Elas por elas 2020
A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.
A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.
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f y t i K
Mulheres indígenas
organizadas em defesa
da floresta e da vida
Homofobia:
Combater preconceitos
é uma expressão da luta
pela liberdade
A lama que
inunda emoções
Impacto dos crimes de mineração
reflete desigualdade histórica de
gênero e faz com que as mulheres
sintam mais as consequências
É sempre muito prazeroso
quando a gente faz mais um editorial
da revista Elas por Elas. Temos
a felicidade de constatar que mais
uma vez foi possível! Mas, neste
ano de 2020, o sentimento é bem
mais forte. Mais do que alegria e
prazer, vem a sensação de vitória.
Esta revista é um símbolo da nossa
resistência, principalmente aos
ataques que o sindicalismo vem
sofrendo. Da mesma forma, são
violentos os ataques às mulheres,
às pessoas LGBTQI+, aos quilombolas,
aos negros e negras, aos indígenas
e, claro, aos trabalhadores e
trabalhadoras. Elas por Elas busca
compartilhar as vozes de todas essas
pessoas que, de alguma forma,
são discriminadas ou desrespeitadas
em alguns dos seus direitos
fundamentais. O atual governo tem
como tônica o ataque às minorias,
o desmonte do Estado Nacional, a
entrega de todo patrimônio público
e a inviabilização da organização
da classe trabalhadora. Esse último
ponto se dá no ataque direto às entidades
representativas laborais:
os sindicatos. E faz isso alterando
a representatividade da entidade
nas negociações e também na fonte
e forma de custeio. Contrapondo-se
a esse cenário, por meio da categoria
de professores e professoras
do setor privado, o Sinpro Minas
resiste bravamente e não abre mão
de produzir e imprimir mais uma
edição desta revista.
Com ela, reafirmamos nosso
lugar de fala e abrimos espaço
para que outras vozes se unam à
nossa, a do/a trabalhador/a, do/a
professor/a, do/a sindicalista, para
denunciar as injustiças e projetos
que visam nos escravizar, nos
submeter aos interesses do capital
estrangeiro. Nossa luta é por uma
educação pública, gratuita e de
qualidade, sem censura e sem tentativas
de mordaça, como tentam
fazer com a proposta Escola Sem
Partido. Nossa luta é pela igualdade
de gênero, com a mulher, principalmente
as que mais sofrem
com as opressões sociais, como as
mulheres negras, indígenas e trans,
tendo acesso ao mercado de trabalho,
com os mesmos salários que
os homens, vivendo sem violência
doméstica, assédios ou qualquer
outro tipo de violência. Nossa luta
é ampla – é pelos direitos humanos,
pela liberdade de expressão,
Editorial
pela defesa do meio ambiente e do
planeta, pela demarcação das terras
indígenas e quilombolas, pelo
fim do modelo de sistema prisional
racista e seletivo. Nossa luta é
pela soberania nacional, pelo fim
das privatizações, pela democratização
da comunicação, por mais
mulheres na política, nas universidades
e em todos os espaços de
decisão; pelo fim da homofobia,
do machismo e do racismo. Nossa
luta é em defesa da vida e da
democracia. Queremos um país
soberano e que seus governantes
respeitem a Constituição Federal.
Queremos mais mulheres ocupando
todos os espaços e sendo o
que elas querem ser – trabalhando
no que desejam, criando, compondo,
jogando futebol, governando...
A revista Elas por Elas é um
pouco de tudo isso. Nesta edição,
veremos a luta de mulheres em
várias áreas – na ciência, no mercado
de trabalho, na família, na
política, na defesa da floresta e
da vida, na política. Cada mulher,
em sua luta diária, nos ensina o
poder da resistência e da esperança.
Acreditamos em um país
melhor! Sigamos firmes na luta!
Revista Elas por Elas - março 2020
3
Fotografia
A potência do olhar
Luta de classes
Marcha das Margaridas
Mulheres na luta por um Brasil melhor
07
13
Diversidade
Homofobia
Combater preconceitos é uma expressão
da luta pela liberdade
Educação
Corrida de obstáculos
na ciência
Pesquisadoras relatam as dificuldades com
os cortes no setor e falam sobre os desafios
de gênero no ambiente acadêmico
Cultura
Capoeira
A resistência desde as matas rasteiras
57
17
45
Educação
O debate de gênero nas
escolas e o papel
emancipador da educação
Setores conservadores da sociedade
tentam impor propostas que negam a
diversidade do povo brasileiro.
69
Cultura
Pretas protagonistas
Mulheres constroem um novo tempo de
liberdade por meio da arte
Cultura
Mulheres demarcam espaço
também no mundo da música
27
33
Capa
Mulheres indígenas
organizadas em defesa
da floresta e da vida
Mais de 500 anos de colonização
e o problema do povo indígena
segue o mesmo – a invasão de
suas terras e as consequências
disso, como a destruição do meio
ambiente e a agressão aos
direitos humanos
Cultura
Lutas que
atravessam fronteiras
Coletivo de comunicação do México
lança série audiovisual que retrata o
protagonismo das mulheres em distintas
lutas pelo mundo.
37
77
4 Revista Elas por Elas - março 2020
Sociedade
A lama que
inunda emoções
O impacto dos crimes de
mineração reflete desigualdade
histórica de gênero e faz com
que as mulheres sintam mais
as consequências.
91
Trabalho
Sem direito algum
Crise econômica e discriminações de gênero
empurram mulheres para a informalidade
Violência
Por trás das estatísticas de
feminicídios
Desmanche do Estado gera aumento
da violência contra a mulher
Realidade
Ventos de liberdade
no cárcere
101
Em meio à privação de liberdade, algumas
experiências buscam criar espaços de
acolhimento, partilha e alegria, ajudando
a minimizar a dor e a solidão diárias.
125
Artigo
A subversão como estratégia
de enfrentamento da violência
contra as mulheres
135
Esporte
Com a bola toda
No campo ou na arquibancada, mulheres
contra a discriminação no futebol
109
Artigo
O encarceramento de
mulheres acusadas por
tráfico de drogas: desafios
para as lutas feministas
e antirracistas
117
Perfil
Leci Brandão
139
A voz que nos encanta e nos representa
147
Artigo
A PENA DO ABORTO
vale a pena?
121
Poucas e boas, internet
Livros e filmes
Retrato
152
153
154
Revista Elas por Elas - março 2020
5
Departamento de Comunicação do Sinpro Minas: comunicacao@sinprominas.org.br
Diretores responsáveis: Aerton Silva, Clarice Barreto e Gilson Reis
Editora de texto: Nanci Alves (MG3152JP)
Editora de fotografia: Carina Aparecida (MG13115JP)
Redação: Aloísio Morais (MG2447JP), Carina Aparecida (MG13115JP),
Débora Junqueira (MG5150JP), Denilson Cajazeiro (MG9943JP),
Mariana Viel (MTB-10808/MG) e Nanci Alves (MG3152JP)
Projeto gráfico e Diagramação: Mark Florest
Revisão: Aerton Silva
Foto capa: Katie Mähler
(O-É Kayapó em destaque, na 1ª Marcha das Mulheres Indígenas | setembro de 2019)
Conselho Editorial: Antonieta Mateus, Clarice Barreto, Lavínia Rodrigues, Maria Izabel Bebela Ramos,
Marilda Silva, Liliani Salum Moreira, Luliana Linhares, Soraya Abuid, Terezinha Avelar e Valéria Morato.
Impressão: EGL-Editores Gráficos Ltda - Tiragem: 2.000:
Distribuição gratuita: Circulação dirigida
REVISTA ELAS POR ELAS
PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE
COMUNICAÇÃO DO SINPRO MINAS
ANO XII - Nº 12 - MARÇO DE 2020
ACESSE AS EDIÇÕES ANTERIORES EM
www.sinprominas.org.br
/ Elas por elas nº 11
Diretoria Gestão 2020/2024
Adelmo Rodrigues de Oliveira; Aerton de Paulo Silva; Alessandra Cristina Rosa; Alexandre Durann Matos; Altamir
Fernandes de Sousa; Andrez Wescley Machado; Ângela Maria da Silva Gomes; Ângelo Filomeno Palhares Leite;
Antonieta Shirlene Mateus; Aparecida Gregório Evangelista da Paixão; Arnaldo Oliveira Júnior; Beatriz Claret
Torres; Bráulio Pereira dos Santos; Bruno Burgarelli Albergaria Kneipp; Camillo Rodrigues Júnior; Carlos Magno
Machado; Carolina Azevedo Moreira; Cássio Francisco de Lima; Celina Alves Padilha Arêas; Clarice Barreto Linhares;
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de Souza; Edson de Oliveira Lima; Edson de Paula Lima; Eduardo Arreguy Campos; Fábio dos Santos Pereira;
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Moreira; Luciano Martins de Faria; Luiz Antonio da Silva; Luliana de Castro Linhares; Marcos Gennari Mariano;
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Miguel José de Souza; Miriam Fátima Dos Santos; Moisés Arimatéia Matos; Mônica Junqueira Cardoso Lacerda;
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FILIADO À
SINDICATO DOS PROFESSORES DO ESTADO DE MINAS GERAIS
SEDE: Rua Jaime Gomes, 198 - Floresta - CEP: 31015.240 - Fone: (31) 3115 3000
Belo Horizonte - www.sinprominas.org.br
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REGIONAIS:
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3221-3973; Patos de Minas: Rua Agenor Maciel, 100 - sala 201 - Centro - CEP: 38700-046 - Fone:
(34) 3823-8249; Poços de Caldas: Rua Mato Grosso, 275 - Centro, CEP: 37701-006 - Fone: (35)
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Sete Lagoas: Rua Vereador Pedro Maciel, 165 - Nossa Senhora das Graças - CEP: 35700-477
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6 Revista Elas por Elas - março 2020
A potência do olhar
Carina Aparecida
Escrever com os olhares. Olhares diversos, construídos a partir
de distintas realidades. Olhares resistências, trincheira para
cultivar novas e necessárias narrativas de mundo.
Olhares poesias, brecha de respiro, fôlego para seguir as faíscas
de beleza muitas vezes invisibilizadas em meio ao caos.
A Revista Elas por Elas dedica algumas páginas da sua 12ª edição
aos olhares de duas fotógrafas, que assim como tantas,
ocupam um espaço essencial para construção de nossas memórias,
afetos e interpretação da vida e da sociedade.
A argentina Lucre Rasetto e a mexicana Margarita Martínez
compartilham o que alimenta esses olhares tão atentos e sensíveis
que atualmente observam o México ancestral, repleto de
uma força que atravessa séculos e que permanece florescendo
nesse país e em tantas partes da nossa América Latina.
Revista Elas por Elas - março 2020
7
8 Revista Elas por Elas - março 2020
Lucre Rasetto, Argentina
Projeto com um grupo de mulheres da Comunidade
de São Francisco de Tlalcilalcalpan
- México, em luta pela defesa do território
(...)Vitória se dedica a fazer tortilhas (espécie
de pão folha muito tradicional no México)
para vender. Amassa o milho entre a fumaça
que emana do comal (tipo de frigideira),
todos os dias prepara centenas de tortilhas e
depois leva para as famílias que encomendaram.
Enquanto eu a olhava através da minha
câmera, compartilhamos histórias, casos e,
com o passar das horas, cada uma soube um
pouco mais sobre a vida da outra, sobre nossas
histórias, sentires e reflexões.”
Instagram: @lucre_rasetto
Revista Elas por Elas - março 2020
9
Margarita Martínez Pérez, México
Metáforas do coração
“A série fotográfica “Metáforas do coração”aborda
distintas expressões do sentir-pensar que radica
e emana a partir da expressão o’ontonil “coração”,
da língua indígena mexicana tsotsil huixteco.
Nela é representada não apenas a interação
da linguagem e do corpo, mas também os objetos
materiais que dão vida às diversas emoções
e personalidades de cada ser humano.”
Instagram: @sasaknichim
Tradução: Snichimal O’ontonil - Florescimento do coração - felicidade
10
Revista Elas por Elas - março 2020
Tradução: Xpich’ich’et o’ontonil - Espremendo o coração - Tristeza
Revista Elas por Elas - março 2020
11
/ Ronaldo Souza
12
Revista Elas por Elas - março 2020
Luta de classes
Marcha das Margaridas
Mulheres na luta por um Brasil melhor
por Aloísio Morais
Alagoa Grande, na microrregião
do Brejo paraibano, tem pelos menos
dois grandes filhos da terra famosos
entre seus 30 mil habitantes:
Margarida Maria Alves e Jackson
do Pandeiro, cantor e compositor
dos mais importantes da música
genuinamente brasileira, que
neste ano completaria 101 anos, se
estivesse vivo.
Já Margarida ficou bastante conhecida
como mulher lutadora ao
presidir o Sindicato dos Trabalhadores
Rurais da cidade, durante 12
anos. Lutou e incomodou tanto o
latifúndio que acabou assassinada
covardemente na porta de sua
casa, em 12 de agosto de 1983.
Mas, se alguém queria que ela
fosse esquecida se enganou, e muito.
Depois de construir uma trajetória
sindical de luta pelo direito
à terra, pela reforma agrária, por
melhores condições de trabalho e
contra as injustiças sociais e o analfabetismo,
Margarida acabou deixando
sua semente, que brotou,
cresceu e se expandiu pelo país afora.
Acabou emprestando seu nome
para o principal evento das mulheres
brasileiras, a Marcha das Margaridas,
que acontece em Brasília,
sempre em agosto, em data vizinha
ao dia da morte de Margarida.
Em 2019, mesmo em situação
adversa diante do atual governo,
a Marcha manteve sua tradição e
reuniu mais de 30 mil pessoas em
Brasília, nos dias 13 e 14 de agosto,
sob a bandeira de ‘Margaridas na
luta por um Brasil com soberania
popular, democracia, justiça, igualdade
e livre de violência’.
“Foram dois anos de construção
dessa Marcha. Demos nosso recado
e conseguimos um processo que
deixou um grande legado para o
movimento sindical e fora dele. Por
isso, a gente não para de marchar,
sempre dialogando com outros
setores contra o desmonte que
temos assistido”, afirma a piauiense
Mazé Morais, secretária Nacional
de Mulheres da Confederação
Revista Elas por Elas - março 2020
13
Nacional dos Trabalhadores da
Agricultura (Contag), uma das
lutadoras que esteve à frente da
construção do evento em Brasília.
A próxima Marcha está marcada
para agosto de 2022.
Quem também fala com entusiasmo
sobre a Marcha é Alaíde Lúcia
Bogetto Moraes, coordenadora
estadual das Mulheres Trabalhadoras
Rurais da Federação dos Trabalhadores
Rurais de MG (Fetaemg) e
secretária de Mulheres da Central
dos Trabalhadores e Trabalhadoras
do Brasil (CTB) em Minas: “Foi
um sonho realizado. Mesmo numa
conjuntura adversa, conseguimos
realizar a maior Marcha desde
que foi criada. Foi a maior mobilização
de pessoas em Brasília desde
a posse do atual governo”. “Gente,
parece que brotam mulheres do
chão”, disse, com surpresa a deputada
federal Jandira Feghali (PCdoB-
-RJ), caminhando ao lado de Alaíde,
na Marcha. “Isso mostra que estamos
no caminho certo, dialogando
com a sociedade e fortalecendo
a mulher”, completa Alaíde. Segundo
ela, de Minas partiram 65 ônibus
com mulheres de mais de 500 municípios
de todos os cantos rumo a
Brasília. “Só de Montes Claros, partiram
20 ônibus com mulheres do
Norte de Minas. Essa Marcha foi desafiadora,
pois foi organizada sem
recursos e sem diálogo com o governo
federal. Por isso, nos fixamos no
debate em torno de uma plataforma
com dez eixos e nos limitamos a
uma audiência no Congresso Nacional,
na Assembleia Legislativa em
Minas e no diálogo com a sociedade
através das entidades parceiras.”
Ela ressalta que a cada ano a Marcha
cresce mais, principalmente com a
participação das mulheres nas oficinas
oferecidas pelo evento. Lembra
ainda que sua última edição contou,
pela primeira vez, com a participação
de 23 delegações estrangeiras,
trazendo o reconhecimento internacional
ao evento, já que em nenhum
outro país há algo semelhante.
“Mesmo sem apoio do governo
federal desta vez, a Marcha mostrou
a capacidade de organização
das trabalhadoras rurais para o enfrentamento
ao estado de exceção,
em defesa da classe trabalhadora e
contra os cortes efetivados nos direitos
das mulheres do campo, das
florestas e das águas”, afirmou Celina
Arêas, representante da CTB na
organização da Marcha. “O fato é
que a última Marcha, a maior delas
desde que foi criada em 2000, unificou
as mulheres indígenas e urbanas
com as do campo. Nesse momento
de ataque aos indígenas, ela
mostrou que as mulheres terão um
papel muito importante a desempenhar”,
acrescenta Celina.
Eixos políticos da Marcha
e suas proposições
1. Por terra, água e agroecologia;
2. Pela autodeterminação dos povos,
com soberania alimentar e
energética; 3. Pela proteção e conservação
da sociobiodiversidade
e acesso aos bens comuns; 4. Por
autonomia econômica, trabalho e
renda; 5. Por previdência e assistência
social, pública, universal e
solidária; 6. Por saúde pública e em
defesa do SUS; 7. Por uma educação
não sexista e antirracista e pelo direito
à educação do campo; 8. Pela
autonomia e liberdade das mulheres
sobre o seu corpo e a sua sexualidade;
9. Por uma vida livre de todas
as formas de violência, sem racismo
e sem sexismo; 10. Por democracia
com igualdade e fortalecimento da
participação política das mulheres.
/ Ronaldo Souza
14
Revista Elas por Elas - março 2020
O desafio do acesso à terra
A Marcha das Margaridas de
2019 foi composta por dez eixos
muito importantes para nós dialogarmos
com a sociedade e para a
vida das mulheres do campo. Entre
os mais importantes estão aqueles
interligados a outros para dar qualidade
de vida às mulheres do campo.
O eixo terra, água e ecologia, por
exemplo, é de fundamental importância
para as mulheres do campo,
pelo acesso à terra para poder produzir.
É como se as mulheres pudessem
ter a sua autoliberdade. A
gente poderia dizer que as mulheres
estariam tendo a sua terra para
poder produzir, para ter sua renda,
sua autonomia econômica, sua
liberdade, para poder tomar as decisões
que precisam ser tomadas.
A gente sabe que hoje o acesso à
terra no Brasil é um desafio muito
grande, porque temos um governo
totalmente contra a reforma agrária,
que expulsa as comunidades
tradicionais de suas terras, como
os indígenas, os ribeirinhos, os quilombolas,
que estão perdendo a
sua terra, onde estão há anos. Então,
o acesso à terra hoje é um desafio
muito grande, e as mulheres,
junto com a sociedade, têm de estar
muito unidas para poder avançar
nesta questão.
Outro ponto importante é a agroecologia.
A gente sabe que hoje o governo
vem liberando um número
muito grande de agroquímicos que
matam as pessoas, e esses produtos
estão sendo liberados para serem
usados na produção de alimentos.
E ter uma produção saudável hoje
é praticamente como enfrentar um
leão. A gente não sabe como as pessoas
que produzem esse tipo de alimento
vão conseguir sobreviver.
Mas estamos aí para fazer com que
a produção agroecológica, dos orgânicos,
fique cada vez mais acessível
à população. A gente tem comprovado
que assentamentos da reforma
agrária são os que mais produzem
arroz orgânico no país. Isso
prova que é possível, sim, produzir
sem precisar usar agrotóxico.
Então, lutamos com agroecologia,
com economia e renda, contra o fim
da violência, pela participação política
das mulheres, um eixo de fundamental
importância para as mulheres.
Neste ano terá eleições e lá,
nos municípios, a gente precisa cada
vez mais dialogar com as mulheres
para que elas não sejam laranjas.
Hoje, com a quota de 30% dos partidos,
a gente sabe que eles usam as
mulheres só para registrar a chapa
mas depois não deixam nem as mulheres
fazerem campanha pra elas.
A gente tem de conscientizar cada
vez mais nossas mulheres de que, se
colocaram o nome à disposição, elas
têm de fazer campanha, têm de pedir
voto, se elegerem e ocuparem os
espaços de poder.
Tudo começa lá na ponta, porque
é lá que temos votos para eleger
nossos governantes, nossos representantes,
e temos de fazer com
que as pessoas tenham consciência
mais rica para fazer a diferença
que a gente tanto almeja.
A questão da violência a gente
também não pode deixar de falar,
porque ela hoje aumenta assustadoramente.
Cada dia que passa, aumenta
mais o número de feminicídios.
São homens que não aceitam
o fim do relacionamento, por qualquer
coisinha estão batendo nas
mulheres, mas também nas suas
famílias, nos seus entes queridos,
nas pessoas mais próximas. Tivemos
recentemente um fato muito
triste em que um homem não aceitou
o fim do relacionamento, pôs o
filho dentro do carro e jogou o veículo
contra uma carreta só para fazer
a mulher sofrer aquilo que ele
estava sofrendo. Uma atitude dessa
mostra um retrocesso em nossa
sociedade. Em vez de caminharmos
pra frente com uma sociedade
mais justa, igualitária, mais respeitosa,
a gente está tendo uma sociedade
cada vez mais dominante.
Então, todos os dez eixos são de
muita importância para dialogarmos
com a sociedade, com o nosso
país, para podermos avançar com
autonomia, liberdade e participação
das mulheres na sociedade.
/
Alaíde Lúcia Bogetto Moraes, coordenadora
estadual das Mulheres Trabalhadoras Rurais, da
Fetaemg, e secretária de Mulheres da CTB
Revista Elas por Elas - março 2020
15
/ Cláudia Matos
16
Revista Elas por Elas - março 2020
Cultura
Capoeira:
resistência desde as matas rasteiras
por Nanci Alves
Dona Maria dos Santos Cantanhede
(foto), mais conhecida como
mestra Maria do Coco, de São Luiz
do Maranhão, 74 anos, é uma das
brasileiras que ajudou a fortalecer
a capoeira. Ela começou há pouco
mais de 30 anos, com o mestre Pastinha,
na Bahia, e o mestre Madeira,
no Maranhão, numa época em
que a mulher era presente apenas
nos cantos da capoeira, e muito
pouco no jogo. “Desde criança, eu
acompanhava o Bumba meu Boi,
cantando no coro, depois dediquei
minha vida ao Tambor de Crioula”,
conta a mestra Maria do Coco, que
recebeu este apelido por vender
coco há mais de três décadas no
centro histórico de São Luiz. Embora
o título de mestra seja em função
do Tambor de Crioula, ela teve uma
ligação forte com a capoeira também.
“Foi paixão à primeira vista.
Fui assistir ao meu filho na capoeira
e me colocaram para tocar agogô,
mas pedi para jogar e o mestre
deixou. Foi muito bom! Naquela
época, claro que enfrentei preconceito
por ser mulher. Muita gente
estranhava eu ser capoeirista, mas
meu filho disse: ‘mamãe, não vamos
sair por isso’. A capoeira ajuda
em tudo, você fica com a mente
forte. O corpo pede mais coisas, aí
você faz mais, porque o jogo é uma
inteligência! Eu joguei até os meus
60 anos. Foi muito bom, mas às vezes
ainda jogo! E aconselho todas
as mulheres a fazerem capoeira.
Dando vontade, faça!”
A capoeira nasceu, no início do
séc. 16, como forma de resistência
cultural e física dos africanos escravizados
no Brasil. Muitos deles vieram
da região de Angola, também
colônia portuguesa. Aqui, diante da
escravização, sentiram necessidade
de criar formas de proteção contra a
violência e a repressão dos senhores
de engenho. Como eram proibidos
de praticar qualquer tipo de luta,
Revista Elas por Elas - março 2020
17
usaram o ritmo e os movimentos
de suas danças africanas, criando a
capoeira – uma luta disfarçada de
dança, feita às escondidas em pequenos
arbustos, matas rasteiras
(na época, chamadas de capoeira).
Porém, a prática ficou proibida
no Brasil até o ano de 1930, ou
seja, 42 anos depois da abolição da
escravatura, capoeiristas podiam
ser presos, porque o jogo era visto
como uma prática violenta e subversiva.
Essa história começou a
mudar quando o baiano mestre
Bimba (Manuel dos Reis Machado)
apresentou a luta para o então presidente
Getúlio Vargas. O presidente
gostou muito e a transformou
em esporte nacional brasileiro.
E, assim, em 1932, mestre Bimba
(1899 - 1974) fundou, com o apoio
da Secretaria da Educação do Estado
da Bahia, a primeira escola de
capoeira do Brasil, em Salvador.
Antes do mestre Bimba, outro
capoeirista importante para a história
dessa arte no Brasil foi o mestre
Pastinha, Vicente Ferreira Pastinha
(1889 - 1981). De acordo com a mestra
Alcione Oliveira (foto), do Grupo
Candeia de Capoeira Angola, eles são
as duas referências mais populares e
serão sempre reverenciados por todo
capoeirista. “A capoeira não surgiu
organizada, foi sendo estruturada
aos poucos a partir de tudo que os
primeiros capoeiristas aprenderam
com os escravizados angolanos, de
todos os rituais – a dança , o canto, a
luta, o hábito cotidiano. Depois, com
o fim da sua criminalização, foi virando
instituição e surgindo grupos,
mestres diversos, aumentando as
referências culturais”, conta.
/ Carina Aparecida
18
Revista Elas por Elas - março 2020
Mestra Alcione explica que mestre
Pastinha pregava a tradição, o
jogo matreiro, de malícia, movimentos
mais lentos e mais no chão,
estilo que passou a ser conhecido
como Capoeira Angola. Ela é considerada
a mãe dos outros estilos e
mais próxima da capoeira jogada
pelos escravizados africanos. Já o
mestre Bimba desenvolveu, posteriormente,
novos golpes para a
capoeira, introduziu elementos
de outras lutas marciais, acrobacias,
criando um próprio estilo,
jogo mais curto, mais saltos, tirou
parte da ritualidade presente nas
rodas de Angola, no que diz respeito
à musicalidade, que predomina
hoje em dia como na Capoeira Angola
tradicional. Essa modalidade
ficou conhecida como Capoeira
Regional. Mestre Pastinha fundou
a primeira escola de Capoeira de
Angola, o Centro Esportivo de Capoeira
Angola, no Pelourinho, em
Salvador/BA, em 1941.
Foi a partir da dedicação e da
coragem dos mestres Pastinha e
Bimba que a capoeira deixou de
ser marginalizada e se espalhou da
Bahia para todo o país e o mundo.
O caminho das mulheres
Mais que se espalhar e encantar o
mundo inteiro, a capoeira permitiu
e permite que milhares de pessoas
se conectem com sua ancestralidade,
além de, claro, ser excelente
atividade para o físico, a mente e
a espiritualidade. E, embora historicamente
seja uma prática vinculada
ao universo masculino,
esse cenário vem mudando nas
últimas quatro décadas. Para a
mestra Alcione Oliveira, que começou
a treinar por estímulo de seu
irmão, aos 17 anos, a capoeira foi
um divisor de águas em sua vida.
“Fui escondida de meus pais, que
só ficaram sabendo muitos anos
depois. Gostei tanto que não parei
mais. Fui aprendendo, descobrindo
o que era a capoeira, me reconhecendo,
descobrindo minhas raízes.
Quando adolescente, estava cheia
de vícios da nossa sociedade, tinha
muitas dificuldades, era muito
tímida e a gente vai se embranquecendo
nesse sistema. A capoeira foi
um resgate, me trouxe autoconhecimento”,
lembra, ao destacar que
aprendeu a ver a vida como uma
riqueza no simples e a valorizar a
natureza ― “a capoeira me conecta
com essas forças, porque ela te leva
para um lugar mais feliz, um cuidado
físico, espiritual e mental”.
“
a capoeira me
conecta com
essas forças,
porque ela te leva
para um lugar
mais feliz, um
cuidado físico,
espiritural e
mental.”
Na avaliação da mestra Alcione,
as mulheres na Capoeira Angola estão
a cada dia mais presentes nesses
espaços que também pertencem a
elas. “Considero que ainda há muito
a se evoluir e estabelecer uma
harmonia entre os gêneros. Entre
nós, mulheres, precisamos sempre
nos reconhecer, honrar e valorizar
as mulheres que vieram e fizeram
antes de nós. Temos essa relação
com nossos mestres homens, mas
entre nós, mulheres, ainda temos
que curar essa relação da competição,
da inveja, disputa criada pela
cultura machista. Espero que esse
processo de agora amadureça no
positivo pelo feminino para fortalecer
nossas lutas”, acrescenta.
Na capoeira não havia, no início,
possibilidade para as mulheres
serem lideranças de grupo. Elas
participavam, mas, até a década de
1980, a referência da capoeira era
masculina, quase não tinha mestras
― todas eram alunas. “Elas faziam
tudo para o grupo, se desenvolviam,
organizavam as tarefas e
as produções do grupo, apoiando os
mestres, mas não chegavam lá por
falta de espaço, que era tomado pelos
homens, pelos alunos com mais
destreza física. Eu comecei na década
de 1990 e vi muitas mulheres
largarem a capoeira. Hoje somos 15
mestras no país e no mundo, pois a
Capoeira Angola também está fora
do Brasil. As mestras Paulinha e
Janja foram as primeiras reconhecidas
mestras de Capoeira Angola
no Brasil, formadas pelo mestre
Moraes, do Grupo de Capoeira
Angola Pelourinho em Salvador,
Bahia”, conta. Salve as mulheres
Revista Elas por Elas - março 2020
19
/ Carina Aparecida
da resistência maior que são capoeiristas,
são mães, são grandes
mulheres no dia a dia da vida e das
atividades diárias, elas estão a cada
dia mais presentes!”, diz.
Além de ser capoeirista, a
mestra Alcione aprendeu dança
afro e a tocar instrumentos de
percussão. “Meu primeiro mestre
foi o mestre Primo, logo depois
tive que ficar na região central da
cidade e fui treinar com mestre
João. Comecei a treinar em 1992
e conheci mestre Índio e mestre
Rogério, meus mestres. Começamos
um trabalho com a Associação
de Capoeira Angola Dobrada, que
foi fundada na Alemanha, em 1992.
Em BH, começou por volta de 1997.
As mulheres dessa geração criaram
as estruturas e assumiram as
responsabilidades para o trabalho
existir e estar vivo até hoje,” conta.
Dedicando sua vida à capoeira,
mestra Alcione fez dela a sua filosofia
de vida e seu trabalho. Deu
aulas e morou fora do país: na
Alemanha, Itália, França, Espanha
e EUA. Hoje em dia reside em Belo
Horizonte, onde, há quase dois anos,
fundou sua própria academia, com
apoio e ajuda de outros/as capoeiristas.
“O espaço veio dessa dedicação.
A Capoeira Angola é a base,
dou aula de capoeira e percussão,
mas temos também uma sala com
profissionais nas áreas de acupuntura,
yoga, massagem, ventosa e
quiropraxia. Me sinto feliz por
realizar esse trabalho, por ajudar
as pessoas a se encontrarem, se
autoconhecerem num contexto
social e coletivo baseado na nossa
cultura popular”, afirma.
Alcione ressalta que não tinha
objetivo de ser mestra, mas que
isso também foi resultado do seu
esforço, luta, resistência e, claro,
do amor pela Capoeira Angola:
“Tenho muito o que agradecer aos
mestres e mestras que ajudaram
na minha formação. A capoeira
me levou a conhecer a minha ancestralidade,
me trouxe consciência
da luta, resistência e certeza de
que sou guerreira e que sou uma
mulher que tem fé e amorosidade,
carinho e respeito ao ser humano e
a todas as formas de vida”.
Nossa essência feminina traz
pra capoeira outro olhar, atenção,
cuidado, inclusão. Muito bom ser,
como mestra, referência disso tudo,
até para eu reaprender e colocar o
meu jeito, combatendo a reprodução
desse machismo que a gente vivencia
no nosso cotidiano”, ressalta.
Essa referência de ter uma mestra
é forte para a capoeirista Akino
Takeda, de Belo Horizonte. “Iniciei
minha caminhada em 2015, quando
eu estava morando fora do Brasil,
mas tenho lembranças de fazer
alguns movimentos quando eu
ainda era criança, na casa do meu
avô, com meu tio mais novo. Nesses
últimos anos, tive o privilégio
de treinar com muitas mulheres
marcantes com vários pensamentos
e histórias dentro da capoeira,
e também com outros mestres a
quem sou grata e que moram no
meu coração. Mas a vida me colocou
junto à mestra Alcione e agradeço
por essa benção que é construir,
ouvir, aprender com uma
mestra e, claro, também com outras
mulheres dentro do grupo. Existe
muito zelo, entrega, seriedade e firmeza
no trabalho que ela conduz.
20
Revista Elas por Elas - março 2020
/ Carina Aparecida
Admiro, respeito e acompanho sua
caminhada com amor e gratidão.
Considero de grande importância
política e transformação social a
história dessa mulher”, ressalta.
Resistência contra todo
tipo de opressão
Também para a pedagoga, mestra
de capoeira e professora de yoga
Cristina Nascimento Dias dos Santos
(foto), a capoeira Angola tem
sido um importante caminho para
aprofundar seus questionamentos
acerca do racismo e suas consequências,
e do valor da civilização
africana, com suas inúmeras e ricas
contribuições para a humanidade.
Carioca, ela iniciou a capoeira em
1993, com o mestre Neco, do Rio de
Janeiro. “Logo depois fui treinar
com o Emanuel, com quem fiquei
15 anos. Procurei a capoeira porque
queria fazer uma atividade
física, mas logo percebi que era
muito mais do que isso. Ninguém
na minha família tinha praticado
capoeira antes e foi através de
amigos que descobri um lugar para
treinar. Já iniciei na capoeira Angola
e me apaixonei. Foi algo intenso
na minha vida e, hoje, é também
minha profissão, mas antes de
tudo, ela me dá uma base espiritual
e emocional muito grande. Seu
sentido de luta se inscreve no ser
negro como um aliado na luta pela
libertação de tudo o que nos nega
a África em nós, nossa cor, nossos
valores, nossa religiosidade”, diz.
Para a mestra Cristina, cada
capoeirista deve se comprometer
com a luta antirracista e todas as
formas de discriminação, pois “esse
Revista Elas por Elas - março 2020
21
/ Carina Aparecida
é o legado da capoeira. Ela nasceu
nas senzalas e se desenvolveu nos
guetos. Sobreviveu a duras penas,
vista por muito tempo como algo
criminoso. Hoje está no mundo inteiro
e sinto que, em grande parte,
essa origem se perde, no sentido de
lembrar de onde a capoeira surge
e qual o sentido de sua existência.
Então, precisamos ser resistência
em reafirmar que a capoeira é preta
e isso significa entendê-la como
uma manifestação da cultura africana
em diáspora, com valores que
precisam ser preservados”.
Entretanto, a mestra reforça
que não podemos nos esquecer que
vivemos numa sociedade alicerçada
nas desigualdades, que têm seu
cerne no processo de escravização
negra e todas as suas nefastas consequências.
Por isso, não é tão fácil
mudar comportamentos, atitudes e
toda uma realidade machista e racista.
“Os praticantes de capoeira vivem
nesse contexto social e trazem
para dentro dos espaços o reflexo
de suas vivências no mundo. Ser
praticante de capoeira não dá a ninguém
a garantia de não ser racista,
machista, homofóbico, ainda que
ela traga elementos que possam
contribuir com o questionamento
de práticas discriminatórias. Parte
também de cada indivíduo se reeducar
e transformar suas relações.
Vejo que, nesse sentido, existem
pessoas e posicionamentos machistas
na capoeira, assim como existem
posicionamentos racistas também.
Mas temos que ressaltar, por exemplo,
que a mulher está galgando
espaços dentro da capoeira e tem
aumentado o número de mulheres
à frente de grupos. Isso, sem dúvida,
22
Revista Elas por Elas - março 2020
é um avanço. No entanto, esse avanço
não alcança muito as mulheres
negras, pois ainda somos minoria
dentro dos espaços de capoeira, reflexo
de uma sociedade racista que
nos invisibiliza”, acrescenta.
A realidade do machismo chama
a atenção também da contramestra
Índia Itatiaia (foto), paulista,
mas que vive em Belo Horizonte há
muitos anos. “Já tive problemas em
academias em que os alunos não
queriam treinar com mulher ou que
os donos de academia não queriam
mulheres dando aulas de luta. E vivi
relacionamento no qual meu parceiro
não gostava de me ver treinar
com homens. Dentro da capoeira, o
machismo é real. Na roda todos batem
palmas para a mulher, dizem
que temos os mesmos direitos e que
nos apoiam, mas na hora que o homem
tem a oportunidade de cortar
um jogo, de tirar alguém da roda, ou
simplesmente pegar um instrumento
pra tocar, muitas vezes, prefere
tirar a mulher, porque acha que ela
vai aceitar mais facilmente. Eu me
posiciono na hora. Claro que a gente
tem hierarquia na capoeira. Se é um
mestre que me tira com respeito, eu
tenho que aceitar a compra do jogo
dele, mas se o cara tem a mesma
graduação, ou inferior, e eu percebo
que é machismo, porque acha que
eu não tenho condição de estar ali,
aí me imponho e tenho certeza de
que será bom para as outras garotas
que vão chegar à minha graduação”,
afirma.
A contramestra Índia Itatiaia é
do grupo Capoeira Gerais - Mestre
Mão Branca e começou na capoeira
aos 14 anos, com a proposta apenas
de perder peso. Mesmo com o objetivo
alcançado, não parou mais. “A
capoeira para mim era uma luta coreografada
e eu ainda não entendia
muito bem, mas fui bem acolhida e
me identifiquei. Na medida em que
entrei em contato com a minha ancestralidade,
me apaixonei”, conta.
Ela começou a dar aulas aos 18
anos para crianças e adolescentes
e construiu sua vida na capoeira
da linha Regional, ao mesmo tempo
em que era atleta (vôlei, basquete e
artes marciais) e modelo. Casou-se
com o mestre Mão Branca e tiveram
um filho. Abraão (foto), hoje
com cinco anos, acompanha os pais
em todos os lugares onde vão com
a capoeira. “As coisas mudaram
e a maternidade não é vista mais
como empecilho. Pelo contrário, todos
os capoeiristas se ajudam nesse
cuidado com as crianças para que
a gente possa seguir no jogo e levando
nossos filhos. Abraão já foi
comigo para vários países. Ele ama
“
Na capoeira, tomamos
consciência de que
somos descendentes
de reis e que nossos
ancestrais foram
escravizados.
Resistimos no passado
e resistimos hoje!”
a capoeira, já entra no jogo e gosta
também de tocar atabaque”, conta.
A contramestra ressalta que,
quando começou em São Paulo, na
academia em que praticava, havia
60 homens e dois mulheres. “Hoje,
somos maioria nas academias. E
quando eu coloco uma menina
aqui para treinar, eu penso na defesa
pessoal dela, na ancestralidade,
na autoafirmação, na importância
dela saber que é competente e que
pode tanto quanto o homem. Hoje,
me sinto respeitada e não aceito
que seja diferente. Isso acende nas
garotas um olhar de resistência. A
capoeira te mostra a verdade ― que
a gente é bonita, inteligente, que negro
não pode ser apenas jogador de
futebol e pagodeiro. A gente aprende
isso culturalmente. Por exemplo,
quando vou buscar meu marido
no aeroporto e os taxistas me perguntam:
‘seu marido é gringo?’ Eu
pergunto com ironia: Por quê? Uma
negra bonita no aeroporto só pode
ser casada com gringo?”
Ela conta que foi por meio da capoeira
que aprendeu a importância
do negro na construção do país. “A
gente aprende na escola que o negro
é raça oprimida, escravizada e
só. Já na capoeira, tomamos consciência
de que somos descendentes
de reis e que nossos ancestrais foram
escravizados. Resistimos no
passado e resistimos hoje! E nós
temos o papel de ensinar isso a
outras pessoas. É necessário para
mudarmos essa realidade. Na atual
conjuntura do país, os ataques racistas
se acirraram principalmente
sobre as reservas indígenas e quilombolas.
Esse tipo de pensamento
Revista Elas por Elas - março 2020
23
/ Palestina Israel
capoeira é tão importante. A gente
não pode ser aceito. Se a gente não sobre a importância de não usar
24 Revista Elas por Elas - março 2020
tem esse papel de ensinar que os
negros construíram este país, como
uma criança negra ou com ancestralidade
negra ouvindo isso vai
se sentir, que orgulho vai ter de
sua história? O que vai almejar
na sua vida? Aqui, na nossa academia,
temos um projeto que o
mestre Mão Branca criou que se
chama Vivenciando a Capoeira, em
parcerias com escolas do bairro.
Recebemos cerca de 300 crianças,
gratuitamente, falamos sobre ancestralidade,
Zumbi dos Palmares
(muitas não sabem quem foi), da
resistência, da luta. Eles não vão
aprender isso na escola, pois a Lei
10639, que estabelece a obrigatoriedade
do ensino de história e
cultura afro-brasileira, ainda não
é cumprida pela maioria das escolas.
Além disso, falamos também
drogas, de respeitar pai e mãe, de
estudar, se formar, agregar conhecimentos
, pois conhecimento é
tudo”, ressalta.
