid=3109529&poApp=RTF, consulta<strong>do</strong> em 20 de setembro de 2012).<br />

7 “A defesa da tese contrária acaba desembocan<strong>do</strong> no repisar de concepções superadas pela moderna ciência criminal,<br />

as quais são marcadas principalmente pela desconsideração da víma no cenário criminal e pelo mito de<br />

um Direito Penal como primeira e única opção para a pacificação <strong>do</strong>s conflitos e regulação da convivência social”<br />

(Cabee, Eduar<strong>do</strong> Luiz Santos; Couto Júnior, Osmir Pires, A ação penal nos casos de violência <strong>do</strong>mésca, disponível<br />

na internet: www.ibccrim.org.br, consulta<strong>do</strong> em 20 de setembro de 2012).<br />

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am as pazes, e que pretende encerrar a ação – trata-se de situação extremamente<br />

corriqueira para aqueles que vivenciam o codiano de uma<br />

Vara Criminal. Pois bem: que fazer<br />

A resposta para aqueles que a<strong>do</strong>tam o posicionamento usual e<br />

endeusam o princípio da indisponibilidade da ação penal pública (ainda<br />

que atualmente já por tantas vezes flexibiliza<strong>do</strong>) seria simples e objeva:<br />

“nada pode ser feito”, pois, ofertada a denúncia, não está mais nas mãos<br />

da alegada víma dispor da ação penal mediante a retratação de sua anterior<br />

representação. Ainda que fosse realizada perante o Juízo competente<br />

audiência especial após o oferecimento da denúncia, porém antes de seu<br />

recebimento, na qual a víma manifestasse a retratação, o posicionamento<br />

seria o mesmo para aqueles que assim entendem. A consequência disto,<br />

contu<strong>do</strong>, seria nada menos que reavivar to<strong>do</strong> o contexto conflituoso<br />

interfamiliar, em contradição frontal, portanto, aos princípios constucionais<br />

da proteção da família e da pacificação social.<br />

Ora, o argo 88 da Lei 9.099/95, acima transcrito, tem como fundamento<br />

essencial exatamente o propósito maior de pacificação con<strong>do</strong><br />

no ideal de “harmonia social” previsto no preâmbulo da Constuição Federal<br />

8 , e na busca da “conciliação” prevista no inciso I <strong>do</strong> seu argo 98<br />

(refle<strong>do</strong> no próprio argo 2º da referida Lei). Isto porque o direito de<br />

representação nas ações penais de iniciava pública condicionada permite,<br />

exatamente, que os envolvi<strong>do</strong>s em delito como aquele <strong>do</strong> argo 129,<br />

parágrafo 9º, <strong>do</strong> Código Penal alcancem a autocomposição <strong>do</strong> ligio, aceleran<strong>do</strong><br />

assim a paz social almejada pelo constuinte originário.<br />

Aliás, poderíamos mesmo dizer que a pacificação social é o escopo<br />

primordial da própria prestação jurisdicional e, em úlma análise, da existência<br />

<strong>do</strong> Poder Judiciário 9 , não caben<strong>do</strong> a este, portanto, aplicar ditames<br />

legais que se contraponham aos objevos essenciais não só deste mesmo<br />

Poder como, principalmente, da Constuição Federal.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, “a família, base da sociedade, tem especial proteção<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”, nas palavras <strong>do</strong> caput <strong>do</strong> argo 226 da Carta Maior,<br />

8 Ainda que saibamos das limitações anentes ao preâmbulo constucional, por “não fazer parte <strong>do</strong> texto constucional<br />

propriamente dito e, consequentemente, não conter normas constucionais de valor jurídico autônomo,<br />

o preâmbulo não é juridicamente irrelevante, uma vez que deve ser observa<strong>do</strong> como elemento de interpretação e<br />

integração <strong>do</strong>s diversos argos que lhe seguem” (Moraes, Alexandre de, Direito Constucional, 23ª edição, São<br />

Paulo, Atlas, 2008, p. 20).<br />

9 “Sem dúvida, a função pica <strong>do</strong> Poder Judiciário é a jurisdicional (prestação jurisdicional), que se traduz justamente<br />

na interpretação e aplicação das normas para a resolução de casos concretos solven<strong>do</strong> lides com caráter de definividade<br />

e, com isso, realizan<strong>do</strong> a pacificação social” (Fernandes, Bernar<strong>do</strong> Gonçalves, Curso de Direito Constucional,<br />

3ª edição, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2011, p. 164).<br />

