EXAME Moz 86
Edição de Março da EXAME, com tema de capa sobre a CTA, dossier sobre a nova lei laboral e um especial inovação com ênfase, nesta edição, na importância do ensino para a promoção da inovação
Edição de Março da EXAME, com tema de capa sobre a CTA, dossier sobre a nova lei laboral e um especial inovação com ênfase, nesta edição, na importância do ensino para a promoção da inovação
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INOVAÇÃO ● Como
a educação a impulsiona
UNIÃO AFRICANA ● Vem aí
o Acordo de Livre Comércio
Nº 86 v Março 2020 v 200Mt v 5
Edição Moçambique
CTA
A CTA POR
DENTRO
Agostinho Vuma,
presidente da CTA, afirma,
em entrevista,
que Moçambique tem
de acelerar o processo
de reformas.
A EXAME visitou
a maior organização
empresarial do país.
DOSSIER
Lei do
Trabalho
em revisão
REVISTA MENSAL — ANO 7 — N O 86 — MARÇO 2020
TIRAGEM: 10 000 EXEMPLARES — CAPA: TUCANO PHOTOGRAPHY
ECONOMIA
24 União Africana O seu novo presidente, Cyril Ramaphosa,
promete impulsionar o Acordo de Livre Comércio em África
30 BAD O Banco Africano de Desenvolvimento prevê
que Moçambique vá crescer acima da média africana
DOSSIER
38 Lei Laboral Quais os efeitos da sua proposta de revisão
no mercado de trabalho? A EXAME faz o ponto da situação
e foi saber a posição de empresas, trabalhadores e juristas
24
CYRIL RAMAPHOSA:
O Presidente da África do Sul
passou a presidir também
à União Africana
30
EDUCAÇÃO:
Está no centro do
último relatório do
Banco Africano de
Desenvolvimento
D.R.
GLOBAL
52 Estados Unidos A crise aberta no Irão mostra que
os países agem, cada vez mais, por conta própria
56 Crescimento Os vencedores do Nobel da Economia falam
da desaceleração chinesa e indiana
60 Internet Francis Fukuyama, que viu no capitalismo o “fim
da História”, está preocupado com os monopólios na Internet
64 Amazónia O cientista Carlos Nobre propõe-se salvar
a Amazónia com uma nova industrialização
CONSUMO
72 Fortunas Com a aquisição da joalheria Tiffany, o francês
Bernard Arnault pode tornar-se o homem mais rico do
mundo
SUSTENTABILIDADE
76 Geração Os jovens fazem-se ouvir ruidosamente no debate
climático
GETTY
38
TRABALHO:
O mercado laboral
vai ter novas regras
IDEIAS
80 Capitalismo O sistema afasta-se da origem, mostra
The Myth of Capitalism, um dos melhores livros de 2019
FINANÇAS
84 Brasil Com os juros baixos os brasileiros investem
mais no exterior
ESPECIAL
88 Inovação A educação é um dos principais pilares
no processo inovador
UNSPLASH
SECÇÕES
Editorial 6
Primeiro Lugar 8
Grandes Números 14
Oil&Gas 50
Mundo Plano 68
Bazarketing 70
Exame Final 98
4 | Exame Moçambique
CAPA
16 Acelerar Reformas
Moçambique tem de acompanhar o ritmo de outros
países na implantação de reformas, afirma o presidente
da Confederação das Associações Económicas de
Moçambique (CTA), Agostinho Vuma. A CTA,
explica, não se limita ao diálogo social, tem vindo a dar
assistência às empresas no plano do financiamento.
TUCANO PHOTOGRAPHY
CARTADODIRECTOR
IRIS DE BRITO
DIRECTORA
CTA OU A DEFESA
DOS EMPRESÁRIOS
O
sector privado constitui o principal agente
de criação de emprego e de oportunidades
geradoras de rendimento tornando-se,
assim, a força motriz do processo de desenvolvimento
e de redução da pobreza.