Políticas públicas para
a capoeira
A capoeira foi liberada em 1930,
mas pouco mudou desde então, pois
tudo continua enquadrado dentro
de um pensamento que reproduz
o racismo. É o que afirma Edson
Moreira da Silva, o mestre Primo
(foto), do Grupo Iuna Capoeira
Angola de Belo Horizonte. “Quando
a pessoa entende isso, entende
que o povo negro africano foi escravizado
para os colonizadores se
aproveitarem de todo seu conhecimento
da agricultura, mineração,
culinária, arte etc. Essa informação
não está nos livros, por isso a
descobre no corpo, por meio de técnicas,
formas para se conectar com
a nossa ancestralidade. Isso é fundamental
para desconstruirmos a
filosofia do colonizador. Nosso dever
é construir outro processo em
que poderemos sempre acolher
a todos e todas, especialmente os
mais oprimidos e oprimidas. O modelo
de sociedade que buscamos
para nos identificar é o quilombo,
que foi destruído pelo sistema – era
acolhedor e com lugar e voz para
todos e todas”, destaca.
O mestre afirma que é urgente
a criação de políticas públicas para
que a capoeira não reproduza o
sistema, entrando na lógica do capital.
“Se ela for mercadoria, vamos
reproduzir o que querem que façamos.
Capoeira é filosofia, ciência,
história e traz todo o conhecimento
que nossos ancestrais deixaram.
Manter vivo o legado deixado pelo
povo escravizado é necessário. O sistema
quer massacrar todos que não
conseguem se proteger – indígenas,
mulheres, idosos, crianças, pessoas
com deficiência. O conhecimento
nos ajuda a criar estratégias para
desconstruir isso e transformar
verdadeiramente a realidade. As
políticas públicas são um caminho.
Todos pagamos impostos, o governo
precisa se preocupar com a cultura
do povo, pois é ela que vai nos fazer
caminhar”, afirma.
Assim, uma das demandas dos
grupos de capoeira em Belo Horizonte
tem sido a criação de um Centro
de Referência de Capoeira. “Lá
teremos livros, escola de capoeira
com diferentes grupos, espaço para
eventos, reuniões. Um processo de
acolhimento do nosso povo com
formação e informação na luta
pela transformação da sociedade.
Temos feito essa reivindicação,
mas até hoje não recebemos apoio
governamental”, diz.
O mestre destaca que, nos governos
Lula e Dilma Rousseff, a
valorização da capoeira começou
a avançar. Em 2008, foi registrada
pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (Iphan)
e em alguns estados começou a se
pensar em planos de salvaguarda
para manter, difundir e preservar
as tradições, as memórias e
a ancestralidade imbuídas nessa
manifestação. Em 2014, ela se
tornou a quinta manifestação cultural
brasileira reconhecida pela
Unesco como Patrimônio Cultural
Imaterial da Humanidade. “Mas
pouco avançou, porque nem todos
percebem a importância dessa
discussão política. Aqui, estamos
num bom diálogo com o Iphan
na tentativa de conquistarmos
políticas públicas”, afirma. De
acordo com a antropóloga Vanilza
Rodrigues, técnica da área de Patrimônio
Imaterial do Iphan/MG,
a partir do reconhecimento da capoeira
como Patrimônio Imaterial,
o Instituto vem trabalhando para
a salvaguarda, que visa garantir
a continuidade da tradição. “Esse
trabalho só é possível com a participação
e mobilização dos próprios
grupos de capoeira que apontam
as demandas. Juntos, traçamos um
planejamento das ações prioritárias”,
conta. Na sua avaliação, esse
processo tem sido uma rica troca,
pois “o Iphan vai conhecendo os
grupos, o valor dessa tradição, e os
grupos vão aprendendo como acessar
o pouco que existe de políticas
públicas e como se organizarem
para demandar”.
Hoje, cada Iphan estadual se responsabiliza
pelo seu trabalho. No
início do processo de salvaguarda
da capoeira, as ações eram centralizadas
na Fundação Palmares, Iphan
e Ministério da Cultura, em Brasília.
Foi quando o Ministério criou
o prêmio Viva meu Mestre que destinava
uma bolsa, um prêmio para
um mestre reconhecido pelo seu
trabalho desenvolvido até então.
“No Ceará e em Pernambuco, temos
exemplos dessas políticas de reconhecimento
dos mestres, uma ação
direcionada para uma pessoa física.
Mas, em geral, o que vem sendo feito
são ações programadas de forma
coletiva e descentralizadas em cada
estado”, diz Vanilza Rodrigues.
/ Palestina Israel
Revista Elas por Elas - março 2020
25
/ Mirela Persichini
26
Revista Elas por Elas - março 2020
Cultura
Pretas protagonistas
Mulheres constroem um novo tempo de liberdade por meio da arte
por Débora Junqueira
“O tempo dirá nossas vitórias.
O tempo é o senhor das vozes. O
tempo liberdade é agora”. Esse
é um trecho da canção Tempo
Liberdade, composição do Coletivo
Negras Autoras, grupo musical e
teatral de Belo Horizonte, formado
por Júlia Tizumba, Elisa de Sena,
Manu Ranilla, Nath Rodrigues e
Vi Coelho.
O Coletivo Negras Autoras faz
parte de uma transformação poderosa
na cena artística preta de
Belo Horizonte e de outras cidades
do país, onde grupos de música, teatro,
dança e artes visuais, principalmente
de mulheres negras com
consciência política, reacendem a
esperança para um mundo com menos
desigualdade de gênero e raça.
O coletivo existe há cinco anos,
com criações autorais a partir das
experiências pessoais das integrantes,
todas mulheres negras que carregam
em suas histórias pessoais a
dor e a beleza da herança cultural
afro-brasileira. “Produzimos uma
arte a partir da nossa visão de mundo.
A história das mulheres negras
sempre foi contata por outras pessoas
que não eram negras. A gente
mostra as mulheres reais, que
acordam cedo e têm que lutar”,
afirma a instrumentista, cantora e
compositora Nath Rodrigues, integrante
do Coletivo Negras Autoras.
Nath explica que os processos
de montagens dos espetáculos funcionam
como verdadeiras sessões
de terapia e que as apresentações
instigam a uma reflexão sobre racismo
e gênero. “Nossas discussões
no grupo geraram maior consciência
para todas nós do que é ser uma
mulher preta no Brasil hoje. Ou
seja, entendemos que a gente sofreu
um longo processo de subalternização
e silenciamento, viveu um
processo de servidão e que a objetificação
do nosso corpo, com uma
imagem associada à sexualidade,
Revista Elas por Elas - março 2020
27
/ Pablo Bernardo
Revolução em curso
permanece. Para mim, a arte é um
facilitador da tomada de consciência
sobre essa trajetória e um instrumento
para criar novas possibilidades”,
opina.
conduzidas por mulheres negras
que representam boa parte da cultura
brasileira. Ela acredita que
nos coletivos há uma forma mais
democrática e mais plural de organização
Soraya lembra que as mulheres
negras sempre produziram trabalhos
de altíssimo nível em todas as
áreas da sociedade e cita a conceituada
escritora mineira Conceição
Evaristo. “A escola é que não ensina
isso pra gente. O negro aparece
como escravizado e não como um
grande ator como Grande Otelo ou
um ótimo crítico como Muniz Sodré”,
evidencia.
Para ela, a sociedade está começando
a olhar para essa parcela da
população que sempre esteve presente,
mas de forma invisibilizada
e não reconhecida. “O problema é o
racismo. Os espaços sempre foram
ocupados. O racismo estruturante
reflete tanto na arte quanto na
educação. É só pensar em quantas
pessoas negras estão em posições
de gestão nas escolas”, exemplifica.
Outra mulher negra que acompanha
a cena artística em Belo Ho-
e destaca a importânrizonte
é a professora e realizadora
Formamos uma teia entre nós cia de pensar a arte como um lugar
político-estético e educativo. “A ta (foto). Como professora do cur-
audiovisual Tatiana Carvalho Cos-
“As pessoas querem se juntar
para produzir arte, principalmente
nesse momento político instágro.
Gosto de pensar que, além da sitário, em Belo Horizonte, coorde-
resistência é inerente ao povo neso
de cinema de um Centro Univervel.
Voltar na raiz para entender resistência, a gente tem que criar na o projeto de extensão Pretança
os problemas de hoje”, descreve uma educação que seja artística e - Afrobrasilidades e Direitos Humanos.
Para Tatiana, essa potência la-
Nath, lembrando que há uma onda uma arte reflexiva para compartilhar
o possível. Arte e política antente
na juventude negra brasilei-
de coletivos na capital mineira dialogando
a partir da arte. “Vejo os dam juntas. Portanto, tento engajar
tanto os meus alunos/as quanto conta do investimento feito na edura,
que reflete nas artes, ocorre por
coletivos como pequenos quilombos,
cada um tem a sua forma de o público do teatro para terem um cação nas duas últimas décadas. “O
se organizar, de pensar e dizer. E pensamento crítico e para promover
a mudança dos padrões impossidades
em áreas marginalizadas,
governo federal construiu univer-
quando a gente consegue conversar
é muito interessante. Um bebe tos pela sociedade, que é o padrão sobretudo no Nordeste e fora dos
na fonte do outro”, completa. da brancura. Precisamos sair da reprodução
do modo hegemônico de gramas que facilitaram o ingres-
eixos econômicos, além dos pro-
Para a atriz e pesquisadora de
teatro Soraya Martins, Belo Horizonte
é um polo de organizações na arte”, defende.
em escolas particulares, como
pensar, tanto na educação quanto so de pessoas negras, faveladas
o
Programa de Financiamento Estudantil
(Fies) e o Programa Universidade
para Todos (ProUni). O acesso
das pessoas à educação, sobretudo
no campo das artes, mostra que há
uma revolução em curso no Brasil
que não tem volta”, afirma.
Ela destaca a importância do papel
da arte não só para a construção
de narrativas como de ocupação
de espaços. “Na década de 40, a
ideia do movimento negro era ocupar
esse espaço. Nas artes cênicas
teve um movimento artístico, intelectual
e político muito forte, com
o jornalista Abdias do Nascimento,
quando se destacou a primeira
atriz negra Ruth de Souza. A partir
daí, houve um grande número de
pessoas negras ocupando espaços
nas artes”, conta Tatiana.
Cinema negro: poucas
mulheres no elenco
e na direção
Segundo a professora Tatiana
Carvalho, em termos de produções
artísticas, há uma multiplicidade
muito grande de artistas negros fazendo
cinema, mas, ainda, há muita
desigualdade de gênero e raça,
principalmente nos espaços de liderança.
Ela lembra que a primeira
mulher negra roteirista e diretora
de filme que rodou em circuito
comercial foi Adélia Sampaio, em
1984, com o filme Amor Maldito. “Se
considerar a época do nascimento
do cinema no Brasil, demorou mais
de 80 anos para isso acontecer. Somente
em 2017, surgiram mais mulheres
negras no circuito comercial,
entre elas as cineastas Camila de
Morais e Glenda Nicássio”, relata.
Um levantamento feito pelo Grupo
de Estudos Multidisciplinares da
Ação Afirmativa (Gemaa), da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ), mostra que, de 2002 a 2014,
homens brancos dominaram o elenco
principal das 20 maiores bilheterias
de cada ano. Ao todo, eles representam
45% dos papéis mais relevantes.
Depois vêm mulheres brancas
(35%), homens negros (15%) e,
por último, mulheres negras (apenas
5%). Em 2002, 2008 e 2013, simplesmente
nenhum filme analisado
pelos pesquisadores foi protagonizado
por uma mulher negra.
A discrepância é mais gritante
quando se olha para os diretores
e roteiristas: 84% dos cineastas
são homens brancos; 14%, mulheres
brancas; e 2%, homens negros.
E nenhuma diretora negra
aparece no comando de uma produção
de grande bilheteria nos 13
anos analisados pelo estudo. Também
não assinou roteiro algum.
“
Nenhuma
diretora negra
aparece no
comando de
uma produção
de grande
bilheteria...”
Um levantamento da Agência Nacional
do Cinema (Ancine) apontou
que nenhum filme foi dirigido ou
roteirizado por uma mulher negra
no ano de 2016. Dados que representam
um marcador importante
de desigualdade.
Por sua vez, como consequência
das políticas sociais e culturais
e barateamento de equipamentos,
cresceu a produção de curtas-metragens
e festivais de cinema que
cada vez mais se preocupam com a
representatividade das pessoas negras
e com a temática étnico-racial
nas telas. Tatiana Carvalho, realizadora
do filme Minha África Imaginária,
a ser lançado em 2021, e jurada
em festivais de cinema, conta
que, na sua última edição, o Festival
de Cinema de Tiradentes passou
a pedir declaração de raça dos
participantes. O resultado foi que
menos de um terço eram filmes dirigidos
por pessoas que se autodeclararam
negras.
Segundo a professora, pode-se
afirmar que a ascensão de movimentos
artísticos contra-hegemônicos
no Brasil deve-se a quatro fatores:
maior acesso às universidades;
ascensão econômica da classe
C; crescimento dos festivais de cinema,
inclusive de cinema negro, e
o papel das redes sociais no debate
sobre feminismo negro que se dissemina
em lugares onde não se ouvia
falar antes.
Tatiana acredita que essa ascensão
socioeconômica que reflete
na arte gerou uma reação de setores
conservadores da sociedade.
“Há uma disputa narrativa, a pós-
-verdade instaurada que o atual
Revista Elas por Elas - março 2020
29
governo federal representa e que
tenta sobrepor no discurso uma realidade
que não tem volta, pois há
um movimento difuso em todas as
regiões do Brasil com jovens fazendo
arte, mostrando a cara para reivindicar
seus direitos”, opina.
Caminhos da arte
contemporânea
Para Tatiana Carvalho, muitos
dos filmes vão reproduzir, tanto no
conteúdo como no jeito de fazer discursos,
as pautas do movimento negro,
como o genocídio da juventude
negra, a violência contra a mulher
negra, a solidão da mulher negra,
a participação da mulher negra
na universidade, entre outras. “Mas
o que observei é que há filmes de
pessoas negras que querem falar de
outros temas. Porque há um estigma
com as pessoas negras que fazem
arte, que é um reflexo do racismo
na nossa sociedade, como se
pessoas negras artistas só pudessem
falar de negritude. Claro que
as pessoas brancas artistas falam
de branquitude sem se dar conta
disso, porque falam de seus privilégios,
seus lugares de poder, sem entender
que estão reproduzindo esse
lugar de poder, porque a branquitude
não se racializa”.
Em relação ao movimento de
arte engajada no Brasil, Tatiana
explica que não é cinema de super-herói
da Marvel ou teatro com
ator e atriz da Globo, mas há um
sentido revolucionário que, por
meio de movimentos organizados
ou não, promovem um importante
diálogo cultural em vários lugares
do país. “A grande importância
dessa produção artística negra é
dizer que branco não é sujeito universal
e que essa é uma posição
de privilégio que conta o sistema
todo para se manter nesse lugar.
Como disse a artista mineira Grace
Passô, a arte mais interessante
produzida no mundo hoje vem de
artistas pretas e pretos com consciência
racial e que conseguem
compreender esse contexto histórico
de construção de hierarquia,
da opressão e do simbólico, para
desarticular a máquina opressora.
Um movimento que produz obras
muito potentes e mostra o caminho
que a arte contemporânea
está tomando no teatro, na música,
nas artes visuais”, comemora.
/ Pablo Bernardo
/ Projeto Segunda Preta
30
Revista Elas por Elas - março 2020
Preta ou negra?
Na reportagem foram utilizadas
as duas nomeclaturas:
preta e negra, conforme a fala
das próprias entrevistadas.
O termo preto, que se refere
a cor da pele de seres humanos,
pode significar um xingamento
racista para alguns.
Portanto, a ideia de utilizá-lo
como um sinônimo para negro
é se apropriar do termo
como algo positivo e ressignificá-lo
dentro de uma disputa
no plano simbólico. Conforme
as fontes, uma demanda política
num país onde o racismo
ainda predomina.
Como explica a professora
Tatiana Carvalho, existe uma
discussão no movimento negro
em relação à autodeclaração
de raça definida na metodologia
do IBGE para o Censo
da população brasileira. “Negro
no Brasil é quem se autodeclara
preto ou pardo. Só que
a ideia de pardo é um pouco
confusa, porque diz da miscigenação
brasileira e, em certo
sentido histórico, tem a ver
com um projeto eugenista, que
prevê a ‘melhoria da raça’ no
Brasil, pretendendo a miscigenação
pelo branqueamento da
sociedade. A ideia de se referir
ao nome preto como algo positivo
é uma demanda política,
porque foi a pretidão alvo de
sucessivas políticas públicas
de estado de extermínio do
povo negro”, afirma Tatiana.
Quilombos culturais
Cinema
NOIRBLUE
Direção: Ana Pi
27min. Minas Gerais/França/2017
No continente africano, Ana Pi se reconecta
às suas origens através do gesto
coreográfico, engajando-se num experimento
espaço-temporal que une o
movimento tradicional ao contemporâneo.
Em uma dança de fertilidade e
de cura, a pele negra sob o véu azul se
integra ao espaço, reencenando formas
e cores que evocam a ancestralidade,
o pertencimento, a resistência e
o sentimento de liberdade.
Ana Pi nasceu em Belo Horizonte. É
uma artista coreográfica e da imagem,
pesquisadora das danças urbanas,
dançarina contemporânea e
pedagoga.
https://anazpi.com/
Produtora audiovisual
RENCA INTERAÇÕES E
PRODUÇÕES CULTURAIS
Produtora de audiovisual formada por
três jovens negras da periferia de Belo
Horizonte, com a proposta de envolver
a comunidade na construção das
produções.
@rencaproducoes
Teatro
SEGUNDA PRETA
Projeto idealizado por artistas negros
e negras de Belo Horizonte, que acontece
em temporadas no teatro Espanca,
com apresentações artísticas e
debates acerca da cena contemporânea
negra.
http://segundapreta.com/
Internet
ALMA PRETA
Agência de jornalismo especializado
na temática racial do Brasil.
www.almapreta.com
Música
COLETIVO NEGRAS AUTORAS
Tempo Liberdade
Meu olhar riscou o mundo
Avistei foi liberdade
Sou kilumba, sou rainha Nzinga
Me disseram que o sol vai
Me disseram que o sol vem
Me disseram que o sol vai curar
Toda essa história
Curar
Toda essa história
Queima a pele de Maria
Maria que foi menina
Menina que foi pra lá trabalhar
Menino de erê te guarda
Do lado um anjo da guarda
Sentinela guia o seu caminhar
O tempo lavou a alma enfim
O tempo dirá nossas vitórias
O tempo é o senhor das vozes
O tempo liberdade é agora
@negrasautoras
Revista Elas por Elas - março 2020
31
/ Mid[ia Ninja
/ Mídia Ninja
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Revista Elas por Elas - março 2020
Cultura
Mulheres demarcam
espaço também no
mundo da música
por Mariana Viel
A resistência das mulheres para
ocupar, em pé de igualdade com
os homens, os mais diversos espaços
sociais também é uma realidade
na música. Se no passado os estudos
para elas eram voltados para
instrumentos tidos como mais “femininos”
e “delicados”, como o piano,
o violino e até mesmo o canto,
hoje as mulheres encaram instrumentos
como o pandeiro, o surdo,
o tantan e o tamborim com desenvoltura
e propriedade peculiares.
Solange Caetano, percussionista
e mestra de bateria do Bloco do Bigode
e do Bloco Samba, Beth trocou
as bandejas que usava para servir
os clientes no Bar Opção pelas platinelas
do pandeiro. “Eu era garçonete
e sabia fazer o básico do pandeiro.
Eu servia as mesas e quando
voltava com a bandeja vazia ia treinando.
Um dia um dos pandeiristas
do grupo não pode ir e eles me
convidaram para tocar. Toquei a
noite toda com a mão doendo, mas
pensava: ‘tenho que tocar, porque
se não vou ter que ir lá servir’. A
partir desse dia, sempre que faltava
alguém eles me chamavam. Até
que surgiu o convite para que eu
participasse oficialmente do grupo.
E lá se vão 15 anos de percussão”.
Filha de um seresteiro e casada
com um sambista, Solange rapidamente
começou a cantar e estudar
outros instrumentos como o surdo,
o tamborim, o chique-chique e o
ganzá. “Meu pai tem um bar e nós
Revista Elas por Elas - março 2020
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fazíamos um grito de carnaval com
alguns amigos. Só que a coisa foi
expandindo tanto que tivemos que
montar um bloco. Então me convidaram
para ser regente e tive que
aprender a tocar os instrumentos
de bloco de rua também: caixa, timbal,
repinique, rocar. Tudo pra mim
foi na base do ter que aprender”.
Com apenas 10 anos de idade,
a percussionista Fabíola de Paula
começou a acompanhar o pai,
pandeirista, em rodas de samba e
se apaixonou pela percussão. Através
do reco-reco, ela abriu caminho
para participar das rodas, majoritariamente
masculinas. “No começo,
eu percebia os olhares diferentes.
Ainda é difícil para muitos homens
admitir que uma mulher pode
sentar para tocar. Normalmente
eles pensam nas mulheres como
participações em duas ou três
músicas”.
Para Solange (foto), a identificação
da percussão com o mundo
dos homens é simplesmente uma
questão de espaço. “Não acho que
a percussão seja mais masculina.
Eles podem achar isso, mas eu
não acho. Os homens têm mais
oportunidades, mas conheço mais
mulheres percussionistas”, afirma
a mestra de bateria.
Os exemplos das mulheres percussionistas
são inspiração fora do
mundo da música. “Uma vez outra
mulher me chamou depois de um
show para falar que era chefe de
um departamento que só tinha
funcionários homens. Ela disse
que sempre se sentiu um pouco
inibida em comandar uma equipe
masculina, mas, que depois que me
viu participar de uma roda só de
homens, ficou mais confiante. Foi
muito importante ouvir isso. Nós
precisamos estar onde quisermos”,
relata Fabíola.
A percussão como forma
de resistência
Para mais de uma centena de
mulheres que integram o coletivo
percussivo As Panderista, a
percussão é forma de resistência.
“Além da vivência do instrumento,
os encontros do grupo são momentos
que proporcionamos, entre nós,
mulheres, de todas as idades, de vários
lugares, autoras da nossa própria
história, que se reúnem para
somar, tocar e trocar experiências
pelas praças da cidade. Cada uma
com sua singularidade”, explica a
musicista e percussionista Manu
Ramilla, idealizadora do coletivo.
A página oficial do grupo no Facebook
explica que o artigo definido
vem no plural ‘As’ e o substantivo
/ Paulo Guerra
34
Revista Elas por Elas - março 2020
no singular ‘Panderista’, pois “cada
mulher, tem sua história e sua
luta, que são únicas”. Manu conta
que a participação nas rodas de
pandeiro é cíclica. No carnaval passado
(2019) elas reuniram 138 mulheres
pandeiristas. O projeto nasceu
como forma de resistência à
dificuldade das mulheres terem
acesso ao movimento musical. “Em
2016, quando começamos o coletivo,
nós tínhamos muitas dificuldades
em entrar em rodas de choro,
por exemplo. Temos relatos inclusive
de mulheres que foram hostilizadas
em algumas rodas de choro”.
Além dos encontros periódicos,
o coletivo também participa de
atos públicos em defesa da democracia,
como as manifestações do
“Ele Não”, durante a campanha
presidencial de 2018 e o Dia Internacional
da Mulher. “Temos
uma vertente política de esquerda,
mas também temos experiências
com mulheres de outras posições.
Nossos encontros são momentos
de diálogo e reflexão e essa convivência
é muito importante e rica”,
enfatiza Manu.
Fundado há cerca de um ano e
meio por moradores dos bairros da
região Oeste da capital mineira, o
Bloco Sou Vermelh@ é um exemplo
da disposição das mulheres para a
luta. Para a psicóloga e idealizadora
do bloco, Neide Maria Pacheco,
as mulheres têm se colocado cada
vez mais como protagonistas dos
movimentos sociais. “Começamos
a ir pra rua com poucos componentes.
E, cada vez que íamos para
as manifestações, recebíamos mais
pessoas que queriam participar.
“
“No começo,
eu percebia os
olhares diferentes.
Ainda é difícil
para muitos
homens admitir
que uma mulher
pode tocar”
Queremos mostrar que batucada
não é só para homem. Fazemos
música e luta”.
Apesar de não ser um bloco de
participação exclusiva feminina,
as mulheres são maioria absoluta
no Sou Vermelh@. “Acho que as
mulheres têm tido mais disposição
para a luta e têm se colocado como
protagonistas dos movimentos.
Somos um grupo muito solidário
e, mesmo não possuindo uma
hegemonia de pensamento político,
nosso mote é de esquerda”, afirma
ao ressaltar que foi intensa a
atuação do grupo na campanha
Lula livre.
/ Mariana Viel
Revista Elas por Elas - março 2020
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/ Daniel Cima
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Revista Elas por Elas - março 2020
Cultura
Lutas que
atravessam fronteiras
Coletivo de comunicação do México lança série audiovisual que retrata o
protagonismo das mulheres em distintas lutas pelo mundo. Um convite à
reflexão sobre a pluralidade em torno da resistência feminista.
por Carina Aparecida
Comandanta Ramona: referência
na luta do Exército Zapatista
de Libertação Nacional no México,
que impulsionou a luta dos povos
indígenas na construção da autonomia.
Emma Goldman: de origem
judia e com pensamentos libertários,
ela desafiou a ordem
estabelecida e chegou a ser considerada
a mulher mais perigosa
dos Estados Unidos. Berta Cáceres:
hondurenha que lutou intensamente
contra megaprojetos em
seu país, assassinada por enfrentar
a lógica predatória do sistema
capitalista. Mulheres curdas: um
exército de corações e punhos erguidos
pela libertação do povo curdo,
em uma construção autônoma
anticapitalista e anti-patriarcal.
Marichuy: ativista e médica tradicional
do povo Nahua, primeira
mulher indígena a se candidatar
às eleições presidenciais do México.
Angela Davis: ativista estadunidense,
referência na luta antirracista,
antiprisional e na construção
do feminismo interseccional.
Essas mulheres vêm de distintos
lugares e realidades, mas se encontram
na série audiovisual “Mujeres
que luchan”, produzida pelo
Coletivo de Comunicação Koman
ilel, que atualmente tem sua sede
na cidade de San Cristóbal de las
Casas, Chiapas, México. Os/as integrantes
falaram sobre o processo
de realização, mas preferem não
se identificar de forma individual,
e sim coletiva, o que reflete a proposta
do próprio nome do coletivo.
Koman ilel, em uma das variações
da língua indígena tzotzil, significa
fazer com o olhar de todos e todas.
O coletivo conta que a inspiração
para realizar a série surgiu a
partir do I Encontro Internacional
das Mulheres que lutam, em 2018.
Revista Elas por Elas - fevereiro 2020
37
O Encontro foi convocado pelas mulheres
do Exército Zapatista de Libertação
Nacional (EZLN), movimento
em resistência à discriminação
e marginalização de comunidades
indígenas dos povos originários
no estado de Chiapas. O movimento
nasce publicamente com um levantamento
armado em 1994 e, desde
então, mantém a luta por educação,
saúde, independência, liberdade,
justiça e paz, a partir da construção
autônoma em várias comunidades
organizadas no estado.
Formado majoritariamente por
homens, os/as integrantes do Coletivo
dizem que o Encontro das Mulheres
Zapatistas provocou uma
reflexão sobre qual poderia ser a
contribuição deles na difusão das
resistências protagonizadas por
mulheres. “Por isso que quando
pensamos a ideia da série, vimos
que, como homens, necessitamos
aprender a ser mais sensíveis, buscando
essa construção junto às
companheiras”, afirmam. Os integrantes
contam que no início do
processo perceberam que sabiam
muito pouco da história de luta
das mulheres, o que se tornou um
desafio, já que primeiro foi preciso
aprofundar e conhecer essas trajetórias
para depois compartilhar.
E a realização também foi pensada
de forma coletiva, com a participação
inclusive de pessoas de
outras nacionalidades. “Não queremos
demarcar, colocar critérios,
queremos justamente que se veja
as distintas formas de luta dessas
mulheres, lutas muitas vezes cotidianas.
Então não queremos ter
controle sobre isso, reforçando que
/ Marichuy: primeira indígena a se candidatar às eleições presidenciais do México.
/ Eneas De Troya
38
Revista Elas por Elas - março 2020
só os homens podem contar a história
das mulheres. Queremos que
seja um processo aberto, que se vá
contando mais histórias de companheiras”,
defendem.
Eles contam que já traziam a
crítica de como sempre houve invisibilidades
históricas, sobretudo
vivendo no estado Chiapas, com
relação à discriminação dos povos
originários. “Dedicamos um tempo
para pensar isso, como nos toca?
Como refletimos e como nos posicionamos?
É importante contar
o que não se vê, desde um espaço
hegemônico, como o sistema patriarcal,
colonial, capitalista tem
mantido principalmente as mulheres
apartadas”.
A empatia no olhar
Uma das integrantes do Coletivo
é a jovem mexicana Gabi Avi, que
além de realizadora audiovisual é
fotógrafa e em seu trabalho traça
reflexões sobre as representações
das vidas e resistências femininas.
Gabi compartilha que uma de suas
inquietações é pensar que, somente
após a morte, algumas mulheres
sejam reconhecidas em suas trajetórias
e relembra o massacre no
município de Atenco, México, em
2006, quando dezenas de mulheres
foram violentadas e presas em
um processo forte de repressão policial.
A luta era contra a construção
de um aeroporto, que afetaria
diretamente a população. “Fui vendo
o quanto a vida delas foi mudando
depois de tudo isso. Uma delas,
que é arquiteta, já não podia pegar
em um lápis, de tanto que machucaram
sua mão. Então me interessa
também olhar para elas, falar também
de mulheres que não se dizem
feministas, mas que na prática
são, porque estão lutando pela
vida, pela resistência”, defende.
Gabi afirma que a realização de
uma obra que reflita a vida dessas
mulheres exige um cuidado e um
respeito profundo às suas histórias.
Para ela, é necessário um esforço
em construir junto o que está
sendo dito nessas narrativas. “E ver
também como elas querem ser representadas.
Nós as vemos como
mulheres que lutam, mas e elas?
Como se veem? Escolhemos essas
mulheres e entramos no processo
de escrever o roteiro, o que também
é muito complicado, porque é
um desafio falar delas sem vitimização”,
pontua.
Falar das dores, mas também
da força e dos aprendizados. Para
Gabi, a produção de vídeos que
“
Para mim é
importante passar
uma alegre rebeldia,
ver as coisas belas
que elas estão
fazendo. E não
para invisibilizar
a tristeza, mas
porque também é
importante ver o
lado da beleza”
relatam essas experiências precisa
questionar a representação que historicamente
sustenta a fragilidade
feminina. “Para mim é importante
passar uma alegre rebeldia, ver as
coisas belas que elas estão fazendo.
E não para invisibilizar a tristeza,
mas porque também é importante
ver o lado da beleza”, ressalta.
Ocupando espaço
Poder acessar a história de diversas
mulheres é uma conquista
frente ao histórico privilégio dado
aos homens. Vê-las do outro lado
das câmeras, podendo construir essas
narrativas, é um passo essencial
contra a desigualdade de gênero. A
partir da sua própria realidade e vivência,
também no campo da fotografia,
Gabi reflete sobre a importância
de ocupar o espaço da construção
simbólica. “Comecei a fotografar
com o ensinamento de que
retratamos o outro mas, ao mesmo
tempo, nós mesmos, quem somos.
Me lembro de uma marcha que fizemos
depois de um caso de feminicídio,
o assassinato de uma mulher
em situação de rua. Me senti
em um grande dilema, se guardava
minha câmera para acompanhar as
outras mulheres gritando, pintando
os muros, mostrando minha raiva
ou se eu ia tirando fotos, sentindo-me
um pouco distante. Mas há
um aviso do coração, de entender
os momentos que você deve registrar
e os momentos que deve estar
entre as pessoas. E as fotos também
têm me ajudado a mostrar que meu
corpo está ali presente”, relata.
Para ela, a realização de vídeos
e fotografias é uma forma também
Revista Elas por Elas - março 2020
39
de animar outras mulheres a tomarem
as ferramentas que são ditas
como sendo dos homens. “Não
é uma competição, mas sabemos
que podemos fazer sim e com nossa
sensibilidade, nosso olhar, nossa
forma de ver, assumindo nossos
diversos lugares, condições”,
completa. Sobre a série “Mujeres
que luchan”, Gabi conta que foi
um aprendizado constante acessar
essa pluralidade de resistências,
o que fez com que ela se sentisse
mais perto de cada realidade
vivida por essas lutadoras. “A
Emma Goldman vem de outra realidade,
mas criei uma identificação
com sua forma de luta. E sinto
que a série inspirou outras mulheres
também. A exibição do vídeo da
Comandanta Ramona nas comunidades
indígenas, por exemplo, por
mais que não tenham conhecimento
do Zapatismo ou de experiências
autônomas, gera um grande impacto.
Conhecer a história dessa mulher
indígena, que teve tanta força
de até seu último dia seguir lutando
por um mundo melhor, é inspirador”,
destaca.
/ Sonja Hamad
A coletividade na luta
das mulheres
O coletivo komal ilel afirma que
a ideia é seguir com a produção da
série, visibilizando a vida de outras
mulheres. Uma delas é Bety Cariño,
lutadora mexicana de origem mixteca,
defensora da soberania alimentar,
recursos naturais e da autonomia
dos povos indígenas. Em
2010, Bety foi assassinada por paramilitares
quando integrava uma
caravana de ajuda humanitária.
/ Ensaio com mulheres curdas, da fotógrafa Sonja Hamad
40
Revista Elas por Elas - março 2020
Sua irmã, socióloga e também defensora
de direitos humanos, Carmen
Cariño, atualmente vive no
México e compartilha reflexões sobre
o protagonismo das mulheres
em diferentes trincheiras. Sobre o
legado de Bety, Carmen afirma que
ela formou parte desses processos,
entre pessoas que constroem um
mundo onde caibam muitos mundos,
mulheres que cotidianamente
estão construindo o sonho de
transformar a realidade de opressão,
exclusão, racismo, de despejos
dos territórios, da vida, dos povos.
“Ela estava articulada em muitas
redes de ação, como por exemplo a
que luta contra os projetos de mineração
e outros megaprojetos em
toda a América Central, contribuindo
com as organizações comunitárias,
com os direitos das mulheres,
sempre vinculados com os direitos
coletivos dos povos, direito à autonomia,
direito de decidir. Ela segue
na luta pela água, contra a mineração,
contra os megaprojetos —
aí está ela! Sua memória está viva,
está vivo o seu pensamento e seu
trabalho. Um trabalho que os companheiros
e as companheiras reconhecem,
porque sempre foi comprometido,
buscando destruir a
raiz desse sistema capitalista, colonialista
que persiste em nossos territórios”,
relata.
Para Carmen, produções como a
série “Mujeres que luchan” são importantes
porque rompem com um
silenciamento histórico que serve
ao capitalismo, ao racismo, ao patriarcado
e que reproduz a ideia
de que as mulheres são incapazes
de falar, pensar, lutar. Carmen
também destaca que as lutas apresentadas
não podem ser entendidas
de forma individual, já que, em
todas essas trajetórias, trata-se de
resistências coletivas e, em alguns
casos, comunitárias. “Berta Cáceres
(lutadora hondurenha presente
na série) disse: ‘nossa luta é contra
o patriarcado, nossa luta é contra
o sistema capitalista e contra esse
sistema racista que quer exterminar
a gente, que está acabando com
a vida do planeta’. Não estamos falando
de um olhar individualista
ou de um tema exclusivo de mulheres.
Angela Davis também está
falando de uma luta muito importante
nos Estados Unidos, a do povo
afroamericano, com uma história
muito forte de escravização, mas
também de resistência. Está falando,
sim, da violência contra as mulheres,
mas está falando também
de muitos elementos que se compartilham
com os homens que dividem
essa realidade”, explica.
“
nossa luta é contra
o patriarcado, nossa
luta é contra o sistema
capitalista e contra
esse sistema racista
que quer exterminar
a gente, que está
acabando com a vida
do planeta”
Feminismo Descolonizado
A visibilização da vida de mulheres
indígenas e negras coloca em foco
a urgência de se debater a diversidade
que nasce do feminismo. Ou
melhor, dos feminismos. Carmen
Cariño, que também integra o Grupo
Latino Americano de Estudos e
Ações feministas (uma coletiva em
que participam mulheres afrodescendentes
e indígenas de vários países
da América Latina e Caribe) explica
sobre a contribuição do feminismo
denominado descolonizado.
“Não se trata de qualquer feminismo,
mas sim uma proposta de descolonizar
o feminismo. Existem várias
propostas e elas têm uma raíz muito
importante na América Latina e no
Caribe, com influência muito forte
do feminismo negro, do feminismo
indígena, camponês, popular”, destaca.
Segundo Carmen, existe uma
crítica a como o feminismo hegemônico
e universalista tem pensado
as relações de gênero, analisando
a opressão das mulheres somente
a partir do patriarcado. Para ela,
o feminismo que nasce a partir da
Revolução Francesa, no século XIX,
na Europa, responde a um contexto
específico, à demanda de mulheres
em um momento determinado. “Assim
parece que a luta das mulheres
começa com esse feminismo. E não.
A luta das mulheres tem uma história
muito mais ampla, de vários séculos
atrás e creio que aí é importante
apostar em processos de descolonização
que vão para além do
feminismo”, afirma.
Carmen destaca que “não podemos
pensar a luta das mulheres
fora do processo de colonização e
Revista Elas por Elas - março 2020
41
colonialismo que persiste nos dias
de hoje e que nos faz desiguais,
construindo uma hierarquia na
qual há mulheres que têm se colocado
não só acima de outras mulheres,
mas também de outros homens
dentro da hierarquia social.
E não se trata apenas de pensar as
opressões desde a questão de gênero,
mas também sexo, classe e
raça”, defende.
Para Carmen, o feminismo hegemônico
muitas vezes pode contribuir
no silenciamento de outras
mulheres, vindas de realidades,
lutas e vivências distintas. “Por
exemplo, essas mulheres que têm
suas histórias contadas na série
também têm sido silenciadas. Isso
é perigoso, porque limita nosso
olhar sobre a luta das mulheres e
faz com que muitas vezes a gente
negue que essas mulheres também
estão lutando desde uma perspectiva
muito mais ampla. Silenciar essas
mulheres é continuar invisibilizando
que a luta vai além do patriarcado
e que muitas mulheres
têm visto, denunciado e têm muita
noção do quanto essa luta é muito
maior, mais ampla. É abaixo, à esquerda,
contra o racismo, contra o
patriarcado e contra o sistema capitalista”,
afirma.
Continuidade
Com a proposta de seguir com
a produção da série, abordando a
vida de outras lutadoras, os/as integrantes
do Coletivo Koman Ilel
demonstram interesse em também
dar visibilidade à trajetória
/ Eneas De Troya
42
Revista Elas por Elas - março 2020
de Marielle Franco, em colaboração
com pessoas do Brasil. “A produção
audiovisual para nós não é
um fim em si mesma, é uma ferramenta
para algo, é uma construção”,
destacam.
A série já está disponível na plataforma
YouTube, com tradução
em português, francês e inglês. A
todos/as que agora se sentem convidados/as
a saber mais sobre a trajetória
dessas mulheres, é só acessar
o canal do Coletivo:
youtube.com/ColectivoKomanIlel
/ Sonja Hamad
Revista Elas por Elas - março 2020
43
/ Arquivo
44
Revista Elas por Elas - março 2020
Diversidade
Homofobia:
Combater preconceitos é uma expressão da luta pela liberdade
por Mariana Viel
A modelo e estudante Cristal
Martinno viu a internet se transformar
em uma ferramenta criminosa
de disseminação de ataques
homofóbicos e transfóbicos depois
que uma foto sua e de outras alunas
atendidas pela ONG TransVest foi
publicada em um portal de notícias.
A matéria simplesmente relatava a
atuação educacional e as dificuldades
financeiras que a organização
não governamental – que não recebe
nenhum tipo de recurso público
– atravessa. “Fiquei assustada com
os comentários da matéria. Eram
ofensas gratuitas, inacreditáveis e
era a minha foto que estava lá. Era
a minha imagem e todas aquelas
agressões. O Brasil é o país que mais
mata pessoas trans no mundo. Ler
todas aquelas coisas é assustador”,
relembra a estudante.
“
Fiquei assustada
com os comentários
da matéria...
...Ler todas aquelas
coisas é assustador”
Revista Elas por Elas - fevereiro 2020 45
/ Arquivo pessoal
Apesar do episódio, Cristal (foto)
afirma que é uma privilegiada dentro
do universo trans. “O preconceito
é inevitável, mas posso dizer
que algumas características minhas
como cor da pele, minha voz e até o
meu cabelo liso me fazem ser incluída
com mais facilidade na sociedade.
Tenho uma amiga negra que é
trans e que não consegue emprego.
Conheço a dor de ser uma mulher
trans, mas não sei a dor de ser uma
mulher trans e negra”, desabafa.
A edição deste ano do Atlas da
Violência corrobora o relato de
medo e dor de Cristal. Pela primeira
vez, o documento trouxe estatísticas
da violência contra a população
de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
travestis e intersexuais. Os
dados alarmantes divulgados pelo
Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública (FBSP)
apontam que, em todo o país, o número
de homicídios contra a população
LGBTQI+ subiu de cinco casos
em 2011 para 193 em 2017. As lesões
corporais aumentaram de 318
em 2016 para 423 em 2017.
Em Minas Gerais, entre 2016 e
2017, as denúncias de homicídios
saltaram de seis para 19 casos. Em
números absolutos, houve um aumento
de 21,8% no registro de denúncias
no estado. Os relatos de
lesão corporal tiveram alta, nesse
período, de 65,3%, saindo de 26
para 43. O estudo foi elaborado a
partir dos dados registrados no Disque
100, do governo federal.