166<br />

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sen<strong>do</strong> certo que “o Esta<strong>do</strong> assegurará a assistência à família na pessoa<br />

de cada um <strong>do</strong>s que a integram, crian<strong>do</strong> mecanismos para coibir a violência<br />

no âmbito de suas relações” (parágrafo 8º <strong>do</strong> mesmo disposivo<br />

constucional). Se assim é, ao Esta<strong>do</strong> compete privilegiar a pacificação<br />

da família, ao contrário de aplicar normas que tendem exatamente ao<br />

oposto, ou seja, à sua desagregação ou desestruturação, inviabilizan<strong>do</strong><br />

a pacificação social ao aplicar mecanismos que, às avessas, incenvam a<br />

violência no âmbito das relações familiares (violência esta não necessária<br />

ou exclusivamente sica, como a que teria ocorri<strong>do</strong> geran<strong>do</strong> inicialmente<br />

o conflito, mas também psíquica ao impor, com base em vetusto<br />

disposivo legal, no exemplo, que um irmão processe criminalmente<br />

outro irmão, ambos apazigua<strong>do</strong>s).<br />

Pois bem, nas palavras de Luis Roberto Barroso, “...singulariza o <strong>do</strong>cumento<br />

constucional a presença de normas que se dizem programácas.<br />

Contêm elas disposições indica<strong>do</strong>ras de valores a serem preserva<strong>do</strong>s e de<br />

fins sociais a serem alcança<strong>do</strong>s. Seu objeto é o de estabelecer determina<strong>do</strong>s<br />

princípios e fixar programas de ação. Caracterísca dessas regras é que<br />

elas não especificam qualquer conduta a ser seguida pelo Poder Público,<br />

apenas apontan<strong>do</strong> linhas diretoras. Por explicitarem fins, sem indicarem os<br />

meios, investem os jurisdiciona<strong>do</strong>s em uma posição jurídica menos consistente<br />

<strong>do</strong> que de conduta picas, de vez que não conferem direito subjevo<br />

em sua versão posiva de exigibilidade de determinada prestação. Todavia,<br />

fazem nascer um direito subjevo negavo de exigir <strong>do</strong> Poder Público<br />

que se abstenha de pracar atos que contravenham os seus ditames. Por<br />

via de consequência, as potencialidades que oferecem são disntas e o intérprete<br />

e aplica<strong>do</strong>r da norma tem de ser atento a isso”. 10<br />

Estes são os princípios, idenfica<strong>do</strong>s por Robert Alexy como “manda<strong>do</strong>s<br />

de omização” 11 , que conferem orientações aos Poderes da República<br />

no sen<strong>do</strong> de que se sirvam <strong>do</strong>s mesmos elementos nortea<strong>do</strong>res na<br />

práca codiana <strong>do</strong>s atos próprios à suas naturezas e funções, vesn<strong>do</strong><br />

assim a mesma roupagem democráca e republicana, sen<strong>do</strong> certo que<br />

quan<strong>do</strong> determina<strong>do</strong> ato, ação, omissão, norma exarada pelo poder público<br />

afronta estes manda<strong>do</strong>s de omização, desafia controle de constucionalidade,<br />

que poderá se dar pela via direta ou incidental.<br />

10 Barroso, Luis Roberto, Interpretação e aplicação da Constuição, 7ª edição, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 91.<br />

11 “Os princípios são mandamentos de omização, ou seja,normas que exigem que algo seja realiza<strong>do</strong> na maior<br />

medida possível diante das condições fácas e jurídicas existentes” (apud Fernandes, Bernar<strong>do</strong> Gonçalves, op.cit.,<br />

p. 164).<br />

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Aqui, entretanto, não estamos diante de uma inconstucionalidade<br />

absoluta, que demande a cabal rerada das normas condas nos argos<br />

<strong>25</strong> <strong>do</strong> Código de Processo Penal e <strong>102</strong> <strong>do</strong> Código Penal <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> jurídico,<br />

pois, como acima asseveramos, via de regra é indiferente a a<strong>do</strong>ção,<br />

pelo legisla<strong>do</strong>r infraconstucional, <strong>do</strong> oferecimento da denúncia como<br />

termo final para a possibilidade de retratação da representação, sen<strong>do</strong><br />

por isso mesmo em diversas hipóteses tais normas compaveis com o<br />

texto constucional, caben<strong>do</strong>, portanto, serem mandas em homenagem<br />

ao princípio geral da separação <strong>do</strong>s Poderes e visan<strong>do</strong> a preservação das<br />

normas oriundas <strong>do</strong> Poder Legislavo, que dispõe de representavidade<br />

para editá-las.<br />

Contu<strong>do</strong>, em face de delitos que abranjam violência <strong>do</strong>mésca (exceção<br />

feita, repita-se, à violência de gênero contra a mulher, por força da<br />

citada decisão <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal que entendeu, com efeitos<br />

erga omnes, nestas circunstâncias, ser a ação penal de iniciava pública<br />

incondicionada), a a<strong>do</strong>ção deste termo ad quem para a representação,<br />

por um la<strong>do</strong>, inviabiliza a consecução <strong>do</strong> ideal e princípio constucional<br />

da pacificação social e, por outro, despreza o princípio da proteção da<br />

família, não poden<strong>do</strong> uma regra de natureza procedimental a estes se sobrepor,<br />

