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Pode-se pensar que nunca a <strong>org</strong>iachegou a extremos tão radicais quantosob o império da liberação sexual (emais acentuadamente homossexual) danossa época. O livro de Foucault pode anteciparessa inflexão - que agora parece severificar não apenas no plano das doutrinas,mas nas práticas corporais - porqueele mostra como a sexualidade vai chegandoa um grau insuportável de saturação,com a extensão do dispositivo de sexualidadeaos mais íntimos poros docorpo social.O dispositivo social desenvolvido emtorno da irrupção da AIDS leva paradoxalmentea sua máxima potência a promoçãoplanificada da sexualidade - sendoela tratada como um saber por umpoder - e marca de passagem o ponto desua inflexão e decadência. É curiosoconstatar como estamos até tal extremoimbuídos dos modernos valores da RevoluçãoSexual que nosso primeiro impulsoé denunciar colericamente seu refluxo.Não vemos a historicidade dessarevolução, não conseguimos relativizara homossexualidade tal como ela é dada(ou era dada até agora), ensinada etransmitida por médicos, psicólogos,pais, meios de comunicação, amantes eamantes dos amantes - sendo essa ilusãode a-historicidade intemporal incentivadapor boa parte do movimento homossexual,que defende a teoria de umaessência imutável do ser homossexual.Nossa homossexualidade é um Sexpol,ou pelo menos se apresenta e se conduz,apesar da homofobia de Reich, comouma de suas resultantes. Um elementopolítico, um elemento sexual. Parece ElFiord de Osvaldo Lamb<strong>org</strong>hini (mas umLamb<strong>org</strong>hini sem êxtase). Na verdade,sem êxtase?Sabemos graças a Bataille que a sexualidade(o "erotismo dos corpos") éuma das formas de atingir o êxtase. Bataillediferencia três formas de dissolvera mônada individualizante e recuperarcerta indistinção originária da fusão: a<strong>org</strong>ia, o amor (o "erotismo dos corações"),o sagrado. Na <strong>org</strong>ia chegava-se àdissolução dos corpos, mas estes se restauravamrapidamente e instauravam ocúmulo do egoísmo, o vazio que produzemna sua ginástica perversa sendoocupado pelo personalismo obsceno dopuro corpo (corpo sem expressão, ou,melhor, corpo que é sua própria expressão,ou pelo menos tenta...). No sentimentalismodo amor, no entanto, a saídade si é mais duradoura, o outro permanecetecendo uma capinha que resiste apassagem do tempo no transporte da sublimaçãoerótica. Mas é só na dissoluçãodo corpo no cósmico (ou seja, no sagrado)que se dá o êxtase total, a saída de sidefinitiva.Estamos demasiadamente presos àidéia de sexualidade para poder enten-deristo.Asexualidadevaleporsua potênciaintensiva, por sua capacidade de produzirestremecimentos e vi<strong>br</strong>ações (seria,nessa escala, o êxtase uma espécie degrauzero?) que se sentem no plano das intensidades.Mas isso não quer dizer queseja a única forma, menos ainda a formao<strong>br</strong>igatória, como quer nos fazer acreditarReich e a caterva de ninfomaníacosque o seguem, ainda questionando-lhealguma coisa, mas imbuídos do espíritoda marcha ascendente do gozo sexual.Soa já antiquado. Mas pensemos quantotem-se lutado por chegar, por conseguir,por atingir esse paraíso da prometida sexualidade.Com a AIDS vai acontecendo,so<strong>br</strong>etudo no campo homossexual(penso mais no caso <strong>br</strong>asileiro, muitoavançado, isto é, onde chegou-se a umgrau considerável de desterritorializaçãonos costumes, em outros países menosousados esse processo de refluxo talveznão possa ser percebido com amesma clareza; é que este desaparecimentoda homossexualidade está sendodiscreto como uma anunciação de periferia,a muitos locais a notícia demora achegar, ainda não se inteiraram...), outravolta de parafuso do próprio dispositivode sexualidade, não no sentido da castidade,mas no sentido de recomendar,através do progressismo médico, a práticade uma sexualidade limpa, sem riscos,desinfetada e transparente. Comisto não desejo postular um