REPORTAGEm | o cinema e as cidadesNarrativas cinematográficas revelam a potencialidade imagética e poética de espaços urbanosTEXTO mariana lacerdaNascido na Dinamarca em 1967, o artista OlafurEliasson tornou-se conhecido ao conceber instalaçõesem escalas urbanas. Com suas obras,ele transformou paisagens e propôs formas devivenciá-las. Água, ar, alteração na temperaturade ambientes e luz são alguns dos recursos utilizadospelo artista para instigar leituras surpreendentesdas cidades.O trabalho de Eliasson pode ser visto em SãoPaulo na exposição Seu Corpo da Obra, em cartazaté janeiro nas unidades do Sesc Pompeia eBelenzinho e na Pinacoteca do Estado. Trata-seda primeira mostra individual do artista na AméricaLatina e apresenta dez obras site-specific,que são uma espécie de resposta aos estímulosque a cidade provocou nele.Todos os trabalhos proporcionam ao espectadorexperiências acerca da maior metrópole doBrasil. Propõem uma pausa para refletir sobre opresente ou o passado da cidade. Um deles, SuaCidade Empática, exposto no Sesc Pompeia, foiconcebido e executado em parceria com o cineastabrasileiro Karin Ainouz.Ele produziu imagens de São Paulo, em preto ebranco, para mostrar a Eliasson. Priorizou filmarlugares com usos múltiplos, a exemplo do Minhocão.Durante a semana, uma importante viapara passagem de carros. Nos fins de semana, fechadopara os automóveis, transforma-se em umestranho, porém funcional, parque urbano. Nele,passeia-se de bicicleta, faz-se caminhada, vendem-sepicolés. Seja para carros, seja para pedestres,o lugar se apresenta próximo, quase dentrodos apartamentos de edifícios que o margeiam eque já existiam antes dessa arrebatadora construção.Foi essa a cidade que o cineasta elegeu paraapresentar ao artista visual.Com as imagens de Ainouz, Eliasson produziuSua Cidade Empática. Ele criou “a partir da luze do tempo, que é de fato a matriz do cinema, oespaço”, disse o cineasta em uma palestra promovidapelo Sesc em outubro de 2011 para debateresse e outros trabalhos dos dois artistas.Para tanto, Eliasson projetou formas abstratascom luz nas imagens dirigidas por Ainouz. Oresultado é “uma narrativa de luz e cor”, comoanalisa o diretor. A obra recria as histórias contidasem formas construídas.Algo mutanteImagens cinematográficas têm criado e recriado oespaço urbano desde sua mais remota existência.“Foram elas o que o cinema mais filmou”, diz a arquitetae pesquisadora baiana Silvana Olivieri, autorado livro Quando o Cinema Vira Urbanismo: ODocumentário como Ferramenta de Abordagem daCidade (Edufba, 2011).
