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OPINIÃO<br />
António Castro<br />
Professor e Escritor<br />
Vidas sem Vida<br />
Vivem tão em função do que<br />
as rodeia que, aquilo que<br />
verdadeiramente lhes diz respeito<br />
passa-lhes completamente ao lado,<br />
de forma incauta e assustadora.<br />
Querem saber, gostam tanto de<br />
saber que, às vezes, acham até que<br />
sabem. Quando não sabem, vão<br />
pelo que lhes parece, e a vontade<br />
de entrar na vida alheia é tanta que, o que talvez<br />
seja passa a ser, e a partir daí, esse talvez<br />
é espalhado como certeza. São pessoas que<br />
vivem para ficarem especadas por trás das<br />
cortinas, ou de ouvido alerta perante as portas<br />
entreabertas, já que “a curiosidade aguça<br />
o apetite”. Vivem tão em função do que<br />
as rodeia que, aquilo que verdadeiramente<br />
lhes diz respeito passa-lhes completamente<br />
ao lado, de forma incauta e assustadora.<br />
E, como defendem os nossos vizinhos espanhóis,<br />
“quando o diabo não tem o que fazer,<br />
mata as moscas com o rabo”. São pessoas<br />
(serão?) que não conseguem – nem querem<br />
– separar o público do privado, mas que se<br />
ofendem profundamente perante uma crítica<br />
pertinente ou uma resposta adequada.<br />
“Sabem” tudo de todos a qualquer hora do<br />
dia ou da noite. Mesquinhos, nunca estão<br />
bem, já que “a inveja está sempre em jejum”:<br />
os outros ou ganham muito, ou são uns tristes;<br />
ou têm dívidas, ou têm manias. Chegam<br />
a atrever-se, afirmando com ar de profunda<br />
sabedoria: - Eu sei! Foi fulana que me disse!<br />
Que importam, portanto, as companhias dos<br />
(próprios) filhos, as ausências mal explicadas<br />
do cônjuge, os problemas pessoais por resolver?<br />
Que importância marcante poderá ter a<br />
excessiva poluição do planeta, o modo como<br />
são tratados os imigrantes, a subida dos<br />
oceanos, ou as ações louváveis do voluntariado?<br />
A vizinha saiu e o que interessa, mesmo,<br />
é como e com quem. Ou, então, o primo,<br />
que vai todos os domingos à missa com<br />
a família mais chegada, mas “molha o bico”,<br />
descaradamente, fora do casamento. E assim<br />
cristalizam e definham seres que vivem para<br />
não viver e – porque isso acontece – não perdoam<br />
a quem vive. São seres de uma inveja<br />
tamanha, com os olhos tão esbugalhados<br />
para a coscuvilhice como os viciados nas<br />
máquinas de casino. Não investem em si próprios,<br />
e por isso não progridem, mas também<br />
não conseguem ter paz, por toda a dor sentida<br />
com o progresso alheio: “defenda-me das<br />
galinhas” – defende um provérbio romeno –<br />
“dos cães não tenho medo”. Estes seres são<br />
ainda mais perigosos se os alvos forem pessoas<br />
com outra sensibilidade e outros valores,<br />
que não conhecem verdadeiramente o<br />
lodaçal e a mesquinhez do mundo: a inveja<br />
combate sempre a elevação. Com diferenças<br />
no estilo, existem destes exemplares em<br />
todos os lugares e nos mais diversos estratos<br />
sociais: são como traças que gostam de corromper<br />
a melhor lã. Como diz o Papa Francisco:<br />
“as pessoas coscuvilheiras são como<br />
terroristas, atiram a bomba aos outros e vão<br />
embora”. Como baratas, resistem a qualquer<br />
razia, munidas de línguas compridas e desavergonhadas,<br />
que ninguém para: “cura-se a<br />
ferida que uma espada faz; é incurável a que<br />
faz uma língua”. Têm atravessado gerações e<br />
disso dá conta o Povo, na sua experimentada<br />
sabedoria: “a quem tudo quer saber, nada se<br />
lhe diz”. E assim faremos! s<br />
10 saber ABRIL 2019