As violências contra a população
LGBTQI+ estão presentes nos diferentes
grupos de convivência social
46 Revista Elas por Elas - março 2020
e formação de identidades. As ramificações
se fazem notar no meio familiar,
nas escolas, na igreja, na rua,
no posto de saúde, na mídia, nos
ambientes de trabalho, nas forças
armadas, na justiça, na polícia, em
diversas esferas do poder público e
também nas ainda insuficientes políticas
públicas afirmativas que contemplem
a comunidade LGBTQ I+.
A Constituição de 1988 assegurou
um sistema de direitos e
garantias plurais e inclusivas que
estabelece a responsabilidade do
Estado Brasileiro no desenvolvimento
de ações que coíbam as
mais diversas formas de violência.
A luta contra os crimes de natureza
LGBTfóbica é a luta pelo reconhecimento
do direito à diversidade
relacionada às orientações sexuais
e identidades de gênero.
Apesar do aumento da violência,
o advogado Thiago Coacci (membro
da Comissão da Diversidade Sexual
da OAB-MG) explica que, recentemente,
houve avanços na criação
de instrumentos legais de criminalização
da homofobia. Em junho de
2019, o Supremo Tribunal Federal
(STF) reconheceu a omissão inconstitucional
do Congresso Nacional
por não editar lei que criminalize
atos que atentem contra os direitos
fundamentais da comunidade LGB-
TQI+. A maioria da Corte votou pelo
enquadramento da homofobia e da
transfobia como tipo penal definido
na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989),
até que o Congresso Nacional edite
lei específica sobre a matéria.
Coacci ressalta – como advogado
e ativista das causas LGBTs
– que, para além da criação de leis
que assegurem a punição em casos
de crimes, é necessária a criação de
uma rede de proteção. “O direito
penal só intervém quando o pior já
aconteceu. O que queremos é que
os crimes não aconteçam. Precisamos
de instrumentos e mecanismos
do Estado brasileiro que protejam
a população LGBTQI+, como
acontece, por exemplo, com a Lei
Maria da Penha, para as mulheres
vítimas de violência doméstica”.
Apenas um dia antes da análise
da ação no STF, a Comissão de Constituição
e Justiça (CCJ) do Senado
também aprovou a criminalização
das tentativas de se proibir manifestações
públicas de afeto. Para
o representante da Comissão da
Diversidade Sexual da OAB-MG,
o Senado antecipou a votação da
proposta na tentativa de criar uma
manobra jurídica antes que a Corte
do Supremo deliberasse sobre o
tema. “A decisão do Supremo não
impede que o Congresso Nacional
legisle sobre o tema. Mas partir do
momento que o STF se posicionou,
equiparando a homofobia ao crime
de racismo, nenhuma lei formulada
pelo Congresso pode oferecer uma
proteção menor do que a Lei do
Racismo”, explica Coacci.
O projeto aprovado no Senado
diz que comete crime de homofobia
a pessoa que, “por motivo
de intolerância, discriminação ou
preconceito, negar uma promoção
profissional à vítima; impedir
o acesso ou recusar atendimento
à vítima em estabelecimentos comerciais
e, ainda, restringir manifestação
razoável de afetividade
de qualquer pessoa, em locais de
acesso público – com exceção de
templos religiosos”.
/ Mídia Ninja
Revista Elas por Elas - março 2020
47
/ Mídia Ninja
“
Todos somos seres
humanos, temos
dignidade. Se uma
pessoa tem uma
tendência ou outra,
isso não lhe tira a
dignidade como
pessoa
Homofobia e liberdade
religiosa
Crítico da bancada evangélica
no Congresso, o pastor da Comunidade
Batista do Caminho, José Barbosa
Junior, diz que a exclusão dos
templos religiosos colabora para a
incitação da violência contra a população
LGBTQI+. “A bancada evangélica
protagonizou o lobby para a
aprovação dessa cláusula, com o
intuito de continuar a promover o
discurso de ódio dentro das igrejas.
Defender a inclusão dessa cláusula
é defender o direito de ser homofóbico.
Todos podem ter a sua opinião,
inclusive os líderes religiosos, sem
promover e incitar a violência”.
Em 2015, José Barbosa e outros
cristãos criaram em São Paulo um
movimento de luta contra a homofobia
chamado “Jesus cura a
homofobia”. O ato que, em princípio,
tinha a intenção de transmitir
uma mensagem de amor, tornou-se
um movimento com grande repercussão
na imprensa e nas redes
sociais. Ele explica que o objetivo
do movimento é pedir perdão pela
forma como as igrejas “ditas cristãs”
tratam os homossexuais e, ao
mesmo tempo, travar um debate
sobre a fé. Segundo o pastor, uma
das premissas do cristianismo é a
defesa dos oprimidos e marginalizados.
“Muitos homossexuais são
evangélicos ou vêm de famílias
cristãs. Buscamos conscientizar essas
famílias de que seus filhos e filhas
não ‘são pecadores’. E que não
há nenhuma condenação de Deus
em função da sexualidade deles. As
famílias têm esse preconceito muito
carregado pela religiosidade”.
Durante encontro com o comediante
britânico Stephen K. Amos,
em abril de 2019, o Papa Francisco
afirmou que as pessoas que
rejeitam os homossexuais “não
têm coração humano”. A conversa
aconteceu durante a gravação
de um programa do canal BBC. O
comediante disse ao Papa que não
é cristão e que viajou a Roma “em
buscas de respostas e fé”. Mas que,
como é gay, não se sentia aceito.
Ao ouvir isto, Francisco disse
que se importar mais com o adjetivo
(gay) do que ao substantivo
(homem) não é bom. “Todos somos
seres humanos, temos dignidade.
Se uma pessoa tem uma tendência
ou outra, isso não lhe tira a dignidade
como pessoa. As pessoas que decidem
rejeitar o outro por um adjetivo
não têm coração humano”,
48
Revista Elas por Elas - março 2020
/ Noora Ladeira
“
Percebi que
estava apenas
seguindo regras,
acompanhando
a boiada. Era
uma espécie de
relacionamento
abusivo”
declarou Francisco. Desde o início
de seu pontificado, em 2013, o Papa
Francisco se destaca por visões menos
conservadoras sobre assuntos
polêmicos como aborto, racismo,
pedofilia e desigualdade. As declarações
do líder religioso são vistas
por muitos como as mais progressistas
da história da Igreja Católica
Apostólica Romana.
Rompendo laços familiares
A estudante de artes plásticas e
performer Dada Scáthach viveu na
própria pele a pior faceta do fundamentalismo
religioso. Autodeclarada
do gênero não-binário (pessoa
que não se identifica nem com o
sexo masculino, nem feminino) e
nascida em uma família praticante
da religião cristã Testemunhas de
Jeová, na cidade de Franca, interior
de São Paulo, Dada teve que se desligar
da igreja e romper qualquer
tipo de relação com todas as pessoas
com quem havia convivido durante
toda a sua vida, depois que
assumiu sua homossexualidade.
Em 2014, ela se envolveu com
um jovem do mesmo sexo, às
vésperas de ser batizada, pensando
que aquela seria a primeira e última
oportunidade que teria. “Fiquei com
a consciência muito pesada. Comecei
a achar que tudo que era falado
na igreja sobre homossexualidade
era pra mim. Então contei para a
minha mãe. Ela ficou chocada e
disse que nós teríamos que contar
para os anciãos. Meu medo era ser
desassociada. Minha vida, todos os
meus amigos eram da igreja”.
Durante cerca de dois anos,
Dada perdeu os “privilégios” na
igreja e não pôde mais participar
das atividades consideradas mais
importantes. “Nesse meio tempo,
conheci um amigo que também
havia sido Testemunha de Jeová.
Ele foi me abrindo os olhos sobre
um monte de coisas que eu também
não concordava, como a segregação
em relação às mulheres,
por exemplo. Percebi que estava
apenas seguindo regras, acompanhando
a boiada. Era uma espécie
de relacionamento abusivo”.
Quando finalmente começou a
usar roupas, assessórios e maquiagem
femininos, os anciãos foram até
a sua casa com uma espécie de ultimato.
“Nesse dia, pedi para sair oficialmente
e eles fizeram o anúncio
para toda a igreja de que eu não era
mais Testemunha de Jeová. Lembro
que, no dia do meu anúncio, muita
Revista Elas por Elas - março 2020
49
/ Mídia Ninja
“
Quando alguém te
fala que você não
pode ser aquilo
que você é, isso é
discurso de ódio. É
uma violência, uma
relação abusiva”
gente chorou. Eu cresci naquela comunidade
e, depois que você é desassociada,
as pessoas nunca mais
podem falar com você. Meu irmão
de 11 anos não fala comigo. Meu pai
já morreu e minha mãe é a única
pessoa da minha família que faz parte
da igreja que fala comigo”, conta.
Mesmo nunca tendo vivenciado
agressões explicitas na igreja, ela
afirma ter sido vítima do discurso
de ódio. “Quando alguém te fala que
você não pode ser aquilo que você
é, isso é discurso de ódio. É uma violência,
uma relação abusiva”.
Garantia de direitos
Entre os desafios primordiais
para a consolidação da democracia
plena no Brasil está o desenvolvimento
de uma sociedade que
assegure o respeito à liberdade e
à identidade de cada indivíduo.
Para tanto, é necessário operar em
múltiplas direções: medidas educacionais,
garantia de participação
política e acesso a serviços públicos
de saúde, além de segurança e justiça
preparados para compreender
a diversidade.
Autora do projeto de lei
3329/2006, que instituiu, em Minas
Gerais, o 17 de maio como o Dia Estadual
Contra a Homofobia, a ex-
-deputada Jô Moraes explica que
o principal objetivo do projeto é a
promoção do direito à livre orientação
sexual. A ex-parlamentar conta
que, em 2006, a Associação Internacional
de Direitos LGBTQI+ realizou
o primeiro estudo sobre homofobia
de Estado. Foi elaborado
um levantamento dos países que
tinham legislações coercitivas e
punitivas em relação à orientação
sexual das pessoas. Naquela época,
92 países em todo mundo tinham
legislações punitivas. O estudo
mais recente, feito em 2018, mostrou
que ainda existem 72 países
com leis contra orientação sexual
homoafetiva.
“Foi exatamente levando em
conta esses dados e, orientada por
ativistas e militantes do movimento
de diversidade sexual, que apresentei
este projeto de lei que deu
origem ao Dia Estadual Contra a
Homofobia. É evidente que, naquele
momento, o projeto representava
um enfrentamento a todas as
legislações punitivas que existiam
em vários países e que tinham suas
50
Revista Elas por Elas - março 2020
/ Arquivo Câmara dos Deputados
“
Hoje, mais do que
nunca, defender os
direitos humanos,
defender as liberdades
em todas as suas
dimensões e combater
os preconceitos é uma
expressão da luta pela
liberdade”
sequelas no Brasil. Considero que
as iniciativas de Estado, em todas
as suas instâncias – nesse caso a AL-
MG –, para estimular a consciência
crítica e elevar a consciência de direitos
humanos, é uma atitude pedagógica.
É também um incentivo
para que as pessoas possam compreender
que o direito humano,
nas suas mais diferentes dimensões,
deve ser um compromisso do
Estado e da sociedade”, enfatiza Jô.
A ex-deputada ressalta que, além
da descriminalização, a luta contra
a homofobia de Estado é constituída
de outras duas – proteção e
reconhecimento. “É fundamental a
construção de leis de proteção que
assegurem direitos em diferentes
espaços, como, por exemplo, no
trabalho. Também é essencial a
criação de leis de reconhecimento,
como o do direito ao casamento e
do direito à adoção. Tivemos importantes
avanços nos períodos
dos governos do ex-presidente
Lula e da ex-presidenta Dilma, inclusive
relacionadas a decisões do
Supremo Tribunal Federal”.
Ela denuncia que recentes ações
do governo federal têm contribuído
para o aumento do preconceito.
“Estamos vivendo neste momento
um duro retrocesso em todas as
áreas e um estímulo, a partir da Presidência
da República e do governo
brasileiro, ao preconceito. Hoje,
mais do que nunca, defender os direitos
humanos, defender as liberdades
em todas as suas dimensões
e combater os preconceitos é uma
expressão da luta pela liberdade”.
Cristal Martinno afirma que o aumento
do preconceito incitado pelo
atual governo federal tem trazido
medo para a comunidade LGBTQI+.
“O preconceito e os casos de violência
aumentaram muito. As pessoas
se sentem respaldadas pelas opiniões
dele. Elas falam ‘meu presidente
não apoia vocês e eu apoio ele’ ou
‘meu presidente diz que a questão
da homossexualidade se resolve
na porrada, então é isso mesmo’. É
muito tenso para todos”.
Exercendo a cidadania
A Prefeitura Municipal de Belo
Horizonte tem desenvolvido importantes
projetos que garantem o exercício
da cidadania plena da população
LGBTQI+. A Secretaria Municipal
de Assistência Social, Segurança
Revista Elas por Elas - março 2020
51
/ Mídia Ninja
Alimentar e Cidadania inaugurou,
em dezembro de 2018, a nova sede
do Centro de Referência LGBTQI+ –
localizada na rua Curitiba, 481 – centro
da capital. De janeiro a dezembro
de 2019, o Centro realizou 1561
atendimentos.
O equipamento oferece serviços
como atendimentos psicossociais;
grupos de apoio; acolhimento
de denúncias em casos de violações
de direitos ou violência em virtude
de orientação sexual; discussões
de caso com serviços e parceiros
da rede de atendimento como
saúde integral, cultura, lazer; orientações
e encaminhamentos para outros
serviços municipais; rede de
garantia de direitos e espaço para
reuniões de articulação política dos
coletivos gays, lésbicas, bissexuais
e transsexuais.
Segundo a diretora de Políticas
para a População LGBTQI+, Dayara
Carvalho, além de ampliar os
atendimentos, a inauguração do
novo centro de referência é uma
iniciativa histórica sob a perspectiva
do desenvolvimento de um
“equipamento público de referência
para colaborar com a equidade
de direitos”, afirma.
Dados da Prefeitura de BH apontam
que as principais demandas
estão relacionadas a situações de
orientação geral por direitos, acesso
à saúde, acesso ao mercado de
trabalho, conflito familiar e acolhimento
institucional.
A PBH também realizou a adequação
de formulários, sistemas e
em todos os meios de identificação
da administração pública municipal
direta e indireta, com a inclusão do
campo para preenchimento do “nome
social”. Ele é o nome adotado por
travestis e transexuais em sua vida
cotidiana, diferente do nome no registro
de nascimento, por este não
refletir sua identidade de gênero.
O uso irrestrito do nome social
é determinante na garantia da
cidadania. “Essa é uma das principais
dificuldades da população
LGBTQI+, principalmente para
as mulheres trans. A ausência
do nome social dificulta o acesso
dessa população a serviços e direitos.
Elas se afastam com medo de
sofrer mais preconceito”, explica
Dayara. Segundo ela, é justamente
a população trans a que mais sofre
na questão da inserção ao mercado
de trabalho e muitas delas só
encontram na prostituição o único
meio de prover o seu sustento.
Outra ferramenta contra a
homofobia e que tem assegurado
proteção para mulheres transexuais
e transgêneras é a Lei
Maria da Penha (Lei 11.340, de
2006). O advogado Thiago Coacci
explica que, depois da retificação
do gênero nos documentos, não
há nenhuma disputa jurídica que
52
Revista Elas por Elas - março 2020
impeça a aplicação da lei. “Já retificou
juridicamente, é considerada
mulher e ponto. Então, aplica-se a
lei integralmente”.
No entanto, ele explica que existe
um debate jurídico sobre o uso da
mesma legislação para mulheres
trans que não fizeram a retificação.
Uma parte dos juízes acredita que
não é possível aplicar a Lei Maria
da Penha nesses casos e defendem
que por mais que a pessoa possa
ser identificada socialmente como
mulher, para o direito ela seria
homem. “Mas tem muitos juízes
que já estão aceitando a aplicação
[mesmo nos casos sem retificação].
O argumento forte nessa corrente é
que o gênero é autodeterminação.
Sendo autodeterminação, procedimentos
como a retificação no
cartório é uma possibilidade que
garantiria o respeito do gênero
pelo Estado, mas não seria o que
faz a pessoa mulher ou não”.
Inclusão social
Desde 2015, a ONG TransVest desenvolve
um projeto artístico-pedagógico
que objetiva o combate à transfobia
e à inclusão de travestis, transexuais
e transgêneros na sociedade. A ONG
oferta curso pré-vestibular; certificação
no nível de conclusão do ensino
fundamental e ensino médio por meio
do Exame Nacional para Certificação
de Competências de Jovens e Adultos
(Encceja); alfabetização e curso de
lutas para a defesa pessoal. Também
desenvolve trabalho de recolocação
no mercado de trabalho, promoção
de oficinas artísticas e encaminhamento
para área jurídica.
A co-fundadora e coordenadora da
TransVest, Carolina Salles de Araújo,
explica que cerca de 80% das mulheres
atendidas pela ONG não concluíram
o ensino fundamental. “A maioria
das alunas atendidas por nós hoje
está passando por um processo de
reabilitação social. Muitas não têm
onde morar, o que complica muito a
situação. São pessoas amabilíssimas,
interessantíssimas e que perderam
todas as oportunidades que tinham
na vida, no sentido de serem isoladas
pela sociedade”.
Ao longo de sua história, a TransVest
já atendeu mais de 100 mulheres.
Mesmo desenvolvendo um importante
trabalho, a ONG está sob a ameaça
de encerrar suas atividades por
falta de recursos. “Não temos nenhuma
ajuda governamental. Vivemos de
doações e temos um gasto mensal de
cerca de R$ 20 mil – que inclui passagem,
alimentação e ajudas de todos
os níveis. Temos alunas que precisam
de lugar para morar, algumas não
têm a mínima condição de sobrevivência
sem a ajuda da TransVest”.
Para Cristal, a ONG Transvest foi um
divisor de águas. “Cheguei na ONG
totalmente atordoada. Não conhecia
meus direitos. Através deles consegui
acompanhamento psicológico e
psiquiátrico e conclui o ensino médio.
A TransVest foi uma porta que se
abriu para mim e que mudou a minha
vida totalmente”.
As pessoas interessadas em realizar
doações e colaborar com os projetos
e oficinas da TransVest podem entrar
em contato através das páginas
oficiais da ONG no Instagram (@
ongtransvet) ou no Facebook (@
transvest). Também está no ar uma
campanha permanente de financiamento
através da plataforma Evoé
(evoe.cc/transvet).di
Revista Elas por Elas - março 2020
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Descascando
os abacaxis
da vida: a
resistência
LGBTQI+ no
carnaval
/ Paula Molina e Henrique Sander
Dos cerca de 400 blocos de carnaval
da capital mineira, o Alô Abacaxi
está entre os nove maiores. Com o
mote principal voltado para a diversidade
e a sexualidade de gênero, o
bloco nasceu da necessidade de se
descascar os abacaxis da vida. “Entendemos
que os abacaxis do gênero,
da sexualidade e do preconceito eram
os maiores que tínhamos para descascar.
Surgimos então com a proposta
de tocar Tropicália, que foi um
movimento artístico e cultural questionador,
descascando o abacaxi do
preconceito, para degustarmos do
abacaxi da diversidade”, explica o
produtor cultural e um dos idealizadores
do Alô Abacaxi, Bruno Perdigão.
O produtor cultural diz que levantar
a bandeira do respeito e da diversidade
também é questionar alguns
padrões sociais engessados. “Durante
o cortejo do bloco em 2018 fizemos
um casamento gay nas esquinas da
Igreja São Sebastião e do Fórum Lafayete
(no bairro Barro Preto). Foi um
momento de bastante orgulho para
nós e que, ao mesmo tempo, passou
uma mensagem para essas duas entidades
que não nos aceitam. Não é
no sentido de afrontar, mas de mostrar
àqueles dois espaços que não
somos aceitos ainda”.
Para o Alô Abacaxi, carnaval e ativismo
estão no mesmo compasso.
Como outros idealizadores do bloco
já vinham de um processo anterior
de luta pelos direitos da população
LGBTQI+, o Alô Abacaxi já nasceu
militante. Em 2018, eles participaram
de ações do “Vira Voto” na campanha
para a Presidência da República e do
ato do “#EleNão,” que levou milhões
de pessoas às ruas de todo o país.
“Tivemos a ideia de trazer essa história
de militância para o movimento
da festa também. Acreditamos que
reivindicar esses espaços que nos
são negados também é um momento
para festejarmos quem somos e
mostrar que temos os mesmos direitos
que qualquer outro cidadão”.
* LGBTQI+: é a sigla qe representa lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transsexuais, queer e outros grupos do
gênero e sexualidade. O termo foi aprovado no Brasil
em 2008 em uma conferência nacional para debater
os direitos humanos e políticas públicas para todos/as.
54
Revista Elas por Elas - março 2020
Revista Elas por Elas - março 2020
55
/ Carina Aparecida
56
Revista Elas por Elas - março 2020
Educação
Corrida de obstáculos
na ciência
Pesquisadoras relatam as dificuldades com os
cortes no setor e falam sobre os desafios de
gênero no ambiente acadêmico
por Denilson Cajazeiro
No Instituto de Ciências Biológicas
da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), a professora
Glória Regina se desdobra cotidianamente
entre as atividades docente,
administrativa e de pesquisa no
laboratório de Genética e Bioquímica.
Seu mais recente estudo envolve
o tripanossoma cruzi, protozoário
causador da doença de Chagas,
cuja evolução no organismo
infectado pode levar à insuficiência
cardíaca. No momento, o que a
pesquisadora quer descobrir é como
agem no hospedeiro os diferentes
tipos de parasitas que circulam
nas áreas endêmicas do país. Para
isso, ela recorre a experimentos em
camundongos e a uma técnica de
sequenciamento do código genético
das cobaias infectadas.
“Existem muitas respostas diferentes
para cada tipo de organismo
infectado. Há pacientes que
passam anos sem apresentar qualquer
sintoma e, depois de décadas,
desenvolve alguma cardiopatia.
Outras pessoas são assintomáticas.
A gente quer entender essa diversidade
de genomas dos parasitas
e as respostas que eles causam no
hospedeiro, que somos nós. Então
a gente quer saber como o parasita
interage com o hospedeiro, como
o hospedeiro responde ao parasita,
e isso pode ser importante no futuro
para desenvolver um medicamento
que seja mais efetivo ou para
um diagnóstico precoce mais fácil”,
explica Glória Regina, que também
coordena o programa de pósgraduação
em Bioinformática da
universidade.
Na atualidade, o Ministério da
Saúde distribui um remédio para
a doença, chamado benznidazol,
que age na fase aguda, quando
o paciente é infectado e, logo
Revista Elas por Elas - março 2020
57
em seguida, começa a aumentar a
quantidade de protozoários na corrente
sanguínea. Com o tempo, caso
não seja tratada, a doença evolui
para um estado crônico, e o parasita
fica alojado nos tecidos, principalmente
no coração.
Ao lado da sala da pesquisadora,
sua colega de estudos, a professora
Andréa Macedo, trabalha na
parte de diagnóstico de transplantados
por conta de uma cardiopatia
chagásica, em parceria com profissionais
do Hospital das Clínicas da
UFMG. Em uma das linhas de pesquisa,
ela procura entender como
funciona o organismo dessas pessoas,
para prever uma possível reativação
da doença. O que se sabe
é que, em alguns casos, o tripanossoma
pode estar alojado em outros
órgãos do corpo e voltar a aparecer
no coração transplantado. “É um
estudo muito relevante também”,
aponta Glória Regina (foto).
As duas pesquisas conduzidas
pelas professoras da universidade
são de extrema importância para
a sociedade, pois estima-se que
entre um e quatro milhões de pessoas
sejam portadoras da doença
de Chagas no país, e a Organização
Mundial de Saúde (OMS) calcula
que cerca de 25 milhões de brasileiros
vivam em áreas consideradas
de risco. No entanto, muitos
desses estudos, gerados após longo
tempo de dedicação, correm o sério
risco de serem fortemente afetados
na atual conjuntura. Os cortes
de bolsas de pós-graduação e
a redução no orçamento da Ciência
e Tecnologia, anunciados pelo
governo Bolsonaro, preocupam a
/ Carina Aparecida
58
Revista Elas por Elas - março 2020
comunidade científica, que receia
ver anos de esforços evaporarem-
-se, com resultados prejudiciais para
a população.
“A ciência está sofrendo um apagão.
Se a gente bloqueia o financiamento
da pesquisa agora, não é
daqui a um, dois anos, que a gente
vai sentir os resultados. É daqui
a cinco, dez anos que a gente vai
ter uma queda drástica na produção
científica, e vamos nos tornar
menos competitivos. Estamos indo
na contramão do mundo, que investe
mais em ciência, em geração
de patentes”, critica a pesquisadora
da UFMG. Para se ter uma ideia
do tamanho da crise, só na equipe
dela, os recentes cortes foram responsáveis
por reduzir de 15 para
8 o número de pesquisadores, entre
estudantes de iniciação científica
e pós-doutorandos. “Então o
que está acontecendo: eu reduzo o
número de alunos, diminuo a minha
pesquisa e consequentemente
a minha produtividade, e a gente
gera menos conhecimento que futuramente
poderia resultar em benefícios
para a sociedade”, afirma
a pesquisadora.
Em setembro de 2019, a Capes
anunciou o corte de milhares de
bolsas, que deixaram de ser renovadas.
O órgão e o CNPq são as duas
principais agências de incentivo
à pesquisa no país, e ambas têm
sofrido com restrições orçamentárias.
Vale lembrar que, em abril
do ano passado, a Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência
(SBPC) e outras entidades divulgaram
uma nota por meio da qual ressaltavam
que a redução de 42,27%
nas despesas de investimento do
Ministério da Ciência e Tecnologia
atingiam a soberania e o desenvolvimento
do Brasil.
“A gente tinha que aumentar o
investimento em ciência, e não reduzir.
Por que a China hoje é potência
mundial? Porque investiu
em conhecimento, em pesquisa
básica”, afirma Glória Regina. Ela
teme precisar paralisar ou diminuir
ainda mais o ritmo dos estudos
sobre o tripanossoma, já que,
até o momento, o CNPq não lançou
nenhum edital universal, que
recebe esse nome porque é destinado
para pesquisadores de qualquer
área. “Então a gente não tem
nem como pedir financiamento para
nossa pesquisa. Precisamos das
verbas dessas agências e das bolsas
de pós-graduação, e as duas estão
comprometidas”.
“
A gente tinha
que aumentar o
investimento em
ciência, e não
reduzir. Por que
a China hoje é
potência mundial?
Porque investiu em
conhecimento, em
pesquisa básica”
Flávia Calé, mestranda em História
Econômica pela Universidade
de São Paulo (USP) e presidenta
da Associação Nacional de Pós-
-Graduandos (ANPG), acredita que
essa política de desinvestimento
no setor faz parte de um projeto
maior, de inserção subalterna do
país no cenário internacional. Segundo
ela, é um projeto que não está
sendo dito, mas implementado.
“Trata-se de uma nova colonização
do Brasil nesse cenário global, em
que o desenvolvimento tecnológico
é fundamental”, afirma a presidenta
da entidade, ao mencionar a
competição entre China e Estados
Unidos pelo domínio do 5G, a quinta
geração de internet móvel, que
promete impactar as próximas inovações.
“Quando a gente ouve falar
em guerra comercial, a gente está
falando na verdade é de disputas
em torno de um padrão tecnológico
que vai reger o mundo, que
vai subsidiar o padrão de acumulação.
Então, quando o Brasil perde
capacidade na ciência, ele perde
capacidade de inserção autônoma
e passa a ser dependente tecnologicamente.
Isso é muito grave”, opina
a pesquisadora.
Além dos cortes no setor, Flávia
Calé demonstra preocupação com
a restrição dos investimentos e a diminuição
de bolsas em áreas malvistas
pelo atual governo, como o
campo das Ciências Humanas e os
estudos de gênero. Em dezembro
do ano passado, o caso da professora
Débora Diniz, da Universidade
de Brasília (UNB), ganhou projeção.
Ameaçada por grupos de extrema-direita
em função de sua
Revista Elas por Elas - março 2020
59
“
Todas as
pesquisadoras
que conheço estão
preocupadas em
relação ao futuro, com
a possibilidade de
perderem pesquisas
em andamento ou de
não conseguirem mais
iniciar novas”
/ Istock Photos
defesa pela descriminalização do
aborto, a antropóloga teve de deixar
o país e foi incluída no programa
de proteção aos Direitos Humanos
do governo federal. “Chegaram
ao ponto de cogitar um massacre
na universidade caso eu continuasse
dando aulas. A estratégia desse
terror é a covardia da dúvida. Não
sabemos se são apenas bravateiros.
Há o risco do efeito de contágio, de
alguém de fora do circuito concretizar
a ameaça, já que os agressores
incitam violência e ódio contra
mim a todo o momento”, disse a antropóloga
à época, em entrevista ao
jornal El País. Para a presidenta da
ANPG, o episódio ilustra bem como
as questões de gênero que atravessam
a sociedade têm reverberado
na academia. “Isso é uma questão
muito grave, que retrata o contexto
em que vivemos atualmente e de
como a opressão de gênero é uma
questão muito candente, muito real,
e se expressa hoje de forma muito
violenta. Isso tem se refletido no
país e na academia, como uma perseguição
ao campo de conhecimento
também”, avalia Flávia Calé.
Para a professora Karla Torres,
coordenadora do Núcleo de Estudos
sobre Gênero e Diversidade do
Centro Federal de Educação Tecnológica
de Minas Gerais (CEFET/
MG), o quadro atual é o mais grave
que já enfrentou em sua trajetória
acadêmica e profissional. Graduada
em Ciência da Computação
pela Universidade Federal de Viçosa
(UFV), ela fez mestrado em Física
com ênfase em Astronomia,
na Universidade Estadual Paulista
(Unesp), e doutorado em Engenharia
e Tecnologia Espaciais, pelo
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais,
o conhecido Inpe – instituição
que foi alvo recente de ataques
do presidente Bolsonaro, por ter
divulgado estudos que comprovaram
o aumento do desmatamento
na Amazônia.
“Apesar de ter vivido situações
de maior ou menor incentivo à pesquisa
por parte do governo, cortes
de gastos e restrições econômicas,
em geral essas eram situações pontuais,
e nãos sistêmicas, como são
hoje. O cenário que vejo atualmente
é de ataques constantes ao desenvolvimento
científico e educacional.
Pessoas que dependem de
bolsas para entrar na faculdade
ou na pós-graduação vão deixar de
fazê-lo, e essas potencialidades podem
ser perdidas. Todas as pesquisadoras
que conheço estão preocupadas
em relação ao futuro, com
a possibilidade de perderem pesquisas
em andamento ou de não
conseguirem mais iniciar novas”,
relata Karla Torres, para quem a
60
Revista Elas por Elas - março 2020
/ Gibran Mendes
“
O estrangulamento
orçamentário imposto
às instituições
públicas de ensino
superior e de
fomento à pesquisa
parece integrar uma
estratégia política que
afronta as instituições
e nega o valor da
ciência”
situação das mulheres na ciência
tende a piorar. “Todo incentivo
que começava a brotar no país nos
últimos anos, em forma de ações e
políticas públicas, poderá desaparecer
sob a justificativa de ‘cortes
de gastos’. Como Simone de Beauvoir
disse, ‘basta uma crise política,
econômica e religiosa para que os
direitos das mulheres sejam questionados’”,
critica.
Além do apagão na ciência, os
laboratórios correm o risco de ficar
literalmente no escuro. Reitores de
diversas universidades federais já
anunciaram que, caso a política de
cortes prevaleça, faltarão em breve
recursos para o custeio de serviços
básicos, como segurança, luz, gás,
água, conservação e limpeza. Na
UFMG, o Conselho Universitário e
o de Ensino, Pesquisa e Extensão
divulgaram uma moção, no final
de setembro do ano passado, com
a finalidade de chamar a atenção
da sociedade para o assunto. No
texto, a comunidade acadêmica
expressa “profunda preocupação”
com o orçamento de 2020.
“O estrangulamento orçamentário
imposto às instituições públicas
de ensino superior e de fomento
à pesquisa parece integrar uma
estratégia política que afronta
as instituições e nega o valor da
ciência. Os retrocessos decorrentes
dessas ações equivocadas e
sem justificativas, que vêm sendo
sistematicamente adotadas, são e
serão descomunais, representando
não apenas um grave prejuízo
à ciência brasileira, mas também
um forte impacto na formação de
professores e profissionais, comprometendo
o futuro da educação
brasileira”, diz o texto da moção,
assinado pela reitora da universidade,
Sandra Regina Almeida.
Em meio a esse caos que se desenha
no horizonte, Flávia Calé lembra
que o financiamento da ciência
em qualquer país vai além da destinação
de bolsas de estudo a pós-
-graduandos e verbas para núcleos
de pesquisa. É preciso garantir
um ambiente acadêmico saudável,
avalia a estudante, com infraestrutura
física e de material adequada.
“Precisamos de um espaço universitário
sadio, que acolha pesquisadores
do Brasil e de fora do país.
Então esse é um drama que a gente
vive”, afirma a mestranda.
Infelizmente, o governo Bolsonaro
não tem dado sinais de que
pretende ceder quanto à necessidade
de garantir mais investimentos
para financiar a pesquisa no país.
Embora tenha remanejado parte
dos recursos contingenciados, o
volume está longe de ser suficiente
para que a ciência possa abandonar
Revista Elas por Elas - março 2020
61
o atual cenário de restrições, fato
que preocupa as pesquisadoras
Brasil afora. “Não vejo perspectivas
em um futuro próximo para
a ciência e a educação no país, a
menos que haja uma mudança
significativa nos rumos que estão
sendo tomados pela gestão política
nacional. Ciência gera conhecimento,
inovação, tecnologia, produtos,
uma melhor educação, transforma
uma sociedade, gerando empregos
e mais saúde à população, gerando
crescimento da nação. Nenhum
país desenvolvido negligencia o
incentivo à pesquisa científica no
mundo. Isso porque um dos maiores
propósitos da ciência é justamente
buscar solucionar problemas que
afetam a sociedade, melhorando
assim a qualidade de vida de todas
as pessoas. Sem ciência, não há
solução”, afirma Karla Torres.
/ Carina Aparecida
Ciência patriarcal
Além das dificuldades da conjuntura
atual, as cientistas brasileiras
têm de enfrentar no dia a
dia outro problema, porém de ordem
estrutural: os desafios de gênero,
que transformam o percurso
delas na ciência em uma corrida
de obstáculos. Flávia Calé que o
diga. Mãe de Aurora, de quatro meses,
ela pôde constatar a dificuldade
que milhares de pesquisadoras
enfrentam ao conciliarem as jornadas
da maternidade e da academia.
“Eu diria que a ciência, assim
como todos os ambientes da sociedade,
não estão adaptados à participação
feminina. Esse período do
pré-parto, do nascimento e do bebê
demanda muita atenção, então
62
Revista Elas por Elas - março 2020
você acaba tendo uma defasagem
na produção acadêmica, que precisa
ser contabilizada, para que essas
mulheres não sejam preteridas
em seleções de docentes”, aponta a
estudante de mestrado.
De olho nessa questão, a Universidade
Federal Fluminense (UFF)
aprovou, em fevereiro de 2019,
uma medida pioneira no país: as
docentes que estiveram em licença-maternidade
nos últimos dois
anos ganharam um bônus de cinco
pontos na avaliação do currículo,
para concorrerem em um edital
interno de bolsas de iniciação científica.
A medida, adotada após consulta
a professoras que se sentiram
prejudicadas em editais anteriores,
era uma antiga demanda do grupo
de trabalho da universidade Mulheres
na Ciência, coordenado pela
pesquisadora Letícia Oliveira. Segundo
ela, há estudos que apontam
que a maternidade promove uma
queda na produtividade das cientistas
por, no mínimo, quatro anos.
“É um critério interessante, porque
é uma forma de você manter um
equilíbrio”, defende Flávia Calé.
Como esse mesmo objetivo, foi
sancionada no final de 2017 a lei
13.536. De autoria da deputada federal
Alice Portugal (PCdoB/BA), a
legislação garantiu às pós-graduandas
o direito de suspender as atividades
acadêmicas por até 120 dias,
no caso de maternidade ou adoção,
porém mantendo o auxílio da bolsa
de estudos. Recentemente, esse
debate sobre maternidade e trabalho
científico ganhou mais um capítulo.
Em agosto de 2019, o Observatório
Cajuína, grupo que reúne
pesquisadoras da área da Psicologia,
publicou uma carta aberta à comunidade
científica, por meio da
qual abordam a questão da participação
de mães em congressos. No
documento, elas reivindicam algumas
estruturas básicas para garantir
a presença delas nesses eventos,
como a aceitação de bebês e crianças
em sala de aula, a garantia de
livre amamentação em todos os locais,
e a criação de um espaço kids,
com monitores.
“Existem mães solo, existem
mães sem rede de apoio, existem
crianças que não conseguem ficar
com outras pessoas por muito
tempo pelos mais variados motivos.
Portanto, excluir crianças significa
excluir mulheres! Então,
do que precisamos para nos sentirmos
incluídas nos congressos da
área? A ação mais simples que um
“
Existem mães solo,
existem mães sem
rede de apoio, existem
crianças que não
conseguem ficar com
outras pessoas por
muito tempo pelos
mais variados motivos.
Portanto, excluir
crianças significa
excluir mulheres”
evento pode realizar é divulgar que
as crianças serão bem recebidas e
garantir que todo o suporte moral
será dado, protegendo institucionalmente
essas mulheres dos
olhares e ações, tão reforçadas
na nossa cultura, de exclusão. Por
exemplo, que seus monitores, palestrantes
e participantes estejam avisados
que crianças poderão estar
presentes e isso não será um problema.
Uma vez que isso aconteça,
precisamos também de tolerância
à imprevisibilidade que a presença
de uma criança gera. Precisamos
de tolerância para acolher
bebês que choram, para sairmos no
meio de uma palestra e podermos
voltar quando a criança se acalmar.
Precisamos de tolerância e acolhimento,
e não de mais julgamentos”,
diz o texto do manifesto, elaborado
após uma das integrantes do grupo,
a psicóloga Tauane Paula Genm,
ter a presença do seu pequeno
Emanuel recusada em um evento
de temática feminista.
Na avaliação da professora Karla
Torres, os desafios das mulheres
na ciência precisam ser enfrentados
desde a infância, por toda a sociedade.
“Precisamos começar a
eliminar preconceitos de gênero
desde a base. Na ciência não é diferente.
Deixemos nossas meninas
e mulheres serem curiosas, investigarem,
proporem soluções, errarem
sem serem julgadas por seu gênero,
e busquemos dar voz às suas
ideias. Precisamos, enquanto sociedade,
parar de tentar desmotivá-
-las a fazer qualquer coisa que não
seja ligada ao cuidado doméstico”,
afirma a pesquisadora.
Revista Elas por Elas - março 2020
63
Entrevista
“A sociedade científica tem uma
dívida histórica com as mulheres”
Embora as mulheres sejam maioria
na área da educação, levantamentos
apontam que a participação delas
diminui quando se trata de postos
mais altos na carreira acadêmica.
Na prática, elas ainda ocupam
poucos lugares no topo da carreira
e em posições de destaque na ciência.
A Academia Brasileira de Ciências,
por exemplo, expressa bem essa
desigualdade. Do total de membros
titulares da instituição, 477 são
homens, e apenas 86, mulheres –
menos de 20%. De acordo com a Organização
das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura (Unesco),
menos de 30% dos investigadores
no mundo são mulheres.
“Apesar de muitas vezes não haver
nenhum tipo de obstáculo visível
ou declarado, uma mulher
vai sentir maiores resistências para
conseguir ocupar cargos de liderança
e de destaque em função
de preconceitos conscientes ou inconscientes
de gênero”, revela a
professora Karla Torres, coordenadora
do Núcleo de Estudos sobre
Gênero e Diversidade do Centro
Federal de Educação Tecnológica
de Minas Gerais (CEFET/MG), em
entrevista à revista Elas por Elas.
Confira abaixo.
As mulheres enfrentam mais desafios
na ciência em função do
preconceito de gênero?
Sim, as mulheres enfrentam mais
desafios na ciência em função de
seu gênero. Existem dois tipos
principais de desafios que elas enfrentam
nas áreas acadêmica e
profissional, inclusive na ciência.
Um deles se refere às dificuldades
que sofrem para entrar e permanecer
em áreas conhecidas como
“masculinas”, como a da Engenharia
e a da Tecnologia da Informação.
Preconceitos formados
e reforçados na sociedade desde a
infância vão afastando as mulheres
dessas áreas, fazendo-as acreditarem
que não são capazes de se
identificarem ou de serem bem-sucedidas
nelas. Esse tipo de dificuldade
horizontal é conhecido na literatura
como “labirinto de cristal”,
por se tratar de barreiras invisíveis
que as mulheres enfrentam
para fazer o que realmente querem.
Outro tipo de desafio é aquele
relativo ao crescimento profissional
de uma mulher dentro de uma
determinada área. Apesar de muitas
vezes não haver nenhum tipo
de obstáculo visível ou declarado,
/ Tânia Rêgo/Agência Brasil
64
Revista Elas por Elas - março 2020
uma mulher vai sentir maiores resistências
para conseguir ocupar
cargos de liderança e de destaque,
em função de preconceitos conscientes
ou inconscientes de gênero.
Esse tipo de dificuldade vertical é
conhecido na literatura como “teto
de vidro”. Ambos são obstáculos invisíveis,
porém reais, que uma mulher
vai ter de lidar ao longo de sua
vida acadêmica e profissional, inclusive
na ciência, principalmente
se escolher áreas predominantemente
masculinizadas.
Você diria que a ciência é um ambiente
patriarcal?
Sim, com certeza. O ambiente científico
é historicamente dominado por
homens e, ao longo da história, muitas
mulheres foram banidas desse
espaço ou o ocuparam de forma fragilizada.
