Jornal da ABI Especial - A Cronologia dos Quadrinhos 2
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FOTOS: ARQUIVO PESSOAL<br />
que foi?”, questionei. “Eles<br />
haviam falado que um repórter<br />
estava achacando<br />
um pessoal, não fazendo os<br />
textos e distorcendo acontecimentos.<br />
Eles acharam<br />
que fosse você. Vieram te<br />
reconhecer”. Não acreditei<br />
no que ouvia. Sentia-me o<br />
pior <strong>dos</strong> criminosos e briguei<br />
com ele, pois não aceitava<br />
que duvi<strong>da</strong>ssem <strong>da</strong><br />
minha ética. Quebrei o pau<br />
ali na Re<strong>da</strong>ção mesmo.<br />
Não aceitava um negócio<br />
desses. Foi difícil, mas era<br />
a minha escola. Aquela<br />
Re<strong>da</strong>ção foi a escola! De lá,<br />
trouxe amizades que tenho<br />
até hoje, e ali também,<br />
aprendi a falar o “jornalês”,<br />
para criar histórias em quadrinhos, chegar<br />
nos jornais e vender meu peixe.<br />
JORNAL DA <strong>ABI</strong> – A REPORTAGEM POLICI-<br />
AL É O COMEÇO PARA MUITOS JORNALISTAS,<br />
MAS BOA PARTE NÃO GOSTA DA ÁREA. O QUE<br />
O FEZ GOSTAR DELA?<br />
Mauricio de Sousa – Eu vinha de gibi,<br />
devorava tramas policiais, histórias do<br />
Dick Tracy. Queria até mesmo virar o<br />
personagem. A primeira coisa que fiz<br />
quando me disseram que estava contratado<br />
foi ir até o Largo do Arouche e comprar<br />
uma capa e um chapéu de repórter<br />
norte-americano. Quando cheguei na<br />
Re<strong>da</strong>ção, alguns até tiraram sarro comigo,<br />
mas por que fiz isso? Eu era tímido,<br />
vinha do interior e tinha chegado num<br />
jornalzão de uma grande metrópole.<br />
Quando botava a capa e o chapéu, virava<br />
outro. Já não era o Mauricio, caipira do<br />
interior; era o repórter, eu era o Dick<br />
Tracy. Eu falava com o governador, com<br />
o bandidão, com o industrial, de igual<br />
para igual, <strong>da</strong> mesma maneira. Então,<br />
era uma maneira de eu me revestir de<br />
outra personali<strong>da</strong>de.<br />
JORNAL DA <strong>ABI</strong> – ISSO O AJUDAVA NO JOR-<br />
NALISMO?<br />
Mauricio de Sousa – Sim. Desde a escola,<br />
eu era muito tímido, tanto que não<br />
tinha coragem de pedir para nenhuma<br />
garota para namorar, ficava só na vontade.<br />
Mas aí também enfrentei um choque<br />
na Re<strong>da</strong>ção. Eu vinha de uma escola<br />
pública, ótima, por sinal, em que aprendi<br />
inglês, francês e latim, com professores<br />
ótimos. Era tão louco, que lia todo<br />
dia um livro novo nos tempos do velho<br />
ginásio. Cheguei no jornal carregado de<br />
Machado de Assis, Eça de Queirós, José<br />
de Alencar, mas tinha de escrever as<br />
notinhas <strong>da</strong>quele jeito, mais conciso. O<br />
pessoal vivia me falando para jogar fora<br />
os adjetivos, tirar meus pensamentos,<br />
minhas opiniões, a emoção, as sensações<br />
e tudo mais. Tive que aprender à força<br />
a me limitar ao “o quê, onde, como, por<br />
que e quando”, o lide. O mais importante<br />
era a pirâmide inverti<strong>da</strong>; se sobrasse<br />
espaço, poderia escrever mais alguma<br />
coisa, o que quase nunca acontecia. Mas<br />
sem exageros estilísticos. “Meu Deus”,<br />
pensei, “Estudei tanto para isso? Para<br />
jogar todo o meu português fora?” Foram<br />
anos de muita briga, mas o jornalismo<br />
me ensinou a concisão.<br />
JORNAL DA <strong>ABI</strong> – ENTÃO, VOCÊ CONSE-<br />
GUIU PEGAR O RITMO DA REDAÇÃO...<br />
Mauricio de Sousa – Tive que me enquadrar.<br />
(Mauricio pega uma caneta e<br />
um papel e começa a desenhar) Mas graças<br />
a isso quando comecei a fazer histórias<br />
em quadrinhos aprendi a ser<br />
mais conciso, colocar um texto inteiro<br />
dentro de um balão, se não eu não<br />
seria roteirista de quadrinhos, seria um<br />
desenhista. Mas o jornalismo me ensinou<br />
a concisão, me ensinou o que o<br />
Twitter está fazendo hoje na internet<br />
para as novas gerações. Você se obriga<br />
a caber no espaço, e eu me obriguei a<br />
caber em três linhas no balão. Com isso,<br />
não percebi na época, mas consegui futuramente<br />
enfrentar os quadrinhos<br />
concorrentes, que vinham com balões<br />