sob pena de subverter o arcabouço jurídico ante a óca da primazia<br />

<strong>do</strong>s princípios.<br />

“A supremacia das normas constucionais no ordenamento jurídico”,<br />

diz Alexandre de Moraes, “e a presunção de constucionalidade<br />

das leis e atos normavos edita<strong>do</strong>s pelo poder público competente exigem<br />

que, na função hermenêuca de interpretação <strong>do</strong> ordenamento jurídico,<br />

seja sempre concedida preferência ao sen<strong>do</strong> da norma que seja<br />

adequa<strong>do</strong> à Constuição Federal. Assim sen<strong>do</strong>, no caso de normas com<br />

várias significações possíveis, deverá ser encontrada a significação que<br />

apresente conformidade com as normas constucionais, evitan<strong>do</strong> sua<br />

declaração de inconstucionalidade e consequente rerada <strong>do</strong> ordenamento<br />

jurídico”. 12<br />

É justamente em situações tais que há de ser concrezada a interpretação<br />

conforme a constuição, de mo<strong>do</strong> a extrair <strong>do</strong> texto normavo<br />

leitura que o compabilize com a Constuição Federal, bem como afastar<br />

leituras que com esta conflitem.<br />

12 Moraes, Alexandre de, op.cit., p. 16.<br />

168<br />

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Nos ensina Luis Roberto Barroso que “à vista das dimensões diversas<br />

que sua formulação comporta, é possível e conveniente decompor<br />

didacamente o processo de interpretação conforme a Constuição nos<br />

elementos seguintes: l) Trata-se de escolha de uma interpretação da norma<br />

legal que a mantenha com a Constuição, em meio a outra ou outras<br />

possibilidades interpretavas que o preceito admita. 2) Tal interpretação<br />

busca encontrar um sen<strong>do</strong> possível para a norma, que não é o que mais<br />

evidentemente resulta da leitura de seu texto. 3) Além da eleição de uma<br />

linha de interpretação, procede-se à exclusão expressa de outra ou outras<br />

interpretações possíveis, que conduziriam a resulta<strong>do</strong> contrastante com<br />

a Constuição. 4) Por via de consequência, a interpretação conforme a<br />

Constuição não é mero preceito hermenêuco, mas, também, um mecanismo<br />

de controle de constucionalidade pelo qual se declara ilegíma<br />

uma determinada leitura da norma legal”. 13<br />

Assim é que, conforme demonstra<strong>do</strong>, se revela, em um primeiro<br />

momento, de to<strong>do</strong> incompavel com os princípios constucionais retro<br />

cita<strong>do</strong>s a eleição da oferta da denúncia como termo final para a possibilidade<br />

de retratação da representação nas hipóteses de violência <strong>do</strong>mésca<br />

(quan<strong>do</strong> a hipótese fáca não tenha como víma mulher em situação<br />

de violência de gênero, como decidiu o STF). Em um segun<strong>do</strong> momento,<br />

como corolário, se impõe a compreensão <strong>do</strong>s textos normavos já referi<strong>do</strong>s,<br />

nestas hipóteses, nos seguintes termos: a representação será irretratável<br />

depois de oferecida a denúncia, desde que não se esteja diante de<br />

violência <strong>do</strong>mésca.<br />

A simples dicção <strong>do</strong>s argos <strong>25</strong> <strong>do</strong> Código de Processo Penal e <strong>102</strong><br />

<strong>do</strong> Código Penal, sem tal interpretação conforme a Constuição Federal,<br />

colabora para a perpetuação ou quan<strong>do</strong> não para o reavivamento <strong>do</strong> conflito,<br />

impon<strong>do</strong>, por mera deliberação abstrata <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r infraconstucional,<br />

a desagregação familiar como grave consequência.<br />

O entendimento aqui proposto guarda consonância com os princípios<br />

constucionais da pacificação social e da proteção à família, buscan<strong>do</strong><br />

concrezar (leia-se: conferir efevidade) a “omização” de que<br />

fala Alexy na exata medida em que viabiliza ao Judiciário, antes <strong>do</strong> eventual<br />

recebimento da denúncia já ofertada, realizar audiência especial<br />

de mo<strong>do</strong> a buscar, de um la<strong>do</strong>, a “efeva solução <strong>do</strong> conflito”, referida<br />

13 Barroso, Luis Roberto, op.cit., p. 140.<br />

❙R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 59, p. 161-170, jul.-set. 2012❙ 169


por Zaffaroni, através de técnicas de mediação e conciliação, e, de outro,<br />

respeitar eventual autocomposição alcançada pelos membros de uma<br />

mesma família envolvi<strong>do</strong>s em delito de médio potencial ofensivo sujeito<br />

a ação penal de iniciava pública condicionada e, por fim, respeitar a<br />

livre manifestação de vontade da alegada víma em não dar prosseguimento<br />

à ação criminal condicionada à representação em face de seu ascendente,<br />

descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, privilegian<strong>do</strong>,<br />

enfim, a intervenção mínima <strong>do</strong> Direito Penal nas relações sociais.<br />

170<br />

❙R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 59, p. 161-170, jul.-set. 2012❙

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