Somente no último século
é que começamos a ter presença significativa
nas universidades, e hoje
já somos maioria nos cursos de graduação.
No entanto, isso não quer
dizer que já estamos em situação de
igualdade: a presença feminina pode
não atingir 20% em cursos de algumas
áreas, como os de Tecnologia
da Informação, por exemplo. No
mercado de trabalho isso também
não se reflete: apesar de serem mais
qualificadas, mulheres ainda são a
maior parte das pessoas desempregadas.
Quando se analisa cargos de
chefia, percebe-se que quanto mais
alto o cargo menor o percentual de
ocupação feminina.
Dentro do meio científico, mulheres
ainda hoje têm dificuldade
de ter seus trabalhos reconhecidos
e, ao longo da história, muitas
ainda tiveram seus resultados roubados
por colegas, que acabaram ficando
com todo o mérito das pesquisas
para si, fenômeno conhecido
como “efeito Matilda”. A sociedade
científica tem uma dívida histórica
com as mulheres: não só pela falta
de incentivo, mas também por muitas
vezes ativamente impedi-las de
ter sucesso em suas carreiras. Para
verificar isso, basta olhar a história
do prêmio Nobel, em que prêmios
foram erroneamente atribuídos a
homens, e há uma quantidade mínima
de mulheres premiadas, mesmo
em áreas em que hoje elas são maioria.
O assédio é outra das dificuldades
que estamos sujeitas a enfrentar
no meio científico. Praticamente
toda mulher cientista tem uma história
para contar de quando iniciava
na carreira e foi assediada por algum
superior. Nós, mulheres, precisamos
mais e mais ocupar esse espaço
da ciência. Não só ocupá-lo em
números, mas ocupá-lo também em
“
O ambiente científico
é historicamente
dominado por homens
e, ao longo da história,
muitas mulheres
foram banidas desse
espaço ou o ocuparam
de forma fragilizada”
força e sororidade: precisamos resistir,
persistir e ocupar espaços de
liderança, contribuindo para que o
acesso de outras mulheres seja mais
justo e igualitário.
Você já enfrentou alguma discriminação
de gênero no ambiente
da ciência?
Sim, várias vezes. Muitas das situações
passaram desapercebidas no
momento em que ocorreram, porque
nem sempre eu tive a consciência e
a força que tenho hoje para identificar
e me defender do preconceito
de gênero. Mesmo assim consigo
me lembrar de algumas situações.
Por exemplo, como em uma apresentação
do doutorado no exterior
em que, de todos os palestrantes (a
maioria estudantes), eu fui a única
a ser ferozmente sabatinada por
alguns pesquisadores presentes.
Eu era a única mulher apresentando
naquele momento. Ou mesmo
antes, quando sofri assédio de um
professor de uma das instituições
mais renomadas do Brasil, a quem
fui procurar para ser um possível
orientador de doutorado. Esse não
foi um evento isolado e teve consequências
drásticas na minha história
profissional: esse professor me
perseguiu durante anos, fazendo
com que eu até decidisse abandonar
o trabalho científico na Astronomia
por um longo período, por medo de
que a sua influência na área pudesse
me prejudicar. Só depois de me fortalecer
o suficiente e ter a certeza de
que ele não poderia mais me causar
danos profissionais, é que consegui
voltar a fazer pesquisa científica na
área em que escolhi.
Revista Elas por Elas - março 2020
65
Sua atuação em áreas majoritariamente
masculinas representou
um desafio maior para você?
Entrei na graduação em Ciência da
Computação e fui a única mulher
em uma turma de 30 pessoas. Esse
fato, por si só, já era um tanto desestimulador.
O tratamento em relação
às alunas do curso era diferenciado,
tanto vindo dos colegas, quanto
dos professores, que aliás eram todos
homens. Não sentia identificação
com as pessoas do curso, não me
sentia representada pelos professores.
Percebi desde o início que tinha
que me sobressair para ser minimamente
respeitada, e me mantive entre
os três melhores estudantes da
turma. Mas isso não foi o suficiente
para evitar piadinhas machistas,
atitudes condescendentes ou inferiorizadoras,
tanto de colegas quanto
de professores. Já houve situações
em que, mesmo sabendo que
eu era a melhor candidata, perdi
oportunidades de bolsas de iniciação
científica ou estágio para outros
colegas, escolhidos tão somente por
serem homens. Até hoje, essas questões
são pungentes. Quando me reúno
com profissionais da área de
computação, frequentemente sou a
única mulher e tenho dificuldades
de me identificar e de me relacionar
com os colegas da área.
Quais caminhos devem ser percorridos
pela sociedade para que
tenhamos uma maior participação
das mulheres na ciência, inclusive
em áreas majoritariamente
ocupadas pelos homens?
Acredito que o que precisamos é
de uma sociedade feminista, em
que mulheres tenham realmente
as mesmas oportunidades que
homens de escolherem e serem
bem-sucedidas em suas carreiras.
Precisamos começar a eliminar
preconceitos de gênero desde a
base, ou seja, desde a infância. O
primeiro passo seria acabar com
a distinção de brinquedos que estimulam
a criatividade, a inventividade
e a ação para os meninos,
e brinquedos que estimulam o
cuidado de crianças e da casa para
as meninas. Deixemos nossas
crianças brincarem com o que desejarem,
para que possam desenvolver
tanto o seu potencial produtivo,
acadêmico e profissional,
quanto o seu potencial para a empatia
e o cuidado com outros seres
humanos, independentemente do
gênero. Precisamos parar de tentar
restringir as pessoas em caixas de
comportamentos e atividades esperadas
segundo seu gênero, permitindo
que sejam felizes fazendo
aquilo que mais se identificam e
podem contribuir socialmente. Na
ciência não é diferente. Deixemos
nossas meninas e mulheres serem
curiosas, investigarem, proporem
soluções, errarem sem serem julgadas
por seu gênero, e busquemos
dar voz às suas ideias. Mulheres já
mostram todos os dias que podem
fazer tudo o que quiserem. Precisamos,
enquanto sociedade, parar de
tentar desmotivá-las a fazer qualquer
coisa que não seja ligada ao
cuidado doméstico.
/ Istock Photos
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Revista Elas por Elas - março 2020
Revista Elas por Elas - março 2020
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/ Istock Photo
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Revista Elas por Elas - março 2020
Educação
O debate de gênero nas
escolas e o papel
emancipador da educação
Setores conservadores da sociedade tentam impor propostas que negam
a diversidade do povo brasileiro. Quando esse problema atinge a escola,
fica ainda mais grave, pois tira dela o importante papel de ajudar a formar
cidadãos livres, críticos e conscientes de seus direitos e deveres.
por Mariana Viel
As experiências vivenciadas
pela jovem Daniela Moura, na Escola
Estadual Laice Aguiar, bairro
Novo Glória, em Belo Horizonte,
despertaram na estudante um forte
sentimento de mudança em relação
ao tradicional modelo de educação.
Segundo Daniela, que atualmente
ocupa o cargo de presidenta
da União Colegial de Minas Gerais
(UCMG), a estrutura reduzida e
a falta de preparo do corpo docente
da instituição para tratar questões
como sexualidade e gênero geravam
uma série de problemas.
“Nós víamos os alunos sofrendo
homofobia, racismo e outras formas
de assédio. Eu percebia que
aquele era um espaço muito fechado
para mim. Por mais que tentássemos
chamar o debate, a escola
nunca estava aberta”, diz. Ela lembra
o caso de uma aluna que sofreu
um episódio de homofobia e que a
posição da escola foi simplesmente
indicar que a mãe dessa aluna
procurasse a orientação de um psicólogo.
“Era visível que esse modelo
de ensino estava errado. A gente
percebia que esse era um problema
estrutural, porque tanto os professores
como os pedagogos não haviam
sido orientados e treinados
para tratar desses temas”.
Quando foi transferida para a
Escola Estadual Governador Milton
Campos, mais conhecida como
Estadual Central, e eleita presidenta
do grêmio estudantil, Daniela
começou a desenvolver uma série
de ações junto aos alunos, professores
e funcionários. “Durante minha
gestão, criamos um grupo para
debater as questões de gênero. Nessas
rodas de conversas, fazíamos
Revista Elas por Elas - março 2020
69
desabafos e experiências sociais
para tentarmos nos colocar no lugar
uns dos outros. Havia denúncias
de assédio de alunos, professores
e violência doméstica. Começamos
a pensar: ‘por que a escola
não pode ajudar?’; ‘por que as escolas
públicas não possuem profissionais
para auxiliar nessas questões?’,
questiona a estudante.
Daniela (foto) explica que o
movimento estudantil tem tratado
com prioridade o debate de gênero
nas escolas. “Quando reunimos
os estudantes, temos a oportunidade
de debater essas questões para
fazer uma sociedade mais justa e
desconstruir preconceitos. Muito
se fala que a escola prepara os jovens
para ser cidadãos, mas muitas
vezes não temos a mínima ideia do
que se passa dentro da casa desses
alunos e como isso pode influenciar
seu desenvolvimento em sala
de aula. Tivemos casos de pais que
agrediam os filhos por serem homossexuais,
mães que sofriam violência
doméstica na frente dos filhos,
e alunos que sofriam racismo
de professores”, afirma.
Em todo o Brasil, pesquisadores,
professores, alunos e representantes
do movimento social e estudantil
unem força em torno da defesa
do debate de gênero nas instituições
públicas e privadas de ensino.
O principal desafio é romper
as distorções do direito à igualdade
e desmentir a falaciosa campanha
capitaneada por setores ultraconservadores,
que utilizam o termo
“ideologia de gênero” como uma
suposta “ameaça” aos valores tradicionais
da família.
Nos debates transcorridos desde
2014 em torno do Plano Nacional de
Educação, e subsequentemente em
torno dos Planos Municipais e Estaduais
de Educação, o termo “ideologia
de gênero” foi utilizado por
quem defende posições tradicionais,
reacionárias e até fundamentalistas
em relação aos papéis de
gênero do homem e da mulher. Os
resultados foram a propagação de
uma espécie de pânico social com
consequências práticas às questões
relacionadas aos chamados novos
direitos humanos, por exemplo,
no uso do nome social, no direito à
identidade e igualdade de gênero e
na livre orientação sexual.
A pesquisadora e doutora em Ciência
Política pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG) Ana
Carolina Ogando explica que o termo
“ideologia de gênero” foi cunhado
por setores conservadores, na
/ Mariana Viel
70
Revista Elas por Elas - março 2020
década de 1990, após a 4ª Conferência
Mundial “Mulher: Igualdade,
Desenvolvimento e Paz”, iniciativa
da Organização das Nações Unidas
(ONU), em Pequim, China.
“Principalmente na América
Latina, o termo ‘ideologia de gênero’
tem sido usado por lideranças
religiosas e políticas para deturpar
e frear qualquer possibilidade
de avanço do campo identitário.
Ele está ancorado em um papel
estereotipado de família, que
reforça o papel do patriarcado, e
não nos permite pensar, por exemplo,
nas diversas formas de violências
com as quais as crianças convivem
e suas origens”, explica a
pesquisadora.
“Existe muita desinformação
quando o assunto é o debate de gênero
nas escolas. Há um ataque
protagonizado pela bancada conservadora
no Congresso Nacional,
que insiste falar em “ideologia de
gênero” – o que não existe. O que
eles não falam é que nós estamos
debatendo igualdade e cidadania.
A escola é um espaço de aprendizagem,
mas também é um espaço plural
de convivência e de debate sobre
direitos”, completa a líder estudantil
Daniela.
As propostas que buscam a garantia
da igualdade nas escolas vão
muito além das paredes das salas de
aulas. Ao mesmo tempo em que elas
possibilitam que meninos e meninas
possam, igualmente, aprender
o que está previsto no currículo escolar,
também são fundamentais
no processo de aquisição de competências
socioemocionais fundamentais
para o convívio social.
“Não trazer certos debates para
o meio escolar nega a possibilidade
do diálogo e do desenvolvimento
de um pensamento crítico. A discussão
de assuntos como questões
de poder, direitos e dignidade possibilita
a capacidade crítica de analisar
e entender as relações de poder
na sociedade e não simplesmente
aceitá-las de forma rasa. Esses
diálogos quebram alguns padrões
criados e reproduzidos”, enfatiza
a cientista política.
Segundo Ana Carolina, também
é importante que essas desigualdades
enfrentadas na sociedade hoje
sejam discutidas, para que todos
possam compreendê-las e pensar
em meios para combatê-las fora do
ambiente escolar. “Temos perdido
a oportunidade de ouvir e respeitar
outras histórias e experiências.
A empatia nos ajuda a pensar o nosso
papel na sociedade e na coletividade;
nos ajuda a compreender o
lugar que ocupamos e as estruturas
que nos colocam nesses lugares”.
“
Não trazer certos
debates para o
meio escolar nega
a possibilidade
do diálogo e do
desenvolvimento
de um pensamento
crítico”
Uma escola para
todas as diferenças
Em Belo Horizonte, quando deram
início às discussões do Instituto
Casa Viva, em 2015, os educadores
pensaram no respeito às diferenças
como pedra fundamental. O professor
de filosofia e associado do colégio,
Christian Bravo, explica que o
compromisso da Casa Viva com a diferença
a caracteriza como um projeto
que se esforça e se desdobra ao
máximo para que as convivências
sejam múltiplas. “Entendemos que a
escola tem que estar aberta ao múltiplo.
Pensamos na diferença como
tudo aquilo que é posto. Entendemos
que a diferença é um valor. Não
se trata de ter espaço para meninos
ou meninas trans, não-binários ou
com Síndrome de Down, por exemplo.
Se trata de entender que toda a
diferença é potente. Quando pensamos
em um grupo de sala de aula,
vemos que um grupo homogêneo
tem pouco a contribuir para o seu
próprio crescimento. Enxergamos
que a escola tem que criar um ambiente
propício ao encontro”.
Entre as inúmeras experiências
de inclusão e respeito à diversidade
vivenciadas pela Casa Viva, desde
a sua fundação, estão o acompanhamento
de alguns processos de
transição de gênero de alguns alunos.
Em 2017, a direção foi procurada
por uma aluna que havia passado
pelo processo de mudança de
gênero e que solicitou que a instituição
passasse a identificá-la pelo
seu nome social. O pedido da aluna
foi levado para a assembleia e debatido
coletivamente pela comunidade
escolar.
Revista Elas por Elas - março 2020
71
/ Mídia Ninja
“
O discurso da
intolerância e
do ódio encobre
uma busca por
poder”
“As assembleias na Casa Viva
são lugares onde aquilo que cada
sujeito entende como sendo de
domínio público é posto. Essa aluna,
então, colocou o nome que ela
gostaria de ser chamada. E foi uma
experiência muito marcante. Esses
dispositivos de fala e de poder são
muito importantes. Uma coisa é o
coordenador falar que uma aluna
quer ser tratada pelo nome x. Outra
coisa é essa pessoa se colocar
diante de todos e dizer isso. Para
isso acontecer, é preciso criar um
ambiente amigável e propício a isso.
O lugar da escola nesse momento
foi apoiar e fazer valer a palavra e
isso é uma instituição democrática”,
afirma Christian Bravo.
“Somos muito austeros quanto
ao respeito. Já vivenciamos um
caso de um aluno que estava fazendo
piadas com outro por causa da
orientação sexual. Essas situações
são coletivizadas e explicamos que
se esse tipo de comportamento continuar,
não será aceito nesta comunidade.
Quando uma fala fere a
existência do outro, ela deixa de ser
benquista em um ambiente democrático
e passa ser uma fala opressiva
que não é bem-vinda”, afirma.
O educador alerta que todo o
projeto desenvolvido pela Casa Viva
faz parte de uma construção constante
e atenta. “Não se trata apenas
de nós falarmos que isso ou aquilo
precisa ser aceito e respeitado. Não
existe um programa pronto que
será aplicado em uma escola e irá
acabar com todos os tipos de preconceito.
Ou desenvolvemos dispositivos
constantes ou um programa
isolado não vai dar conta”, afirma.
Mães pela Diversidade
A coordenadora estadual da ONG
Mães Pela Diversidade, Miryan Salun,
afirma que o discurso da intolerância
e do ódio encobre uma busca
por poder. Para ela, a situação atual
caminha para o regresso à Idade
Média. “Se pensarmos que o Brasil
ocupa o quinto lugar em feminicídio
e o primeiro lugar em mortes de
pessoas LGBTQI+ do planeta, vemos
que passamos por um enorme problema
social no Brasil. A única maneira
que temos para reverter essa
situação é justamente através do
debate de gênero e diversidade nas
escolas. Temos que ter esse olhar e
esse foco na educação, porque é ela
que transforma as pessoas”.
O Mães pela Diversidade é um
grupo de familiares de pessoas
LGBTQI+ que se uniram para enfrentar
a discriminação com base
em orientação sexual, identidade
de gênero e condição sexual. Presente
em quase todos os estados
do país, oferece apoio e informação
para os pais e mães de lésbicas,
gays, bissexuais, pessoas trans, travestis
e intersexo.
72
Revista Elas por Elas - março 2020
“
Não existe escola
sem partido. Tem
partido sim, e é dos
fundamentalistas”
/ Leandro Taques
“O surgimento do Mães foi uma
surpresa para os fundamentalistas
e conservadores. Eles não achavam
que nós íamos nos posicionar diante
da sociedade, pensavam que iríamos
ficar dentro do armário. Se surpreenderam
com a força da família
que, em todos os discursos deles, era
invisibilizada. Vários segmentos da
sociedade começaram a nos procurar.
Surgiu uma curiosidade natural.
Quem são essas pessoas, essas
mães, que estão gritando aí ‘nosso
filho não é doente não’, ‘nosso filho
existe’, ‘eles trabalham’, ‘pagam
impostos’. Hoje somos convidadas
para falar de gênero e sexualidade
em vários espaços. Em todos esses
lugares, somos abordadas por pessoas
que têm familiares ou que são,
elas mesmas, LGBTQI+. Vemos que
também estamos fazendo um trabalho
social. Estamos ajudando muitas
pessoas não só a discutir e entender,
mas também a se entender”.
Câmara de Belo Horizonte
debate Escola Sem Partido
Após duas semanas de debates
acirrados e muitos protestos, a Câmara
Municipal de Belo Horizonte
aprovou, em primeiro turno, no dia
14 de outubro, o Projeto da Escola
Sem Partido (PL 274/17), que proíbe
as escolas de tratarem temas relacionados
à orientação sexual dos
alunos, além de determinarem que
os professores não poderão promover
concepções religiosas, morais,
políticas, partidárias e ideológicas
em sala de aula. Foram 25
votos favoráveis, sete contrários e
uma abstenção. Até o fechamento
desta edição, não havia data definida
para a votação do projeto em
segundo turno.
O grupo Mães Pela Diversidade
se posicionou contra os argumentos
utilizados pela chamada “bancada
cristã”, que liderou a defesa
do projeto. “Não existe escola sem
partido. Tem partido sim, e é o dos
fundamentalistas. O que eles querem
é instituir o partido da opressão,
por meio de um discurso religioso,
moralista e hipócrita. A educação
deve ser plural, inclusiva e
possibilitar que todas as pessoas
pensem, reflitam, argumentem e tenham
seus próprios posicionamentos
respeitando as diferenças”, ressalta
Miryan.
As sessões de debates acerca do
projeto de lei protagonizaram cenas
lamentáveis de truculência e
agressão a professores contrários
ao projeto nas dependências da
própria Câmara. Segundo informações
do Sindicato dos Trabalhadores
em Educação da Rede Municipal
de Belo Horizonte (Sind-Rede), três
professores membros do sindicato
foram violentamente agredidos.
Em protesto contra as agressões, o
Sind-Rede convocou uma paralisação
que alcançou cerca de 80% das
Revista Elas por Elas - março 2020
73
escolas da rede municipal, no último
dia 11 de outubro de 2019.
Através de nota de repúdio, o Sindicato
dos Professores do Estado de
Minas Gerais (Sinpro Minas) manifestou
publicamente sua indignação
à votação do projeto de lei. “A aprovação
foi realizada sem debate com
a sociedade civil e com violência policial
contra os manifestantes dentre
eles professores e estudantes,
durante as sessões na Câmara”, diz
o texto. A presidenta do Sinpro Minas,
Valéria Morato, denuncia que
o projeto “é uma desconsideração
à dedicação dos/as professores/as,
que constroem o projeto pedagógico
da escola e depois são impedidos
de mostrar para os estudantes como
é o mundo na realidade: plural e diverso.
Esse impedimento tenta encobrir
que a escola é um reflexo da
sociedade. Escola sem Partido, que
na verdade é uma lei da mordaça,
vem impedir que o professor atue
na formação de cidadãos verdadeiramente
comprometidos com as
transformações sociais. Ser professor
nos tempos do governo Bolsonaro
é lutar e resistir para ter o direito
de dizer que a terra não é plana”.
O coordenador-geral da Campanha
Nacional pelo Direito à
Educação, Daniel Cara, avaliou, em
entrevista à Revista Fórum, que, se
aprovada, a proposta representa o
controle do trabalho docente e uma
aula medíocre para os estudantes. “É
inaceitável lecionar criacionismo,
questionar a luta das mulheres pelo
direito ao voto e a serem votadas,
relativizar o absurdo da violência
do nazismo. São essas as pautas do
Escola sem Partido. Este movimento
representa a escola de um partido
único, o partido ultraconservador,
que não aceita a sociedade brasileira
como ela é: de diversas composições
familiares, diversas religiões. A
escola tem que ser um espaço de
conscientização sobre essa injustiça
e de mobilização de cidadãos para
que essa injustiça seja vencida”,
destaca Daniel.
Para a coordenadora do Mães
pela Diversidade, por trás do Projeto
Escola sem Partido existe um
projeto muito maior e mais perigoso
para o país. “A educação é a
única forma de assegurarmos uma
nação com respeito à diversidade
humana. Não podemos deixar que
a escola seja ocupada no sentido
de criar pessoas sem conteúdo
para se posicionar perante a vida.
Não podemos permitir manipulações
com vistas a estabelecer um
relacionamento hegemônico que
querem impor às nossas crianças
como verdade absoluta. A Escola
Sem Partido é um retrocesso enorme
e vai legitimar toda a violência
que vemos – tanto no feminicídio,
como na população LGBTQI+”.
/ Mídia Ninja
74
Revista Elas por Elas - março 2020
A presidenta do Sinpro Minas
reafirma que, infelizmente, a correlação
de forças na legislativo municipal
é desfavorável. “Os vereadores
fundamentalistas estão fazendo
uma cena, mas sabem que
este é um projeto inconstitucional.
Estamos juntos com o Sind-Rede
para realizar manifestações públicas
e chamar a população para
realmente debater o que significa
este projeto. O Sinpro e a CTB (Central
dos Trabalhadores e Trabalhadoras
do Brasil) estarão juntos à
frente deste processo tanto político,
quanto jurídico”.
Prova anulada
Paralelamente aos protestos contra
o projeto Escola sem Partido, a
anulação de uma prova de português,
a pedido de alguns pais de alunos
do Colégio Loyola, em Belo Horizonte,
ganhou repercussão e foi alvo
de duras críticas. O teste aplicado no
segundo ano do ensino médio utilizou
uma crônica escrita pelo ator
Gregório Duvivier com teor crítico
à atual situação política do país. Em
nota divulgada em seu site, o Sinpro
Minas afirma que “a escola é lugar do
saber plural e das diversas visões de
mundo”. O texto ressalta que o Brasil
passa por um período “polarizado,
em que qualquer alusão a pensamentos
críticos ou que produzam
reflexões são prontamente rechaçados
por alguns setores. E esse tipo
de atitude caminha na contramão do
processo educativo que necessita ser
crítico, reflexivo, amplo e democrático”.
O Sinpro salienta que repudia
“qualquer tipo de censura, retaliação
e mordaça aos trabalhadores da
educação em seu pleno exercício ético
e consciente da educação no papel
de educadores que são”.
O cancelamento também foi rechaçado
por um manifesto assinado
por cerca de 400 alunos/as e ex-
-alunos/as da instituição de ensino.
A nota enfatiza que “a diversidade
de ideias, tão cara ao Colégio, é característica
fundamental do Estado
Democrático de Direito, e, portanto,
deve ser defendida. Nós, enquanto
alunos e antigos alunos do
Colégio Loyola, ressaltamos o nosso
compromisso com a pluralidade
de ensino, com a autonomia dos
professores e com a defesa da liberdade
de expressão. Dessa forma,
repudiamos os ataques direcionados
ao corpo docente do Colégio,
assim como a propagação de
informações equivocadas a respeito
do ocorrido. Contestamos, também,
o posicionamento adotado
pelo Colégio ao anular a avaliação
e, assim, ameaçar a autonomia dos
professores em sala de aula”.
“
A escola é
lugar do
saber plural e
das diversas
visões de
mundo”
Diálogo e resistência
A líder estudantil Daniela Moura
analisa que o projeto proposto
pela bancada cristã da Câmara
Municipal (CMBH) está alinhado ao
discurso do presidente Jair Bolsonaro,
desde a campanha de 2018.
“Estamos vivendo um período muito
conservador, a bancada religiosa
no Congresso cresceu muito e
isso tudo acaba poluindo muito as
pessoas. Quando a gente começa a
trabalhar melhor esses assuntos e
mostra para a sociedade como eles
são importantes, isso contagia as
pessoas. Por mais que tenhamos
pais e mães conservadores, que
acreditam na falácia da ideologia
de gênero, também temos muitos
outros que estão na luta dentro das
escolas, ao lado dos seus filhos”.
Para ela, esse é um momento de
resistência e diálogo com a sociedade.
“Se formos pensar sob a perspectiva
de um pai e uma mãe que viveu
em uma escola diferente e em um
século diferente, é muito complicado.
Quando as pessoas veem um estudante
do século 21, que consegue
se empoderar e cobrar os seus direitos,
ficam surpresos. Defendemos
um futuro e uma sociedade melhor
e, para isso, precisamos saber conversar
com essas pessoas que não tiveram
acesso à informação que temos
hoje. Apesar de toda essa agenda
retrógrada, precisamos pensar
um pouco sobre perspectivas e futuro.
Mesmo com todos esses ataques,
estamos formando o nosso pequeno
exército. Existem muitos grêmios
e muitas entidades estudantis
que têm levado esses debates para
dentro das escolas”.
Revista Elas por Elas - março 2020
75
/ Natalia Gomes
76
Revista Elas por Elas - março 2020
Indígenas
Mulheres indígenas
organizadas em defesa
da floresta e da vida
Mais de 500 anos de colonização e o problema do povo indígena segue
o mesmo – a invasão de suas terras e as consequências disso, como a
destruição do meio ambiente e a agressão aos direitos humanos
por Nanci Alves
Lutar
pela
demarcação
de terras indígenas
nunca
foi
tão
urgente
como
nos
dias atuais,
no
Brasil.
Revista Elas por Elas - fevereiro 2020
77
O agronegócio, os madeireiros,
o garimpo e a mineração são uma
constante ameaça aos indígenas,
que, cada vez mais, se mobilizam
e se organizam para este enfrentamento.
Na avaliação da conselheira
do Conselho Indigenista Missionário
(CIMI), da Regional Leste
II (Minas Gerais e Espírito Santo),
Maria Alda Oliveira, bem mais
grave do que a prática de violência
é a constatação de que ela é acumulativa,
promovida e desencadeada
ao longo de décadas, de modo
sistêmico, por particulares e também
pelo próprio Estado brasileiro.
“Esta violência aumentou com
a gestão do atual governo, que utiliza
o ódio e o preconceito como estratégias
para ‘governar’. Podemos
afirmar que há, no Brasil, a institucionalização
da violência como
prática de governos. É nosso compromisso
e um desafio proteger a
vida dos povos, juntamente com
eles, e isso compreende proteger
as florestas, impedir invasões em
seus territórios, garantir os direitos
já conquistados, além de continuar
lutando por novas conquistas”,
afirma.
Neste contexto antigo de acúmulo
de violências, as mulheres
indígenas, cada vez mais, se fortalecem
enquanto resistência e ganham
espaço, formando associações
e movimentos para lutar em
prol da vida e dos direitos dos povos
indígenas. “Na maioria dos povos,
as mulheres têm desempenhado
bem seu papel junto às comunidades,
sem deixar de ser mãe, conselheira,
companheira, mesmo enfrentando
a quebra do machismo
/ Agência EBC
78
Revista Elas por Elas - março 2020
dentro e fora das comunidades. E
elas têm conquistado espaços significantes:
nas universidades, nos
movimentos de políticas públicas e
de controle social, nos partidos políticos,
nas ações e mobilizações de
incidências e lutas por conquistas
e defesa dos territórios”, destaca
Maria Alda.
De acordo com a presidenta da
Organização de Mulheres Indígenas
do Acre e da Amazônia na região
de Rondônia, Letícia Yawanawa
(foto), do povo Yawanawa,
da terra indígena Rio Gregório, aldeia
Mutum (AC), região de Tarauacá,
a luta na Amazônia e em todo o
Brasil é um desafio sem tamanho. “A
gente ultrapassa o que nos limita. Só
o fato da indígena ser uma liderança,
que está ao lado do seu líder, já
é desafio, pois no passado nossa cultura
nos limitava nesse aspecto. Ultrapassamos
isso e a luta hoje é, junto
com nossos líderes, para o trabalho,
pela floresta em pé – sem derrubada,
sem queimada, sem degradação,
destruição. Defendemos nosso
território para a gente continuar
sobrevivendo, livres, mantendo a
nossa cultura, os costumes”, afirma.
Letícia Yawanaw diz que o governo
atual do país provoca em todos
a necessidade da luta pelos direitos
humanos, pela vida, pela terra,
etc. Por isso, todos os territórios
indígenas organizaram a 1ª Marcha
de Mulheres Indígenas, em agosto
(2019). Cerca de 2.000 brasileiras estiveram
em Brasília para dar visibilidade
às ações que elas desenvolvem
por todo o país. A Marcha recebeu
como tema “Território: nosso
corpo, nosso espírito” e refletiu
sobre questões relativas à garantia
dos direitos humanos e cuidados
com o meio ambiente. “Foi muito
bom. Vamos fazer a Marcha de
dois em dois anos, pois não dá mais
para ficar só na aldeia. Temos que
sair, porque o governo Bolsonaro
nos obriga a ir para a luta, nos insulta
a sair com nossos cocares, nossa
cultura, nossas danças a protestar
contra a atuação dele”, desabafa
a liderança indígena, ao reforçar
que a terra dos Yawanaw já é demarcada,
mas a luta é única, para
todos que ainda não conseguiram
a demarcação da terra. “Mas mesmo
sendo demarcada, corremos
risco, pois a terra do meu povo faz
divisa com grandes latifundiários
que tiram madeira. Para isso, fazem
ramal (caminhos feito por tratores
para os caminhões levarem a
madeira) e estão bem perto da nossa
cerca. E isto nos coloca em risco,
facilitando a chegada de estranhos
“
Temos uma conexão
espiritual com a nossa
Floresta, nossa Mãe
Terra. Somos filhos
da Terra, precisamos
cuidar e não é só para
nós, povo indígena,
é para todos. Sem a
Floresta, seremos um
povo sem vida, uma
árvore sem raiz”
nas nossas aldeias. Em nossas terras,
somos 18 povos, 34 terras indígenas
e 458 comunidades. Somos
em torno de 25 mil pessoas entre homens,
mulheres e crianças”.
Sobre o fogo na Amazônia, Letícia
Yawanaw conta que é uma
constante ameaça. “Ele chegou em
nossas comunidades. A imprensa
não mostra porque é muito longe,
mas teve fogo com grande prejuízo
- queimou nossa medicina, nossa
biodiversidade. E o governo ainda
tem coragem de falar que são os indígenas
que queimam. Nós protestamos
contra estas palavras. A gente
junta tudo onde vai fazer plantio
e faz o roçado, sem derrubada
ou queimada. Elas levam à devastação,
e nós sempre preservamos,
porque, pra nós, indígenas, nosso
território é sagrado. Temos uma conexão
espiritual com a nossa floresta,
nossa Mãe Terra. Somos filhos
da terra, precisamos cuidar e
não é só para nós, povo indígena,
é para todos. Sem a floresta, seremos
um povo sem vida, uma árvore
sem raiz”, diz.
De acordo com a liderança, a Organização
das Mulheres Indígenas
do Acre e da Amazônia na região de
Rondônia faz um trabalho de fortalecimento
da cultura, do uso da
medicina tradicional, da segurança
alimentar, da comida tradicional
saudável, da preservação da
floresta em toda a região que atua
– o Acre, sul da Amazonas e noroeste
de Rondônia. “E, agora, estamos
lançando a Campanha das Guardiãs
da Floresta e da Mãe Terra. Vamos
viajar para toda esta região
levando informação, formação, e
Revista Elas por Elas - março 2020
79
conversar sobre nossos direitos, a
preservação da terra, da floresta e
da água. Para isso, precisamos da
colaboração de quem possa ajudar
com qualquer quantia, pois vamos
de barco a lugares que levam até 10
dias de viagem. Precisamos de recursos
para ajudar o trabalho das
parteiras voluntárias (que vão nas
comunidades ajudar no parto natural),
para o combustível e motor
para os barcos, etc. Infelizmente,
não temos apoio do governo, porque
ele não quer que lutemos pela
preservação, pela vida. Precisamos
cuidar do meio ambiente e ampliar
nossa medicina, nossa farmácia
viva. Como agradecimento, enviaremos
pelos Correios um presente
simbólico (colar, brinco, pulseira,
etc), feito com sementes da floresta
e abençoado pelo Pajé, para
cada pessoa que colaborar com
esta campanha”, conta. Para ajudar
na campanha, basta fazer o depósito
no Banco do Brasil, agência
5790-8, conta corrente nº 54901-0,
CNPJ 07.536.473/0001-57, em nome
de OMI do Acre Sul. O comprovante
do depósito deve ser enviado pelo
whatsApp (68) 99946-3035.
O eco da Primeira Marcha da
Mulher Indígena
“Em tempos de sociedade adoecida,
nós somos um movimento de
cura”. É o que defende Célia Xakriabá,
do Povo Xakriabá, do município
de São João das Missões (Minas
Gerais, divisa com a Bahia). Ela foi
uma das organizadoras da I Marcha
das Mulheres Indígenas e acredita
que a manifestação deu visibilidade
à mulher. “Muitas saíram de suas
aldeias pela primeira vez. Foram
representações das cinco regiões do
país e mais de 110 povos. Atingimos
nossa meta, que era de levarmos
duas mil mulheres indígenas. Foi
importante ver as mulheres dialogando,
se reconhecendo. O processo
de organização e mobilização do
evento demandou muito cuidado e
“
Em tempos
de sociedade
adoecida, nós
somos um
movimento
de cura”
negociação, pois não foi fácil ocupar
o espaço, em Brasília, como sempre
fazíamos no Acampamento Terra
Livre, realizado todos os anos lá.
O Ministro da Justiça, Sérgio Moro,
convocou as forças nacionais para
nos receber, como forma de nos
intimidar”, revela.
Célia Xakriabá (foto ao lado)
destaca que a partir da Marcha virá
o encorajamento para que, na próxima
eleição, mais indígenas possam
ser eleitas. “Se tivermos uma
prefeita ou vereadora, já será o impacto
da Marcha. Este foi um dos
temas - a necessidade de ocupar
outros espaços, para além do chão
do território. Estão todas preparadas,
pois a nossa escola é a luta. E
para concorrer a uma candidatura
indígena, não fazemos exatamente
campanha em período de eleição.
Uma parlamentar indígena se faz
com luta e trajetória”, afirma.
/ Douglas Freitas
80
Revista Elas por Elas - março 2020
/ Douglas Freitas
Durante a Marcha, as participantes
deram visibilidade também às
demandas das comunidades indígenas.
“Além do território, temos muitas
lutas, como a garantia da saúde
e da educação gratuita e de qualidade
nas comunidades indígenas.
Este governo quer municipalizar a
saúde, tirando da responsabilidade
da Secretaria Especial de Saúde Indígena
(Sesai). A municipalização é
um perigo, vamos sempre depender
da vontade política da prefeitura.
A educação é estadualizada exatamente
para evitar a perseguição política.
E a política pública das questões
indígenas não pode ser compreendida
como política de governo
e sim de Estado. Essa é a nossa
garantia de que ela será sempre realizada,
independente de quem for
eleito. Mas, na realidade, já estamos
sofrendo com esta história de municipalização,
pois a verba não está
sendo repassada para as comunidades
indígenas. Enfrentamos sérios
problemas na saúde”, diz.
Em Minas, o governo segue a linha
do governo federal e, assim, a
população indígena nunca é prioridade.
“Existe uma política de privatização.
Em 2019, junto com outros
povos, tivemos que ocupar algumas
“
A política pública das
questões indígenas
não pode ser
compreendida como
política de governo e
sim de Estado”
superintendências regionais para
conseguir uma agenda com a secretária
de Educação [Júlia Sant’Anna],
que desconhece a história e a realidade
do povo indígena no estado,
pois veio do Rio de Janeiro. São 3.300
alunos Xakriabá. Com essa mobilização,
conseguimos impedir que juntassem
alunos de turmas diversas
em nossas comunidades, pois queriam
reduzir o número de professores.
Foi uma conquista, mas ainda
temos muitas lutas”, afirma.
Célia Xakriabá sempre estudou
na escola indígena até ir para a
UFMG, onde se graduou em Ciências
Sociais e Humanidades, com formação
intercultural para educadores
indígenas (2013). Foi professora de
Cultura até 2015, quando foi convidada
a ocupar o cargo de coordenadora
da educação escolar indígena em Minas
Gerais (nunca tinha existido um
espaço de governança neste setor),
pela então secretária de Educação,
Macaé Evaristo. Depois fez mestrado
na UNB, em Brasília, se formando
em 2018 em Desenvolvimento Sustentável.
“Em seguida, fui ajudar as
candidaturas indígenas nas últimas
eleições, pela comitiva nacional. Hoje,
faço doutorado na UFMG em Antropologia”.
Apesar de existir muitas
indígenas com doutorado no país,
ela é a primeira a fazer doutorado
na UFMG. “Mas mais importante
do que ser a primeira, é questionar
por que ser a primeira, por que até
hoje, séc. 21, ainda não tem professora
indígena na UFMG? Tem apenas
4 em outras universidades no Brasil.
E quantas pessoas estão dispostas
a votar em indígenas nas próximas
eleições?”, reflete.
Revista Elas por Elas - março 2020
81
/ Mídia Índia
“
Hoje, estamos
vivendo um
genocídio, ecocídio,
etnocídio e
epistemicídio. O
Estado autorizando
matar o corpo,
o pensamento, o
modo de vida e a
identidade”
Célia critica o governo por não
respeitar o modo de vida do povo
indígena e tentar recolonizar o seu
modo de fazer educação. “Temos
condições de formar na ciência do
território. Neste momento em que
também a ciência está em crise, temos
conhecimento de cura. O conhecimento
precisa dialogar com
a vida. As pessoas estudam mas
se adoecem, porque não dialogam
com a vida. A ciência só vai reconhecer
nosso lugar de conhecimento
o dia que não tiver nenhuma
árvore neste país”, afirma.
A liderança indígena ressalta
que a intelectualidade da mulher
indígena não está apenas na elaboração
do pensamento, mas também
nas mãos e nos pés que fazem
história. “Quando vou escrever, me
lembro da história e normalmente
são vivências coletivas – a gente
escreve a partir do que a gente
viveu. Hoje, estamos vivendo um
genocídio, ecocídio, etnocídio e
epistemicídio. O Estado autorizando
matar o corpo, o pensamento, o
modo de vida e a identidade. São
vários estágios da morte. Quando
executa um corpo, não mata só
uma liderança; quando arranca o
direito territorial, já matou várias
vezes”, diz Célia Xakriabá, que esteve
em setembro 2019, na França,
convidada pela Anistia Internacional
e pela ONG Autres Brésils,
onde participou de vários eventos
para falar sobre a realidade indígena
no país e apresentar um
documentário sobre as mulheres
indígenas em movimento. “Foi importante
nossa participação e isso
motivou mulheres parlamentares
internacionais a criarem uma rede
de amparo, que vai apadrinhar indígenas
que estão sob ameaça no
Brasil”, conta.
E em outubro e novembro de
2019, uma comitiva de lideranças
indígenas brasileiras realizou a
Jornada Sangue Indígena: Nenhuma
Gota Mais (foto), que percorreu
12 países da Europa, para denunciar
as graves violações que os povos,
florestas, biomas e toda a biodiversidade
estão sofrendo, principalmente
a partir da posse de Jair
Bolsonaro. “Compartilhamos vídeos
e cards sobre a Jornada pelas redes
sociais em quatro línguas: português,
inglês, espanhol e francês.
Para nós, informação também é
ferramenta de resistência e, para
contrapor essa onda de fake news,
temos as mídias independentes
como nossas aliadas”, explica Célia
Xakriabá, que faz parte da comitiva
que rodou o mundo para dialogar
e buscar apoio de autoridades
públicas, ativistas, artistas e lideranças
dos movimentos sociais.
82
Revista Elas por Elas - março 2020
“
Temos autonomia
para ter nossa
organização e
decidir sobre nosso
futuro, como o Não
indígena escreveu
na Constituição
Federal de 1988 e
na Convenção 169
da OIT”
/ Marquinho Mota
Ângela Kaxuyana, membro da
Coiab (Coordenação das Nações
Indígenas da Amazônia Brasileira)
também participou da Jornada
e destaca a importância da campanha:
“A Jornada foi no sentido de
alertar o parlamento europeu, a
bancada de políticos favoráveis à
questão indígena, a sociedade civil
e principalmente os grandes empresários
sobre o quão eles têm
responsabilidade sobre este processo
de violação dos nossos direitos
na medida em que são compradores,
consumidores dos produtos
do agronegócio brasileiro que é regado
com o sangue indígena”.