A adopção de um modelo que imponha a optimização
e a gestão prudente dos recursos disponíveis
e promova a responsabilidade social
corporativa, a par da implementação de medidas A ACÇÃO DA CTA
estruturais que contribuam para um ambiente
FAVORECE UM
de negócios mais transparente e eficiente, constitui
condição sine qua non para o crescimento MELHOR AMBIENTE
sustentável do sector privado.
DE NEGÓCIOS
No caso concreto de Moçambique, onde o
sector privado é constituído, mormente, pelas pequenas e médias empresas
(PME) e pelo mercado informal, uma estratégia de desenvolvimento do sector
privado deverá adoptar políticas e medidas direccionadas para as PME
e que promovam o empreendedorismo.
É neste contexto que uma associação empresarial, com o perfil da CTA,
poderá desempenhar um papel importante, apoiando o Estado na persecução
de um enquadramento legal mais favorável ao desenvolvimento da actividade
empresarial do sector privado. Num quadro macroeconómico em que a
economia informal tem um peso extremamente elevado, a institucionalização
desses operadores não só melhora o ambiente concorrencial como permite
uma amplificação da base fiscal, trazendo uma maior equidade ao sistema.
O actual conselho directivo da CTA estendeu a sua actuação a mais do que
isso. Segundo o presidente da CTA, Agostinho Vuma, a criação do Gabinete
de Apoio Empresarial tem permitido dar assistência aos associados, incluindo
o acesso a novas formas de financiamento. E uma maior centralização do BNI
no apoio ao desenvolvimento do tecido empresarial — nomeadamente das
PME — poderá ser um importante mecanismo adicional nesse sentido. Além
disso, as empresas podem (e devem) ainda ser incentivadas a uma maior utilização
da Bolsa de Valores de Moçambique enquanto plataforma de obtenção
de financiamento, essencialmente ao nível dos empréstimos obrigacionistas.
A desintermediação que a Bolsa consegue fazer, estabelecendo uma ponte
entre o investidor final e a empresa, poderá garantir taxas mais baixas do que
as dos bancos comerciais.
No entanto, os desafios que se avizinham não são poucos: da lei do conteúdo
local à lei laboral (que abordamos nesta edição num dossier especial), estão
a ser definidas importantes ferramentas de balizamento da acção das empresas,
locais e internacionais, que a CTA deverá apoiar no sentido de as tornar
em instrumentos de apoio ao desenvolvimento a longo prazo.b
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Escritório 109
MAPUTO, MOÇAMBIQUE
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Valdo Mlhongo,
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Colaboraram nesta edição:
Abhijit Banerjee, Carla Aranha, Estevão Chavisso,
Esther Duflo, Fernando Eichenberg, Filipe Serrano,
Francis Fukuyama, Ivan Padilla, José Roberto
Mendonça de Barros, Levy-Sergio Mutemba, Luís
Fonseca, Paulo Machicane, Rodrigo Caetano.
Direitos Internacionais:
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Maputo
A revista EXAME (Moçambique) é um
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(Brasil), propriedade da Editora Abril.
Sociedade Moçambicana
de Edições, Lda.
Director-Geral
Miguel Lemos
Conselho de gerência
Luís Penha e Costa
Rui Borges
António Domingues
6 | Exame Moçambique
PRIMEIRO
LUGAR
MOÇAMBIQUE ESSENCIAL. PEQUENAS NOTÍCIAS SOBRE UM GRANDE PAÍS
AMBIENTE DE NEGÓCIOS:
Um dos pontos fracos
da economia nacional
SPS UNIVERSAL/ UNSPLASH
RANKING
AMBIENTE DE NEGÓCIOS PIOROU
A posição de Moçambique no índice que mede o ambiente favorável
aos negócios nos diferentes países do mundo, da responsabilidade
do Banco Mundial, recuou. Com efeito, na edição deste
ano do Doing Business, relativa a 2019, Moçambique figura entre
190 países, na 138ª posição, decaindo assim três lugares em relação
a 2018. Em 100 pontos possíveis do índice Doing Business,
Moçambique apenas obtém 55 pontos na soma dos diferentes
aspectos que contribuem, ou não, para favorecer o ambiente de
negócios propício ao dinamismo da iniciativa privada e à geração
de riqueza. Mesmo assim, ainda obtém uma melhor pontuação
do que países vizinhos, como o Zimbabwe ou a Tanzânia, ficando,
contudo, atrás da África do Sul, Zâmbia, Botswana e Lesoto.