FOTO ANDRE / SESC POMPEIAfoto: Everton Ballardin/Associação <strong>Cultural</strong> VideobrasilObra Sua Cidade Empática (Your Empathic City), 2011, criadapor Olafur Eliasson com a colaboração de Karin AinouzCena do filme Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro,mostra a interferência nada sutil dos prédios, que criamimensas sombras sobre a orla de Boa Viagem, no RecifeO cinema nasceu com o cinematógrafo, invençãode Thomas Edison que permitia registrar uma sériede instantâneos fixos, os fotogramas. Mas o aparelhoera pesado demais (cerca de 500 quilos). Impossívelentão retirá-lo do estúdio para vivenciar asruas de uma cidade. Os irmãos franceses Augustee Louis Lumière apresentaram ao mundo uma traquitanamais leve, com cerca de 5 quilos. Com essenovo cinematógrafo, tornou-se possível explorar omundo. “E o mundo mais próximo para ser exploradoera o urbano”, diz Silvana.Na primeira projeção cinematográfica feita pelosLumière o que se viu foram as “vistas”, filmescurtos, com duração de 50 segundos. No GrandCafé, em Paris, no final de 1895, cenas do cotidianodas cidades foram exibidas: operários saindode uma fábrica, passageiros na estação esperandoo trem, pedestres numa praça, o movimentode uma grande avenida.Poucos meses depois dessa sessão, os irmãosiniciaram uma operação bastante interessantepara a divulgação de seu equipamento: espalharamoperadores de cinematógrafos por todos oscontinentes, exceto a Antártida. Durante cercade dois anos, eles captaram imagens das cidadesonde estiveram para, depois, exibir à população.Quando os operadores voltaram a Lyon, a cidadedos Lumière, foi montado um catálogo de filmesque reunia um vasto inventário da vida urbanano final do século XIX.“Nesse primeiro momento da história do cinema,tanto no Brasil como nos outros países, o cenáriofoi dominado pelo registro da vida cotidiana eurbana nas chamadas ‘atualidades’, que incluíamnão apenas as ‘vistas’ criadas pelos Lumière, mastambém encenações e reconstituições de assuntosde repercussão na imprensa”, explica Silvana.Tratava-se de um reconhecimento da cidadecomo algo mutante, que, logo mais, não seria amesma: era preciso preservá-la, documentá-la. Ocinema mostrou-se perfeito para isso.Estar no mundoApós as duas guerras mundiais, as cidades, elasmesmas, passaram a ser objeto de outras formasde olhar: “A catástrofe se tornou espetáculo dacatástrofe; pela primeira vez na história, cidadesdestruídas foram filmadas e vimos imagens documentáriasdelas”, escreveu o cineasta e críticode cinema Jean-Louis Comolli, no livro Ver ePoder (Editora da UFMG, 2008). Alemanha, AnoZero (1948), de Roberto Rossellini, e Hiroshima,Meu Amor (1959), de Alain Resnais, são os doisexemplos citados por Comolli nesse texto.De lá até aqui, foram muitas e variadas as formasexperimentadas por cineastas para filmaras cidades e a vida nelas, em documentários efilmes de ficção. Em ambos os casos, elas foramcriadas e reinventadas – tal qual a São Paulo deElliason e Ainouz.A história das imagens do cinema brasileiroe seus diálogos com nossas cidades tambémé marcada por uma extensa lista de bons e importantesfilmes. Em sua pesquisa, Silvana destacaos curtas-metragens realizados pelo diretore fotógrafo Aloysio Raulino. O filme Lacrimosa(1969-1970), citado pela pesquisadora, começacom um longo travelling de dentro de um carropercorrendo a Marginal do Tietê, via expressaentão recém-inaugurada em São Paulo. JardimNova Bahia (1971), outro filme de Raulino citadopor Silvana em seu trabalho, compõe-se, naprimeira parte, de entrevistas com DeutrudesCarlos da Rocha, migrante nordestino, negro eanalfabeto, que fala de sua vida na cidade. “Nasegunda parte, o cineasta abdica de sua posição[…]: a câmera é entregue a Deutrudes, que avisa:‘Estou aqui para poder contar umas coisas que sepassam na minha vida aqui em São Paulo’. Raulinoexperimenta uma polifonia até então inéditano cinema brasileiro, ao compartilhar não apenaso comentário, mas também as imagens do filmecom a personagem, com o ‘outro’ – e, no caso, um‘outro’ também da cidade”, ressalta Silvana.Recentemente, o filme Um Lugar ao Sol (2009),do pernambucano Gabriel Mascaro, trouxe umaimagem perturbadora: a sombra de prédios altosna areia da Praia de Boa Viagem, no Recife.Onde antes existia sol agora há sombra. Onde osol alcança a praia, passando nos espaços estreitosque sobraram entre edifícios, pessoas brincamna areia. A Recife de Mascaro está, em parte,ali. Para ele, filmá-la representa “um encontro depresenças. A arquitetura é uma delas, sujeitos,meios de transporte, equipe de filmagem, concreto,plantas, pessoas. Este devir que é estar nomundo”, diz Mascaro.29CONTINUUM28