Formação profissional
como estratégia de luta
A entrada na universidade tem
sido o caminho de muitas indígenas
para o fortalecimento da luta em
defesa dos seus povos. Alessandra
Munduruku (foto), aldeia Praia do
Índio (Médio Tapajós) vive hoje em
Santarém, onde foi cursar Direito.
“Não foi fácil sair da aldeia, pois somos
muito apegados à terra. Vim
trazendo marido e filhos para não
viver sozinha aqui. Mas temos que
resistir. E ser advogada é importante
para mostrar que a forma de
luta está também no papel e que a
gente respeita isso. Temos autonomia
para ter nossa organização e
decidir sobre nosso futuro, como
o não indígena escreveu na Constituição
Federal de 1988 e na Convenção
169 da OIT. Mas não estão
respeitando nossos direitos e este
novo governo federal quer criar
outras leis contra os povos indígenas,
tirando direitos conquistados
por uma luta antiga. Os indígenas
estão tendo que parar de trabalhar,
de produzir, para ficar gritando, se
defendendo”, desabafa.
Alessandra Munduruku faz parte
da Associação Indígena Wakoborun,
do Alto Tapajós (PA), e ressalta
a importância da união das mulheres.
“Eu vendo artesanato, produzido
com coco e sementes, para ajudar
as outras mulheres, porque temos
que estar unidas. Tudo vem da
natureza. E este projeto de morte
do governo quer retirar a gente e os
ribeirinhos dos nossos territórios e
alagar tudo. Hoje, sofremos fortemente
com a entrada do garimpo
ilegal dentro das nossas terras. Nós
sempre denunciamos os invasores,
como os madeireiros, mas em 2019
isso aumentou muito”, destaca.
A liderança lembra que o atual
presidente do país falou que os
indígenas não são capazes e “nós
mostramos, o tempo todo, que somos
sim. Defendemos a floresta,
as águas e a vida. Eu e muitas indígenas
em todo o Brasil saímos
Revista Elas por Elas - março 2020
83
de nossas aldeias, enfrentamos
enormes desafios para fazer curso
de graduação, pós-graduação e
doutorado. Estudamos e nos organizamos
para impedir o que o governo
quer fazer dentro do território,
sem consultar o povo”, afirma.
Alessandra Munduruku chama a
atenção para a contaminação das
águas dos rios com a mineração e o
garimpo. “A gente sofre vendo o rio
e o peixe sendo contaminados pelo
mercúrio. Antes a gente tinha malária,
mas hoje temos muitas outras
doenças graves por causa desse metal
e dos venenos do agronegócio”,
afirma. Ela destaca a mudança na
Fundação Nacional do Índio (Funai),
que deveria defender os direitos
dos povos indígenas. “Hoje, não
acreditamos mais na Funai, principalmente
em Brasília, pois querem
dar a terra para o não índio, para
o grande negócio que só destrói.
Muitos falsificam documentos e
se apropriam das terras enquanto
que, para gente, é uma verdadeira
burocracia. Você tem que provar
que seus antepassados já estavam
ali. Até conseguir provar isso, a terra
já foi invadida”, diz, ao reforçar
que o povo indígena não vai aceitar
projetos de morte da mineração, hidrelétrica,
ferrovia, hidrovia, agronegócio,
portos, graneleiro, etc.
“Bolsonaro fala que os indígenas
precisam entrar na sociedade. Mas
que sociedade é essa? Essa em que
nós ficamos pobres, sem território,
sem rio, esmolando um território
que eles tomaram? O dever do governo
é criar e manter uma política
/ Deputada Federal Joênia Wapiurana
pública para os indígenas, para os
ribeirinhos, mas isso não existe. A
84 Revista Elas por Elas - março 2020
/ Luis Macedo - Câmara dos Deputados
nossa saúde e a educação estão sucateadas
e ainda não temos direito
ao território. É um crime. A gente
continuará gritando, mesmo sendo
ameaçado, pois as sementes vão
continuar”, finaliza.
Representatividade política
Resultado de muita luta e organização,
os povos indígenas no Brasil
conseguiram eleger sua primeira
deputada federal – Joênia Wapichana,
do povo Wapichana, filiada
à Rede de Sustentabilidade (REDE),
representando Roraima, nas eleições
de 2018. Antes dela, até hoje
apenas um indígena, cacique xavante
Mário Juruna, havia ocupado
uma cadeira na Câmara Federal
(1983-1987). Depois de 35 anos,
chega Joênia com muita garra e coragem.
Ela foi a primeira mulher
indígena a se formar em Direito no
país, em 1997, pela Universidade
Federal de Roraima (UFRR). Na Universidade
do Arizona (EUA), cursou
mestrado. A deputada nasceu
na comunidade indígena Truarú
da Cabeceira, na etnoregião Murupú,
de etnia Wapixana.
Como parlamentar, acredita que
seu desafio é fazer com que a causa
indígena tenha visibilidade e que
haja avanço nas consolidações das
garantias constitucionais para que
o direito seja de fato exercido. “Que
ele saia do papel e que os povos indígenas
possam usufruir o que a nossa
Constituição já determina – respeito
à demarcação das terras indígenas.
Exercer a cidadania, ocupando
os espaços que ainda não ocupam,
participar do processo de tomada
de decisão do país, ter respeitado
e exercido o seu direito de consulta
livre, prévia e informada, fazer
com que as terras indígenas sejam
vistas como estratégias de proteção
à cultura, ao meio ambiente, à coletividade”,
explica. A parlamentar
defende que os direitos dos povos
indígenas sejam considerados também
responsabilidade de cada brasileiro
e que as atividades, que já desempenham,
sejam vistas como investimento
no planejamento de desenvolvimento
do país. “Não simplesmente
que os recursos naturais
sejam vistos com olhares de cobiça,
mas que sejam colocados como estratégias
ou formas de colaboração
dos povos indígenas com a sociedade
brasileira”, afirma.
Quanto à mulher indígena, Joênia
Wapichana destaca as mudanças
na realidade. “Avançamos no
exercício, no destaque e no protagonismo
em várias áreas. Mas precisamos
de mais representação política,
para que outras indígenas
“
Temos visto uma
Funai cada vez mais
em decadência, com
falta de investimento
nas suas estruturas
e no quadro de
funcionários”
possam colaborar com os seus conhecimentos,
valores e trabalhos
que desenvolvem em suas comunidades.
Também precisamos de políticas
públicas específicas voltadas
às mulheres”, acrescenta.
Sobre a Funai, a deputada não
é otimista. Criada em 1967, com a
função de apoiar na consolidação
dos direitos dos povos indígenas,
principalmente na proteção dos
direitos territoriais, ela não tem
cumprido seu papel. “Temos visto
uma Funai cada vez mais em decadência,
com falta de investimento
nas suas estruturas e no quadro de
funcionários. Um verdadeiro sucateamento,
falta de seriedade dos
nossos governantes, que não incentivam,
não fortalecem esse órgão
que cuida de 13% do Brasil. Apesar
das terras indígenas serem consideradas
patrimônio da União, não
está sendo dada a devida importância
em termos de orçamento.
Cada vez mais têm sido realizados
cortes, contingenciamento. É uma
falta de investimento sistemático,
não só nesse governo, mas agora
piorou. O presidente Bolsonaro
anunciou que usaria do seu
mandato para ‘rever’ a demarcação
das terras. Com a MP 870/2019, ele
tentou retirar a Funai do Ministério
da Justiça e passar para o da
Agricultura, que cuida do agronegócio.
Felizmente, conseguimos
reverter isso na ação judicial que
a REDE Sustentabilidade propôs no
Supremo e manteve a Fundação no
Ministério da Justiça, com a função
institucional de demarcar as terras
indígenas. Isso foi uma ameaça. Por
outro lado, existe uma perseguição
Revista Elas por Elas - março 2020
85
sistemática, uma pressão em cima
da Funai para que reveja todos os
seus critérios constitucionais de
demarcação, e também na própria
administração de quem conduz o
processo, interferindo na gestão e
na própria visão que a Funai tem
feito na proteção dos direitos dos
povos indígenas”, denuncia.
Representação indígena
Nas eleições de 2018, o Brasil
teve sua primeira candidata indígena
a compor uma chapa para disputar
a presidência da República – Sônia
Guajajara saiu como vice de Guilherme
Boulos (PSOL). A liderança,
do povo Guajajara/Tentehar (Terra
Indígena Arariboia, no Maranhão),
tem graduação em Letras e em Enfermagem
e pós-graduação em Educação
Especial. Sua militância indígena
e ambiental começou na juventude,
nos movimentos de base
e, desde então, vem se posicionando
no Congresso Nacional contra uma
série de projetos que retiram direitos
e ameaçam o meio ambiente. Em
2010, entregou o prêmio Motosserra
de Ouro para Kátia Abreu, à época
ministra da Agricultura, em protesto
contra as alterações do Código
Florestal. Com voz no Conselho
de Direitos Humanos da ONU, levou
denúncias às Conferências Mundiais
do Clima (COP), de 2009 à 2017,
ao Parlamento Europeu e a outras
instâncias internacionais. No ano
passado, discursou contra o governo
Temer e pela demarcação de terras
indígenas durante o Rock in Rio,
convidada pela cantora Alicia Keys.
Tem recebido vários prêmios e homenagens
pelo seu trabalho em defesa
da floresta e dos povos indígenas.
Sônia também fez parte da comitiva
que foi para a Europa com a
Jornada Sangue Indígena: Nenhuma
Gota Mais.
Qual é o maior desafio da mulher
indígena hoje?
Ser mulher já não é naturalmente
muito fácil. A gente sempre enfrentou
e ainda enfrenta a herança
do colonialismo com uma sociedade
patriarcal, que tenta impor ou
86
Revista Elas por Elas - março 2020
/ Liar Bianchini
delimitar o espaço que a mulher deve
ocupar. Para nós, indígenas, não é
diferente. Além desse machismo colonial,
a gente enfrenta uma velha
prática ou entendimento de que o
machismo, ou a não participação das
mulheres, faz parte da cultura e isso
tem dificultado muito a saída para
as indígenas ocuparem espaços diversos.
Tentamos romper essas barreiras
e, visivelmente, aos poucos, a
gente vem conseguindo superá-las.
Já temos muitas mulheres ocupando
espaços de decisão, de liderança,
para além das aldeias. E isso é
muito importante. Estar na luta da
mulher indígena é uma tarefa árdua
mas também muito compensatória,
porque a gente consegue colocar
todas as nossas forças de guerreira
em favor do movimento, dos direitos
e seguir firme na luta. Isso pra
mim é motivo de muita realização.
Como você começou a atuar na
defesa dos direitos dos povos
indígenas?
Eu sempre digo que eu comecei no
movimento desde quando eu nasci,
porque acho que quando a gente é
liderança a gente já nasce com esse
espírito inquieto, indignado, que
não consegue aceitar injustiças, a
subserviência. Sempre me coloquei
numa posição proativa, de ajudar
meu povo. Quando eu comecei na
estrutura organizacional, a partir
de 2001 – quando participei da I
Conferência Nacional Pós Marcha
dos 500 anos, em Porto Seguro – eu
tive a certeza de que não poderia
nunca mais ser a mesma. Até então,
nunca tinha ido a um movimento
indígena em nível de Brasil. Foi
neste momento que eu percebi e
descobri que há muitos indígenas
sem terra, sem o seu território.
Percebi isso fortemente na luta
dos povos indígenas do Nordeste.
Então, a gente organizou o movimento
indígena no estado do Maranhão
e daí nunca mais parei. Passei
pela coordenação da Coapima
(Coordenação das Organizações e
Articulações dos Povos Indígenas
do Maranhão), depois da Coiab
(Coordenação das Organizações
Revista Elas por Elas - março 2020
87
/ Mídia Ninja
/ Sônia Guajajara: primeira candidata indígena à vice-presidência no Brasil
Indígenas da Amazônia Brasileira)
e hoje já estou no segundo mandato
na Apibe (Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil).
Você é coordenadora executiva da
Apibe. Qual é a abrangência e missão
desta articulação?
A Apibe tem essa missão de articular
as lutas, conectar os movimentos
e trazer as vozes dos povos
indígenas de todos os cantos do
país para o mundo. É a maior organização
indígena no Brasil e realiza,
todos os anos, o Acampamento
Terra Livre, que já é considerada a
maior assembleia dos povos indígenas
do Brasil e a maior mobilização
mundial dos povos indígenas.
Ela tem esse papel fundamental de
unir o movimento, de trazer essas
pautas que congregam todos os
povos. Temos essa missão de lutar
pelos direitos territoriais, sociais
e coletivos, e dialogar com outros
movimentos não indígenas, com
o Estado brasileiro e, também, em
nível internacional, no sentido de
garantir sempre o cumprimento
dos nossos direitos.
Quantas associações de mulheres
indígenas existem no Brasil?
Como esses grupos se articulam
e conversam entre si? Eles têm
ações comuns?
Existem muitos movimentos de
mulheres em nível local, regional,
estadual, mas cada um se organiza
de seu jeito, conforme a tradição e
cultura de seu povo. E, nacionalmente,
nós realizamos a I Marcha
Indígena neste ano, que também
foi fruto de uma iniciativa chamada
Voz das Mulheres, que a gente
organizou em parceria com a ONU
88
Revista Elas por Elas - março 2020
Mulheres. No Voz, trouxemos uma
mulher de cada estado e fizemos
um levantamento da pauta das
indígenas. A partir daí, a gente
começou a realizar nossas plenárias
no âmbito do acampamento
Terra Livre e, neste ano, a Marcha,
com este momento de fórum. A
gente pode fazer ali a discussão
e cada mulher levantar as suas
preocupações. Enfim, estamos nos
fortalecendo e fazendo agora este
chamado para o Acampamento
Terra Livre, em Brasília (DF), de 27
a 30 de abril deste ano (2020).
Nas últimas eleições (2018), você
foi candidata a vice-presidente do
país, na chapa do Boulos (PSOL).
Como foi essa experiência?
Estar numa chapa presidencial foi
muito significativo para nós, povos
indígenas, porque ali não era
apenas uma representação indígena,
era uma representação de mulher
indígena, que é muito mais difícil.
E, para nós, isso foi um grande
passo. Na oportunidade, não
hesitamos em compor essa chapa.
A gente nunca recuou de nada
e não seria agora que a gente iria
dar pra trás. Então, aceitamos com
o papel de trazer a pauta indígena
e ambiental para dentro do debate
político eleitoral. Com certeza,
nós conseguimos alcançar nosso
objetivo, porque até agora nós estamos
colhendo resultados, que é
a maior visibilidade da luta indígena
e maior adesão às pautas ambientais.
Nós não temos dúvida de
que a nossa candidatura contribuiu
muito fortemente para a adesão
da sociedade.
Hoje temos Joênia como deputada
federal, eleita nas últimas eleições.
Isso foi resultado das lutas
das indígenas de todo o país? A
atuação dela no Congresso já conseguiu
ser percebida, trouxe algum
resultado positivo ou ela não
está conseguindo espaço?
A vitória da Joênia também foi
uma grande conquista, a primeira
mulher indígena eleita deputada
federal. Com certeza, a presença
dela está fazendo muita diferença
no Congresso, onde já articulou
a Frente Parlamentar Mista em Defesa
dos Direitos Indígenas. A presença
faz toda diferença e a Joênia
é uma presença legítima dos povos
indígenas ali dentro. Tem também
a mestra em Educação Chirley
Pankará, que faz parte do mandato
coletivo, pelo PSOL, a chamada
Bancada Ativista, em São Paulo.
Como tornar possível a eleição
de mais mulheres indígenas no
Brasil?
“
A gente nunca
recuou de nada e
não seria agora
que a gente iria
dar para trás”
Nós seguimos ajudando e apoiando
muitas indígenas a lançarem
suas candidaturas. No ano que
vem, vamos percorrer o Brasil incentivando,
orientando e apoiando-as
para se candidatarem nos
seus municípios. Não é uma tarefa
fácil, porque a campanha é muito
desigual diante do poder econômico
que prevalece, elegendo
aqueles que têm mais poder. Mas
queremos fazer as pessoas acreditarem
na política como uma coisa
boa, que atenda os interesses do
povo, e não dos candidatos.
Como lidar com o governo atual,
que vem passando por cima dos direitos?
Além da resistência, vocês
buscaram apoio internacional em
termos de boicote aos produtos do
agronegócio que são produzidos
em áreas indígenas. Como está
esse acordo?
É aterrorizante lidar com um governo
como este, que todos os dias faz
um anúncio que provoca um verdadeiro
desastre, desmonta, viola direitos,
que autoriza a destruição do
meio ambiente, desmatamento, autoriza
a mineração em territórios
indígenas, e que todos os dias destila
preconceito e racismo contra os
indígenas e à população mais pobre.
Mas, por outro lado, a gente se fortalece
e se alimenta para fortalecer a
luta coletiva. Fizemos a Jornada pelos
12 países da Europa, denunciando
as empresas que violam direitos
no Brasil e o genocídio que este governo
está autorizando em favor do
interesse financeiro. Nossa estratégia
é estar sempre em movimento.
Seguiremos resistindo para existir.
Revista Elas por Elas - março 2020
89
Sociedade
A lama que
inunda emoções
por Carina Aparecida
O impacto dos crimes de mineração reflete desigualdade
histórica de gênero e faz com que as mulheres sintam
mais as consequências. E o abalo psicológico tem revelado
que a tragédia está longe de ter um fim.
90 Revista Elas por Elas - março 2020
/ Isis Medeiros
Este texto iria começar com o depoimento
de Ana (nome fictício), a
primeira mulher com quem tentei
conversar no início desta reportagem
– uma entre tantas das atingidas
pelo crime da Vale no município
de Brumadinho (MG). Foram algumas
outras tentativas até ela avisar
que não daria a entrevista por
ser difícil ter que revisitar e recordar
aquele 25 de janeiro de 2019.
A negação de Ana me disse muitas
coisas. Percebi que falar sobre o
impacto dos crimes da mineração na
vida das pessoas é também falar sobre
esta lama derramada nas emoções,
subjetividades e memórias. O
dia 25 de janeiro que Ana evita recordar,
segue sendo pesadelo. E não
é para menos. O rompimento de barragens
da Mina Córrego do Feijão é
mais um crime da mineradora Vale.
Centenas de milhares de pessoas
atingidas nos 18 municípios por onde
passa o Rio Paraopeba, sendo que
até início de fevereiro de 2020 são
confirmadas 272 mortes, segundo o
Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB), e os milhões de metros
cúbicos de rejeitos continuam,
um ano depois, soterrando corpos
ainda não encontrados. Pesquisas
apontam que este é o segundo maior
rompimento de barragens do mundo
com óbitos, o primeiro foi 1966,
na Bulgária, que vitimou 488 pessoas.
Por mais alarmantes que sejam
estes números, eles em si não traduzem
o que o crime gera na vida
de toda essa população. E, no caso
das mulheres, além de todo o sofrimento
causado por um crime dessa
dimensão, aprofunda o peso das
desigualdades históricas de gênero.
Revista Elas por Elas - fevereiro 2020
91
Percorrendo o caminho até o
Córrego do Feijão, pensava quantas
outras Anas preferem mesmo
não ter que recordar e elaborar sobre
toda a angústia deixada por esse
crime. Imagino também que, às vezes,
deve ser preciso tapar os ouvidos
e fechar os olhos, porque a cena
segue lá: tratores e pessoas se perdendo
na imensidão daquela lama,
seguindo as buscas e tentando limpar
o que a História já mostrou ser
impossível de ser esquecido. Neste
dia, nosso encontro era com Sara
de Souza, comerciante e moradora
da comunidade. Ela nos pediu para
esperar um pouco, porque precisava
buscar a filha na escola. Na
varanda, quando começamos nossa
conversa, fez um desabafo sobre o
que representa a Vale, denunciando
que a empresa nunca fez nada
pela comunidade e que há décadas
está ali para explorar. “Meus pais já
sofriam com a Vale, isso não começou
agora. Foram anos escutando a
empresa detonando a mina com explosivos,
bombas de dinamite. Estremeciam
as nossas casas, provocando
rachaduras que abalaram as
estruturas”, afirma. A mina Córrego
do Feijão iniciou as atividades
em 1956, por meio da Companhia
de Mineração Ferro e Carvão, em
1973 passou para a Ferteco Mineração
e desde 2003 é dirigida pela Vale.
“Eles nunca nos ajudaram em nada,
vieram para explorar e, agora,
matam as pessoas da nossa comunidade.
Isso dá uma angústia muito
grande. E eles usam nosso nome, o
nome da comunidade, como nome
da mina. Córrego do Feijão não é mina,
é nossa comunidade”, ressalta.
Sara perdeu amigos e vizinhos
na tragédia e sua fala, repleta de
emoção, revela que o impacto desse
crime segue atravessando todas
as barreiras e influencia a subjetividade
de cada uma dessas vidas.
“Meus familiares tinham prazer de
vir até à minha casa para passear.
Hoje, eles têm medo de virem aqui.
As verduras daqui da nossa horta
eu sempre levei para minha família,
mas hoje eles se sentem inseguros
para comer. Então, a Vale desestruturou
nossas vidas e nossas relações
e, a cada dia, tá ficando mais
sério”, destaca.
Os problemas de ordem emocional
e psicológica parecem que provocam
um efeito bola de neve. Sara
compartilha com tristeza que meses
/ Isis Medeiros
92
Revista Elas por Elas - março 2020
depois do crime da Vale duas senhoras
da comunidade do Córrego do
Feijão morreram, após um quadro
profundo de depressão. “Uma delas
perdeu o neto e a outra estava comigo
quando a barragem rompeu,
nós corremos juntas. Eram senhoras
ativas, alegres. Uma com mais
de 80 e a outra com 70. Mas o abalo
foi muito forte. Elas adoeceram
e não aguentaram”, conta.
A quase 30 quilômetros dali,
o coração de Dayana Márcia dos
Reis também sente todas essas dores.
Não pude conversar com Dayana
olhando seus olhos, mas sua voz
ao telefone era também um misto
de indignação e força. Moradora de
São Joaquim de Bicas, um dos municípios
afetados pelo crime, ela fala
do impacto emocional que toda essa
situação gerou. Sua tia e primo trabalhavam
na Vale como terceirizados
e foram vítimas fatais do crime.
“Eu ficava imaginando o que eles
deviam ter passado, os momentos
de desespero, isso me afetava muito.
Parecia um filme e eu ficava esperando
um super-herói chegar pra
mudar tudo, só que isso não era a
realidade”, confessa.
Saúde mental ameaçada
As consequências dos crimes da
mineração para a saúde mental das
atingidas têm sido tema de reflexão
em diversos espaços. A psicóloga Débora
Diana dedicou sua pesquisa de
doutorado na Universidade Federal
de Minas Gerais - UFMG ao debate
sobre os impactos do rompimento
da barragem da Samarco/Vale e BHP
Billiton, no ano de 2015, sobre a vida
das mulheres atingidas em Mariana.
Débora conta que, ao fazer a pesquisa,
acompanhou de perto o cenário
pós-crime e sentiu como os processos
eram arbitrários. “Eu cheguei
em Mariana e via as pessoas saírem
dos seus territórios, começar a viver
em um lugar totalmente diferente,
perderem o contato que elas tinham
umas com as outras, os laços
comunitários, afetivos, isso traz muitas
implicações”, relata.
“Nós todos estamos com a lama
no coração, a lama pode não chegar
nos pés, na casa, mas chegou no coração,
tem um punhal no peito da
gente, não dá nem pra tirar que sangra
mais”. Esse é um dos depoimentos
publicados na tese de Débora,
trecho da fala de uma das atingidas
do crime de Mariana, moradora
de Paracatu de Baixo.
A relação do crime com todas
as dimensões do emocional revela
um sofrimento ético-político, explica
Débora. Segundo a psicóloga
e pesquisadora, as questões políticas
constroem sofrimentos no nível
“
Nós todos estamos
com a lama no
coração, a lama
pode não chegar
nos pés, na casa,
mas chegou no
coração”
subjetivo. “É importante demarcar
bem que esse é um processo de sofrimento
que é produzido em determinadas
condições, neste caso, a
partir de um crime – isso não é uma
coisa só do sujeito. E eu tenho discutido
que esse tipo de sofrimento psicossocial
das mulheres é produzido
a partir da intensificação das práticas
patriarcais que são perpetuadas
pelas empresas”, afirma.
Em Brumadinho, Ivanete Silveira
é uma dessas mulheres que têm o
cotidiano atravessado por tudo que
deixou aquele 25 de janeiro. Moradora
e trabalhadora da área da saúde,
Ivanete combinou de nos receber
na igreja Matriz. Percebi que
Ivanete, assim como Ana, também
tem sua forma de buscar o silêncio,
mesmo quando aberta a dividir
todos os ruídos que ela carrega
consigo. Ivanete conta que o crime
da Vale impactou toda a população
que vive ao largo do Rio Paraopeba.
“Não tem como não se abalar,
todas/os perdemos alguém conhecido.
Eu perdi amigos/as e isso mexeu
muito com a cabeça da gente”,
destaca. Ivanete ressalta o peso de
tantos óbitos para a cidade e, consequentemente,
para as relações criadas,
já que quase 1% de Brumadinho
foi vítima fatal do crime. “A cidade
não comportava tantos velórios.
Imagina como isso marcou a
nossa mente?”.
Ivanete, além de técnica em patologia,
é uma das diretoras do Sind-Saúde/MG
(Sindicato Único dos
Trabalhadores da Saúde de Minas
Gerais), integrante do Articulação
“Somos Todos Atingidos” e acompanha
de perto os desdobramentos do
Revista Elas por Elas - março 2020
93
/ Isis Medeiros
“
No comércio,
o que mais
aumentou foi
o consumo nas
farmácias”
crime, sobretudo com relação à saúde.
“Eu trabalhando, atendo uma
mãe que perdeu o filho, outro dia
um filho que perdeu a mãe. Isso é
todos os dias e, todos os dias, a gente
vive e revive. Uma ruptura muito
brusca, ninguém imaginava, esperava”,
lamenta. Segundo ela, é notável
que muitas pessoas estão desenvolvendo
problemas psicológicos e
psiquiátricos, além do aumento da
demanda infantil e adulta no CAPS
(Centros de Atenção Psicossocial).
Compreender de que distintas
formas os crimes de mineração impactam
a vida das pessoas é aprofundar
ainda mais sobre as ameaças
trazidas por essa atividade. Para
a psicóloga e pesquisadora Débora
Diana é preciso definir esse tipo
de crime como uma violência, que
se estrutura de diferentes maneiras.
Em primeiro lugar, seria uma
violência econômica, já que historicamente
somos saqueados da nossa
própria riqueza em favor do capital
estrangeiro. Para ela, outra violência
presente é a institucional, na medida
em que temos legislações ambientais
que cada vez se flexibilizam. “A
gente tem que entender que esses
processos de adoecimento, de sofrimento
ético e político, são construídos
a partir de questões materiais.
Quando você individualiza, muitas
vezes você culpabiliza, isola o sujeito.
Não é apenas com medicação
psiquiátrica que tratamos. É preciso
atenção, suporte, escuta qualificada,
cuidado em saúde mental”, explica.
Dados da Secretaria Municipal de
Saúde de Brumadinho comprovam
essa realidade. Desde o rompimento
da barragem, o número de suicídios
e de tentativas contra a própria vida
aumentou. Só no ano de 2019 foram
47 tentativas, praticamente o dobro
em comparação ao ano de 2017, antes
do crime. Outro dado é referente
ao consumo de antidepressivos
e ansiolíticos: um crescimento de
56% e 79%, respectivamente, com
relação ao ano de 2018. “Eu mesma
tomo, minha filha já está na terceira
medicação. No comércio, o que
mais aumentou foi o consumo nas
farmácias. Trabalhando na área da
saúde, é visível que houve um aumento
de atendimentos”, comenta
Ivanete Silveira.
Para a diretora do Sind-Saúde/
MG, o impacto sobre as mulheres
é perceptível, justamente por esta
carga a mais de estar no lugar do
cuidado. “O ser mulher é muito importante
e justamente por isso é tão
pesado. Tem a mulher trabalhadora
que perdeu a vida, tem a mulher
mãe que morreu lá e deixou os filhos,
tem a mulher mãe que perdeu
o filho lá, tem a mulher esposa que
perdeu o marido. Ou seja, são várias
mulheres neste sofrimento. Aí
tem a mulher que ficou e que cuida
do filho sozinha, tem a mulher que
tem que consolar os filhos, o marido,
o neto, toda a família; a professora
que vai dar aula para o aluno
94
Revista Elas por Elas - março 2020
“
Antes disso tudo,
eu não sabia o
que era lutar, com
esse processo fui
aprendendo mais
sobre o feminismo
também”
/ Carina Aparecida
/ Ivanete e a filha Clara se fortalecem na luta por direitos e justiça
que perdeu o pai ou a mãe; a mulher,
como eu, da área da saúde que
vai atender a outra mulher que também
sofreu a perda”, explica. Justamente
no momento em que relatava
as dificuldades diárias enfrentadas
pelas mulheres, a filha de Ivanete,
Clara Stelly, de 17 anos, chega.
Elas trocam um olhar cúmplice
e Ivanete logo pergunta à Clara se
ela também gostaria de falar. Com
segurança na fala, mas uma visível
tristeza no olhar, a jovem conta
que perdeu a melhor amiga no
crime. “Nas primeiras semanas eu
não conseguia me concentrar, chorava
o tempo todo. Tive que buscar
acompanhando psicológico”, relata.
Mineração e a sombra
do patriarcado
As denúncias das atingidas relembram
que o impacto da mineração
não chega só quando acontecem
crimes, mas propõe uma reflexão
de como este tipo de atividade
em si já é uma ameaça à vida. Segundo
Sônia Maranhão, do Movimento
de Atingidos por Barragens
(MAB), o processo de construção
de barragens desestrutura toda a
comunidade e representa um peso
ainda maior para as mulheres.
“Hoje, por exemplo, nós não temos
uma política nacional de tratamento
de atingidos por barragens, não
temos um órgão como o INCRA que
é responsável pela questão agrária,
por exemplo. Então quem determina
‘quem é atingido ou não’ é a própria
empresa. Imagina a relação da
empresa com as mulheres, com as
crianças. É completamente violador”,
afirma. Sônia explica que já
foram realizados estudos que comprovam
que existe um padrão de
violação de direitos humanos em todo
processo de construção de barragens:
direito de ir e vir, de participação,
de conseguir ter as informações,
já que tudo é colocado de
maneira muitas vezes superficial.
Resistências
Se os crimes da mineração refletem
as desigualdades e opressões
históricas, especialmente com
relação às mulheres, também provocam
uma resistência capaz de se
reinventar. Sara de Souza, que hoje
integra a Comissão dos Atingidos
do Córrego do Feijão, é uma dessas
mulheres referências na luta. “Eu
não consigo ficar parada, eu quero
ajudar. Quero sempre fazer alguma
coisa e nisso eu fui me envolvendo
e entrei na comissão. Hoje uma das
nossas demandas principais é que
tenhamos para onde ir. Fizemos
uma pesquisa e 80% da comunidade
não consegue mais seguir aqui.
É urgente. Não dá mais pra esperar.
Uma forma de amenizar nosso
sofrimento e também por nossa
segurança, por tudo que pode ainda
acontecer”, afirma.
A moradora de Brumadinho,
Ivanete Silveira, também reconhece
que entre tantas mulheres que
Revista Elas por Elas - março 2020
95
sofrem os impactos do crime em
Brumadinho, há a mulher militante,
como ela. “Porque nós, mulheres,
temos ido pra rua, para a porta
do Tribunal de Justiça, da Vale,
pra gritar por nossos entes queridos
que a Vale matou – sem querer
pagar pelo crime que ela cometeu.
São essas mulheres que estão indo
pra luta, somos maioria”, ressalta.
Assim como Sara, ela também confessa
que há dias em que a tristeza
fala mais alto e ela procura respeitar
o sentimento, mas sem deixar
abalar sua disposição para a luta.
“Você pode estar sem força, mas
quando vê um crime deste tamanho
acontecendo e muitas pessoas precisando
de apoio, você praticamente
se anula pra se doar. Porque nós
somos leoas e não é só pra defender
nossas crias”, diz.
Sara e Ivanete têm em comum
também a força que buscam no encontro
com outras mulheres afetadas
por crimes da Vale. Ivanete relata
que às vezes são sentimentos
antagônicos, porque é difícil e revoltante
ver que, depois de anos,
elas seguem lutando por direitos
básicos. “Mas também tem o lado
da esperança, de estar juntas, de
não passar por um problema sozinha.
Quando a gente se encontra é
muito bom, a gente adquire experiência,
troca as vivências. Isso faz
a gente crescer. E é muito bom a
gente mulher se sentir grande, empoderada,
colocando em prática
aquelas trocas. A presença dos filhos,
ver eles se formando também
na luta”, ressalta. Neste momento,
a jovem Clara concorda com a mãe
e conta suas formas de se integrar
/ Sara integra a Comissão dos Atingidos do Córrego do Feijão
à luta. Nos dias seguintes ao crime,
ela ia com a mãe para a quadra
onde chegavam as doações e essa
forma de se envolver foi ficando
cada vez mais forte. Hoje, a estudante
do ensino médio já pensa
“
“Quando você
vê um crime
deste tamanho e
muitas pessoas
precisando de
apoio, você
praticamente se
anula para se
doar”
em cursar Direito para seguir em
defesa de causas sociais. “Eu adoro,
hoje, participar dos movimentos
e com a morte da minha amiga,
vou lutar não só por ela, mas por
todas as famílias que perderam alguém.
Eu não vou deixar de lutar,
me sinto maravilhosa participando!
Antes disso tudo eu não sabia o
que era lutar, com esse processo fui
acompanhando, aprendendo mais
sobre o feminismo também. Quero
que a gente continue sendo protagonistas”,
revela.
Dayana dos Reis, moradora de
Bicas, também reconhece que a
dor está presente e forte, mas que
é necessário seguir, sobretudo as
mulheres, que trazem este instinto
do cuidado, mas também da luta.
“Para cada pessoa funciona de
um jeito. Minha mãe está buscando
a cura pelas plantas, eu entrei
para o MAB e isso tem me ajudado,
/ Carina Aparecida
96
Revista Elas por Elas - março 2020
/ Isis Medeiros
/ Simone e a filha Sofia em um dos atos de denúncia ao crime em Mariana
pra não deixar que aconteça de novo
crimes como esse. E, entrando
pro movimento, comecei a ver que
existem pessoas iguais a você, que
foram vítimas também e que estão
resistentes, na luta. Já estamos passando
um momento tão difícil no
país, uma fase de tantas censuras.
Vamos seguir em frente, usar nossa
força, estender a mão. Sejamos
resistentes, transformando dor em
luta”, afirma.
Para a psicóloga e pesquisadora
Débora, mesmo com as dificuldades
encontradas nessa jornada,
a mobilização é considerada produtora
de saúde. “Claro que não podemos
romantizar. Traz sobrecarga,
mas também se torna um espaço
em que ela consegue falar, ser
ouvida. As ações coletivas produzem
saúde, quando conseguimos
sair do sofrimento individual e agir
coletivamente”, destaca.
E é a luta contínua dessas mulheres
que semeia inspiração. Simone
Silva, moradora do município de
Barra Longa e umas das atingidas
do crime da Samarco/Vale e BHP
Billiton em 2015, foi uma das entrevistadas
da Revista Elas por Elas
em 2017, na reportagem “Da lama
à luta”. Simone também é um desses
exemplos de quem transformou
toda a indignação em ação. Quatro
anos depois do crime, continua lutando
pela saúde da filha Sofia, de
cinco anos, que começou a apresentar
problemas respiratórios sérios
com a presença do rejeito na cidade.
“A situação da minha filha tem
se agravado. É uma guerra de gigantes,
porque eu não desisto. Pela saúde
da minha filha eu não vou desistir
de maneira alguma”.
Mesmo diante de todas as dificuldades,
Simone afirma que tem muito
orgulho da mulher na qual se
transformou depois desse tempo. A
Simone de hoje é uma mulher negra
empoderada, que sabe quais são
os direitos dela, que não tem medo
de lutar, que luta pelos seus pares.
Eu tenho muito orgulho da mulher
que eu me tornei hoje. Eu não vim
para contar a história, eu vim para
ser a história”, afirma. A moradora
de Barra Longa, que há quatro
anos tem sua vida transformada pela
ganância das mineradoras, compartilha
toda sua caminhada de luta
com as mulheres atingidas pelo
crime em Brumadinho. “Quando você
é atingida por mineradora, você
passa a guerrear, você passa a viver
uma guerra no território. Então, eu
quero dizer às companheiras que é
preciso e importante lutar, resistir -
vencer o machismo, todo o preconceito,
todo o racismo que a mulher
enfrenta. A situação mudou, nós somos
mulheres empoderadas! Incentivo
minhas companheiras a fazerem
a luta!”, ressalta.
Se o crime deixou marcas e consequências
profundas, a força das mulheres
atingidas mostra o quanto defender
a saúde, seja física ou mental,
também é resistência. Todas aquelas
que falam sobre essas dores, as que
escutam, as que se indignam mesmo
em dias de tristeza e tentam dia a dia
construir uma nova história, estão
criando novas trincheiras de luta e
cura. Agora, o silêncio de Ana, aquela
mulher que não quis falar para não
reviver suas dores, já não é mais silêncio.
Sua voz já ecoa entre tantas
outras. É um coro. Indígenas, quilombolas,
mães da terra. Filhas, trabalhadoras,
sobreviventes! É a dor se
transformando em luta.
Revista Elas por Elas - março 2020
97
Do outro lado da lente:
O olhar feminista que retrata
a realidade das mulheres
atingidas
/ Victor Moriyama
A realidade, o cotidiano, a mineração.
Enfim, a sociedade. Não
há espaço em que não seja necessário
lutar contra as reproduções
do modelo patriarcal e contra as
violações que dia após dia encontram
como alvo a vida das mulheres.
Do institucional ao simbólico:
relembrando uma frase que a militante
do Movimento de Atingidos
por Barragens - MAB, Sônia Maranhão,
disse à reportagem: “Não há
espaço vazio. Se a mulher não ocupa,
o homem está lá.”
Desde o crime da Samarco/Vale
e BHP Billiton em 2015, que um
desses tantos espaços chamam a
atenção: a cobertura midiática e
imagética desses crimes e de todos
os seus desdobramentos. Se as
consequências da mineração para
a vida das mulheres reproduz
a opressão histórica de gênero, a
representação dessas realidades
também pode reproduzir as mesmas
opressões. Mas e quando o
olhar carrega em si a luta por uma
sociedade livre de tantas violências
e desigualdades? É o caso da
fotógrafa mineira Ísis Medeiros,
que há anos acompanha de perto
o Movimento Atingidos por Barragens
e outros movimentos sociais,
dedicando um olhar especial ao
empoderamento feminino.
Ísis tem sido uma das principais
referências na cobertura do crime
de Brumadinho. Naquele mesmo
25 de janeiro sentiu um chamado
forte para ir ao local e acompanhar
de perto as dores e os dramas provocados
por mais um crime da Vale.
Suas fotos estão rodando o mundo,
e junto com elas uma denúncia
cada vez mais presente com relação
à injustiça e à impunidade.
Além de suas imagens, nesta reportagem
também publicamos os pensamentos
desta fotógrafa que, ocupando
um meio majoritariamente
masculino, constrói um olhar cada
vez mais necessário e potente.
Você sempre destaca a importância
de mulheres ocupando o
fotojornalismo. Por que é importante
também estar neste espaço?
É importante a mulher ocupar
todos os espaços. E o fotojornalismo
é uma área que sempre foi dominada
por homens. Sempre foram
os homens que contaram a História
através das imagens, que escreveram
sobre as mulheres e que representaram
as mulheres. Então, o que
eu defendo no fotojornalismo é que
as mulheres também tenham vez,
tenham lugar, tenham espaço para
contar suas histórias. Falo através
da fotografia, mas fotografia também
é História. Que a gente tenha
oportunidades iguais. Em uma redação,
por exemplo, onde tem 20
fotógrafos, às vezes tem uma ou duas
mulheres. Uma conclusão que
eu tenho chegado recentemente
é que os homens se inspiram nos
98
Revista Elas por Elas - março 2020
homens e as mulheres se inspiram
nas mulheres. Eu vejo os fotógrafos
homens perto de mim, eles sempre
têm referências em outros fotógrafos
homens, e quase nunca em nós.
E acho que isso também tem acontecido
com as mulheres. Eu pelo
menos tenho buscado hoje muito
mais referências femininas. Porque
eu vejo que a forma de contar,
a forma de falar, a forma de sentir o
mesmo assunto é muito diferente.
Eu também cheguei à conclusão
que, primeiro, eu sou vista como
mulher para depois ser vista
como profissional. Pra mim, isso
é sempre um desafio – de mostrar
que além de ser mulher, sou
profissional. E tem o fato também
das mulheres se verem mais representadas
quando estão nesses veículos,
quando nos vêm publicando,
várias mulheres me procuram,
me chamam para conversar, me
pedem apoio. Vejo como uma forma
de estimular outras mulheres
a produzirem seus materiais, contarem
suas versões da história.
No universo do simbólico,
quais os desafios para não
se reproduzir as narrativas
patriarcais?
Eu acredito que é praticar a
escuta. Temos que evitar que continue
essa forma que foi consolidada
na comunicação, na História,
em que a leitura principal é
sempre feita pelos homens – por
um homem rico, intelectual, branco.