grandes que mais pareciam trazer romances.<br />
Eu tinha preguiça de ler aquilo.<br />
E decidi que a minha história em quadrinhos<br />
não podia passar de três linhas<br />
num balão. Até hoje passo essas valiosas<br />
lições para o pessoal aqui do estúdio.<br />
Além disso, economizei um salário,<br />
já que era roteirista e desenhista.<br />
O jornal pagava apenas um dólar por<br />
tira e era importante acumular as duas<br />
funções para enfrentar a concorrência<br />
e não encarecer o trabalho. O jornal não<br />
ia pagar mais por isso. Então, o jornalismo,<br />
acidentalmente, me ajudou a<br />
desenvolver a indústria de quadrinhos<br />
que fizemos aqui e, ao mesmo tempo,<br />
enfrentar a concorrência. O jornalismo<br />
me ensinou muitas coisas, além <strong>da</strong><br />
concisão. Me ensinou a objetivi<strong>da</strong>de do<br />
lide. Minhas histórias têm começo,<br />
meio e fim; sem tramas paralelas, situações<br />
anteriores, como flashbacks. Os<br />
textos são curtos, rápi<strong>dos</strong>. Vencemos<br />
a concorrência e hoje temos 86% do<br />
mercado. Sinto muito, mas o pessoal<br />
que faça a mesma coisa.<br />
Um bolo caprichado para comemorar as mil tiras publica<strong>da</strong>s do Cebolinha.<br />
Mauricio com as filhas Maria Angela, Mônica e Magali em<br />
1964. Acima, Mônica recebe o carinho do pai-coruja.<br />
JORNAL DA <strong>ABI</strong> – ESSA BAGAGEM TODA<br />
VOCÊ ADQUIRIU NO TEMPO DE JORNAL?<br />
Mauricio de Sousa – Diversas circunstâncias<br />
nos levaram à posição em que<br />
estamos. Lógico, eu também estudei<br />
bastante. Mesmo trabalhando na reportagem,<br />
ain<strong>da</strong> mantinha o objetivo de fazer<br />
história em quadrinhos. Assim, cantava<br />
os chefes de Re<strong>da</strong>ção para me <strong>da</strong>rem<br />
todo o material que chegava <strong>dos</strong><br />
syndicates norte-americanos, os folders,<br />
prospectos. Daí eu via como é que chegavam,<br />
como é que eram traduzi<strong>dos</strong>,<br />
como faziam os balões, tudo. Eu estava<br />
estu<strong>da</strong>ndo, porque não havia no Brasil<br />
uma redistribuição como os syndicates;<br />
eu tinha que inventar isso, tinha que<br />
criar uma distribuição no Brasil. Ou<br />
fazia isso ou continuaria ganhando um<br />
dólar por tira de jornal. Eu ia ganhar<br />
menos do que um salário-mínimo para<br />
fazer uma história em quadrinhos diária.<br />
Não <strong>da</strong>va, <strong>da</strong>í eu via que lá o pessoal<br />
fazia uma tira e redistribuía para diversos<br />
jornais. Decidi fazer o mesmo.<br />
Aprendi como enviar o material e, depois<br />
de cinco anos trabalhando na reportagem,<br />
deixei o jornalismo para fazer as<br />
primeiras tirinhas do Bidu.<br />
JORNAL DA <strong>ABI</strong> – SEUS QUADRINHOS<br />
NASCERAM NOS JORNAIS?<br />
Mauricio de Sousa – Umbilicalmente<br />
liga<strong>dos</strong> a eles. Em 1959, montei meu primeiro<br />
estúdio, em Mogi <strong>da</strong>s Cruzes. Fácil<br />
de chegar, a apenas 50 quilômetros<br />
<strong>da</strong> Re<strong>da</strong>ção. Mas eu ain<strong>da</strong> precisava<br />
vender o peixe e não tinha dinheiro para<br />
montar a distribuidora. Meus recursos<br />
só <strong>da</strong>vam para chegar aos jornais próximos<br />
e oferecer meu material. Tanto<br />
que pedia para o pessoal <strong>da</strong> Re<strong>da</strong>ção<br />
devolver os clichês e os originais. Originais<br />
que tenho guar<strong>da</strong><strong>dos</strong> até hoje. Já<br />
que não tinha dinheiro, peguei o compasso,<br />
botei a ponta seca em Mogi e<br />
rodei 100 quilômetros em volta. Era<br />
para onde eu conseguiria pagar ônibus<br />
para chegar. Não <strong>da</strong>va para ir a Belo<br />
Horizonte, Rio de Janeiro, Curitiba,<br />
Ribeirão Preto; mas chegava em Campinas,<br />
Santos, Sorocaba. Eu pegava o<br />
ônibus com os clichês devolvi<strong>dos</strong> e ia<br />
visitar os jornais de padre, e alguns outros<br />
jornais de artes que havia na região.<br />
E comecei a vender, a distribuir. Aos<br />
poucos, fui aumentando o círculo e<br />
<strong>Jornal</strong> <strong>da</strong> <strong>ABI</strong> 362 Janeiro de 2011<br />
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