Entre os países africanos de língua portuguesa e que pertencem
à CPLP, Moçambique fica à frente da Guiné-Bissau, Angola (que,
apesar das reformas do novo governo de João Lourenço, desce
vários lugares) e São Tomé e Príncipe. Entre estes países só Cabo
Verde consegue uma classificação melhor que Moçambique, posicionando-se
no lugar imediatamente anterior (137ª) no ranking
global. De referir que a Guiné-Bissau foi o único país africano de
língua portuguesa a melhorar a posição no índice, com São Tomé
e Príncipe a manter a posição, enquanto os restantes pioraram.
Os piores países para fazer negócios são a Guiné Equatorial,
o Haiti, a República do Congo, Timor-Leste, Chade, República
Democrática do Congo, República Centro-Africana, Sudão do
Sul, Líbia, República do Iémen, Venezuela, Eritreia e Somália, que
fecham a tabela Doing Business publicada este ano.
O Doing Business analisa, desde 2003, se a regulação existente
em 190 economias é favorável à realização de negócios,
entre os quais os requisitos de capital mínimo exigidos. Durante
este período, 106 economias promulgaram 139 reformas regulatórias
que reduzem ou eliminam os requisitos de capital mínimo.
Destas, 79 economias implementaram uma mudança regulatória,
e 27 economias promulgaram mais de uma.
A regulamentação analisada pelo índice afecta 12 vertentes da
vida empresarial: como iniciar um negócio, lidar com licenças de
construção, aceder a energia eléctrica, registar uma propriedade,
obter crédito, proteger os investidores minoritários, pagar impostos,
negociar além-fronteiras, cumprir contratos, resolver insolvências,
empregar trabalhadores e contratar com o governo. Este
ano, estes últimos indicadores não foram incluídos. A EXAME voltará,
numa próxima edição, aos desafios do ambiente de negócios
em Moçambique.
8 | Exame Moçambique
Focaremos os nossos esforços na resolução
de conflitos no continente.”
Cyril Ramaphosa, Presidente da África do Sul
e novo presidente da União Africana
CRESCIMENTO
ECONOMIA ACELERA
No final do mês de Fevereiro, o Instituto
Nacional de Estatística, INE,
divulgou que a economia cresceu mais
de 2% no último trimestre do ano.
A chave para este desempenho terão
sido, ainda segundo o INE, os serviços
financeiros. “O desempenho da
actividade económica no quarto trimestre
de 2019 é atribuído, em primeiro
lugar, ao sector terciário, que
cresceu em 1,5%, com maior destaque
para o ramo de serviços financeiros,
com um crescimento na ordem
dos 5,6%”, refere o INE. Moçambique
fechou assim o ano com taxas de crescimento
trimestral do PIB situadas no
intervalo entre 2% e 2,5%.
Uma semana depois, a Fitch Solutions
previa que a produção de gás
natural empurrará a economia para
um crescimento médio anual de 12,4%
esta década. A consultora estima que
a produção de gás natural vá registar
um crescimento anual de 26,5% até
2029. A Fitch Solutions é a unidade
de análise da empresa de avaliação de
risco Fitch, uma das três grandes que
aferem, na prática, o rating soberano
dos diferentes países e a sua capacidade
de endividamento.
“As perspectivas futuras de produção
de gás natural na África Subsariana
são mais positivas que para o petróleo,
com a produção quase a duplicar
dos actuais 75,6 mil milhões de
metros cúbicos para os 135 mil milhões
de metros cúbicos em 2029; Moçambique
representa o país com maiores
margens de crescimento em todo o
período em análise, com uma média
de crescimento anual de 26,5% entre
2020 e 2029”, refere a Fitch Solutions.
A produção moçambicana de gás rivalizará
com a nigeriana, de acordo com
o relatório da consultora. “Moçambique,
um fornecedor-chave do mercado
sul-africano, vai começar a desenvolver
as suas vastas reservas ao largo
da costa, o que fará a sua produção
aumentar de uns modestos 5,6 mil
milhões de metros cúbicos para 45 mil
milhões de metros cúbicos em 2029.”