Se queremos contar histórias
das pessoas que estão sentindo na
pele algum sofrimento, o principal
cuidado é a escuta e não silenciar
nunca. Se a pessoa precisa dizer
aquilo, se ela tá questionando algo,
é porque de fato aquilo tá mexendo
com ela e precisa falar, falar…
o quanto for preciso. E isso é uma
coisa que eu tenho, uma preocupação
muito grande no meu trabalho
que é de não interromper a fala,
de não deixar a pessoa intimidada
com alguma questão. Quando
você se coloca de igual para igual,
quando você senta ali lado a lado,
olha no olho da pessoa, consegue
ter um pouco mais de sensibilidade
com o que ela tá te dizendo, com
o que ela pode te dizer. Acho que a
fotografia e o jornalismo, às vezes,
acabam oprimindo essas pessoas,
porque elas não conhecem
muito desse universo e isso pode
ser um pouco violento para muitas
delas que não estão acostumadas
ou que nunca estiveram de frente
a uma câmera, de frente para
essa produção de imagem, produção
textual. Eu tenho uma preocupação
com isso, de humanizar, ser
cuidadosa com as formas de fazer.
As pessoas sentem, têm dificuldades,
elas têm medo, insegurança,
assim como qualquer pessoa tem.
Nada como empatia para fazer
com que as coisas fluam melhor,
com que elas sejam mais sinceras,
para que esses meios sejam
simplesmente uma ferramenta de
diálogo, de denúncia, de fala; mas
que elas tenham esse protagonismo,
para que possam construir as
narrativas do que para elas é interessante,
importante dizer. Aí, já
evitamos muitos problemas dessa
forma engessada que foi construída
ao longo da história.
Qual seu sentimento a cada
vez que esteve e está com sua
câmera frente a uma mulher
atingida?
Meu sentimento em retratar cada
mulher é empatia, sororidade,
cuidado, amor. Porque eu sempre
me coloco no lugar delas, como alguém
que poderia também ter sido
atingida. E penso sobre como estaria
minha vida hoje, se eu fosse
uma dessas mulheres que perdeu
casa, familiares, um modo de vida,
de trabalho, as relações sociais, as
relações de afeto etc. Eu sempre me
coloco no lugar delas para entender
qual o ponto de vista, qual a questão
que elas trazem, o que vivem.
Eu me identifico com as palavras,
eu me identifico com a forma como
elas trazem essas questões. Eu me
acho uma ferramenta para trazer
essas histórias, porque não deve ser
nada fácil para elas ter que enfrentar
tantas questões, tantos desafios.
Então, eu acredito que vejo com sensibilidade,
com cuidado. E acredito
que, de alguma forma, isso é sentido
também por elas. Entendem que eu
não sou como elas, porque eu não
vivo as questões que elas estão vivendo,
mas que eu me coloco como
uma delas. E eu acredito que o trabalho
consiga ser um pouco mais sensível
porque tem esse olhar cuidadoso,
que se coloca, que se joga ali,
que se precisar deitar e dormir junto
ali, se precisar de dividir espaço,
alguma coisa, eu vou estar ali. É assim
que eu enxergo essas mulheres
e quero continuar compartilhando
com elas essas situações para conseguir
ser mais sensível quando faço
algum dos meus trabalhos.
Revista Elas por Elas - março 2020
99
100 Revista Elas por Elas - março 2020
/ Carina Aparecida
Trabalho
Sem direito algum
Crise econômica e discriminações de gênero empurram mulheres para a informalidade
por Denilson Cajazeiro
A poucos metros da Praça Sete, o
marco zero do hipercentro de Belo
Horizonte, Léia Crizólogo, de 20
anos, anuncia os serviços de uma
loja de assistência técnica de celulares
e tablets. Com um cartaz nas
mãos, a jovem percorre um trajeto
de poucos metros, tentando capturar
clientes com problemas em
seus aparelhos tecnológicos. Por
esse trabalho, feito de segunda a
sexta, das 9 da manhã às 6 da tarde,
ela ganha 30 reais por dia, sem carteira
assinada nem direito ao gasto
com a passagem – dois ônibus
intermunicipais, que fazem o trajeto
entre Santa Luzia, onde mora, e a
capital. Recebe pelo dia que comparece,
e a rotina tem sido desgastante,
conforme relata à reportagem.
“Aqui é muito estressante, ainda
mais que a gente é mulher. Trabalhar
na rua com muitos homens,
moleques, na verdade, é muito
complicado. É muito assédio! Mas,
pra gente não ficar em casa sem dinheiro,
prefiro vir e ganhar alguma
coisa”, conta a jovem, cuja meta
no momento é sair dali. “Já estou
procurando outro emprego. Mas é
tão complicado quando a gente não
tem experiência na carteira. O que
mais ouço é que não tenho o perfil
da loja”, diz, ao apontar para as
tatuagens desenhadas pelo corpo e
para os piercings que adornam seu
rosto, como um dos possíveis motivos
das malsucedidas entrevistas
de emprego.
Assim como milhões de brasileiras,
Léia faz parte de um contingente
de mulheres empurradas para a
informalidade, em ocupações por
conta própria ou sem carteira assinada.
Por conta disso, elas perdem
Revista Elas por Elas - março 2020
101
direitos previstos em um emprego
formal, como férias, 13º salário, seguro
desemprego, FGTS, contribuição
previdenciária, entre outros
benefícios como uma maior facilidade
para adquirir um crédito bancário.
“Em cenários de crise, as mulheres
são mais propensas a aceitarem
empregos precários. Elas
são forçadas a buscar alternativas,
construindo seus próprios arranjos,
frente a uma ausência de políticas
públicas. Questiona-se menos,
ou seja, a sociedade vai legitimando
essas formas de inserção.
No final de 2018 e início de 2019,
do total de mulheres ocupadas,
44% estavam na informalidade. É
um trabalho absolutamente marginal,
não tem direito algum, proteção
nenhuma”, afirma a economista
Marilane Teixeira, que também é
pesquisadora de gênero no Centro
de Estudos Sindicais e Economia do
Trabalho, na Universidade de Campinas
(Cesit/Unicamp).
Segundo a especialista, desde
2015, a população economicamente
ativa teve um aumento de
três milhões de mulheres, que passaram
a procurar emprego, muito
provavelmente impulsionadas
pela crise. O problema é que, desse
total, dois milhões foram direto
para o desemprego, e um milhão,
para o trabalho informal. “Por que
o mercado está absorvendo esse
perfil de ocupação? Porque a economia
não cresce. Os setores estão
travados, os investimentos não estão
acontecendo. O que está sustentando
esse ritmo lento da economia
é basicamente o consumo das famílias,
e mesmo assim em um grau de
/ Carina Aparecida
102 Revista Elas por Elas - março 2020
insegurança muito grande, pois as
pessoas gastam tudo que ganham
no dia a dia, com transporte, alimentos,
aluguel”, explica Marilane.
Para o governo, no entanto, os
milhões de trabalhadoras informais
representam apenas mais um número,
como aqueles que os órgãos
oficiais divulgam com frequência,
sobre o total de desempregados no
país. Um dos mais recentes, aliás,
revelou um quadro pouco promissor
para elas. Por meio dele, ficamos
sabendo que o desemprego só não
foi maior porque o trabalho informal
cresceu Brasil afora. De acordo
com a Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios do IBGE, a Pnad
Contínua, o percentual de trabalhadores
informais na população
ocupada chegou a 41,2% em outubro
de 2019, patamar recorde da série
histórica da pesquisa, iniciada
em 2012. São 38,8 milhões de pessoas
nessa situação, enquanto outros
11,9 milhões estão desempregados.
“Esse ambiente econômico
não é de compaixão. É de jogo, de dinheiro,
de quem ganha mais”, afirma
a economista Hildete Pereira de
Melo, professora da Universidade
Federal Fluminense (UFF) e coordenadora
do Núcleo Transdisciplinar
de Estudos de Gênero na instituição
de ensino.
Para piorar esse quadro, outro
número que não para de crescer
na área econômica é o do custo
de vida. Em 2018, segundo pesquisa
do Departamento Intersindical
de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos
(Dieese), o aumento
foi de 3,89%, que representa 1,45
ponto percentual maior que 2017.
O estado de desânimo da população
também está em ascensão, infelizmente.
A taxa de desalentados,
que se refere aos que desistiram
de procurar emprego, alcançou 4,8
milhões de pessoas, no final do segundo
trimestre de 2019 – 203 mil
pessoas a mais em relação ao primeiro
trimestre.
E, a depender das projeções no
cenário internacional, a situação
permanecerá instável por um bom
tempo. Segundo previsões da Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE),
a economia mundial deve crescer
menos em 2019 e em 2020, a uma
taxa de 2,9% em ambos os anos,
após uma expansão de 3,6% em
2018. Caso sejam confirmadas essas
previsões, serão as taxas mais
baixas de crescimento da economia
global desde a crise financeira
de 2008, cenário que impacta ainda
mais a já fragilizada economia
“
Em cenários
de crise, as
mulheres são
mais propensas
a aceitar
empregos
precários”
brasileira. Para o Brasil, a OCDE
reduziu a previsão de aumento
de 2019 do Produto Interno Bruto
(PIB) de 1,4% para 0,8%. Em 2020,
a expectativa do órgão internacional
também foi revisada para baixo,
de 2,3% para 1,7%.
“Desde 2015, assistimos a um
desemprego galopante, que é o
mais longo da história do Brasil. O
problema é que essa crise é muito
mais delicada e repressora para
as mulheres. E, no nosso caso, o governo
mantém o mantra de vender
tudo e deixar o investimento para
o setor privado, quando na verdade
a história mostra que, para
sair do buraco econômico, o Estado
precisa investir. Temos agora
um governo que mantém a ideologia
neoliberal a todo custo e quer
nos convencer de que privatizar é
a saída. O que está se desenhando
é uma política que não tem a menor
complacência com a população”,
critica Hildete, em referência
às decisões da atual equipe econômica,
capitaneada pelo neoliberal
Paulo Guedes.
Enquanto o governo não sai da
inércia nem a economia deslancha,
as mulheres vão se virando como
podem. Também no centro da capital
mineira, bem perto do trabalho
de Léa, por exemplo, está a pequena
banca da vendedora Célia Brandão,
de 39 anos. De segunda a sexta,
ela comercializa, há três anos,
correias de chinelo, palmilhas e cadarços,
em uma jornada de quase
10 horas ininterruptas. O lanche e o
almoço são feitos ali mesmo, interrompidos
a cada cliente que chega
para comprar ou pesquisar os
Revista Elas por Elas - março 2020 103
/ Edson Lopes
preços. “Um é três, dois é cinco”,
informa a vendedora. “Mas esse é
sem brilho, você não quer com brilho?”,
pergunta, e em seguida começa
a procurar debaixo de um
conjunto de cadarços de cor escura.
Célia conta que, desde os 15
anos, trabalhou com carteira assinada.
O último emprego dela com
registro foi em um restaurante, no
bairro Grajaú, região oeste de Belo
Horizonte, onde se revezava entre
as tarefas do balcão e do caixa,
atendendo os clientes. Depois
de quase dois anos, a antiga dona
do local vendeu o estabelecimento
e a demitiu, e Célia não se sentiu
motivada a pedir emprego para o
novo proprietário. Por cerca de seis
meses, trabalhou como diarista e,
em seguida, foi para o comércio na
rua. “É muito cansativo aguentar
esse centro. É muito barulho, briga,
gritaria, ônibus o tempo todo,
buzina. A gente sai daqui com a cabeça
explodindo, mas adoro o que
faço, vale a pena. Tem muita gente
boa para conversar, um monte de
amigos”, relata Célia.
Pesquisadora da temática de gênero
e trabalho, a socióloga Ludmila
Abílio lembra que as mulheres
são, historicamente, o elo mais fraco
do mercado de trabalho. Em outras
palavras, elas sempre foram
mais atingidas por formas mais
“flexíveis” (leia-se: precarizadas)
e menos protegidas. “Isso é histórico.
Se você for verificar, vai ver
que, desde sempre, elas estiveram
envolvidas de forma precária no
mercado de trabalho, muito mais
expostas a essas formas de injustiças
do sistema. No contexto de crise,
isso se aprofunda”, afirma Ludmila,
que também é pesquisadora
no Cesit, Centro de Estudos Sindicais
e de Economia do Trabalho,
da Unicamp.
Contribui para esse cenário de
desigualdade o fato de que, mesmo
com a entrada delas no mercado
formal, as diferenças permanecem.
Apesar de uma pequena melhoria
nos últimos anos, elas ainda
recebem menos que os homens
para exercer a mesma função e
têm condições muito mais instáveis,
em termos de permanência
no emprego e progressão na carreira.
Conforme dados extraídos
da PNAD contínua, o rendimento
médio das mulheres ocupadas em
104 Revista Elas por Elas - março 2020
2018, na faixa etária entre 25 e 49
anos de idade, equivalia a 79,5% do
recebido pelos homens. Nas ocupações
com maior nível de instrução,
o quadro se repete. Entre os professores
do ensino fundamental,
as mulheres recebiam 90,5% do
rendimento dos homens em 2018.
Já entre os docentes do ensino superior,
o salário delas equivalia a
82,6% da remuneração deles.
Além disso, a taxa de desemprego
entre as mulheres brasileiras
foi de 14,1% no segundo trimestre
de 2019, percentual bem acima
da taxa de desocupação masculina,
que ficou em 10,3%, no mesmo
período. As mulheres também
se mantiveram como maioria na
população fora da força de trabalho
(64,6%) no país. “A taxa feminina
de desemprego historicamente
sempre foi maior que a masculina.
É muito mais fácil o mercado desempregar
uma mulher do que um
homem. Isso mostra o viés patriarcal
do capital. Por causa da maternidade,
elas são o tempo todo punidas”,
afirma a economista Hildete
Pereira de Melo. E um estudo
da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
corrobora o que diz a pesquisadora.
De acordo com levantamento
feito por economistas da instituição
de ensino, metade das mães
que trabalham é demitida até dois
anos após o fim da licença maternidade.
Por trás disso está a mentalidade
patriarcal de que os cuidados
com os filhos seriam exclusidade
delas, o que poderia resultar
em ausências no trabalho – cultura
machista que as afasta ainda
mais do mercado formal.
“Outro problema é elas não
conseguirem voltar à formalidade,
em um momento de retomada
econômica. Dificilmente elas vão
conseguir sair desse círculo vicioso.
Além disso, elas não vão conseguir
contribuir para a Previdência
Social, porque não conseguem reunir
recursos suficientes para isso.
Ou seja, elas não terão proteção,
se ocorrer algum acidente, algum
tipo de doença, elas não terão
auxílio nenhum. E dificilmente a
perspectiva de aposentadoria vai
estar colocada para essas mulheres,
porque elas vão ter espaços tão
grandes de não contribuição, que
depois não conseguem preencher
essas lacunas. Então você tem um
universo de efeitos. Sua vida pessoal,
afetiva, de perspectiva profissional
desaparece, porque você não
“
É muito mais
fácil o mercado
desempregar
uma mulher do
que um homem.
Isso mostra o
viés patriarcal
do capital.
Por causa da
maternidade,
elas são o tempo
todo punidas”
tem segurança do trabalho, não
pode fazer planos, segurança de
assumir uma dívida. Isso também
vai impactando na sociabilidade
delas”, aponta Marilane Teixeira.
“Uberização”
Em expansão no mundo, a chamada
“economia dos aplicativos”
representa outro fator que tem
acelerado o aumento da informalidade
entre as mulheres. Na prática,
significa a oferta de serviços
por meio de plataformas digitais, ligada
a uma grande empresa, mas
sem qualquer vínculo empregatício.
Nesse tipo de atividade, elas se
tornam responsáveis por traçar as
próprias estratégias, em um mercado
cada vez mais competitivo, o
que em geral resulta em jornadas
exaustivas e desgaste laboral.
Muitos neoliberais e entusiastas
desse modelo de trabalho o classificam
como uma prática de empreendedorismo,
porém a socióloga
Ludmila Abílio prefere chamá-lo
de “gestão da sobrevivência”. “Os
aplicativos estão potencializando
o quadro atual de exploração do
trabalho. No início, pode até parecer
bom. Mas depois, conforme
a concorrência vai aumentando,
a vida começa a piorar, e já não
tem para onde ir. Você já se tornou
autônoma, sem a proteção
legal prevista na formalidade”,
opina a socióloga, que defende a
aprovação de projetos de lei para
assegurar direitos a quem trabalha
com essas plataformas digitais.
“No momento, a gente está vendo
no mundo todo um debate sobre
como regular o trabalho por meio
Revista Elas por Elas - março 2020 105
desses aplicativos. Isso está em disputa.
Há formas de regulamentar
esse trabalho e isso é uma decisão
política. Não sabemos para onde
vamos. No Brasil, tudo leva para a
desregulamentação do trabalho”,
diz Ludmila Abílio (foto).
De fato, a julgar pela vontade do
presidente Bolsonaro, o caminho
no país é o da desregulamentação,
com uma consequente precarização
das condições de trabalho. Em
reunião com deputados do DEM,
no final de 2018, ele chegou a dizer
que as leis trabalhistas precisam
se aproximar da informalidade. Já
em sua primeira entrevista como
eleito, afirmou que o Brasil é um
país com direitos em excesso e, por
isso mesmo, a ideia dele era aprofundar
o alcance da reforma trabalhista,
aprovada no governo Temer.
Quando entrou em vigor, em
2017, o então ministro da Fazenda,
Henrique Meirelles, disse que as
mudanças na legislação iriam gerar
mais de seis milhões de novos
empregos. Dois anos depois, o cenário
piorou muito. O que se viu
foi a criação de postos de trabalho tem intenção de alterar o atual cenário.
“Qual é a saída, se ele não
precários, com menores salários e
menos benefícios, o aumento da tem um programa de investimento?
Qual é o mantra do Posto Ipiran-
informalidade, uma alta taxa de
desemprego e uma economia que ga [Paulo Guedes, ministro da Economia]?
Vender tudo e acreditar
não demonstra qualquer capacidade
de reação.
que os empresários vão investir.
“A crise agrava a situação [das Não investiram nem quando foram
mulheres], e a reforma trabalhista desonerados, quanto mais agora”,
bagunçou completamente o quadro
de direitos do trabalho no Braquisadora
Marilane Teixeira, a so-
questiona a economista. Para a pessil.
O pacto de 1943 [aprovação da lução passa pela mudança do modelo
de desenvolvimento: “a eco-
CLT] e a Constituinte de 1988 foram
rasgados”, denuncia a economista nomia precisa voltar a crescer e gerar
postos de trabalho protegidos e
Hildete, para quem o governo não
106 Revista Elas por Elas - março 2020
qualificados. Isso significa política
econômica e um projeto de nação”.
À espera de que o país abandone
a crise, Célia Brandão segue com o
comércio de seus cadarços, palmilhas
e correias de chinelo no centro
de Belo Horizonte. Mantém-se
firme no trabalho, porém descrente
com o futuro do país, pelo menos
no momento. “Da forma que está,
não tenho muita expectativa não.
Se o povo não tem dinheiro, ele não
compra. Enquanto não mudar esse
governo, não vai melhorar”, afirma
a vendedora.
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Revista Elas por Elas - março 2020
107
108 Revista Elas por Elas - março 2020
/ Nanci Alves
Realidade
Ventos de liberdade
no cárcere
Em meio à privação de liberdade, algumas experiências buscam criar espaços de
acolhimento, partilha e alegria, ajudando a minimizar a dor e a solidão diárias.
por Nanci Alves
Viver sem depender de ninguém
e agir de acordo com a
própria vontade, desde que não
prejudique outra pessoa. Isso é
o que a gente comumente entende
por liberdade, mas sabemos
que conquistar isso é uma utopia,
exatamente porque vivemos em
sociedade. Viver é um constante
prestar contas, pedir autorização,
se responsabilizar, pagar impostos,
seguir regras e leis, além, é claro,
de ser vigiado pelas lentes que nos
captam o tempo todo em qualquer
lugar que estejamos. A falta de liberdade
é sentida também quando
a gente se vê escravizado em um
trabalho, em uma relação, quando
é desrespeitado em nossos direitos
ou cerceado em nossas atividades.
Na realidade, somos números (CPF,
CI, etc) e sem esses códigos que nos
identificam, perdemos o direito
de falar, reclamar e até de existir.
Talvez liberdade seja uma palavra
que deva vir sempre entre aspas.
Por tudo isso, muita gente considera
que ‘liberdade’ é uma forma de
se sentir, um estado de espírito ou
uma condição emocional. Vendo
assim, parece mais verdadeiro a
gente dizer que sente alguns raros
e curtos, mas verdadeiros, momentos
de liberdade no dia a dia.
Mas e quando essa falta de liberdade
vai ao extremo, ou seja, na
prisão de fato? O encarceramento
tira da pessoa um dos seus direitos
essenciais e necessários à natureza
humana - o de ir e vir. A ausência da
liberdade culmina em diversos sintomas
como ansiedade, angústia e
Revista Elas por Elas - março 2020 109
até transtornos psicológicos. É possível,
em situação de cárcere, alguém
sentir-se livre em algum momento?
E como esse sentimento
pode ser importante para ajudar
a pessoa a passar por esse tempo,
recluso, sem adoecer? Questionamentos
como esses motivaram um
grupo de atrizes da Zula Cia de Teatro
(Talita Braga, Gláucia Vandeveld,
Kelly Crifer e Mariana Maioline)
a desenvolver um trabalho com
detentas de um complexo penitenciário
feminino, em Belo Horizonte.
Intitulado “Arte como possibilidade
de liberdade”, o projeto das
artistas queria, a princípio, oferecer
às detentas uma experiência
artística com momentos de afeto,
partilha, escuta e interação entre
todas e, a partir disso, ver como essas
atividades reverberam no cotidiano
dessas mulheres. Foram oficinas
de teatro realizadas durante
um ano, a partir do segundo semestre
de 2016. O desejo era proporcionar
momentos de liberdade para
as mulheres em situação de cárcere,
mas a experiência reverberou
também nas atrizes e isso resultou
na criação de um espetáculo teatral
- Banho de Sol -, que estreou no primeiro
semestre de 2019. A peça recebeu
o nome do intervalo de tempo
em que as oficinas eram realizadas,
ou seja, no horário de banho de
sol das detentas. “A experiência de
um ano foi muito intensa e nos provocou
a criação dessa obra, para
que a vivência pudesse fazer ecoar
as vozes dessas mulheres em situação
de cárcere”, conta Talita Braga,
roteirista da peça e uma das fundadoras
da Zula Cia. de Teatro.
Para a atriz Kelly Crifer, o trabalho
dentro do presídio foi rico e
a transformação visível. “Só o fato
de fazermos uma roda já incitava
várias questões, por exemplo, sobre
como respirar, a forma de pisar,
olhar nos olhos das outras, a escuta.
As alunas estavam disponíveis,
“
É possível, em
situação de
cárcere, alguém
sentir-se livre
em algum
momento?”
abertas e conseguiram, aos poucos,
lidar com coisas difíceis, cada uma
com seu próprio problema. O teatro
trabalha aquecimento do corpo,
sensações, articulação, fala, emoção,
trabalha com o jeito da gente
se movimentar. Isso é libertador.
Então, elas começaram, aos poucos,
a falar de suas histórias, um resgate
da memória, das emoções, dos
sonhos. Estavam confinadas pelo
crime que cometeram. Isso é duro,
pois é como se deixassem de existir
como pessoa, que tem família, que
tem filhos, dores, amores. Cada
mulher tem uma história, mas em
geral elas vivem situações difíceis.
Aí, a gente entende porque ela está
no cárcere. É o que acontece, no
próprio espetáculo, as pessoas se
emocionam porque veem que a gente
tá falando de um ser humano, que
teve um caminho e tá ali. Isso não é
defesa, é mostrar questões sociais,
de desigualdade, de classe”, afirma.
/ André Veloso
110
Revista Elas por Elas - março 2020
/ Nanci Alves
As duas horas semanais da oficina
de teatro passaram a ser muito esperadas
por aquele grupo. “Elas vivem
24 horas, diariamente, sem fazer
quase nada ali dentro. De repente,
chegam outras pessoas interessadas
nelas. A gente se abraça, trata todas
da mesma forma, sem perguntar
a ninguém o motivo de estar ali.
Tudo muito intenso e retorno rápido.
Só o fato de respirar devagar, por
causa dos exercícios teatrais, possibilitou
falar melhor e até a escutar a
outra. Tivemos depoimentos de mulheres
que diminuíram o consumo
de antidepressivos, porque criaram
consciência corporal e conseguiram
se manter nesse estado de menos ansiedade.
Para outras, o teatro foi importante
para que pudessem enfrentar
a mesmice e a solidão do cárcere
e, para as que se preparavam para
sair, foi importante para se fortalecerem
para encarar a sociedade aqui
fora,” afirma Gláucia Vandeveld.
As atrizes disseram ter aprendido
muito com a experiência. “Você
se coloca de frente pra você mesmo
e seus privilégios, vê um Brasil
desumano. Essa desumanidade é
gritante na cadeia. Somos um país
que encarcera pessoas pobres e
principalmente negras”, diz Kelly
Crifer ao acrescentar que elas acreditam
na pequena revolução. “A
gente conseguiu entrar e fazer este
trabalho. Pontuar o sistema penitenciário
no Brasil é importante,
mas nossa proposta era falar da
transformação humana possível
por meio da arte. Vimos resultados
concretos por parte delas e da direção
do presídio. Eles perceberam
nas detentas um aumento no interesse
por leitura além do resgate
das subjetividades de cada uma
daquelas mulheres, seus interesses
e histórias, seus gostos e particularidades
numa reconstrução e reencontro
com elas mesmas,” ressalta.
Momentos de liberdade
Vilma (nome fictício), que já esteve
em situação de cárcere, diz que
considera importante ter diversas
atividades para as mulheres dentro
da prisão, mas que isso não muda a
dura realidade, pois “o que adianta
ter tudo isso lá dentro e quando sai
aqui fora não ter apoio nenhum,
de ninguém? Você é simplesmente
uma ex-presidiária, sempre. A
sociedade discrimina, julga e não
ajuda. Ninguém te oferece uma
vaga de trabalho”, desabafa. Para
a jovem Brenda, 23 anos, foi muito
bom ter participado de uma oficina
de dança no presídio onde estava
em regime semiaberto, em setembro
de 2019. “Dançar é a coisa que
mais amo fazer na vida. No presídio,
às vezes a gente dança ouvindo
rádio e uma ensina para a outra colega”,
conta. A oficina que Brenda
fez foi oferecida pelo FestiFrance ,
Mostra Francesa de Cinema.
Além da programação composta
pela exibição de vários curtas e
longas para o público em geral, o
FestiFrance realizou oficinas de
dança e de improvisação teatral
para mulheres em regime semiaberto
em uma unidade prisional,
em Belo Horizonte. De acordo com
o diretor do festival, o cineasta Roberto
de Matos, o evento tem também
um caráter social, de levar arte
para outros espaços como favelas e
prisões. “Arte tem que ser para todo
mundo, pois propõe reflexão não
só sobre o mundo, mas sobre o espírito
humano. E eu me emociono
com a alegria das mulheres em situação
de cárcere, quando a gente
oferece arte para elas. Eu sei que
Revista Elas por Elas - março 2020
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elas fizeram algo fora da lei para
estarem ali, mas não cabe a mim
julgamentos. O que eu posso fazer
é levar um pouco do meu trabalho
para oferecer momentos de alegria
e descontração. Acho que arte pode
contribuir com as mudanças necessárias
em cada um, no espaço, nas
relações. E tudo isso vai refletir na
sociedade como um todo”, diz.
Brenda confirma essas palavras:
“Por alguns minutos em me esqueci
de onde me encontro. Me senti
livre de novo. Estando reclusa, a
gente se esquece um pouco de tudo,
até da gente mesmo. E atividades
assim lembram a gente da existência
da rua, da nossa liberdade. Deveríamos
ter mais momentos assim
e com cursos profissionalizantes”.
A oficina do FestiFrance foi ministrada
pelo dançarino africano
(República do Benin) Gérard Nouatin
(foto), que levou para as detentas
um pouco da cultura do seu
continente. “Ministrei uma oficina
de dança urbana africana, que é um
conjunto de passos originários de
diversos países da África. Foi uma
experiência única. Dançamos também
forró, funk e samba em cima
das mesmas músicas. Dançar com
elas, vê-las rindo, curtindo um momento
de felicidade para o qual eu
também contribuí, foi maravilhoso.
Era como se a gente já se conhecesse
há tempos”, conta Gérard.
Para Mônica, 37 anos, a oficina
mudou sua energia. “Dançando, a
gente se alegra, passa o tempo, faz
exercícios físicos e perde caloria. Tudo
importante, porque a gente fica
muito deitada e ansiosa, por falta do
que fazer. A dança acalma, trabalha
nosso emocional. Queria que aqui tivesse
atividades esportivas para todas
nós. Gosto também da visita das
pessoas que vem trazer a palavra de
Deus. Participo de tudo”, diz.
A espiritualidade também é para
muitas mulheres encarceradas o
caminho de cura, do autoperdão,
de paz e da melhora da autoestima.
É comum nos presídios a visita
/ Nanci Alves
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Revista Elas por Elas - março 2020
de pessoas de religiões diferentes.
Ana Lúcia, da Pastoral Carcerária
da Arquidiocese de Belo Horizonte,
visita semanalmente as mulheres
em situação de cárcere na capital
mineira e, pontualmente, na região
metropolitana. “Não podemos
nem queremos julgar ninguém.
Nós fazemos a visita, priorizando
a escuta e o acolhimento, refletimos
sobre a palavra de Deus e, por
meio desta, muitas renovam suas
esperanças”, conta. A Pastoral trabalha
na dimensão de um mundo
sem cárcere, com as pessoas livres,
com autonomia, dignidade e com
garantia dos direitos. Não é pelo
fato de a mulher estar presa que ela
pode ser vista e tratada com desrespeito,
discriminação, perdendo
sua identidade, sua dignidade. O
agente pastoral recebe formação,
informação e vários materiais para
ajudar na sua atuação no cárcere e
também com a família da mulher
presa. Buscamos estar junto em
oração e também ajudando-as em
outras necessidades. É um momento
de reflexão sobre outras formas
de viver com mais respeito a elas
mesmas. Muitas vezes são levadas
por este mundo consumista, onde
o Deus da atualidade tem sido o dinheiro
e, assim, vão se enveredando
por caminhos não felizes”, conta.
Segundo Ana Lúcia, algumas
mulheres se sentem tão tocadas
com a visita que falam que, quando
sairem da prisão, vão fazer a
formação para voltar ao presídio
como agentes de pastoral carcerária,
ajudando outras mulheres. Ela
explica que muitas não têm visita de
familiares e, por isso, a ajuda passa
também pelo aspecto material. “A
mulher presa é vulnerável e invisível,
suas necessidades básicas não
são atendidas e as mais profundas
são ignoradas. O papel da Pastoral
Carcerária é dar visibilidade a essa
questão e, mais que isso, lutar pela
transformação dessa triste realidade,
pelo desencarceramento das
mulheres”, acrescenta.
A presidenta do Grupo de Amigos
e Familiares de Pessoas em
Privação de Liberdade (GAFPPL)
de Minas Gerais, Maria Teresa dos
Santos, ressalta que, no presídio,
as necessidades especiais das mulheres
não são levadas em conta.
“O Estado dá absorvente, mas não
o suficiente para quem tem fluxo
menstrual mais intenso e não dá
sabonete, shampoo, calcinhas nem
sutiãs. A família precisa completar
e poucas recebem visitas de familiares
ou de seus companheiros.
Muitas vezes são abandonadas
“
A mulher presa
é vulnerável e
invisível, suas
necessidades
básicas não são
atendidas e as
mais profundas
são ignoradas”
por todos e discriminadas também
dentro do sistema, porque para a
nossa sociedade lugar de mulher
é dentro de casa, cuidando da família.
É ‘inadmissível’ uma mulher
infringir a lei. Assim elas sofrem
dobrado”, afirma.
Por tudo isso, Maria Teresa
defende a oferta de várias atividades
no presídio. “Elas ajudam a
presa se sentir pessoa novamente,
porque lá dentro todo mundo é
um número de cadastro. O governo
precisa incentivar voluntários
a darem cursos profissionalizantes,
com todo esquema de segurança
e material necessário, sem a
burocracia que hoje existe e que
já fez muito voluntário desistir.
No caso das mulheres, precisam
de cursos na área da construção
civil, pois já vi fazerem curso de
cabeleireira e depois não conseguirem
emprego, porque muitos
donos de salão acreditam que
suas clientes não terão confiança
em deixar suas bolsas enquanto
lavam um cabelo. Elas sempre são
vistas com discriminação, independente
do crime que cometeram. A
maioria delas é presa por tráfico
de drogas e, muitas vezes, porque
o companheiro já foi preso e elas se
viram obrigadas a assumir o papel
deles. Ou foram presas por pequenos
furtos e, na maioria das vezes,
para garantir a própria sobrevivência.
Se tiverem curso de pedreira,
acabamento, eletricista, soldadora,
as chances de conseguirem emprego
na construção civil é bem maior,
como acontece com os homens. E
muitas empresas preferem contratar
mulheres para acabamento, por
Revista Elas por Elas - março 2020
113
exemplo, porque consideram que
elas são mais sensíveis e caprichosas”,
diz Tereza dos Santos (foto) .
“Nesta semana encontrei, casualmente
na rua, com uma mulher
que saiu da prisão há algum tempo.
Ela estava com roupas que mostravam
muito o corpo. Então, eu
questionei onde estava indo e ela
me contou, bem constrangida, que
estava indo ‘fazer ponto’. E disse:
‘Todo mundo me discrimina, não
consigo trabalho e estou passando
falta. Se vender droga, vou presa.
Então, vou vender a única coisa
que tenho’, me disse. Eu fiquei muito
triste, pois ela não estava fazendo
aquilo porque queria e sim pela
falta de opção. Isso é uma realidade
que a sociedade precisa ver”, diz.
A unidade prisional Estêvão
Pinto/SEAPMG, em Belo Horizonte,
tem empresas parceiras que atuam
lá dentro e contratam algumas
mulheres. “É bom, pois ocupam
seu tempo, evitando adoecer e com
isso ganham dinheiro, mesmo que
pouco. Não têm carteira assinada,
recolhimento de INSS nem FGTS,
enfim, sem direitos trabalhistas.
Mas ajuda a combater a depressão
e a cada 3 dias trabalhado, diminui
um dia na pena”, ressalta.
A diretora-geral dessa unidade,
Márcia Lopes Ferreira, concorda
que é essencial a manutenção de
parcerias com profissionais e projetos
sociais dentro de uma unidade
prisional (UP). Segundo ela, é
fundamental propiciar momentos
de reflexão e de autocrítica, a fim
de identificar e desenvolver as potencialidades
de cada uma dessas
mulheres, que muitas vezes não se
/ Carina Aparecida
114
Revista Elas por Elas - março 2020
descobriram até que se envolveram
com a criminalidade. “Cheguei recentemente
a esta UP, por isso não
sei precisar ainda quantas oficinas
já foram realizadas aqui. Nossa intenção
é ampliar a fim de promover
a reinserção social das mulheres
em privação de liberdade. Sempre
acreditei e foco nesta proposta, não
há de desejar somente as grades; temos
que propiciar atividades que
ajudem a prepará-las para retomar
suas vidas com novos objetivos, mudança
de hábitos e outra rede de
contatos”, afirma Márcia Ferreira,
ao ressaltar que as próprias mulheres,
para se ocuparem, solicitam inserção
em atividades e que essa experiência
tem trazido um ambiente
mais calmo. “As custodiadas do regime
fechado participam de todos
os eventos promovidos pelos parceiros
e/ou pelo SEJUS/Depen. Vamos
inserir atividades de remição
por leitura e artesanato intracelas.
Assim vamos investir nesse tempo
ocioso e propiciar remições de
pena. Digo sempre que temos que
fazer nossa parte - somos responsáveis
pela execução da legislação que
propõe a ressocialização e, assim,
atuamos neste complexo com todas
que aqui se encontram. A escolha
é individual e a satisfação é poder
fazer a diferença na vida de quem
escolheu mudar de vida”, afirma.
Hora de desencarcerar
Mais do que promover diversas
atividades dentro das unidades
prisionais, é preciso que se mude a
forma de penalizar as pessoas que
cometeram pequenos delitos. É o
que defende o Grupo de Amigos e
Familiares de Pessoas em Privação
de Liberdade de Minas Gerais. Segundo
sua presidenta, Maria Teresa
dos Santos, o sistema não ajuda
ninguém a mudar sua vida. Ao contrário,
uma situação precária, com
privação da liberdade e de muitos
de seus direitos, o detento sai pior
de lá. “O sistema não ressocializa
ninguém. Aliás, em geral, as pessoas
que estão encarceradas nunca
foram socializadas na vida, por isso
chegam até ali. Não tiveram acesso
à educação pública de qualidade,
não tiveram água tratada, energia
elétrica, médico, dentista. Só serão
socializadas de verdade quando tiverem
direitos básicos garantidos”,
destaca Teresa, que defende outras
formas de penalizar, sem ser o cárcere.
“Muitas mulheres que estão
nas unidades poderiam estar trabalhando,
cuidando de seus filhos,
pagando suas contas. A autorização
para mães com filhos menores
“
A polícia não
sabe distinguir
um traficante
de um usuário,
quando o
usuário é negro
e pobre”
de 12 anos cumprirem pena em
casa não é regra, depende da compreensão
do juiz. Mas sabemos que
a justiça é seletiva. Os crimes são
iguais, mas a punição vem pela
cor da pele, pelo CEP, ou seja, vai
variar de acordo com a origem do
réu. O negro e a negra periféricos,
de baixa escolaridade, têm mais
chance de irem parar na cadeia do
que alguém da zona sul. A polícia
não sabe distinguir um traficante
de um usuário, quando o usuário é
negro e pobre”.
Teresa Santos acredita que precisamos
de política pública nessa
área. “Assim como sistema de cotas
para pessoas com deficiência,
cada empresa deveria ter que
oferecer um percentual de vagas
para pessoas que saíram da prisão
e que precisam de uma oportunidade.
Principalmente as empresas
que prestam serviço para o Estado
ou prefeituras, seja na construção
de viadutos, asfaltamento, as que
vendem insumos pra hospitais. Se
a pessoa sai do cárcere com emprego,
é bem provável que não vá
reincidir no crime. São raras as que
fazem isso, a maioria é muito tempo
depois, quando já pelejou muito
e não conseguiu trabalho. A sociedade
precisa entender que o preso
está contido, mas amanhã ele estará
contigo, nas ruas. Se a sociedade
não começar a reescrever essa
história, não vamos mudar nunca
esse sistema violento. É preciso que
os direitos sejam reconhecidos,
que existam políticas públicas que
atendam às necessidades básicas
da população. Com desigualdade,
nada muda”, afirma.
Revista Elas por Elas - março 2020
115
/ Luiz Silveira
116
Revista Elas por Elas - março 2020
Artigo
O encarceramento de mulheres
acusadas por tráfico de drogas:
desafios para as lutas feministas
e antirracistas
por Daniela Tiffany
O crescimento do aprisionamento
de mulheres, sobretudo a
partir de legislações que buscavam
coibir o uso e a comercialização de
drogas, contribuiu para uma maior
regularidade nas características
das acusadas e condenadas por crimes
dessa natureza no Brasil e no
mundo. De acordo com os dados do
Departamento Penitenciário Nacional
(2014), em torno de 68% das
mulheres privadas de liberdade foram
acusadas por tráfico. Em geral,
elas são jovens, têm filhos, solteiras,
com baixa escolaridade e sem
vínculo formal de trabalho. Em
relação à raça, cor ou etnia, duas
em cada três presas são negras,
representando 67% da população
prisional feminina, enquanto que
na população brasileira, segundo
dados do IBGE, a proporção de negros
é de 51%.
A predominância de mulheres
negras no ambiente prisional é
algo perceptível para quem conhece
essa realidade de perto, apesar
de não ser algo explícito dentro de
um contexto que justifica o aprisionamento
pelos atos praticados
e não, declaradamente, pelas características
das presas. As narrativas
formuladas pelos operadores
do Sistema e introjetada por elas
mesmas validam a condenação
como uma consequência da atividade
criminalizada, sem maiores
críticas aos processos de criminalização
intrínsecos ao Sistema de
Justiça Criminal.
Muito antes de serem privadas
da liberdade sob acusação de prática
criminal, características e condições
de vidas já as tornavam vulneráveis
diante de mecanismos de
Revista Elas por Elas - março 2020
117
controle e seletividade penal. O risco
de ser abordada com drogas e
acusadas por tráfico não é igual para
todas as mulheres. Pesquisas demonstram
que pessoas negras tendem
a ser condenadas por tráfico,
mesmo portando menores quantidades,
com porções inferiores a 100
gramas de droga. Em 84% dos processos
com até 10 gramas estas pessoas
foram condenadas a partir do
testemunho exclusivo de policiais.
Essa realidade, que atinge um
número cada vez maior de mulheres,
parece ser um problema ainda
circunscrito a elas e aos mais
próximos. Não é uma questão que
mobiliza permanentemente as
mulheres organizadas, a não ser
em datas emblemáticas em que as
presas são lembradas nas campanhas
para doação de absorventes
e outros itens de higiene pessoal.
Essa situação gritante permanece
invisibilizada, inclusive, na agenda
dos movimentos sociais e das lutas
feministas. Mas a condenação delas
tem a ver com todas nós.
Concepções arraigadas, mas
nem sempre declaradas sobre mulheres,
deixam as presas passíveis
dos julgamentos de todos e de todas,
não apenas pelo(s) crime(s)
cometido(s), mas pela vida que levavam
e por tudo mais que foi ou
é presumido sobre elas. Enquanto
algumas pessoas violam as leis sem
jamais serem acusadas ou processadas,
para outras não há possibilidade
de defesa qualificada, nem
justo contraditório, sequer a presunção
de inocência. São condenadas
antes mesmo de que tenha sido
oficializada a sentença.
