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O Caminho das Águas em Salvador - SEMA - Secretaria do Meio ...

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Italo Calvino, <strong>em</strong> Marcoval<strong>do</strong> e as Estações na Cidade, relata um interessante ex<strong>em</strong>plo de tentativa de reencontro coma natureza, com a boa e velha natureza, nas grandes cidades. Marcoval<strong>do</strong>, melancólico e sonha<strong>do</strong>r, não t<strong>em</strong> olhospropícios à leitura <strong>do</strong>s signos da vida urbana, da sociedade de consumo, e está s<strong>em</strong>pre atento aos vestígios da naturezana cidade. Em sua incansável busca pela natureza perdida, vê-se enreda<strong>do</strong> <strong>em</strong> situações <strong>em</strong> que as coisas maissimples parec<strong>em</strong> encerrar as mais estranhas armadilhas, <strong>em</strong> que a natureza parece uma fraude. Afinal, to<strong>do</strong>s os diasa imprensa noticiava descobertas as mais espantosas nas compras <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>: “<strong>do</strong> queijo feito de matéria plástica, amanteiga com velas de estearina, na fruta e na verdura o arsênico <strong>do</strong>s insetici<strong>das</strong> estavam mais concentra<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que asvitaminas, para engordar os frangos enchiam-nos com certas pílulas sintéticas que podiam transformar <strong>em</strong> frango qu<strong>em</strong>comesse uma coxa deles. O peixe fresco havia si<strong>do</strong> pesca<strong>do</strong> o ano passa<strong>do</strong> na Islândia e seus olhos eram maquia<strong>do</strong>spara que parecess<strong>em</strong> de ont<strong>em</strong>”. Como fugir destas armadilhas senão buscan<strong>do</strong> um lugar onde a natureza seja pródigae intocada, onde “a água seja realmente água e o peixe realmente peixe”?Nessa busca constante, os dias de Marcoval<strong>do</strong> tornaram-se longos e ele passa a olhar a cidade e arre<strong>do</strong>res <strong>em</strong> buscade um rio. Sua atenção voltava-se, principalmente, para os trechos <strong>em</strong> que a água corria mais distante da estrada asfaltada.“Certa vez se perdeu, andava e andava por margens íngr<strong>em</strong>es e cheias de arbustos, e não achava nenhum atalho,n<strong>em</strong> sabia mais para que la<strong>do</strong> ficava o rio: de repente, deslocan<strong>do</strong> alguns ramos, viu, poucos metros abaixo, a águasilenciosa – era um alargamento <strong>do</strong> rio, quase uma bacia pequena e calma – com um tom azul que l<strong>em</strong>brava um laguinhode montanha. A <strong>em</strong>oção não o impediu de averiguar <strong>em</strong>baixo entre as sutis encrespações da corrente. E, portanto,a sua obstinação fora pr<strong>em</strong>iada! Uma pulsação, o deslizar inconfundível de uma barbatana afloran<strong>do</strong> na superfície, e depoisoutro, e outro ainda, uma felicidade a ponto de não acreditar nos próprios olhos: aquele era o local de reunião <strong>do</strong>speixes <strong>do</strong> rio inteiro, o paraíso <strong>do</strong>s pesca<strong>do</strong>res, talvez ainda desconheci<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s, exceto dele”.Retornan<strong>do</strong> para casa, cheio de alegria e de peixes, Marcoval<strong>do</strong> depara-se com o que parecia-lhe um guarda municipal.“– Você aí! – Numa curva da marg<strong>em</strong>, entre os álamos, estava para<strong>do</strong> um tipo com boné de guarda, que o olhava decara feia.– Eu? Qual é o probl<strong>em</strong>a? – retrucou Marcoval<strong>do</strong>, pressentin<strong>do</strong> uma ameaça desconhecida contra suas trencas.– Onde é que pegou estes peixes aí? disse o guarda.– Hã? Por quê?– E Marcoval<strong>do</strong> já sentia o coração na garganta.– Se os apanhou lá <strong>em</strong> baixo, jogue fora rápi<strong>do</strong>: não viu a fábrica aqui <strong>em</strong> cima? – E indicava exatamente uma construçãocomprida e baixa que agora, superava a curva <strong>do</strong> rio, se avistava, além <strong>do</strong>s salgueiros, e que deitava fumaça no ar, e naágua uma nuv<strong>em</strong> densa de uma cor incrível entre turquesa e violeta. – Pelo menos a água, terá nota<strong>do</strong> de que cor é! Fábricade tintas: o rio está envenena<strong>do</strong> por causa daquele azul e os peixes também. Jogue fora rápi<strong>do</strong>, senão apreen<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>.Marcoval<strong>do</strong> agora queria atirá-los longe o mais depressa possível, livrar-se deles, como só o cheiro bastasse para envenená-lo.Mas não queria fazer má figura na frente <strong>do</strong> guarda.– E se os tivesse pesca<strong>do</strong> mais acima?– Aí já seria outra história. Além da apreensão, haveria uma multa. Acima da fábrica existe uma reserva de pesca.Não vê o cartaz? B<strong>em</strong> na verdade – apressou-se a dizer Marcoval<strong>do</strong> – carrego a vara por carregar, pra mostrar aos amigos,mas os peixes foram compra<strong>do</strong>s numa peixaria da cidade aqui perto.Marcoval<strong>do</strong> já abrira a cesta e <strong>em</strong>borcava no rio. Alguma <strong>das</strong> trencas ainda devia estar viva, pois deslizou toda contente.”– Então nada a dizer. Só falta o imposto a ser pago para levá-lo para a cidade: aqui estamos fora <strong>do</strong> perímetro urbano.Gilberto Ferrez, 1999Italo Calvino, 1994.

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