You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Uma cultura assenhorada
pelo mercado
Quando os símbolos da cultura negra são apropriados e ressignificados
pela indústria cultural , transformando-se em produtos para consumo,
promove-se uma desigualdade: a marginalização de uma etnia.
Texto de Franciele Silva, Jean Lourenço e Rômulo Soares
Fotografias de Franciele Silva e Rômulo Soares
Design de Franciele Silva
A
festa de aniversário da diretora da Vogue Brasil,
Donata Meirelles, realizada em fevereiro de
2019, contou com mulheres negras vestidas
de “mucamas” e decoração que remetia ao Brasil
escravocrata. Eventos recentes como esse suscitaram
discussões éticas envolvendo a apropriação de culturas.
Mas o que é, de fato, apropriação cultural?
Para José Arlindo do Nascimento, Assistente Social
e Especialista em Igualdade Étnico Racial na Escola,
pensar a apropriação cultural é fazer uma análise de
complexidade. “Até o termo apropriar perpassa pelo
estranhamento, pois você se apropria de algo a que
acha ser simplesmente de seu domínio. Em termos de
cultura o debate tem que perpassar por aquilo que está
no âmbito privado e público.”
A cultura afro e afro-descendente é reconhecida
pela Lei 10.639, aprovada em dezembro de 1996,
identifica a contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política pertinentes à História
do Brasil. Contudo, essa cultura é constantemente
esvaziada de seu significado. No histórico de nosso
país, o uso da força física e as imposições da vontade
da Casa Grande (homens brancos que escravizaram
negros entre os séculos XVI e XIX) na organização da
sociedade evidenciam as raízes do racismo.
A abolição da escravidão, em 1888, por meio
da assinatura da Lei Áurea, e um ano depois, a
Proclamação da República, não modificaram, na prática,
os argumentos da diferença racial para a dominação
de pessoas. “Desde a escravidão esta ideologia [da
supremacia racial] vinha sendo impregnada na vida
desta sociedade. Quando pensamos no termo escravidão
e colonização sem levar as diásporas africanas como
experiência humana, negamos a história dos povos
que se reconstruíram como territorialidade nestes
espaços contraditórios”, afirma Arlindo. Com isso, a
diminuição do negro e tudo que faz parte da sua cultura
é essência do racismo e também é ferramenta das esferas
dominantes na luta de classes. “O racismo é a peça chave
para entendermos o alijamento dos corpos negros tanto
nos espaços públicos quanto privados. A inferiorização
da cultura negra é estratégia para atuar como forma de
controle, de frear o crescimento ou ascensão dos setores
estigmatizados”, complementa.
Para o Assistente Social, o debate do país
miscigenado e intercâmbio de culturas, é uma das
formas de velar o racismo.“Acho muito perigoso pensar o
Brasil como um país miscigenado. A miscigenação é um
fenômeno cultural que demarcou as relações sociais e
ainda prevalece na atualidade. Antes dela acreditava-se
que para o desenvolvimento fosse necessário apagar as
imagens de um Brasil escravizado,” diz.
Nos dias de hoje, há um enaltecimento dessa
miscigenação, observada sobretudo na difusão de
produtos culturais pelo mercado. Historicamente, os
símbolos negros são formas de resistência, de luta contra
a dominação. Uma vez incorporados pela lógica do
consumo, a identidade desses símbolos é ressignificada
e simplificada sendo extraída, esvaziada e transformada
em mercadoria com uma roupagem branca. Por isso, não
se trata apenas de dizer o que é coisa de preto e coisa de
branco, e sim de reconhecer uma luta identitária.