desquíciosexual. Deus nos salve, após tudo o quetemos passado com a premissa de nos libertar,mas advertir (constatar, conferir)como vai ocorrendo um processo de medicalizaçãoda vida social. Isto não devequerer dizer (confesso que não é fácil)estar contra os médicos, já que a medicinadesempenha, no combate contra aameaça mórbida, um papel central.O pânico da AIDS radicaliza um refluxoda revolução sexual que já vinhaseinsinuando, em tendências como aminoritariamente insinuada nos EstadosUnidos, que postulavam o retorno à castidadel.Naverdade a saturação já vinhade antes. A saturação parece inerente aotriunfo do movimento homossexual noOcidente, ao triunfo da homossexualidade,que vem de um processo bastantemovimentado e conhecido que não épreciso repetir aqui. Lem<strong>br</strong>emos que ahomossexualidade é uma criatura médica,e tudo o que tem-se escrito so<strong>br</strong>e apassagem do sodomita ao perverso, dolibertino ao homossexual . Basta verque a moderna homossexualidade éuma figura relativamente recente que,pode-se dizer, e enunciá-lo é um anúncio,viveu num período de cem anos suaglória e seu fim.Que acontece com a homossexualidade,se ela não voltar às catacumbas dondeera tão necessário resgatá-la, paraque <strong>br</strong>ilhasse na provocação de sua li-bertinagem de lábios refulgentementevermelhos? Ela simplesmente vai-se diluindona vida social, sem chamar mais aatenção de ninguém, ou de quase ninguém.Fica como uma intriga a mais,como uma trama relacionai entre as possíveis,que não desperta já animadversão,mas também não admiração. Um sentimentonada especial, como algo que podeacontecer a qualquer um. Ao torná-lacompletamente visível, a ofensiva de normalização(embora estejamos tentandomudar a terminologia, mais ainda depoisde que Deleuze lançou a noção de sociedadesde controle como substituintedas sociedades de disciplina das quaisfala Foucault, não é fácil chamar de umamaneira muito diferente a tão profundare<strong>org</strong>anização, ou tentativa de re<strong>org</strong>anizaçãodas práticas sexuais, indicada sensivelmentepela introdução do látex naintimidade das paixões) conseguiu retirarda homossexualidade todo mistério,banalizá-la completamente. Não dá vontade,certamente, de festejar, afinal foidivertido, mas tampouco de lamentar. Éque a homossexualidade não foi por sinaluma coisa tão maravilhosa quantoseus interessados apologistas proclamaram.Não há, em verdade, uma homossexualidade,mas, como diriam Deleuzee Guattari, mil sexos, ou pelo menos, atéfaz bem pouco tempo, duas grandes figurasda homossexualidade masculinano Ocidente. Uma, a das bichas loucasgeneteanas, sempre flertando com o masoquismoe a paixão de abolição; outra, ados gays à moda americana de erguidosbigodinhos hirsutos, desmoronando-sena sua condição de paradigma individualistano tédio mais abjeto (uma substituiçãodo matrimônio normal que conseguea façanha de ser mais aborrecidodo que ele). Arriscar-me-ia a postularque a reação de grande parte dos homossexuaisperante às campanhas de prevençãoestá sendo deixar de ter relaçõessexuais em geral, mais do que procedera uma mudança radical das antigas práticaspor outras novas "seguras", ouseja, com camisinha.A homossexualidade esvazia-se dedentro para fora, como uma luva. Não éque tenha sido derrotada pela repressãoque com tanta violência abateu-se so<strong>br</strong>eela (so<strong>br</strong>etudo entre as décadas de 30 e50, e, no caso de Cuba, ainda hoje é perseguida:uma forma torturante de queconserve atualidade e alguma frescura).Não: o movimento homossexual triunfouamplamente, e está muito bem queisso tenha assim acontecido, no reconhecimento(não isento de humores intempestivosou tortuosos) do direito à diferençasexual, grande bandeira da <strong>br</strong>igalibidinal do nosso tempo. Há que reconhecê-loe passar a outra coisa. Já o movimentodas bichas (não só político, mastambém de ocupação de territórios: um

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