Fazendo um simples comparativo
com a média nacional, de acordo
com as informações do Ministério
da Justiça, o crescimento da população
prisional feminina foi de 567%,
de 2006 a 2014, enquanto da população
masculina foi de 220%, no
mesmo período (Borges, 2018). Atualmente
são mais de 43.000 mulheres
privadas da liberdade no Brasil,
2.943 em Minas Gerais, até maio de
2019. Apesar de representar menos
de 4% do total da população prisional
mineira, o crescimento proporcional
do número de presas foi
muito significativo. Em 2003, contávamos
238 presas, isso indica um
crescimento de mais de 1.200%, em
menos de duas décadas.
Mais da metade das mulheres
presas em Minas são provisórias.
Dentre as que já foram julgadas,
/ Site Mulheres em prisão
118
Revista Elas por Elas - março 2020
boa parte delas chegaram primárias
ao banco dos réus, e receberam
penas de 5 a 8 anos, por crimes relacionados
ao tráfico de drogas. Para
além dessas acusações, os crimes
contra o patrimônio, roubo (artigo
157 do Código Penal Brasileiro –
14,8%) e furto (artigo 155 – 9,2%),
respectivamente, são os que mais
conduzem as mulheres à prisão.
Em sua maioria, são mulheres com
até 30 anos de idade (43%), negras
(66,2%), solteiras (66,0%), procedentes
de áreas urbanas (95%),
com ensino fundamental incompleto
(56%). A maior parte delas
são mães (70%).
Poucas são homicidas, lideranças
do tráfico ou alcançaram posições
de destaque no crime. Certamente
existem mulheres com essas
características, mas não significa
que estejam presas. Pelo contrário,
talvez sejam elas mais difíceis de
serem identificadas e capturadas
do que as demais. As que comumente
“caem” são aquelas que desempenham
funções periféricas e
pouco rentáveis. São mulheres que
vivem em contextos caracterizados
pela pobreza, criminalização, violências
e uso precoce e abusivo de
drogas consideradas ilícitas.
Muitos desses crimes são cometidos
para obtenção de pequenos
rendimentos econômicos, para a
própria manutenção do consumo
de drogas e/ou por benefícios advindos
da vinculação com pessoas
ligadas ao tráfico. Esses fatos são
reconhecidos, inclusive, por magistrados
que defendem a descriminalização
do consumo para uso
pessoal como medida para reduzir
o encarceramento no Brasil, sobretudo,
de mulheres. Mas não conseguimos
enfrentar esse debate com
maior objetividade e, por negociações
e investidas conservadoras,
ele foi retirado de julgamentos pelo
Supremo Tribunal Federal.
Muitas mulheres acusadas como
traficantes são também usuárias de
drogas, tanto que foram encaminhadas
para tratamento durante o processo
e/ou após a condenação penal.
Em geral, foram presas em batidas
policiais e/ou em cenas de venda
e uso. Tantas outras foram presas
sob a condição de “mulas”, identificadas
tentando transportar drogas
no estômago ou nas genitálias, para
dentro de estabelecimentos prisionais.
Muitas delas eram primárias,
sem antecedente criminal. Mulheres
facilmente capturadas pelo sistema
punitivo e rapidamente substituídas
em suas funções.
Em tempos de recuo nas políticas
de proteção social, as políticas
públicas de segurança terão reforçadas
as funções de controle e seletividade
penal. Mais do que proteger
bens individuais ou coletivos
(inviolabilidade do direito à vida,
direito à propriedade, etc.), a segurança
pública regula, através dos
mecanismos do sistema de justiça
criminal, comportamentos e condutas
de minorias tidas como discrepantes.
Somadas aos milhares
de homens presos, mulheres que
tantas vezes foram classificadas
como mais “um zero à esquerda”
estão sendo cada vez mais capturadas
e presas.
O debate sobre seletividade penal
de mulheres negras acusadas
de tráfico de drogas é delicado
em um país que se nega racista. É
ainda mais delicado quando nos
propomos a realizá-lo numa esfera
de neutralidade racial como
se pretende a Justiça. Tentamos
estender o manto da Democracia
Racial para encobrir a atualização
e reprodução de desigualdades,
distinções e discriminações que
caracterizam a nossa sociedade e,
consequentemente, o sistema de
justiça criminal. Para amenizar a
responsabilidades de tantos, tratamos
a criminalidade como culpa
delas e seguimos condenando-as
mulheres negras, pobres e periféricas
à prisão. Mudam-se os crimes,
permanecem as penas. A liberdade
ainda é um horizonte distante para
muitas de nós. Essa é uma questão
urgente para as mulheres, feministas,
comprometidas com a luta
antirracista. E para todos que se
comprometem com uma sociedade
mais justa e menos desigual.
/
Daniela Tiffany Prado de Carvalho
Mulher negra, feminista, especialista em
Segurança Pública e Justiça Criminal pela Fundação
João Pinheiro e Mestre em Psicologia Social pela
UFMG. Militante e pesquisadora nas temáticas de
gênero e promoção da igualdade racial.
Atualmente assessora parlamentar.
Revista Elas por Elas - março 2020
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120 Revista Elas por Elas - março 2020
/ Mídia Ninja
Artigo
A PENA DO ABORTO
vale a pena?
por Talita Maciel
Vivemos, claramente, um momento
ideologicamente binário pelo
mundo: ser de esquerda ou de direita;
ser contra ou a favor de determinadas
práticas; se posicionar: ser
SIM ou ser NÃO. Alguns assuntos se
tornaram, inclusive, pautas de “esquerda”
ou de “direita”, e, pra serem
coerentes com o seu “lado” escolhido,
muitas vezes passam a ser
contra uma pauta pelo simples fato
de ter que estar de um dos lados,
desconsiderando a importância de
discussões científicas sérias e embasadas
sobre o assunto. O aborto
é um desses assuntos polêmicos. Fato
é que, independentemente de ser
contra ou a favor, ele existe, apesar
de ser crime no Brasil.
A questão do aborto perpassa
várias épocas da história da humanidade.
Nos primórdios das civilizações
oriental e greco-romana, o
aborto não era proibido. No entanto,
o delito da mulher nessa época
era considerado quando da desobediência
ao marido, ou seja, a punição
vinha se a mulher recusasse a
ter o filho contra a vontade do cônjuge.
Com o crescimento do Cristianismo,
as ideias morais relativas ao
aborto se transformaram ao longo
do tempo, de modo a regular ainda
mais os corpos femininos e manter
a dominação patriarcal. Foi atribuída
alma ao embrião, e o aborto passou
a ser crime contra o feto.
As relações de poder e dominação
do patriarcado sobre as mulheres
integra o sistema simbólico do
feminino e das normas sociais já estruturadas
e instituídas às mulheres,
que muitas vezes, por si só, já
as definem por sua função biológica
reprodutora e por sua anatomia
que se materializa a partir do útero.
A filósofa Márcia Tiburi relaciona
o útero como a metonímia da mulher,
ou seja, o destino da mulher
vem definido por seu órgão fragmentado,
fadado à reprodução.
Revista Elas por Elas - março 2020
121
As discussões sobre poder no estado
patriarcal e os locais a que homens
e mulheres foram destinados
na sociedade são importantes para
o entendimento da penalização
da mulher diante do aborto, bem
como as características que cada
espaço estabelece nas ações e nas
relações de poder entre tais atores.
O espaço público, historicamente
ocupado por homens, é universo
de poder, proporcionando voz e
diálogo a seus ocupantes; já o doméstico,
local destinado às mulheres,
é recluso, solitário, submisso e,
frequentemente, violento.
Ainda que nos séculos XX e XXI
as lutas feministas tenham forçado
avanços e conquistas significativas
nos direitos da mulher, o espaço
público e os lugares de poder ainda
pertencem majoritariamente
aos homens. Atualmente, no ano
de 2019, dos 513 deputados(as) federais
do Congresso Nacional brasileiro,
apenas 77 são mulheres, e,
das 81 cadeiras do Senado, 12 são
ocupadas por senadoras, totalizando
cerca de 15% da casa legislativa.
Esse número diz muito sobre quem
majoritariamente ocupa e exerce o
universo do poder e da legislação, e
a quem resta o universo doméstico
marcado frequentemente pela violência.
O Congresso Nacional é o local
onde se criam as regras e as leis
que irão reger o sistema coletivo. As
regras estabelecidas perpassam pelo
corpo real e simbólico da mulher.
Leis, projetos de leis e decretos que
tratam de temas como o do aborto,
planejamento familiar, saúde sexual
e reprodutiva da mulher ou assuntos
relacionados ao corpo e ao
livre arbítrio da mulher são discutidos
majoritariamente por homens.
Um dos papéis sociais atribuídos
à mulher, até mesmo por sua fisiologia,
é a maternidade, e o aborto
é uma prática que rompe com o
que lhe foi imposto. O aborto pode
ser fruto de uma gravidez indesejada,
que geralmente decorre de
falhas no processo contraceptivo.
A maternidade, da forma como é
concebida, é uma instituição atribuída
às mulheres antes mesmo
delas nascerem, por meio de normas
que advêm duma ancestralidade
que perpassa por gerações, com
limitações impostas pela sociedade
e pouca influência da decisão individual.
É o que o precursor da sociologia
Émile Durkheim definiria
como “Fato Social”, que engloba as
relações objetivas impostas e externas
ao indivíduo, mas que exercem
coerção sobre ele, independentemente
da sua vontade subjetiva. As
instituições regulam a consciência
coletiva, que por sua vez não pertence
ao indivíduo, mas o molda,
influenciando a própria consciência
individual. Na tentativa de
romper com o instituído, o indivíduo
sofre uma punição, ou seja,
a mulher ao tentar romper com a
maternidade/instituição, por meio
do aborto, gera penalidades legais;
se for mediante adoção ou doação
da prole, recebe condenação moral;
se o rompimento passar pela
recusa de nem mesmo engravidar,
há também a pena do julgamento
social por meio da intromissão na
sexualidade individual da mulher,
/ Mídia Ninja
122
Revista Elas por Elas - março 2020
que se nega a cumprir o papel social
de mãe. É o caso de movimentos de
mulheres como os intitulados “No
Mothers”, que surgiram numa tentativa
de desconstruir a maternidade
compulsória, tendo se unido
com o objetivo de atenuar as sanções
que sofrem decorrentes da não
aceitação social pela decisão individual
de não gestar um filho. São
lutas que advêm das penas sofridas
por negar a maternidade instituída.
Salvo os poucos casos previstos
por lei, as demais razões para interrupção
da gravidez estão fadadas à
clandestinidade. A lei do código penal
brasileiro de 1940 prevê o abortamento
legal apenas em casos em
que não houver outros meios de
salvar a vida da gestante e em casos
de gravidez resultante de estupro.
Somente em 2012 houve um entendimento
do Supremo Tribunal
Federal (STF) que reconheceu o direito
à interrupção da gravidez em
casos de feto anencéfalo. No entanto,
a decisão ainda não se tornou
lei, pois carece de aprovação pelo
legislativo brasileiro. Os três casos
em que o aborto é previsto legalmente
se dão quando a mulher é
vítima – seja de uma violência, ou
do mero acaso. Conceber o aborto
enquanto escolha, enquanto decisão
e autonomia de um corpo que
gesta, ainda parece ser algo ainda
distante da realidade brasileira, em
que pese ser um fenômeno global.
Muitos países, em sua maioria de
alta renda, já legalizaram a prática
do aborto, tornando mais seguros os
procedimentos e promovendo suporte
psicológico às mulheres que contemplam
abortar ou que abortam.
Segundo dados do Instituto Guttmacher,
estima-se que ocorram
cerca de 55,9 milhões de abortos
por ano, sendo que cerca de 25 milhões
destes procedimentos ocorrem
de forma insegura. A maioria
dos abortos inseguros ocorrem nos
países de média e baixa renda, onde
93% deles possuem legislações
restritivas à prática do aborto. Países
com leis liberais pró-aborto
estão localizados em quase toda a
Europa, América do Norte e Ásia.
Quanto mais restritivas as leis que
tratam o aborto em um país, mais
inseguros eles se tornam.
A segunda edição da Pesquisa
Nacional de Aborto 2016 (PNA)
estimou que, no Brasil, 1 em cada
5 mulheres alfabetizadas moradoras
de áreas urbanas já realizou
pelo menos um aborto. A metade
delas precisou ficar internada para
finalizá-lo. Salvo as causas do
aborto induzido amparado por lei,
a interrupção da gravidez no Brasil
se dá de forma clandestina e insegura,
colocando em risco a vida
de milhares de mulheres. Além do
óbito, as mulheres que submetem
aos procedimentos inseguros podem
sofrer outras consequências,
como disfunções físicas e/ou mentais
decorrentes do abortamento.
A pesquisa também apontou que o
perfil das mulheres que abortam é
comum: a maioria tem filhos, religião,
são de todas as classes sociais
e níveis educacionais, no entanto,
há maior frequência entre as mulheres
pretas, pardas, índigenas e
de menor escolaridade que vivem
na região norte, nordeste e centro-
-oeste do país.
Criminalizar o aborto, ser
contra, reforça a manutenção de
um poder vigente, que, além de
impor a maternidade às mulheres,
expõe muitas delas à ilegalidade,
privando-as do poder de decisão
sobre gestar ou não um filho, sem
o devido suporte de uma equipe
psicossocial e médica, e, caso decida
sobre o abortamento, realizá-lo
em ambiente médico-hospitalar
adequado, de qualidade e seguro.
A sociedade já permite o aborto,
porém apenas quando a mulher é
vista como vítima, mas cerceando
assim seu direito a escolhas, sua
autonomia e colocando a mulher
em um lugar subjugado de culpabilização
e dependência. Seja qual for
a escolha da mulher diante de uma
gravidez indesejada, haverá uma
pena vivida por um corpo solitário,
silenciado e culpabilizado. Afinal,
por que a sociedade brasileira
aceita o aborto em apenas alguns
casos, mesmo diante de números
expressivos que corroboram práticas
seguras para o abortamento?
Vale a pena?
/
Talita Maciel é Assistente Social,
mestre em Promoção da Saúde e
Prevenção da Violência/FM/UFMG
Revista Elas por Elas - março 2020
123
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124
Revista Elas por Elas - março 2020
Violência
Por trás das
estatísticas de
feminicídios Desmanche do Estado gera aumento
da violência contra a mulher
por Débora Junqueira
Maria, Antônia, Mariele, Juracy,
Elisa, Ágata, Sônia, Carolina,
Leila, Beatriz, Tainara, Josefina...
Qualquer nome poderia representar
uma das 1206 vítimas de feminicídio
no Brasil, crime que teve
um aumento de 4% em 2018. Conforme
o Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, divulgado em setembro
de 2019, o perfil médio das
mulheres assassinadas, vítimas de
violência de gênero, é de 30 anos,
negra (61%) e com, no máximo, o
ensino fundamental (70,7%), o que
revela também a vulnerabilidade
social. Apesar desse perfil, a violência
de gênero atinge mulheres
de todas as classes sociais, etnias e
idades, inclusive crianças.
O levantamento sobre violência
sexual, com dados de 2018, mostra
que quatro meninas de até 13 anos
são estupradas por hora no país.
Segundo o levantamento, foram
66.041 registros de violência sexual
em 2018, sendo 81,8% do sexo feminino,
53,8% tinham até 13 anos e
50,9% eramm negras. Os 180 estupros
por dia representam um crescimento
de 4,1%, em relação a 2017.
Por sua vez, a violência doméstica
gera um registro a cada dois minutos,
representando 263.067 casos
de lesão corporal dolosa. Um
crescimento de 0,8% em 2018. A
maior parte dos agressores é de
conhecidos das vítimas e, frequentemente,
tem acesso ao ambiente
doméstico ou nele habitam. Situação
que torna complexo o enfrentamento
da violência doméstica.
Quem desejar acompanhar as estatísticas
em tempo real pode acessar
https://www.relogiosdaviolencia.com.br/#
Revista Elas por Elas - fevereiro 2020
125
Violência atinge mais
mulheres negras
O Atlas da Violência 2018,
publicado pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, aponta uma
possível relação entre machismo e
racismo: a taxa de assassinatos de
mulheres negras cresceu 15,4%, na
década encerrada em 2016. Ao todo,
a média nacional, no período, foi
de 4,5 assassinatos a cada 100 mil
mulheres, sendo que a de mulheres
negras foi de 5,3 e a de mulheres
não negras foi de 3,1.
Mais que fazer parte de estatísticas
chocantes, essas mulheres
têm sentimentos, dores e traumas
que vão acompanhá-las por toda
a vida e afetar a estrutura de toda
a família. A diarista Fátima (nome
fictício) tem vivido esse drama
na família. Moradora da região
metropolitana de Belo Horizonte,
ela acompanha com apreensão
o caso de duas enteadas vítimas
de abuso sexual por parte do
padrasto, que ameaçava matar
a mãe das crianças caso ela o
denunciasse. Após a denúncia, o
agressor está solto e a mãe corre
o risco de perder a guarda dos
filhos, que foram acolhidos em um
abrigo. Ao mesmo tempo, Fátima
descobriu que a sobrinha também
foi estuprada. “São meninas com
menos de 15 anos. Uma delas,
quando visitou a minha casa, disse
que sentia dor. Eu ainda não sabia
de nada. Perguntei a ela se queria
algum remédio e ela respondeu
que era uma dor que não ia passar
com nada”, relata.
Dados sobre violência
de gênero – 2018
Feminicídios
• Crescimento de 4%;
• 1206 vítimas;
• Ápice da mortalidade se
dá aos 30 anos;
• 61% são negras;
• 70,7% tinham no máximo
o ensino fundamental;
• Em 88,8% dos casos, o autor foi o companheiro
ou o ex-companheiro.
Em Minas Gerais, em 2017, houve 150 casos
de feminicídios. Em 2018, esse número
passou para 156 casos, aumento de 3,4%.
Violência doméstica
• Um registro a cada 2 min;
• Crescimento de 0,8%;
• 263.067 casos de lesão corporal dolosa;
Violência sexual
• crescimento de 4,1%;
• 4 meninas de até 13 anos são
estupradas por hora;
• 66.041 registros em 2018;
• 81,8% do sexo feminino;
• 53,8% tinham até 13 anos;
• 50,9% negras;
• 48,5% brancas;
• 180 estupros por dia.
Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (setembro/2019)
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126
Revista Elas por Elas - março 2020
Lei do Feminicídio
Desde que a Lei do Feminicídio
(lei nº 13.104/2015) entrou em
vigor, os homicídios por razão de
gênero subiram 62,7%. Discute-se
muito sobre as causas desse verdadeiro
genocídio de mulheres, ponderando
se houve um recrudescimento
da violência ou o aumento
da visibilidade desse tipo de crime.
De acordo com estudo da Comissão
Econômica para a América
Latina e o Caribe (Cepal), vinculada
à Organização das Nações Unidas
(ONU), a cada dez feminicídios
registrados em 23 países da região
em 2017, quatro ocorreram no Brasil.
Naquele ano, pelo menos 2.795
mulheres foram assassinadas, das
quais 1.133 no Brasil.
A rigor, o feminicídio é um agravante
do crime de homicídio, uma
circunstância específica que transforma
o ato em homicídio qualificado.
A pena para o crime vai de 12
a 30 anos de reclusão. Mas pode ser
elevada em até 50%, caso o crime
seja praticado na presença de filhos,
pais ou avós da vítima, durante
a gestação ou nos três meses imediatamente
pós-parto e ainda contra
vítima menor de 14 anos, maior
de 60 anos ou com deficiência.
Segundo revela o Ministério Público
de São Paulo, somente 4% das
vítimas de feminicídio no estado tinham
procurado a polícia para relatar
abusos. Uma pesquisa realizada
pela teóloga Valéria Vilhena, no
curso de doutorado da Universidade
Presbiteriana Mackenzie de São
Paulo, constatou que 40% das mulheres
vítimas de agressões físicas
e verbais de seus companheiros se
declaram evangélicas. “Quando essa
mulher vai procurar o pastor para
dizer que ela está sofrendo violência,
normalmente não recebe apoio,
o pastor aconselha mais submissão,
em nome de Deus: ‘seja sábia’, ‘fique
calada’, ‘não enfrente’, explica Valéria,
em entrevista ao Uol.
Além de crenças pessoais, não
se pode desconsiderar que há vínculo
emocional com os agressores,
e as mulheres ainda têm medo de
ficar desamparadas, caso o companheiro
seja preso ou sofra alguma
sanção que o leve a perder a fonte
de renda, uma vez que é a mulher
que normalmente se responsabiliza
pelos filhos.
Sem denúncia, supõe-se como
justificativa a impossibilidade de
acionar as medidas protetivas previstas
na Lei Maria da Penha nº
11.340/2006). Mas o que se vê é a falta
de resposta do Estado em garantir
“
Quando essa mulher
vai procurar o pastor
para dizer que ela está
sofrendo violência,
normalmente não
recebe apoio, o pastor
aconselha mais
submissão, em nome
de Deus: ‘seja sábia’,
‘fique calada’, ‘não
enfrente”
os direitos humanos das mulheres
por falta de investimento na implementação
de fato dos equipamentos
e medidas previstas na Lei Maria da
Penha, que completou 13 anos em
2019 e representa um grande avanço
no combate à violência doméstica
no Brasil. Segundo dados divulgados
pela Agência Senado, no Brasil,
menos de 10% dos municípios contam
com delegacias especializadas
de atendimento à mulher.
Banalização da violência
Para a professora Terezinha Avelar,
diretora do Sinpro Minas, secretária
adjunta de Mulheres da Central
dos Trabalhadores e Trabalhadoras
do Brasil (CTB-Minas) e presidenta
do Conselho Municipal dos
Direitos das Mulheres (CMDM), as
crescentes estatísticas de crimes
contra as mulheres refletem o momento
político atual. “Há uma naturalização
da violência e apoio a
comportamentos machistas. As mulheres
sofrem com o alto índice de
desemprego e não há investimentos
para ampliar e fortalecer os mecanismos
de proteção às mulheres em
situação de risco à violência, assim
como para o preparo de quem acolhe
essas mulheres no dia a dia nas
delegacias. Há casos em que a mulher
espera muito tempo para ser
atendida e acaba desistindo de fazer
a denúncia”, alerta.
Em Belo Horizonte, Terezinha
Avelar participou das discussões sobre
o primeiro Plano Municipal de
Equidade de Gênero, que faz parte
da plataforma “Cidade 50-50: todos e
todas pela igualdade”, da Organização
das Nações Unidas. O plano tem
Revista Elas por Elas - março 2020
127
/ Mídia Ninja
como um dos eixos o enfrentamento
da violência contra a mulher. Segundo
ela, a pactuação entre as secretarias
municipais é um passo importante
na execução de políticas com
o olhar diferenciado para a equidade
de gênero.
Ela acredita que o empoderamento
faz com que as mulheres
busquem romper os padrões de
dominação machistas. Por sua vez,
os homens que acreditam ser donos
dos corpos das mulheres respondem
com agressões. “A violência
contra a mulher precisa ser revertida
na educação, e é urgente
barrar projetos como o “Escola
sem Partido” e iniciativas que desqualificam
as lutas de gênero, pois
representam um grande retrocesso
para a sociedade”, afirma.
Diante de todos os motivos,
é preciso destacar o desmanche
das políticas públicas de enfrentamento
à violência, a falta de
investimentos para essas políticas,
a mentalidade conservadora dos
governantes e medidas como a
flexibilização da compra e do porte
de armas no Brasil, que anunciam
uma tragédia ainda pior para a
vida das mulheres em relação à
violência de gênero.
“Os governos não têm levado a
sério o combate à violência doméstica,
e grande parte dos operadores
desse sistema também não estão
preparados para lidar com a complexidade
do tema. O contexto de
desemprego e insegurança e até
mesmo um clima mundial tenso
trazem consequências, como o
aumento da violência”, ressalta a
antropóloga, pesquisadora e escritora
francesa Verónique Durand.
Ciclo perverso
Conforme aponta Lívia de Souza,
cientista política e pesquisadora do
Nepem/UFMG, “a Lei Maria da Penha
prevê, para além do afastamento do
agressor, políticas de prevenção,
centros de referência, casas abrigo,
delegacias e varas especializadas,
formando uma rede de proteção a
mulheres vítimas de violência. Isso
nunca ocorreu de maneira integral,
e o que temos visto na atualidade é
o desmanche das políticas conquistadas,
o que leva ao aumento da
violência”. Segundo a pesquisadora,
não há como combater a violência
contra as mulheres sem o comprometimento
por parte do Estado. [
Leia a entrevista na página ao lado]
Em audiência sobre o aumento
do feminicídio (em Minas, foram
registrados 156 casos em 2018),
realizada no dia 8 de março de
2019, na Assembleia Legislativa de
Minas, a professora Marlise Matos,
coordenadora do Núcleo de Estudos
e Pesquisas Sobre a Mulher (Nepem/
UFMG), enfatizou algumas questões
importantes que envolvem o
problema da violência de gênero. “A
violência vem de um ciclo perverso,
no qual os homens mantêm
privilégios, numa sociedade politicamente
hierárquica. O agressor
pode até ir preso, mas a origem
da violência é intocada. No Brasil,
40% dos lares são sustentados por
mulheres. Há 100 anos o feminismo
fala do privilégio masculino e nada
acontece”, desabafou.
128
Revista Elas por Elas - março 2020
Entrevista
Lívia de Souza
/ Carina Aparecida
“
“Quando o
Estado promove
discursos de
ódio, há um
impacto direto
na violência”
Para a cientista política Lívia de
Souza, doutoranda em Ciência Política
e pesquisadora no Núcleo de
estudos e pesquisa sobre a mulher
(NEPEM/ UFMG), o aumento da violência
de gênero tem relação direta
com o aumento da desigualdade social.
Ela chama atenção para o fato
de que, além do aumento do número
de casos de feminicídios, há uma
maior percepção da violência em
função de políticas como a Lei Maria
da Penha. Ao abordar o papel do
movimento feminista, da educação
e da mídia, ela defende que há uma
responsabilidade pública no combate
à violência.
Mesmo com todos os avanços legais
e institucionais, a violência contra
as mulheres continua ocorrendo
em grande escala. As estatísticas
mostram números alarmantes de
feminicídios. Qual a razão para o
aumento desses crimes e quais os
gargalos das políticas de enfrentamento
à violência contra a mulher?
Dois aspectos são importantes
quando falamos dos números de
feminicídios e de violências contra
as mulheres: o aumento real e uma
maior percepção da violência. Em
uma sociedade que voltou a aprofundar
desigualdades, não somente
entre homens e mulheres, mas
também de classe, raça e orientação
sexual, espera-se um aumento
da violência de uma maneira geral.
Quando o Estado, por meio de seus
representantes, autoriza – e promove
– discursos de ódio, há um impacto
direto na violência.
De outro lado, a construção de
políticas voltadas à proteção das
mulheres mudou a percepção da violência
de gênero em nossa sociedade.
Havia um discurso de que “em briga
de marido e mulher ninguém mete a
colher”, o que, felizmente, deixou de
ser aceito. A Lei Maria da Penha é a
lei mais conhecida do Brasil. Ainda
que a lei e outros mecanismos não
sejam suficientes para a proteção
das mulheres, o amparo legal e as
mudanças sociais levam a um maior
número de denúncias. Nesse mesmo
sentido, a lei nº 13.104/2015 passou
a incluir feminicídio como uma forma
de homicídio qualificado. Essa
mudança legal deu visibilidade aos
assassinatos de mulheres em razão
de gênero, o que antes se perdia no
universo de outras violências.
Revista Elas por Elas - março 2020
129
Não há como combater a violência
contra as mulheres sem
o comprometimento por parte
do Estado. A Lei Maria da Penha
prevê, para além do afastamento
do agressor, políticas de prevenção,
centros de referência, casas
abrigo, delegacias e varas especializadas,
formando uma rede de
proteção a mulheres vítimas de
violência. Isso nunca ocorreu de
maneira integral, e o que temos
visto na atualidade é o desmanche
das políticas conquistadas, o que
leva ao aumento da violência.
Como você analisa essa batalha
moral com “demonização do conceito
de gênero”, além da instalação
de um governo que tem como
ministra da área uma mulher que
banaliza a violência ?
O debate sobre gênero vai muito
além da questão sobre livre orientação
sexual, tão combatida pelo governo.
Quando falamos de educação
de gênero, falamos sobre o cuidado
de si, não somente no sentido
do respeito à orientação sexual
própria e dos demais, mas também
de prevenção de abusos. O debate
sobre sexualidade é necessário.
A maioria dos casos de abusos
sexuais na infância é cometida por
pessoas próximas às crianças, pais,
tios, padrastos e avós. Se a família
não debate o tema em casa e a escola
também não o faz, como a criança
perceberá o abuso? A quem ela
irá denunciar?
Declarações como as da ministra
fortalecem os estereótipos de
gênero. A mensagem é que as meninas
vestem rosa e são frágeis e
os meninos vestem azul e são viris.
Ideias assim endossam um universo
de violências, no qual as mulheres
se percebem dependentes
de homens, ainda que eles sejam
agressores.
Qual o papel do movimento feminista
e da sociedade, na conjuntura
política atual, em defesa
das políticas de enfrentamento à
violência, para que a Lei Maria da
Penha seja de fato efetivada e que
o Estado dê conta de proteger os
direitos humanos das mulheres?
O papel do movimento feminista é
de resistência. Ainda que o Bolsonaro
tenha sido eleito, as ruas mostraram
a força das mulheres com
o “ELE NÃO”. Campanhas, manifestações,
ações junto ao judiciário
e a organismos internacionais são
necessários para frear os retrocessos
que o governo vem implementando.
Os movimentos sociais precisam
se unir para combater o desmanche
da democracia.
Se na década de 70, os homens
justificavam os feminicídios como
/ Mídia Ninja
130 Revista Elas por Elas - março 2020
“legítima defesa da honra”, hoje
ouvimos o ministro da Justiça dizer
que os homens agridem as mulheres
porque se sentem intimidados
com o empoderamento feminino.
Como você avalia essa opinião
no contexto colocado pelo ministro?
Ainda há uma culpabilização
da mulher pela violência sofrida?
A fala do ministro Sérgio Moro segue
a do governo do qual ele faz
parte. A mensagem é de que as mulheres
devem ser dóceis e não provocar
os homens. No caso, a provocação
é exigir a divisão das tarefas
domésticas, igualdade salarial, viver
sem assédio e liberdade sexual.
Infelizmente, ainda há uma relativização
da violência sofrida pelas
mulheres, como se algo a justificasse.
Se a mulher é estuprada,
questiona-se a roupa e se ela havia
bebido. Quando recebe um salário
menor, fala-se sobre o tempo
despendido com gravidez e filhos.
Quando sofre violência doméstica,
pergunta-se sobre ciúme gerado no
parceiro. Há uma lógica cruel pela
qual as mulheres devem prevenir a
violência sofrida por elas.
Como você vê as iniciativas que
trabalham com os homens agressores?
É possível uma prevenção
a partir da educação e da mídia?
Acredito que seja importante
trabalhar com homens agressores,
isso é um importante instrumento
para que a violência não volte a
ser reproduzida. Mas isso deve ser
realizado de maneira paralela à responsabilização
dos agressores. Vejo
com muita preocupação iniciativas
que tentam restabelecer relações
violentas sem que o agressor seja
responsabilizado. Sou contrária à
aplicação de justiça restaurativa
em casos de violência doméstica,
eis que é uma relação desigual de
poder, na qual uma das partes se
sente intimidada pela outra.
A educação é o principal instrumento
de combate à violência
contra as mulheres. Educação
não apenas no sentido escolar, mas
por meio de campanhas e debates
públicos sobre o tema. A mídia
tem um papel importantíssimo
nisso. De pouco adianta um meio
de comunicação se dizer contrário
à violência contra as mulheres se
seus produtos passam uma mensagem
contrária. Novelas, músicas
e comunicadores influenciam o
público. Não é aceitável a romantização
de relacionamentos abusivos
e de violência sexual. Há uma
responsabilidade pública no combate
à violência.
“
A educação
é o principal
instrumento
de combate à
violência contra
as mulheres”
O desafio de
reeducar os
homens para
reduzir a
violência
Em 88,8% dos casos de feminicídio,
o autor foi o companheiro ou o
ex-companheiro, segundo o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública.
O inconformismo com o fim do relacionamento
costuma ser apontado
como um dos principais motivos.
De acordo com as diretrizes
para investigar, processar e julgar
com perspectiva de gênero as mortes
violentas de mulheres, consideram-se
condições estruturais das
mortes violentas de mulheres por
razões de gênero: o sentimento de
posse, o controle sobre o corpo e
autonomia da mulher, a limitação
da emancipação profissional, econômica,
social e intelectual da mulher,
seu tratamento como objeto
sexual e a manifestação de desprezo
e ódio pela mulher.
A Lei Maria da Penha trabalha
toda a cadeia da violência, do princípio
ao fim. Isso significa prevenir,
trabalhando a educação, e prever
a assistência à pessoa agredida, à
família. Um aspecto da lei pouco
conhecido é a recomendação de
que o juiz deve determinar o comparecimento
obrigatório do agressor
a programas de recuperação
e reeducação.
Para estudiosos da área, é um
grande desafio construir uma cultura
de prevenção à violência
Revista Elas por Elas - março 2020
131
doméstica, principalmente quando
o foco são os homens. “O debate
sobre gênero, masculinidades e
violência doméstica e de gênero,
apesar da visibilidade nos últimos
anos, ainda é recente no Brasil, e
não está isento de tensões e contradições.
De igual maneira, o lugar do
homem na dinâmica conjugal e nas
relações de gênero também aponta
para um debate permeado por polêmicas,
sobretudo no que se refere
à perspectivas mais punitivistas ou
outras que advogam pela importância
da ressignificação das masculinidades
como aporte fundamental
para relações mais equitativas
e, consequentemente, com menos
violências”, descrevem os pesquisadores
Adriano Beiras, Marcos
Nascimento, Caio Incrocci, no artigo
Programas de atenção a homens
autores de violência contra as mulheres:
um panorama das intervenções
no Brasil, publicado pela Revista
Saúde e Sociedade (vol.28, no.1,
São Paulo, Jan./Mar, 2019).
O artigo também destaca o estranhamento
dos próprios homens
autores de violência quanto à discussão
sobre questões relacionadas
às relações de gênero trazidas
por essas iniciativas. Muitos se recusam
a trabalhar as temáticas
elencadas ou desistem de participar
dos programas.
/ Jurien Huggins
“O silêncio dos homens”
A cada 10 homens, diz a ONU,
sete lidam com um tipo de distúrbio
emocional em algum nível. O debate
sobre masculinidade é abordado
no Documentário O silêncio dos
homens. Um filme sobre as dores,
132
Revista Elas por Elas - março 2020
qualidades, omissões e processos
de mudança dos homens, fruto de
uma pesquisa com 40.000 homens,
coordenada por Guilherme Valadares,
do site Papo de Homem.
Conforme descreve Guilherme
em um post, “o hábito de ignorar
os sentimentos e o estado da saúde
mental como um todo faz com que
o sexo masculino se comporte como
uma bomba a ponto de explodir”.
O site faz um debate sobre o que
é ser homem. “Observamos como
esse silêncio está na raiz de vários
outros problemas. Silêncio aqui tem
sentido amplo. É emocional, verbal,
social, tanto individual como coletivo.
Estamos falando de uma rigidez
psicológica, que se torna um vulcão
quando associada aos ‘mandamentos
da masculinidade’: ser bem-sucedido
profissionalmente, não agir
de modos que pareçam femininos,
não levar desaforo pra casa, dar em
cima das mulheres sempre que possível,
não expressar emoções, entre
outros”, explica.
“Quem está em paz consigo
mesmo não agride ninguém”
A antropóloga Verónique Durand,
professora e coordenadora
do curso de pós-graduação Atendimento
a pessoas em situação de violência,
da Universidade Redentor,
no Rio de Janeiro, defende que os
autores de violência devem ser punidos
conforme as leis, mas também
que as iniciativas educativas
cheguem a esses homens para prevenir
os casos mais graves de violência.
Segundo ela, “a reprodução
social da violência só pode ser mudada
com educação”.
Verónique explica que o esforço
tem que ser desde a educação dos
meninos em casa com divisão das
tarefas domésticas, até a preparação
dos operadores da Justiça. “Os policiais
não estão preparados. Há muitos
casos em que as mulheres assassinadas
tinham ido à delegacia para
denunciar seus agressores, mas ouviu
que não era grave e, quando voltou
para casa, foi morta”, relata.
“O que ocorre é que, muitas vezes,
as mentalidades não acompanham
as leis. Os homens sabem das
punições, mas continuam achando
que a mulher é propriedade deles e
podem fazer o que querem. As mulheres
estão tendo cada vez mais
espaço, mais autonomia e isso causa
frustração para os homens machistas.
O desemprego que atinge o
país também faz com que a autoestima
deles fique baixa. Isso não justifica,
mas a reação deles, às vezes,
é a agressão”, acredita.
“Eu coordenei um trabalho com
homens na França. Eles tinham
três meses de atendimento psicológico
e uma orientação dentro de
várias temáticas para entender de
onde vinha a violência. Normalmente,
eles também haviam sido
vítimas de violência na infância.
Às vezes, eram até encaminhados
para o trabalho de constelação familiar,
para entender a sua história
e evitar a reincidência. Se não forem
tratados, chega uma hora em
que eles se transformam em bomba-relógio
e quem sofre as consequências
são as pessoas mais próximas,
como a companheira e os filhos,
cuja violência eles vão reproduzir”,
descreve a antropóloga.
Agressores
terão que
ressarcir
gastos da vítima
com o SUS
A Lei Maria da Penha ganhou
três novos parágrafos
com a Lei 13.871/19, publicada
em 17 de setembro de
2019, que obriga o autor de
violência doméstica ou familiar
a ressarcir todos os danos
causados por suas condutas,
como, por exemplo,
os gastos da vítima com médico
particular. E, ainda, o
ressarcimento dos gastos
com o SUS.
Segundo a nova lei, o agressor
terá a obrigação de ressarcir
os gastos relativos
aos equipamentos de monitoramento
e segurança, a
exemplo de botão de pânico,
usado para acionar a polícia,
em caso de perigo representado
pelo agente. Os
recursos para o ressarcimento
não podem atingir o
patrimônio da mulher e dos
seus dependentes, ou seja,
o dinheiro vai ter que sair do
bolso do agressor. Ademais,
a lei proíbe que os ressarcimentos
sejam usados como
atenuantes ou para fins de
substituição da pena.
Revista Elas por Elas - março 2020
133
/ IstockPhotos
134
Revista Elas por Elas - março 2020
Artigo
A subversão como estratégia
de enfrentamento da violência
contra as mulheres
por Jaqueline Morelo
Em 2018, ocorreram 1.206 feminicídios
no Brasil. Adriana Aparecida
de Siqueira, Camilla Peixoto
Bandeira, Débora Goulart Isabel,
Cristina Moraes, Mercedes Vargas,
Simone Lanzoni e outras 1.200 mulheres
foram assassinadas, em sua
maioria (88,8%) por companheiro
ou ex-companheiro, porque tentavam,
desesperadamente, dar um
basta à situação de violência que
enfrentavam no único lugar do
mundo que poderia lhes oferecer
segurança e aconchego.
O feminicídio é uma circunstância
qualificadora do crime de homicídio
e está tipificado na Lei 13.104,
promulgada pela presidenta Dilma
Rousseff, em 9 de março de 2015.
É feminicídio o crime que envolve
violência doméstica ou familiar
ou menosprezo ou discriminação à
condição de mulher. Por considerá-
-lo homicídio qualificado, a lei o colocou
na lista de crimes hediondos,
com penas mais altas.
Apesar da queda de 10,8% no
número total de homicídios em relação
a 2017, os feminicídios prosseguiram
em escala ascendente em
2018, com um crescimento de 4%.
Considerando-se também os casos
do ano anterior, ocorreram 2.357
feminicídios em dois anos. A cada
oito horas, uma mulher foi morta
por violência de gênero ou por violência
doméstica, índice que faz o
Brasil ocupar o quinto lugar entre
os países que registram as maiores
taxas de feminicídio do mundo.
Os dados, do 13º Anuário Brasileiro
de Segurança, mostram ou-
Revista Elas por Elas - março 2020
135
tros números aterradores. Meninas
menores de 13 anos representam
mais da metade (54%) das vítimas
dos 66 mil estupros registrados
no país no ano passado. Quatro
meninas de até 13 anos são estupradas
por hora no Brasil. A violência
sexual as atinge geralmente em
suas casas e é praticada por pais,
padrastos, tios, vizinhos ou primos.
Se considerarmos os dados do
Atlas da Violência 2019, que apresenta
dados gerais de homicídios
femininos no Brasil, foram cerca de
13 assassinatos por dia em 2017. Ao
todo, 4.936 mulheres foram mortas
naquele ano, maior número registrado
desde 2007. O estudo também
mostrou um crescimento expressivo,
de 30,7%, no número de homicídios
de mulheres durante a década
2007-2017.
No país que registra uma denúncia
por violência doméstica a cada
dois minutos, é imperativo combater
essa verdadeira epidemia. Ainda
que o Anuário do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública afirme que as
origens e razões das oscilações da
violência letal intencional são ainda
desconhecidas, já existe um entendimento,
por parte de pesquisadores
da área, de que os vetores dessa
situação inaceitável são dois aspectos
correlacionados: a cultura patriarcal,
centrada na figura masculina,
que legitima a subordinação das
mulheres, e as desigualdades históricas
entre homens e mulheres.
