REVISTA UNICAPHOTO, ED 11
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Foto Claudia Andujar<br />
crítica<br />
Em um debate em sala de aula sobre as fotografias<br />
dos indígenas Yanomami feitas por Claudia Andujar,<br />
uma colega que via as imagens pela primeira<br />
vez comentou que elas não recorriam apenas ao<br />
sentido visual do espectador, mas evocavam outros<br />
sentidos, como audição e olfato, como se Andujar<br />
conseguisse passar para o receptor da imagem<br />
um pouco da experiência que vivia naqueles<br />
momentos em meio aos Yanomami. Vilém Flusser,<br />
em seu livro “Filosofia da Caixa Preta” (1983),<br />
define imagem técnica como uma mediação entre<br />
homem e mundo que busca representar a vida<br />
real através da abstração de algumas das quatro<br />
dimensões, dando espaço para que estas pudessem<br />
ser recriadas pelo receptor. Assim, a evocação<br />
de outros sentidos observada pela colega seria<br />
justamente a reconstituição das dimensões abstraídas<br />
da qual Flusser se referia. Na imagem abaixo,<br />
uma criança da tribo indígena dos Yanomami<br />
posa para a foto embaixo de um dos vários feixes<br />
de luz que entram pelo telhado da grande malo-<br />
Texto por Marina Santos Lucas Alves<br />
A filosofia da Caixa<br />
Preta e Cláudia Andujar<br />
ca comunitária. E é através dessa reconstituição<br />
pela imaginação que outros sentidos também me<br />
são evocados ao observar a fotografia, como o barulho<br />
de pássaros, o barulho do vento e também<br />
uma sensação de tranquilidade que se assemelha<br />
a um sonho. Essa percepção onírica pode ser explicada<br />
pelo fato de que os pontos de luz são tão<br />
claros que chegam a estourar na imagem e, além<br />
disso, pelo fato de as partes mais iluminadas e o<br />
pequeno Yanomami estarem levemente embaçados<br />
— efeito que pode ter sido obtido pelo uso<br />
da vaselina líquida na lente, recurso que Andujar<br />
costumava utilizar.<br />
Esse forte jogo de luz e sombra e o embaçamento<br />
trazem algo de fantástico à imagem e levam a percepção<br />
do observador a um universo diferente do<br />
universo fotográfico descrito por Flusser em “Filosofia<br />
da Caixa Preta” (1983). O filósofo afirma<br />
que o aparelho fotográfico, assim como todos os<br />
aparelhos, é feito com base no modelo cartesiano,<br />
em que “o pensamento é um colar de pérolas claras<br />
e distintas. Tais pérolas são<br />
os conceitos e pensar é permutar<br />
conceitos segundo as regras do<br />
fio.” (1983, p. 35) Tal estrutura<br />
lógica do aparelho funcionaria a<br />
partir da produção de conceitos<br />
claros e distintos pelo fotógrafo,<br />
conceitos simplificados do<br />
mundo, para que estes pudessem<br />
ser trabalhados a partir das<br />
virtualidades inscritas dentro do<br />
seu programa. Ainda de acordo<br />
com “Filosofia da Caixa Preta”,<br />
os aparelhos teriam criado uma<br />
autonomia com relação ao homem,<br />
e o fotógrafo que pensa<br />
cartesianamente estaria à serviço<br />
do aparelho, pois este se utilizaria<br />
do feedback do fotógrafo<br />
para ser continuamente aprimorado.<br />
Nesse universo fotográfico<br />
automático, os fotógrafos estariam<br />
sendo controlados pelo<br />
aparelho, e as suas imagens não<br />
exerceriam sua função de representar<br />
o mundo para o homem.<br />
Seriam, na verdade, apenas imagens<br />
que representam o universo<br />
binário do aparelho fotográfico.<br />
Para além disso, Flusser<br />
afirma que essa estrutura lógica<br />
permeia todas as áreas, pois os<br />
aparelhos estariam programando<br />
uns aos outros.<br />
O aparelho fotográfico é produto<br />
do aparelho da indústria fotográfica,<br />
que é produto do aparelho<br />
do parque industrial, que é produto<br />
do aparelho sócio-econômico<br />
e assim por diante. Através<br />
de toda essa hierarquia de aparelhos,<br />
corre uma única e gigantesca<br />
intenção, que se manifesta<br />
no output do aparelho fotográfico:<br />
fazer com que os aparelhos<br />
programem a sociedade para<br />
um comportamento propício ao<br />
constante aperfeiçoamento dos<br />
aparelhos. (1983, p. 24)<br />
Por estarmos cercados por automação,<br />
Flusser afirma que a<br />
questão da filosofia hoje seria a<br />
seguinte: “Se tudo é produto do<br />
acaso cego e tudo leva necessariamente<br />
a nada, onde há espaço<br />
para a liberdade?”. O dever da filosofia<br />
da fotografia, para Flusser,<br />
seria o de desmascarar esse<br />
jogo em que os aparelhos programam<br />
de forma automática os<br />
homens. E é por esses olhos que<br />
vejo essa imagem de Andujar:<br />
um trabalho filosófico que acredito<br />
conseguir jogar contra o<br />
aparelho. Andujar produz uma<br />
imagem que foge daquilo que<br />
foi programado. É uma libertação<br />
da programação do aparelho,<br />
uma libertação tanto dela,<br />
que produziu a imagem, como<br />
também de quem a recebe e a<br />
interpreta. É uma imagem que<br />
fala sobre as possibilidades de se<br />
viver em um mundo com menos<br />
caixas pretas e mais liberdade.<br />
Foto Claudia Andujar<br />
<strong>UNICAPHOTO</strong><br />
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