SALA DE
MERCADOS
Janeiro
62,84
Janeiro
2,19
Janeiro
55,60
Janeiro
154,00
MOEDA
(Meticais por USD)
GÁS NATURAL
(USD/MMBtu)*
CRUDE
(USD/barril)
CARVÃO DE COQUE
(USD/ton.)
MILHO
(USD/Bushel)**
Fevereiro
64,90
Fevereiro
1,91
Fevereiro
52,91
Fevereiro
146,00
ACELERAÇÃO:
A produção de gás
vai intensificar
o crescimento
da economia
Janeiro
392,25
Janeiro
D.R.
OURO
(USD/t oz)***
Fevereiro
382,00
Fevereiro
1566,00
1645,00
COTAÇÕES A 22/01/2020 E A 21/02/2020
* MMBtu = milhões de British Thermal Unit
(medida da capacidade térmica)
** 1 bushel de milho = 25,4 Kg
*** t oz = onças troy = 31,21 g.
FONTES: BM, Bloomberg, CME Group.
D.R.
março 2020 | 9
PRIMEIRO LUGAR
PREÇOS
INFLAÇÃO CONTINUA
A DESCER
A inflação continuou a baixar em Moçambique
quando aferida pela média anual dos
preços. De acordo com o Instituto Nacional
de Estatística (INE), em Janeiro fixou-se em
2,76%, contra 2,78% em Dezembro. Em Julho
de 2019 a inflação média era de 3,61%. A variação
homóloga (que compara um mês com o
mesmo mês do ano anterior) também desceu,
ou seja, os preços aumentaram menos
em Janeiro de 2019 em comparação com o
mesmo mês de 2018 do que em Dezembro de
2018 face a Dezembro de 2017. Com efeito, a
inflação homóloga atingiu 3,48% no primeiro
mês do ano, quando havia subido para 3,5%
no último mês de 2018. Em comparação com
o mês anterior o nível geral de preços subiu
0,63% em Janeiro, de acordo com os dados
recolhidos nas cidades de Maputo, Beira e
Nampula. Entre as categorias (“divisões”) de
bens considerados, foram os englobados na
alimentação e as bebidas não alcoólicas que
registaram a maior variação mensal de preços,
dando, para o total da inflação mensal, um
contributo de cerca de 0,47 pontos percentuais
positivos. Já a habitação, água, electricidade,
gás, comunicações e lazer, bem como recreação
e cultura, deram um contributo negativo
para a variação mensal dos preços. A nível
dos três principais centros urbanos do país
apenas a cidade da Beira teve uma inflação
mensal acima da média nacional, com 1,49%.
CUSTO DE VIDA: É na cidade da Beira que
os preços aumentam mais
D.R.
FMI: O país tem registado um desempenho positivo nos últimos anos
FMI
REFORMAS ESTRUTURAIS SÃO PARA MANTER
O director-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Tao Zhang, apelou em
Maputo ao novo governo moçambicano para continuar as reformas estruturais
e a estabilidade macroeconómica, assinalando que o país tem registado um
desempenho positivo nos últimos anos. Tao Zhang, citado pela Lusa, pronunciou-
-se sobre o caminho que Moçambique tem seguido no campo económico em
declarações aos jornalistas, no final de um encontro com o ministro da Economia
e Finanças moçambicano, Adriano Maleiane — que manteve o cargo que já
ocupava no Executivo anterior. “Esperamos que essas reformas e políticas continuem
nos próximos anos, particularmente nas áreas da estabilidade macroeconómica,
reformas estruturais e boa governação”, afirmou Tao. O director-adjunto
do FMI mostrou-se optimista no sucesso das medidas de ajustamento que estão
a ser implementadas pelas autoridades moçambicanas, defendendo que o país
tem seguido, nos últimos anos, um rumo promissor.
