REVISTA COLETIVA - JAN FEV_2017_WEB

48 | literatura
As irmãs
Celso Costa Ferreira- psiquiatra
A
mãe de Dulce e Dorothy é quem dominava a técnica de incendiar
a casa em que moravam de modo a garantir o sustento da
família. A sobrevivência das irmãs ficou incerta depois da morte
dela, que jamais revelou o segredo do sucesso de seus incêndios. É
certo que a seguradora desconfiava daquela repetição periódica dos sinistros,
mas nunca conseguiu comprovar ação criminosa nos eventos.
Pagava o combinado e renovava as esperanças daquele trio de velhotas
incendiárias. O único contratempo das senhoras é que o seguro contratado
era de um valor que as obrigava, a cada sinistro, a se mudarem para
uma casa menor, para então sobrar o do sustento. Nada complicado dada
as circunstâncias e a ausência de alternativas. Na cidade havia os que
delas eram fãs, os que criam piamente na fatalidade inexorável e retornável,
como castigo divino, coisas de carma, contas a pagar com vidas
passadas, e os donos da seguradora que viviam mal-humorados.
Mas a mãe mantenedora, previdente em vida, foi displicente na
morte, que lhe veio de repente, sem tempo pra ai, ou para deixar um
mísero rascunho de sua infalível técnica incendiária. Ou será que não?
Alguma coisa ela deve ter deixado escondida por aí, se animaram. Dulce
e Dorothy então reviraram cada canto, caixinha, baú, colchões e nada.
Nem uma caixa de fósforos fora de lugar.
E agora? Seguro vencendo, poupança acabando, preocupações e
rugas se alastrando que nem as saudosas labaredas. Sentiram-se sem
saída. Mas o destino ou o acaso é cheio de surpresas e a solução veio
dos céus. Chuva. Muita água caiu das alturas e quase inundou a casa
através das inúmeras goteiras, as velhas e as recém-criadas. Daí então a
revelação: água e fogo, fogo e água, tanto faz, tanto faz, cantavam as reconfortadas
velhinhas, fazendo uma interpretação personalista de certa
passagem bíblica.
Com capricho e paciência, que só a idade proporciona, vedaram minuciosamente
cada fresta, falha, buraquinho que havia na casa e abriram
toda fonte de água existente: torneiras, chuveiros, vasos.
Em festa, com seus melhores vestidos, acompanharam a inundação.
À medida que a água subia, elas também subiam, nadando, cantando. Cadeiras,
mesas, colchões, lençóis, as fotografias, os travesseiros e as contas
a pagar flutuavam aos seus redores, e elas riam, cantavam, se abraçavam.
Ainda brincavam quando morreram afogadas. De almas lavadas.
Coletiva | janeiro • fevereiro/2017