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REVISTA UNICAPHOTO, ED 11

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U - De que maneira?<br />

AL - Em termos práticos, hoje em dia, para se facriar<br />

uma grande imagem. Há caso na África em<br />

que o cara ia cobrir guerra, as pessoas morriam e<br />

usavam o corpo morto para fazer um tripé... Ou<br />

como o rapaz que participou do projeto em Istambul,<br />

onde falou do trabalho dele no Haiti. E no<br />

momento em que as pessoas perguntaram: você<br />

ficou duas semanas no Haiti? E porque foi embora?<br />

E ele: Ah, eu tinha pouco dinheiro e não podia<br />

ficar pedindo dinheiro aos meus pais só porque<br />

gostava de fotografar. Daí, outra fotógrafa, que<br />

vinha da área documental com uma perspectiva<br />

humanista, disse: você não pode ir pro Haiti só<br />

pra fotografar. O Haiti está em uma situação onde<br />

as pessoas disputam comida, que a água está racionalizada,<br />

existem poucos lugares seguros para<br />

dormir. E as pessoas que estão lá e as que estão<br />

ajudando não podem disputar com você água e<br />

espaço, só porque você quer satisfazer seu hobby<br />

pessoal. Então, ou você vai para um lugar desses<br />

porque tem um interesse de construir uma narrativa<br />

que ajude aquelas pessoas ou é melhor você<br />

não ir.<br />

U – Você disse que há alguns problemas dos circuitos<br />

dos festivais, das premiações e da meritocracia.<br />

Dentre esses, você destaca um dilema ético.<br />

AL – É. Porque se criou uma ideia de que no momento<br />

em que você chega ao que eles chamam de<br />

“topo da carreira” (que topo seria esse?) você vai<br />

ficar em evidência. Na verdade, essa é uma busca<br />

por uma autoimagem. No momento em que<br />

o circuito constrói essa meritocracia - o que eu<br />

chamo de “política dos eleitos” -, cria-se dentro<br />

desse contexto a ideia de que é preciso exercitar<br />

um vale-tudo para chegar a esse lugar. Por outro<br />

lado, cria-se também a ideia de que quem não<br />

passa por esse filtro dos eleitos, está condenado<br />

no mundo da fotografia. E à medida que as imagens<br />

referenciadas por essa política de eleitos são<br />

divulgadas, elas vão gerando uma fórmula.<br />

U – E estabelecendo um cânone de como você deve<br />

fotografar.<br />

AL – Exato. Então, fotógrafos que olham para<br />

aquele cânone, para essa política de eleitos e querem<br />

chegar nesse lugar, mesmo que a sua trajetória<br />

não tenha nada a ver com aquilo, vão perseguir<br />

esse formato. O que acontece muitas vezes?<br />

O trabalho chega lá esvaziado; perde a alma. E aí,<br />

quando vamos dar cursos para pessoas com essa<br />

preocupação, o que encontramos são meninos,<br />

meninas e até adultos num estado gritante de ansiedade<br />

para aprender como fazer imagens para<br />

chegar àquele lugar almejado. Já encontramos fotógrafos<br />

em crise gigante, porque olham para seu<br />

próprio trabalho, veem suas imagens com aquele<br />

nível de potência, mas acham que eles não estão<br />

ali. E começam a se desvalorizar e autodestruir.<br />

O que comecei a fazer foi desenvolver um<br />

processo de cursos que fizessem um caminho in<br />

verso. A partir das respostas à pergunta inicial<br />

porque você está fotografando tal tema? Quando<br />

eu via que as pessoas estão fotografando pela linha<br />

linhagem dessa “política de eleitos”, tentava<br />

ver se o tipo de fotografia feita tinha a ver com a<br />

trajetória da figura. A partir daí passamos a tentar<br />

pesquisar sobre a seguinte questão: se o circuito<br />

tem essa política dos eleitos e domina no Brasil,<br />

onde vamos publicar nossas imagens? A primeira<br />

saída era criar nosso próprio circuito e a segunda<br />

era procurar circuitos paralelos na América Latina.<br />

Então, é um eterno processo de busca de saídas.<br />

E isso foi super importante para construir esses<br />

caminhos. É um trabalho de muita pesquisa,<br />

onde a gente fica mapeando, tentando entender<br />

como funciona... Entender que nem todos esses<br />

trabalhos conseguem circular no circuito Rio -<br />

São Paulo, que há trabalhos que só vão circular<br />

bem no circuito de Belém ou no circuito de Porto<br />

Alegre...<br />

U – O que você diz me sugere pensar que o circuito<br />

de premiação pode dar uma impressão inicial ao<br />

fotógrafo de que ele ou ela poderá ter uma avaliação<br />

crítica do seu trabalho. Mas na verdade, o tipo<br />

de avaliação vai se enquadrar dentro de um cânone<br />

pautado pelo que o mercado exige e que muda ao<br />

longo do tempo, ainda que a indústria não permaneça...<br />

AL – Sim, é isso. E isso é que é perigoso. Eles mudam<br />

os cânones. Vou dar um exemplo de uma<br />

conversa que tenho tido com pessoas aqui no Brasil:<br />

os grupos querem, agora, trabalhar com negros,<br />

mulheres e indígenas. A gente precisa entender<br />

o que é estrutura e o que é fetiche. Como é que<br />

a gente transforma fetiche em estrutura ou como<br />

é que a gente alimenta o fetiche e não alimenta a<br />

estrutura? Porque o que é construir estrutura? É<br />

construir uma forma de atuação para que, depois<br />

da moda passar, que isso permaneça; que essas<br />

vozes não deixem de ser escutadas...<br />

U – Esses corpos não deixem de ser vistos...<br />

AL – Pois é. Porque novos corpos vão precisar<br />

emergir. Construir isso é construir espaços de respiro<br />

para além do que a indústria te oferece como<br />

solução.<br />

U – Viver de fotografia é diferente de viver a fotografia?<br />

AL – Sim. Viver da fotografia não é só fazer o<br />

clique. Há outras formas de trabalho como fazer<br />

curadoria, por exemplo. Mas eu não vou criar<br />

uma narrativa sozinha: é preciso conversar, escutar<br />

quem fez as fotos, olhar junto para as imagens<br />

e pensar no que é esse diálogo. Esse é um caminho<br />

que estou trabalhando. Não se pode partir do<br />

princípio, hoje em dia, de que só nós fotografamos:<br />

todo mundo está fotografando. O que falta<br />

é a galera saber editar, saber curar e saber, principalmente,<br />

que narrativa você está construindo<br />

sobre você.<br />

U – Ana, você tem uma larga trajetória profissional<br />

com fotografia e no campo das artes visuais,<br />

enfrentou barreiras e consolidou sua obra, que tem<br />

um sentido político muito denso. Nesse caminho,<br />

como você percebe e analisa a dinâmica racial? De<br />

que maneira isso impacta o seu trabalho?<br />

AL – O circuito da arte neutraliza e não aceita as<br />

temáticas negras, as técnicas negras... A maioria<br />

dos artista s negros está nas ruas, na arte urbana,<br />

nos grafites, nas várias formas de produção<br />

do artesanato, nos maracatus, são os mestres de<br />

maracatus, é a galera da sambada... E esse circuito<br />

não entra nos espaços institucionalizados da arte<br />

contemporânea. E quando eu entendi isso, pensei:<br />

como é que a gente vai trabalhar então? Qual era<br />

o meu papel nesse processo? Essa percepção me<br />

motivou todas as outras pesquisas que eu venho<br />

fazendo.<br />

<strong>UNICAPHOTO</strong><br />

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