Tal perspectiva feminista e
marxista do patriarcado, introduzida
no Brasil pela socióloga Heleieth
Saffioti, sustenta que, embora
o patriarcado seja anterior ao
capitalismo, os dois sistemas aparecem
articulados na modernidade
como formas de produzir e de
reproduzir a vida a partir de relações
de dominação e de expropriação,
em especial dos corpos e da autonomia
das mulheres.
Desse modo, o triunfo do capitalismo
revelaria uma das formas
do patriarcado, que tem mostrado
sua pior face na crescente “feminização”
da pobreza. Fato é que, ainda
que as mulheres brasileiras sejam
mais escolarizadas do que os
homens - 23,5% e 20,7%, respectivamente,
com ensino superior -, o
rendimento médio delas equivalia,
em 2016, a 76,5% dos rendimentos
dos homens, segundo o relatório
“Estatísticas de gênero: indicadores
sociais das mulheres no Brasil”
(IBGE, 2018).
Além disso, a desigualdade proveniente
da estrutura econômica
continua sendo a primeira razão da
pobreza no país. Com 50 milhões de
brasileiros vivendo nessa situação
(renda familiar de R$ 387,07 ou
US$ 5,5 por dia), segundo a Síntese
dos Indicadores Sociais – SIS 2017
136
Revista Elas por Elas - março 2020
(IBGE), a situação é mais presente
em domicílios com liderança feminina
(mulheres sem cônjuge), com
filhos até 14 anos (55,6%), e mais
expressiva nesse tipo de arranjo
formado por mulheres pretas ou
pardas (64%).
Se considerarmos, portanto, esses
dois aspectos (patriarcado e capitalismo)
como se apresentam, de
forma articulada, temos as frentes
de enfrentamento à violência contra
a mulher, ainda desconsideradas
pelas políticas públicas atualmente
existentes, como o Plano Nacional
de Política para as Mulheres,
que enfatiza a prevenção, o apoio
e o fortalecimento de serviços de
atendimento à mulher vítima de
violência e o cumprimento da Lei
Maria da Penha – certamente necessários
– , sem, contudo, alcançar
a raiz do problema.
Em relação ao primeiro, a organização
familiar patriarcal que alimenta
o imaginário social e normatiza
relações de poder masculino
no país, desde a invasão portuguesa,
é preciso dizer que, por tratar-
-se de invenção humana, é possível
/ Istock Photos
questioná-la e caminhar em outra
direção, uma vez que outras formas
de organização social foram
concebidas ao longo da história.
Nesse sentido, é importante ressaltar
conquistas femininas, como
os dispositivos constitucionais que
exigem igualdade de direitos entre
homens e mulheres e, também, a
existência de novas formas familiares,
como as famílias homoafetivas
e as famílias monoparentais femininas,
que estão inventando outros
papéis familiares e estabelecendo
novas experiências com potencial
explosivo sobre a hegemonia
do discurso patriarcal.
Contudo, se considerarmos que
o patriarcado não se resume a um
sistema de dominação modelado pela
ideologia machista situada essencialmente
nos campos político e ideológico,
sendo, também e essencialmente,
um sistema de exploração
cujo principal beneficiado é o homem
rico, branco e adulto, é imperativo
subverter a ordem capitalista,
em busca de um sistema econômico
socialmente mais justo e igualitário.
/
Jaqueline Morelo é jornalista, cientista
social e mestre em Ciência Política.
jaquelinemorelo@gmail.com
Revista Elas por Elas - março 2020
137
/ Carina Aparecida
/ Nathalia Lipovetsky (Coletivo Grupa)
138 Revista Elas por Elas - março 2020
Esporte
Com a bola toda
No campo ou na arquibancada, mulheres contra a discriminação no futebol
por Débora Junqueira
Entre as torcidas organizadas de
futebol é comum caravanas para
acompanhar o time em jogos fora
da cidade. Patrícia Muniz, 25 anos,
já passou pela aventura de participar
dessas caravanas num ônibus
de 43 lugares, repleto de homens
e somente três mulheres. “Eu tive
medo, mas até que foi tranquilo”,
conta a torcedora do Clube Atlético
Mineiro, que é apaixonada por
futebol desde criança e não perde
nenhum jogo do Galo no estádio
Independência, em Belo Horizonte.
Nada a impede de torcer, mesmo
se tiver sozinha e correr o risco de
ouvir um “fiu-fiu” ou ser assediada
pela rapaziada no estádio.
Segundo ela, o assédio às mulheres,
principalmente sozinhas, é comum.
“Já ouvi o cara falando ‘vou
nesse material aí’, referindo-se a
mim, fiquei chocada. Mas há homens
que falam: ‘respeitem a menina’”,
conta a estudante de engenharia
mecânica, que já foi acompanhar
jogo da seleção brasileira
feminina até fora do país.
Patrícia atualmente escreve
sobre futebol para o blogue Galo
Delas. Ela conta que seu interesse
pelo esporte surgiu aos onze anos
de idade, acompanhando os jogos
da Copa das Confederações. “Sofri
com a resistência da família, por
ser menina. Demorou uns quatro
anos para a minha mãe me deixar
ir ao Mineirão com o meu tio.
Dizia que era perigoso, mas o meu
irmão podia ir. Quem mais me
apoiou foi a minha avó, que até
fez um bolo com a marca do meu
time estampada, quando fiz 14
anos. Tanto a minha mãe como a
minha avó nunca foram ao estádio
de futebol, mas hoje a presença de
mulheres dentro e fora do campo
é crescente”.
Revista Elas por Elas - março 2020 139
/ Arquivo
“
A realidade
dentro do
estádio é um
retrato da
sociedade”
Desigualdade de gênero,
raça e classe
Houve uma ascensão das mulheres
na sociedade e do feminismo, portanto,
no futebol não poderia ser diferente.
Para Patrícia, as mulheres
sempre gostaram de futebol, mas
hoje, com as conquistas feministas
na sociedade, há melhores condições
para que elas possam viver
essa paixão. Por outro lado, esse
crescimento não acompanhou a diversidade
de classe, raça e orientação
sexual. “Os estádios estão mais
elitizados, por conta dos preços altos
dos ingressos, e o público se
modificou. Quando a gente fala da
presença da mulher nos estádios,
está se referindo, majoritariamente,
a mulheres brancas e de classe
média. Nas torcidas organizadas, a
presença feminina sempre existiu,
mas ainda segue apagada”, avalia.
“O futebol foi o lugar onde eu reconheci
a minha branquitude. A realidade
dentro do estádio é um retrato
da sociedade, há os setores elitizados
e os populares. O tratamento
que as pessoas recebem é muito
diferente. A forma como me tratam
é muito diferente da forma como
tratam um cara negro da periferia,
até na hora da revista para entrar.
O estádio é um local de aprendizado
para mim”, complementa.
A torcedora do Cruzeiro Esporte
Clube Rafaela Freitas, 34 anos,
também faz parte da crescente torcida
feminina assídua nos estádios
mineiros. Segundo ela, a crença de
que estádio de futebol é um lugar
violento ainda espanta algumas
mulheres. “Quando era criança,
perguntei ao meu pai porque ele
só levava o meu irmão ao estádio e
ele respondeu que eu nunca havia
pedido para ir. Depois disso passei
a ir aos jogos mais tranquilos e percebi
que as pessoas naturalizam a
ideia de que o futebol não é um espaço
feminino”, afirma.
Estudos acadêmicos confirmam
a percepção das torcedoras. “A inserção
da mulher no contexto tipicamente
masculino do futebol
é normalmente apresentada com
este viés: enquanto seres que embelezam
o espetáculo e que sua presença
se dá por concessão. É importante
chamar a atenção para o fato
de que o futebol não é apenas um
espaço esportivo, mas, também, revelador
de construções socioculturais”,
salienta a pesquisadora Bárbara
Gonçalves Mendes, em sua
dissertação de mestrado em Psicologia,
pela UFMG, intitulada “Flávias,
Fernandas e Marias, sem chuteiras:
a inserção de mulheres em
140 Revista Elas por Elas - março 2020
“
Torcedoras
usam redes
sociais para
debater sobre
o machismo no
futebol”
/ Marcos Túlio Barboza
torcidas organizadas de futebol em
Belo Horizonte”.
A autora discute a falta de visibilidade
da presença feminina
nos estádios de futebol, destacando
a importância de se falar sobre
gênero e sexualidade. “Os valores
que dão origem e derivam dele
mantêm uma lógica que nem sempre
é clara, mas que visa legitimar
uma série de questões sociais, sendo
a desigualdade de gênero uma
delas”, cita em um trecho sobre teorias
que explicam a identificação
nacional do futebol com lócus masculino,
que naturalizam a não participação
da mulher na categoria
‘torcedor de futebol’.
É importante lembrar que as
mulheres já foram até mesmo proibidas
por lei de praticar futebol
(além de outras modalidades). Entre
os anos de 1941 e 1979, vigorou
uma legislação proibitiva sob o argumento
de que tais atividades
eram “incompatíveis com sua natureza”
e, durante um longo período,
falar de futebol feminino era falar
de uma prática ilícita e ilegítima.
Ode às Marias
Em 2016, a jornalista Rafaela e
outras três amigas decidiram ter
um canal nas redes sociais para dialogar
com outras mulheres e sobre
o clube para o qual torcem, abordando
outros temas minimizados
no ambiente do futebol. Elas criaram
o Podcast das Marias (podcastdasmarias.com).
O nome Marias é
uma apropriação da tentativa de
xingamento de cunho machista e
homofóbico à torcida do Cruzeiro
por torcedores do time adversário.
“A gente quis resgatar e problematizar
o fato de se usar o nome Maria
com tom pejorativo. No início teve
o estranhamento dos próprios cruzeirenses,
achando que a gente estava
dando moral para o xingamento.
Mas, atualmente há, inclusive, a
orientação da CBF de punir as torcidas
quando há atos preconceituosos
nos estádios”, explica.
“O que mais me incomoda é
quando um cara, na hora do jogo,
ignora as mulheres próximas para
comentar o lance com outro homem
que mais está distante. Nós
não somos somente acompanhantes,
entendemos de futebol. A gente
vai sozinha ou com as amigas e temos
os nossos rituais também. Somos
torcedoras e gostamos de futebol
pelos mesmos motivos dos
homens. A ideia de debater futebol
nos podcasts é uma forma de
nos legitimarmos como torcedoras
e incentivarmos outras mulheres a
Revista Elas por Elas - março 2020
141
saberem que o lugar delas é onde
quiserem”, complementa Rafaela.
“Mulheres merecem viver e jogar
como qualquer atleta do planeta!
Passe o batom sangria! Amamos
e servimos a rainha Marta! E a todas
as outras rainhas que vestem a
camisa da seleção e jogam com força,
com raça e gana sempre — apesar
de todos os problemas enfrentados
por elas dentro e fora do campo.
O programa de hoje é uma ode
a essas Marias que misturam a dor
e alegria”. Assim começa a locução
do podcast das Marias, número
48, numa referência à artilheira
Marta. Na Copa do Mundo de futebol
feminino, a jogadora chamou a
atenção por ter entrado em campo
usando um batom escuro. Em outro
momento, após um gol, deu o recado
de que estava sem patrocinador
apontando para chuteira preta com
um símbolo azul e rosa, que faz parte
de uma campanha pela igualdade
de gênero chamada Go Equal, da
ONU Mulheres. A expectativa é que,
com mais investimentos, o futebol
feminino se popularize e as jogadoras
tenham os mesmos salários e
valorização dos jogadores.
/ Carina Aparecida
Arquibancada em 2017 e 2018. Iniciativa
Mulheres de arquibancadas
Ainda são grandes as limitações na arquibancada). Elas também reclamam
142 Revista Elas por Elas - março 2020
e demandas das torcedoras de futebol.
Em alguns jogos, as mulheres
são proibidas de assisti-los no estádio.
Isso acontece nos jogos considerados
de “guerra”, ou seja, com
maior rivalidade e brigas entre as
torcidas. Em alguns casos, elas não
podem pegar em certos instrumentos
musicais ou bandeirar (movimentar
a grande bandeira do time
de condições desfavorá-
veis nos banheiros públicos, da falta
de policiais mulheres e até mesmo
da falta de produtos destinados
ao público feminino como uniformes
nas lojas dos times.
Essas e outras questões foram
temas de discussão em encontros
nacionais e estaduais promovidos
pelo Movimento Mulheres de
que juntamente com ou-
tras dão o tom feminista ao esporte
mais popular do Brasil.
Machistômetro
Idealizada pela ex-deputada estadual
Manuela D’Avila, uma cartilha
informativa distribuída nos estádios
para ajudar a identificar os diferentes
tipos (e graus) de violência
contra a mulher ganhou o nome de
machistômetro. As situações descritas
são bem comuns e vão desde
questionar se a mulher entende
mesmo de futebol até aproveitar
o momento de comemorar um gol
para passar a mão nas minas.
Por todo o país, há grupos de torcedoras
que focam nas ações contra
o machismo e a homofobia nos
estádios. Grupo Vascaínas contra
o Assédio, Tricoloucas, Torcedoras
do Esporte Clube Bahia, Movimento
Toda Poderosa Corinthiana
(MTPC) são alguns dos diversos coletivos
femininos no Brasil.
Grupa: combate ao machismo
Em 2016, surgiu em Belo Horizonte
o coletivo Grupa, formado
por torcedoras do Atlético Mineiro
que se posicionam contra o
machismo, o racismo, a homofobia
e a elitização do futebol. O grupo
tem apresentado um crescente número
de seguidores nas redes sociais.
“Estávamos sendo ironizadas
no twitter, sendo chamadas de ‘panelinha’
e ‘grupinho’. Uma amiga,
então, respondeu que, na verdade,
éramos uma ‘grupinha’, explicam
as fundadoras, no site do coletivo,
a origem do nome.
A atleticana Letícia Vulcano,
servidora pública, 32 anos e mãe de
um bebê, é uma das mulheres que
participa do grupo desde o início.
Ela conta que no desfile de apresentação
de uniformes do Atlético
em 2016, com mulheres de biquíni
e salto alto, várias torcedoras
do time não se sentiram representadas
e enviaram uma nota de
repúdio para a diretoria do Clube,
que, segundo ela, nunca respondeu,
mas que no ano seguinte fez
um desfile bem diferente.
A partir daí o grupo tomou forma
e cresceu não só no ambiente
virtual, mesmo diante de críticas,
como ganhou encontros presenciais
mensais, principalmente em
dias de jogos do Galo, para um diálogo
que vai além do futebol. “A
gente incomoda e recebemos críticas
até de narradores. No início,
teve gente nos mandando lavar panelas
e até outras mulheres dizendo
que estávamos de frescura. Hoje
somos um grupo de amigas que
luta contra o machismo e pelo fim
da violência e do assédio contra as
mulheres”, explica Letícia.
A torcedora conta que, antes
da Grupa, nunca tinha ido a um
clássico, mesmo acompanhando o
time desde criança. “Assim como
eu, um monte de meninas passou
a ir. A gente marca encontro, vamos
juntas, compartilhamos a entrada,
tudo na tentativa de democratizar
o acesso e de criar mais segurança”,
conta.
“O diferencial da Grupa é que a
gente se considera 100% feminina
e feminista. A gente questiona os
comportamentos machistas e quer
incentivar a inserção da mulher no
futebol. Com a exigência da Confederação
Sul-Americana de Futebol
(Commembol), os clubes são obrigados
a ter um time feminino, mas
queremos investimentos para as
jogadoras e um futebol de qualidade.
Nós amamos o Atlético e é importante
que o clube tenha consciência
social. A gente só quer torcer
em paz”, afirma Letícia.
Entrevista
“
A participação
de mulheres na
gestão dos clubes
é praticamente
inexistente”
Bruna Monteiro, socióloga, é
professora e componente da Resistência
Azul Popular e da Maria
Tostão, coletivos da torcida do
Cruzeiro.
Torcedora e espectadora das
modalidades masculina, cujo time
foi rebaixado para a série B, e feminina
de futebol, a professora Bruna
Monteiro acompanha o clube
desde de 8 anos de idade, quando
foi ao Mineirão pela primeira vez.
Mas só aos 19 passou a frequentar
o estádio sem o pai, que a acompanhava
sempre.
Você já sofreu ou viu algum assédio
às mulheres no estádio de futebol?
Já vi e sofri. A torcida do Cruzeiro
tinha um cântico para quando uma
ou mais mulheres que “agradavam”
passavam. Era bastante invasivo
e constrangedor, para dizer o
mínimo. Apesar de achar que o assédio
contra mulheres possa ter diminuído,
ainda ocorre. Não só com
as torcedoras, mas também quando
tem uma bandeirinha mulher.
Revista Elas por Elas - março 2020
143
Ainda é difícil fazer com que os
homens entendam que a mulher
quer assistir futebol, acompanhar
o seu time. Muitos acham que ela
está ali só para ficar próxima a um
homem ou para conhecer alguém
com intuito de paquera.
Como você vê a participação feminina
nas torcidas organizadas de
futebol?
É uma demanda e conquista das
próprias mulheres, como parte
do processo de ocupação das arquibancadas
por elas. No entanto,
vejo que as torcidas organizadas
são muito resistentes a essa entrada.
Muitas têm uma ala feminina e
já existem movimentos de mulheres
de arquibancada. Mas quando
se fala em viagens para jogos fora
de casa, muitas vezes as mulheres
são impedidas de ir, com a alegação
de que seria inseguro.
As demandas das mulheres nas
decisões dos clubes também sofrem
retaliações com frequência
muito alta. A participação de mulheres
como gestoras e conselheiras
nos clubes brasileiros é praticamente
inexistente. E nas torcidas,
os movimentos femininos sofrem
ameaças constantes quando
se manifestam nas decisões internas,
como a contratação ou demissão
de jogadores.
Você participa de algum coletivo
que debate ações contra o machismo
ou homofobia, assim como as
outras demandas das torcidas nos
estádios?
Sou componente da Resistência
Azul Popular e da Maria Tostão,
coletivos da torcida do Cruzeiro.
Militamos pela democracia no futebol,
buscando um acesso mais popular
ao Mineirão. Buscamos que
os mais diversos grupos possam
frequentar e torcer sem opressões,
sem racismo, homofobia e machismo,
além de um preço acessível dos
jogos. Também temos a pauta de
democratização da gestão do Cruzeiro,
para que o sócio do futebol
possa participar das decisões internas
do Clube.
Acha que esses coletivos de torcedoras
têm influenciado uma
postura menos machista por parte
dos dirigentes dos clubes ou
ajudado a criar uma consciência
maior das torcidas?
Vejo que as torcidas e os coletivos
têm gerado alguma pressão.
Algumas pautas feministas, como
o fim do assédio nos estádios ou o
futebol feminino, têm aumentado
sua aceitação. Recentemente, um
comentarista de rádio foi demitido
“
Muitas
mulheres que
se manifestam
sobre futebol
sofrem com
desqualificação”
por dar declarações machistas, devido
à pressão das mulheres. Apesar
disso, vejo pouca repercussão
na gestão interna dos clubes e ainda
uma resistência muito grande
dentro das torcidas organizadas.
Nas redes sociais, muitas mulheres
que se manifestam em assuntos
relacionados ao futebol sofrem
desqualificação e ameaças de violência.
Mas acredito que a ocupação
feminina vai só aumentar, ainda
que exista um conservadorismo
que busque o contrário.
Nas demandas por mais igualdade
no futebol, o que você destacaria
como avanços?
Acho importante destacar o Observatório
Racial no Futebol, que
tem realizado ações efetivas em
partidas de grande visibilidade e
tem encorajado e respaldado nomes
como o do técnico Roger Machado
a se posicionar publicamente
acerca da condição do povo negro
no futebol e na sociedade. O observatório
conseguiu, junto ao Supremo
Tribunal de Justiça Desportiva
(STJD), o comprometimento de
ações efetivas de combate aos episódios
de racismo de uma forma
geral no Brasil, começando com capacitações
com vistas ao Campeonato
Estadual do Rio Grande do Sul
em 2020. Isso é especialmente relevante,
porque o estado é líder em
manifestações racistas e injúrias
raciais segundo o próprio observatório.
Essa conquista demonstra o
potencial e efetividade de coletivos
que lutam contra a discriminação
e enfatizam a condição da mulher
negra, que continua invisibilizada.
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145
/ Murilo Alvesso
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Revista Elas por Elas - março 2020
Perfil
Leci Brandão:
a voz que nos encanta e nos representa
por Nanci Alves
Maravilhosa! Sambista, cantora,
compositora e uma das mais
importantes intérpretes da música
popular brasileira. Leci Brandão
nasceu no Rio de Janeiro, em
12 de setembro de 1944, e começou
sua carreira musical ainda jovem,
no início da década de 70, tornando-se
a primeira mulher a participar
da ala de compositores da Estação
Primeira de Mangueira, do Rio
de Janeiro. Leci é também a segunda
negra a ser deputada estadual
em São Paulo. Ser mulher e negra –
duas condições que sempre, desde
criança, a impulsionaram para a
luta. “Na infância, eu não entendia
isso. Era aluna do Colégio Pedro II
e ouvia as pessoas gritando ‘tiziu’
na sala e não sabia que se tratava
de um passarinho preto. Era o que
hoje se chama bullying, o que faziam
comigo. Quanto à questão de
gênero, a gente via as coisas de uma
forma muito natural, né? Pai que
era o chefe de família, e mãe que
trabalhava muito, mas que não tinha
o protagonismo que tem hoje.
Essa consciência de luta pela igualdade
de gênero é bem recente na
minha vida. Eu via aquele comportamento
de forma natural, era assim
naquela época”, conta.
Falar de Leci é falar de muitas
mulheres – força, beleza, coragem,
voz, energia, criatividade, musicalidade,
luta, conquista e exemplo
de vida. Ao refletir sobre as influências
femininas e feministas que
teve em sua vida, ela afirma que, geralmente,
“para quem tem uma origem
pobre, a referência é sempre a
mãe, a avó, a tia, porque a gente não
tinha inserção na escola, na universidade,
nada de intelectuais. Assim,
Revista Elas por Elas - março 2020
147
a nossa referência é de casa, do trabalho,
da fábrica, de ver a mãe passando,
lavando roupa, fazendo comida
e dando pra gente todos os ensinamentos
naturais, normais. Essa
é a nossa referência de luta”.
A cantora é apaixonada por Carnaval
e, pelo menos nos últimos 20
anos, tem sido presença marcante
nos desfiles das escolas de samba
em São Paulo e no Rio de Janeiro. Já
foi também comentarista dos desfiles
das escolas de samba do Rio de
Janeiro em emissoras de TV por vários
anos. “O Carnaval é a maior festa
popular do mundo, cuja alegria é
contagiante. Tanto é que as pessoas
que vêm para o Brasil ficam enlouquecidas,
boquiabertas com a força
do Carnaval. Pena que a festa esteja
mudando, deixou de ser uma coisa
popular, da negritude. Se apoderaram
das escolas de samba e mudaram
totalmente o Carnaval. A presença
negra nos desfiles tem sido
em menor número e isso me preocupa
também, porque tudo aquilo
que é cultura da população negra
está sendo destruído, tendo seu
lugar ocupado por outras pessoas
em função da coisa comercial. Temos
uma série de pautas brasileiras,
principalmente do povo menos
favorecido, que poderia ser colocado
para um belo desfile. Haja vista
o que a Mangueira fez em 2019.
Ela contou a história real do Carnaval
e foi campeã dos desfiles do
Rio”, afirma Leci, que foi, inclusive,
homenageada pela Mangueira em
2019. Ela foi também, em 2019, um
dos destaques da Escola de Samba
Vai-Vai, esteve no Carnaval de Recife
(PE), onde cantou no Marco
/ José Antônio Teixeira
148 Revista Elas por Elas - março 2020
Zero, e recebeu diversas homenagens
dos blocos carnavalescos de
rua em São Paulo, como o Ilú Obá
De Min. Leci é madrinha do Grêmio
Recreativo Escola de Samba Acadêmicos
do Tatuapé, bicampeã do carnaval
de São Paulo, agremiação que
acompanha desde 2012, quando a
artista foi tema do enredo da escola.
Aos 75 anos de vida e ao longo
de sua carreira de quase 50 anos e
muitas premiações, gravou 25 álbuns,
dentre eles três compactos e 2
DVDs. Em suas composições, é marcante
o traço da luta contra o racismo,
a homofobia, o machismo e
as desigualdades sociais. Seu trabalho
sempre foi político e não só nas
suas músicas. Leci tem uma grande
contribuição para a história da mulher
na vida pública em nosso país.
Em 2004, tornou-se Conselheira da
Secretaria Nacional de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial e
membro do Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher, permanecendo
nesses postos por dois mandatos
(4 anos). Em 2010, filiou-se ao
PCdoB e candidatou-se ao cargo de
deputada estadual por São Paulo,
tendo sido eleita, reeleita em 2014 e
em 2018, estando, portanto, no seu
terceiro mandato. Como parlamentar,
Leci Brandão dedica-se à promoção
da igualdade racial, ao respeito
às religiões de matriz africana,
à educação e à cultura popular
brasileira. Levanta também as bandeiras
das populações indígenas e
quilombolas, da juventude, em especial
pobre e negra, das mulheres
e do segmento LGBTQI+. “O parlamento
é um lugar onde a gente
pode discutir tudo. Mas, em geral,
ele é formado por gente que tem família
tradicional, por empresários,
por gente que tem muito dinheiro.
Precisamos mudar esses assentos
nas câmaras municipais e assembleias
legislativas. O povo precisa
ser representado legitimamente
de fato e não está sendo não, por
isso estamos vivendo essa situação
atual no país”, diz a cantora, quando
enfatiza que sente muita tristeza
e decepção, porque jamais poderia
imaginar que “o povo brasileiro
fosse se deixar envolver por
discursos de ódio, de gente que se
diz filhos da pátria. A palavra ‘pátria’
está sendo dita a todo instante
e, no entanto, as pessoas se esquecem
de quem realmente vive
nessa pátria em situação de vulnerabilidade.
Foi dada aos pobres
uma oportunidade com dignidade
– o poder de compra para produtos
essenciais, um fogão, uma geladeira,
uma máquina de lavar.
Isso não é luxo, é uma necessidade
“
Jamais poderia
imaginar que o
povo brasileiro
fosse se deixar
envolver por
discursos de
ódio, de gente
que se diz filhos
da pátria”
que muitos não conhecem. Foi assim
que o povo brasileiro estava vivendo
antes deste governo – conseguiu
ter acesso à universidade,
conseguiu crédito e uma vida digna.
Esse retrocesso de agora é péssimo,
de muita maldade, perseguição,
retirada de liberdade e um desrespeito
à democracia”. Leci diz
que não reconhece o Brasil que está
aí. “Não entendo porque o/a brasileiro/a
deu oportunidade a esse
povo ruim. Foi de forma democrática,
votaram nessa gente. Inacreditável!
Mas a gente falou, quando
houve essa ‘vitória’ aí, que as pessoas
iam se arrepender e já estão se
arrependendo. Então, agora é dar
tempo ao tempo para que haja uma
junção de todo o povo que é progressista,
todos aqueles que são socialistas,
que possam recuperar as
suas forças para poder mudar essa
situação, porque não dá, no momento
está muito ruim”, desabafa.
O Brasil tem hoje um presidente
que incentiva o discurso machista,
de discriminação, homofóbico e
de violência. Combater isso é um
trabalho difícil e necessário. Para
Leci, esse combate tem de ser feito
de dentro pra fora. “Você tem que
atuar em pequenos grupos, comunidades,
junto com as pessoas que
moram nas favelas, nas quebradas,
na periferias e começar a conversar
de forma consciente politicamente
para que vejam o quanto
elas perderam, o quanto a vida
delas piorou, e de forma desumana.
Não está havendo respeito à liberdade,
à democracia, aos direitos
essenciais. A gente tem de mostrar
para essas pessoas como estava o
Revista Elas por Elas - março 2020
149
país e como elas estão, porque estão
querendo inclusive proibir o direito
de pensar. A censura está aí
viva, e isso é muito ruim. Está na
hora de nos unir, temos de pegar
as nossas armas, que são as palavras,
a nossa dança, o nosso canto
e enfrentar, porque se acabar a
democracia no país, sinceramente,
não tem mais sentido essa pátria.
Essa nação é miscigenada, ela tem
várias culturas, vários comportamentos,
é uma nação em que cada
um quer ser feliz a seu modo e a palavra
respeito ainda faz parte do dicionário,
da língua brasileira, portuguesa”,
afirma.
A parlamentar destaca os constantes
ataques contra as religiões de
matriz africana. “Isso está demonstrando
que há realmente uma intolerância
religiosa. As pessoas estão
desrespeitando uma coisa que
é constitucional, que é a questão da
laicidade do país. Me preocupa perceber
que estão pegando esse caminho
religioso para tentar impedir
que as pessoas tenham direito. Eu
vou dar um exemplo: tem pai que
não deixa o filho fazer capoeira dizendo
que capoeira é coisa do demônio.
Isso é o maior absurdo que
eu já ouvi na minha vida. Fora isso,
a ameaça às casas, aos terreiros, é
um crime, uma invasão da privacidade
religiosa. Eu entendo que
as pessoas estão manobrando com
a religião para conquistar seus interesses.
E, em geral, estas pessoas
gostam muito de dinheiro. Quanto
mais dinheiro tem na história, mais
importante fica esse caminho religioso.
Por isso, eu desconfio”, diz,
ao chamar também a atenção para
a tentativa de censura nas escolas
com a proposta Escola sem Partido.
“Os professores devem ignorar
todas as medidas desse ministro
da Educação, que para mim é
ignorante, oco, e tentar exercer a
sua função com dignidade, porque
o/a professor/a tem a sabedoria e o
dever de levar para os/as alunos/as
a consciência política, mostrar que
educação e cultura são dois pilares
essenciais para fortalecer o país.
Eles precisam fazer isso, porque
as grandes revoluções foram feitas
dessa forma”.
Nessa linha, Leci ressalta que os
pais, mães e/ou responsáveis precisam
entender que estamos em
/ Vanderlei Yuri
150 Revista Elas por Elas - março 2020
outros tempos. “Hoje as pessoas
têm mais condições de colocar
seus corações na mesa, falar
do que é importante para o
ser humano ser feliz. Eles precisam
ouvir os/as professores/as
e não só ficar ouvindo as coisas
retrógradas que estão sendo ditas,
ouvir discurso de ódio, ouvir
gente que não tem sabedoria,
ouvir fake news. Quem faz
isso só tem autoritarismo na cabeça,
não tem sabedoria. Então,
a gente precisa pedir aos pais
para que ouçam o que a educação
está propondo para fortalecer
a juventude brasileira”.
Atualmente, como parlamentar,
Leci é ouvidora adjunta
da Assembleia Legislativa
(ALESP), integrante das comissões
permanentes de Educação
e Cultura, Defesa dos Direitos
do Consumidor e Defesa dos
Direitos das Mulheres. É coordenadora
das frentes parlamentares
de Promoção da Igualdade
Étnico-Racial em Defesa dos Povos
Indígenas e Comunidades
Tradicionais; Contra Privatizações
e de Defesa do Patrimônio
e dos Serviços Públicos de Qualidade
e Defesa do Carnaval Paulista
e das Escolas de Samba. Já
apresentou mais de 100 projetos,
tendo 40 leis aprovadas até
maio de 2019.
Mesmo com a agenda cheia,
Leci consegue conciliar sua vida
política com a artística. No início
de 2019, lançou o single “Refazendo
a Cabeça”, disponível nas
principais plataformas digitais.
O samba, originalmente lançado
há pouco mais de 30 anos, é uma
parceria de Leci com Zé Maurício.
A música faz parte do álbum
“Um beijo no seu coração”, que
deu à cantora o primeiro Disco
de Ouro de sua carreira. E ela
acabou de lançar mais um single,
o “Pra Colorir Muito Mais”.
“Se eu não cantar, não consigo
fazer nada na vida. Estou sempre
nos palcos e levo meus recados
de maneira muito respeitosa,
mas absolutamente verdadeira
com a minha mente, o
meu pensamento, a minha forma
de fazer política”, ressalta
Leci, que considera a arte uma
importante forma de resistência.
“Muito antes de estar nesse
universo parlamentar, eu já
cantava defendendo minorias,
mulheres, nordestinos, negros/
as, lgbts. Sempre defendi pessoas.
Por isso eu estou tão indignada
com a situação que o nosso
país está atravessando”, afirma.
A esta mulher o nosso reconhecimento
e gratidão sempre!
São muitos ensinamentos, partilhas,
sambas, a força e a luta por
um país com justiça social. Abaixo,
a letra de um samba de sua
autoria, Zé do Caroço, com letra
visionária sobre a formação de
líderes populares em comunidade.
O samba foi registrado originalmente
por Leci em 1980, só
que o fonograma foi arquivado
na época pela gravadora Philips.
Por isso, Zé do Caroço somente
foi lançado em disco por Leci
em 1985, em outro registro feito
para o álbum editado pela gravadora
Copacabana.
Zé do Caroço
Leci Brandão
No serviço de auto-falante
Do morro do Pau da Bandeira
Quem avisa é o Zé do Caroço
Que amanhã vai fazer alvoroço
Alertando a favela inteira
Como eu queria que fosse em Mangueira
Que existisse outro Zé do Caroço
Pra dizer de uma vez pra esse moço
Carnaval não é esse colosso
Nossa escola é raiz, é madeira
Mas é o Morro do Pau da Bandeira
De uma Vila Isabel verdadeira
O Zé do Caroço trabalha
O Zé do Caroço batalha
E que malha o preço da feira
E na hora que a televisão brasileira
Distrai toda gente com a sua novela
É que o Zé põe a boca no mundo
Ele faz um discurso profundo
Ele quer ver o bem da favela
Está nascendo um novo líder
No morro do Pau da Bandeira
/ Vanderlei Yuril
Revista Elas por Elas - março 2020
151
Poucas e boas
Internet
Plataforma auxilia empresas a Estupro e feminicídio:
promover igualdade de gênero imprescritíveis
A ONU Mulheres lançou uma plataforma O plenário do Senado aprovou, em
para empresas que querem mensurar a novembro deste ano, proposta de
igualdade de gênero em seus respectivos emenda à Constituição (PEC) que torna
ambientes de trabalho. Utilizada por mais imprescritíveis os crimes de estupro e
de 1,8 mil companhias em todo o mundo, feminicídio. A PEC 75/2019 seguiu para
a Ferramenta de Análise de Lacunas dos análise da Câmara dos Deputados.
Princípios de Empoderamento das Mulheres
(Weps) é online e gratuita (https:// entre 8 e 12 anos prescrevem em 16 anos.
Hoje, crimes punidos com prisão
weps-gapanalysis.org/).
Já aqueles com punição superior a 12
O patamar de igualdade de gênero anos prescrevem em 20 anos. No caso
na empresa é medido com base em um do estupro, a pena é de 6 a 10 anos de
questionário de 18 perguntas divididas em reclusão, mas pode chegar a 30 anos se
quatro temas: liderança, local de trabalho, a agressão resultar em morte. Quanto ao
mercado e comunidade.
feminicídio, a punição é de 12 a 30 anos.
Publicidade não pode mais
reforçar estereótipos de
gênero na Inglaterra
O Reino Unido aprovou neste ano uma
regra que proíbe a publicidade de veicular
imagens que reforcem estereótipos
de gênero.
De acordo com a Autoridade de
Padrões de Anúncios, entidade responsável
por regulamentar a publicidade,
há evidências de que as propagandas
com padrões limitados de como homens
CCJ do Senado endurece pena e mulheres devem se comportar podem
para ‘stalking’
restringir as escolhas, aspirações e
oportunidades de crianças, jovens e
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) adultos.
do Senado aprovou, em agosto deste ano, O site da entidade lista algumas
dois projetos que endurecem as penas para cenas que podem ser problemáticas,
o chamado “stalking”, prática caracterizada
pela perseguição a alguém de forma descansando enquanto a família se
entre elas a que mostre um homem
obsessiva.
diverte e a mulher é a única responsável
Os textos tipificam essa conduta como pela organização da casa.
crime e aumentam a pena. Na legislação em
vigor, a prática de “molestar alguém ou perturbar-lhe
a tranquilidade” é considerada
contravenção penal, e não crime.
Um dos projetos também prevê que, caso
a vítima seja mulher, o juiz pode aplicar as
medidas protetivas previstas na Lei Maria
da Penha. Se forem aprovadas na Câmara
dos Deputados, onde tramitam, as propostas
seguem para sanção presidencial.
152 Revista Elas por Elas - março 2020
AFROFLIX
http://www.afroflix.com.br
Plataforma colaborativa que oferece conteúdos
audiovisuais online com uma condição:
em todas produções há pelo menos
uma área de atuação técnica/artística assinada
por uma pessoa negra. São filmes, séries,
web séries, programas diversos, vlogs e
clipes produzidos, escritos, dirigidos ou protagonizados
por pessoas negras.
Fotógrafas Latam
www.fotografaslatam.com
instagram: @fotografaslatam
Plataforma de difusão que tem o objetivo
de promover e viabilizar o trabalho de fotógrafas
emergentes da América Latina. A disciplina,
criatividade, entrega e coragem de
abordar temas sensíveis, assim como o enorme
talento das fotógrafas de todo o continente,
foram algumas das razões que impulsionaram
a construção desta comunidade.
Mulheres que escrevem
instagram:@mulheresqueescrevem
www.facebook.com/mulheresqueescrevem
www. medium.com/mulheres-que-escrevem
Espaço que visibiliza o trabalho de diversas
escritoras do Brasil e do mundo. A cada dia
são destacados trechos de obras protagonizadas
por mulheres. A iniciativa criada e liderada,
há dois anos, por quatro mulheres,
conta hoje com dezenas de colaboradoras
convidadas. O principal trabalho é realizar
curadoria, divulgação e edição de conteúdos
produzidos por mulheres, além de promover
encontros que debatam a presença feminina
no universo da escrita.
Livros
Filmes
Mães do Cárcere
Autoria: Natália Martino e fotografias de Leo Drumond. Editora:
Arraes Editores
O livro mostra a rotina do único presídio exclusivo para grávidas e
lactantes do país (MG) e reacende a discussão sobre maternidade
na prisão.
O Olho mais Azul
Autoria: Toni Morrison. Editora: Companhia das Letras
Poderosa reflexão sobre raça, classe social e gênero. Conta a história
de Pecola Breedlove, uma menina negra, negligenciada pelos
adultos e maltratada por outras crianças por conta da pele escura
e do cabelo crespo. Sonha em ter olhos azuis e a paz que isso lhe
traria. Mas quando sua vida começa a desmoronar, ela precisa
aprender a encarar seu corpo de outra forma.
Inacreditável (Unbelievable)
Netflix
Jovem é acusada de falsa denúncia de estupro.
Ela perde emprego, amigos e é afastada
do projeto de apoio. Anos depois, outros
estupros acontecem com as mesmas características,
dando início à investigação
por duas policiais.
Pensamento Feminista Negro
Autora: Patricia Hill Collins. Editora: Boitempo
Conhecimento, consciência e política do empoderamento. A autora
mapeia os principais temas e ideias tratados por intelectuais e ativistas
negras estadunidenses como Angela Davis, Bell Hooks, Alice
Walker e Audre Lorde e constrói um panorama do feminismo negro
com referências de dentro e de fora da academia.
Monoculturas da mente
Autora: Vandana Shiva. Editora: Gaia
Reflete sobre o pensamento unilateral que se instalou no mundo
(“monoculturas da mente”) e discorre sobre as consequências desse
tipo de monocultura para o planeta. A cultura e o conhecimento
científico ocidental tornaram-se hegemônicos e são encarados
como únicas formas possíveis de se conceber a realidade e atuar
no mundo. Aquilo que o conhecimento científico não valida passa
a ser inexistente - um não saber.
A explosão feminista:
Organizadora: Heloísa Buarque de Holanda. Editora: Companhia
das Letras
Um panorama das principais manifestações feministas da atualidade
na literatura, cinema, arquitetura e outras áreas. Linguagem
despojada a partir de depoimentos de feministas contemporâneas.
Documentários Feministas:
O que elas estavam pensando?
Netflix
A partir de fotos de mulheres realizadas
nos anos 1970 e o depoimento das fotografadas
na atualidade, nasce uma exposição
e delineia-se um percurso das principais
ideias do feminismo e da atuação de mulheres
engajadas numa transformação.
Atitude, pensamento - tudo capturado pelas
fotos: corpos nus, roupas despojadas, o
jeito de encarar a câmera. Belo, comovente.
O Menino que descobriu o Vento
Conta a história real do menino africano,
de 14 anos, que conseguiu, depois de frequentar
clandestinamente a biblioteca da
escola que o expulsara por falta de pagamento
(US$ 80 anuais), fazer um moinho de
vento que acionou uma bomba para captar
água do solo ressequido da região onde
morava. Isso rompeu a violenta seca que
submetia os moradores de Malawi à fome e
à miséria sem nenhuma ajuda do governo.
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153
Retrato
Petra Costa é uma cineasta
brasileira, que estreou na sétima
arte com o curta “Olhos de Ressaca”
(2009). Seu último longa, “Democracia
em Vertigem”, trabalho
que tem ganhado grande repercussão
dentro e fora do Brasil, foi
indicado ao Oscar 2020 na categoria
de melhor documentário.
154 Revista Elas por Elas - março 2020
/ Diego Bresani
DRUMUNDANA
(Alice Ruiz)
e agora maria?
o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia
e agora maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria
Revista Elas por Elas - março 2020
155
f y t i K sinprominas
Filiado à Fitee, Contee e CTB
www.sinprominas.org.br
MARÇO 2020
NÚMERO 12
156 Revista Elas por Elas - março 2020