“Estamos confiantes de que com a nova liderança de Filipe Nyusi e do seu
governo serão continuadas essas políticas e reformas”, destacou Tao Zhang. Por
outro lado, prosseguiu, Moçambique está a recuperar bem do impacto devastador
dos ciclones Idai e Kenneth, que afectaram as regiões Centro e Norte do
país o ano passado. O director-adjunto do FMI sublinhou que a organização está
empenhada no apoio a Moçambique para que o país alcance boas perspectivas
na área macroeconómica. A delegação do fundo, chefiada pelo director-geral-
-adjunto Tao Zhang, foi a primeira a visitar o país após a tomada de posse do Presidente,
Filipe Nyusi, para um segundo mandato e após a constituição do governo.
Ricardo Velloso, chefe de missão do FMI que visitou Maputo em Novembro, disse
na altura que “se o governo tiver interesse em conversas sobre um possível programa
de apoio financeiro”, o FMI está “aberto a esse pedido e a ter essas conversas”.
A disponibilidade já tinha sido primeiro anunciada por Abebe Selassie,
director do departamento de África do Fundo Monetário Internacional (FMI), em
declarações à Lusa, em Washington, a 18 de Outubro. O FMI admitia, assim, pela
primeira vez desde o escândalo das dívidas ocultas, em 2016, que a instituição
está disponível para voltar a dar assistência financeira a Moçambique.
D.R.
10 | Exame Moçambique
PRIMEIRO LUGAR
FINANCIAMENTO
FIDA APOIA AGRICULTURA
E PESCAS
MILHO AMARELO: A produção não satisfaz a procura que chega do Médio Oriente
DESEMPENHO
BOLSA DE MERCADORIAS
AUMENTA INTERMEDIAÇÃO
A Bolsa de Mercadorias de Moçambique (BMM) prevê intermediar este ano a
comercialização de 10 mil toneladas de produtos diversos, disse a presidente da
instituição ao matutino Notícias, de Maputo. Vitória Paulo assinalou que o montante
previsto para este ano representa um aumento de 14,9% relativamente às
8700 toneladas intermediadas em 2019, ano em que não foi possível alcançar a
meta previamente estabelecida de 9600 toneladas.
A meta estabelecida para este ano, “ambiciosa”, baseia-se em previsões de
aumento da produção e no facto de se estar a verificar um interesse cada vez
maior dos produtores em depositarem os produtos nos complexos geridos pela
Bolsa de Mercadorias. “À medida que os produtores individuais se aperceberam
da existência de infra-estruturas registou-se um aumento na utilização dos
silos, o mesmo tendo acontecido com algumas empresas”, disse a presidente
da bolsa, que reconheceu estar-se, no entanto, ainda muito longe do objectivo
de gerir milhões de toneladas. Vitória Paulo recordou ter a instituição que dirige
recebido solicitações de compradores estrangeiros que pretendiam adquirir para
mercados do Médio Oriente 10 mil toneladas de gergelim, 50 mil de soja e 200
mil toneladas de milho amarelo.
“Todos estes pedidos acabaram por não ser satisfeitos devido à sua exiguidade
no mercado doméstico”, disse. A presidente da BMM disse ainda que as
vantagens da comercialização através de uma bolsa derivam do facto de se tratar
de um mercado bem organizado, em que os preços praticados são transparentes
e justos “na medida em que as partes negoceiam tendo por base um
preço de referência”.
D.R.
O Banco de Moçambique e o Fundo Internacional
de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) assinaram
em Roma, Itália, dois acordos de financiamento
no valor global de 115,5 milhões de dólares para
a agricultura e pescas, informou a imprensa
moçambicana. O acordo financeiro para o Desenvolvimento
da Aquacultura de Pequena Escala
(PRO-DAPE), no valor de 43 milhões de dólares,
visa contribuir para a melhoria das condições
de vida, segurança alimentar e resistência
às mudanças climáticas. Já o Programa para o
Desenvolvimento da Cadeia de Valor no sector
da Agricultura, no valor de 72,5 milhões de
dólares, é destinado ao desenvolvimento da vida
e segurança alimentar nas regiões críticas do
país. O apoio ao novo programa da segurança
alimentar e resistência às mudanças climáticas
irá beneficiar, pelo menos, 902,5 mil produtores
rurais de Moçambique, um dos países africanos
afectados por aquelas mudanças. Em Moçambique,
70% da população vive nas zonas rurais e
é altamente vulnerável às mudanças climáticas,
sendo o terceiro país mais afectado em África,
com cerca de 58% da população atingida por
essas alterações.
O jornal Notícias, de Maputo, escreveu que os
dois acordos foram assinados pelo vice-governador
do Banco de Moçambique, Victor Gomes,
e por Donald Brown, vice-presidente associado
do FIDA, um organismo das Nações Unidas.
FIDA: Assinou dois acordos de financiamento com
o Banco de Moçambique
D.R.
12 | Exame Moçambique
março 2020 | 13
GRANDES
NÚMEROS
PARA SABER LER OS SINAIS DE UMA ECONOMIA EM MUDANÇA
ALGODÃO
UM MERCADO MUITO CONFORTÁVEL
O algodão, uma das riquezas do país, e um produto de sólida
cotação, com a procura a exceder muitas vezes a oferta nos
mercados internacionais, já conheceu muitas formas de produção
ao longo da sua história: foi explorado em regime compulsivo,
primeiro, e através da persuasão mercantilista, depois,
foi colectivizado e organizado em cooperativas nos tempos do
socialismo e, mais recentemente, em joint-ventures resultantes
da venda de empresas estatais. Moçambique atingiu o pico da
sua produção de algodão, de acordo com o Instituto do Algodão
de Moçambique, na era colonial, na campanha 1973-1974, com
a produção de 144 061 toneladas de algodão caroço. Em 2011-
2012 conseguiu ultrapassar as 184 mil toneladas. A produção
nacional rondará, actualmente, as 80 mil toneladas.
Um produto cuja procura mundial continua a aumentar,
que possui um fraco impacto climático e que, estando fortemente
ligado à primeira Revolução Industrial, reforça o seu
valor como commodity que apresenta um mercado estável ou
mesmo em ascensão.
QUEM MAIS EXPORTA EM ÁFRICA
(toneladas)
Moçambique, com mais de 9,4 mil toneladas exportadas, ocupa
uma posição cimeira entre os exportadores africanos, entre os
quais avultam o Mali, o Burkina Faso e o Benim. Os dados da
ABRAPA, a associação brasileira de produtores de algodão,
respeitantes ao início de Fevereiro indicam que África, no seu
conjunto, exportou quase 110 mil toneladas de algodão com a
última safra.
A Índia é o maior produtor mundial de algodão, seguida pelos
Estados Unidos e a China. O Brasil surge na 4.ª posição, à frente
do Paquistão, Turquia, Uzbequistão, Austrália, Turquemenistão
(na Ásia Central) e Burkina Faso. A Índia obtém um rendimento
muito elevado da produção e representa, só por si, 27% da produção
mundial. Os Estados Unidos são o segundo maior produtor
e o maior exportador mundial de algodão, empregando 200 mil
pessoas no sector. A China tem a fama de implementar métodos
de produção que a tornam uma produtora de classe superior.
O Brasil, cujo estado de maior produção é Mato Grosso, é
também o terceiro maior exportador de algodão a nível global.
GRANDES PRODUTORES
(milhares toneladas)
Mali
19715,77
Fonte: ABRAPA.
Burkina Faso
18949,5 Benim
14851,29
Índia
EUA
China
Brasil
Paquistão
Turquia
Uzbequistão
Austrália
Turquemenistão
Burkina Faso
806
713
479
198
185
1655
2787
3999
3500
5770
Fonte: Statista.
O algodão é mais que uma parte do nosso trabalho,
é um ingrediente da nossa vida.
The Fabric of Ours Lives/Cotton
Papel
Biocombustíveis
MULTIUSOS
CONHECEMOS O ALGODÃO PRESENTE NA NOSSA
ROUPA, NAS NOSSAS TOALHAS, NOS NOSSOS
TÊXTEIS, MAS O ALGODÃO TAMBÉM É UTILIZADO
PARA MUITAS OUTRAS COISAS:
Corda
Moeda
dos EUA
Óleo de
cozinha
Ração
animal
Embalagens
VANTAGENS DO ALGODÃO
É mais fácil
de lavar e manter
Traz mais
facilidade, conforto
e simplicidade
à vida
O cultivo de algodão
deu, e continua a dar,
grandes passos
em direcção à
sustentabilidade
e à responsabilidade
ambiental
março 2020 | 15
CAPA CTA
AGOSTINHO VUMA: O presidente da CTA
faz um balanço positivo da acção da confederação
e revela a agenda empresarial
“UMA NOVA CTA
RESSURGIU COM O
NOSSO MANDATO”
16 | Exame Moçambique
TUCANO PHOTOGRAPHY
A maior organização empresarial do país não
esgota a sua actividade no diálogo com o governo,
também assiste directamente o tecido empresarial.
Em entrevista à EXAME, Agostinho Vuma, presidente
da Confederação das Associações Económicas
de Moçambique, faz um balanço positivo do seu
mandato e sublinha que a CTA é hoje uma
organização de referência no contexto do movimento
associativo empresarial
VALDO MLHONGO
A
Confederação das Associações Económicas
de Moçambique (CTA) é, sem
dúvida, a maior organização empresarial
do país. E desde Maio de 2017
que a CTA, que actualmente conta
com seis federações, 133 associações, oito Câmaras
de Comércio e 57 empresas, é presidida por Agostinho
Vuma. No cerne da actual presidência, cujo
mandato termina oficialmente em Junho do corrente
ano, está a questão do diálogo público-privado com
vista à melhoria do ambiente de negócios, e não só.
Ao longo destes quase dois anos e meio, o grande
marco da liderança de Agostinho Vuma na CTA
passa muito mais pela criação de importantes plataformas
de apoio e orientação empresarial através
de várias parcerias. “Achamos que as empresas têm
os seus problemas pontuais que precisam de assistência,
seja em busca de financiamento alternativo
à banca, parceria e/ou mercado”, refere Agostinho
Vuma em entrevista à EXAME. Neste sentido, diz
o presidente da CTA, “já apoiámos mais de 100
empresas na preparação de projectos e mobilizámos
cerca de 60 milhões de dólares em financiamento
para estas empresas”. Vuma referiu que, hoje,
a CTA está a ser reconstruída a partir dos anseios e
ideias dos seus membros, “a quem procuramos servir
com todo o nosso cometimento”.
Mas nem tudo é um mar de rosas. O ambiente
de negócios continua a ser a grande preocupação
da CTA, pois não tem evoluído de forma satisfatória
(Moçambique perdeu mesmo posições na tabela
internacional do Doing Business, como damos
conta nesta edição). Vuma reconhece a existência
de esforços na elaboração de políticas claras neste
sentido, mas diz que as mesmas devem ser dinâmicas
e contínuas. “O facto de outros países estarem
num passo acelerado no processo de reformas deixa
para o nosso país o desafio de acelerar o ritmo que
imprimimos às reformas, bem como a sua aplicação
efectiva.” A concretização das linhas mestras
do Plano Estratégico 2017-2020 é o grande desafio
que a CTA tem pela frente. “Esperamos que a
nossa acção permita que Moçambique melhore nas
diversas classificações sobre o ambiente de negócios.”
Para 2020, entre várias expectativas o presidente
da CTA espera a restituição do subsídio/
incentivo de uma taxa reduzida do IRPC para 10%
no sector agrícola.
março 2020 | 17
CAPA CTA
A CTA é a maior organização empresarial
do país. Como está organizada?
A CTA é uma pessoa colectiva de direito privado,
sem fins lucrativos, dotada de personalidade jurídica
e com autonomia administrativa, que representa
os interesses do sector privado em Moçambique
no processo de diálogo com o governo. A Confederação
tem como órgãos de governação a assembleia
geral, o conselho fiscal e o conselho directivo.
A assembleia geral é o órgão máximo decisório, onde
se procede à discussão e decisão sobre as matérias
estruturantes e onde se efectua a prestação de contas.
O conselho fiscal reporta à assembleia geral e
tem o papel de fiscalização e auditoria de todos os
órgãos socias da CTA. O conselho directivo reporta
à assembleia geral, implementa as suas decisões e
orienta estrategicamente a direcção executiva da CTA.
Qual tem sido o contributo da CTA para o
crescimento do sector empresarial no país?
Aqui tivemos vários avanços. Quando iniciámos o
mandato decidimos que a CTA, sendo uma organização
empresarial, não pode estar apenas focada
no diálogo com o governo, embora isso seja crucial
para um bom ambiente de negócios. Achamos que
as empresas têm os seus problemas pontuais que
precisam de assistência, seja em busca de financiamento
alternativo à banca, parceiros e/ou mercado.
Neste sentido, criámos o Gabinete de Apoio Empresarial,
que tem por objectivo prover e apoiar directamente
os empresários no desenvolvimento dos seus
negócios. Assinámos um Memorando com Active
Capital com objectivo de trazer opções de financiamento
alternativo. Nesta linha, já apoiámos mais de
100 empresas na preparação de projectos e mobilizámos
cerca de 60 milhões de dólares em financiamento
para estas empresas.
ONDE ESTÃO AS EMPRESAS
O segundo censo nacional do INE (2014-2015) apurou a existência de mais de
50 mil empresas no país, com forte incidência na cidade de Maputo (quase 32% do total)
51 237
TOTAL
Fonte: INE.
16 309
O EMPREGO QUE É CRIADO
Também é a cidade de Maputo que concentra mais emprego, de acordo com o segundo censo
nacional do INE (2014-2015), mas em termos de emprego por empresa é superada pelas
províncias de Tete e Nampula
582 783
Maputo
Cidade
6 305 5 771
Maputo
Sofala
4 159 3 881 3 639 2 779 2 388 2 298 2 104 1 584
Zambézia
Gaza
Nampula Inhambane
Tete
Cabo
Delgado
Manica
Niassa
São projectos direccionados para que áreas?
São projectos maioritariamente na área do agro-negócio.
A título de exemplo, foram beneficiados projectos
de produção de cimento, geração de energia, produção
de embalagem e produção de cana-de-açúcar
e banana para exportação. Prestamos assistência a
empresas para submeterem projectos no âmbito do
11.º Fundo Europeu de Desenvolvimento, num valor
estimado em 150 milhões de euros. Também trabalhamos
com o Banco Africano de Desenvolvimento,
onde mobilizamos e assistimos empresas a prepararem
projectos. Aqui submetemos projectos avaliados
em 1,4 mil milhões de dólares para serem avaliados
no African Investment Forum. Como CTA, a nossa
meta é conseguir, pelo menos, 200 milhões de dóla-
TOTAL
Fonte: INE.
218 359
Maputo
Cidade
75 798
Maputo
72 146
Sofala
52 597
Nampula
41 075
Tete
36 123
Zambézia
20 578
Manica
17 412
Inhambane
19 944
Gaza
15 699
Cabo
Delgado
13 052
Niassa
18 | Exame Moçambique
res neste African Investment Forum para projectos
de produção e processamento de castanha-de-caju,
macadâmia e outros. Portanto, se forem aprovados
teremos fábricas novas para processarem produtos
básicos e adicionarem muito valor à nossa economia.
Recentemente lançámos uma nova linha de
financiamento para as empresas, em parceria com
Banco de Exportação e Importação de África, avaliada
em 25 mil milhões de dólares, para projectos
de negócios que serão concluídos na feira de negócios
denominada Inter African Trade Fair, a ter lugar
no Egipto de 11 a 17 de Dezembro deste ano. Esta
linha, com um período de maturidade de crédito
de 10 anos, destina-se a financiar e dinamizar projectos
entre países africanos e pode ser usada nas
nossas relações comerciais entre os diversos países.
Tivemos mais empresários a surgirem nestes
últimos três anos?
Mesmo numa situação de adversidades económicas,
com certeza que o mercado nacional viu entrar
muitos novos empresários. Para suster esta convicção
socorro-me dos dados, por exemplo, do Balcão
Único de Atendimento da Cidade de Maputo, que
apontam para um incremento do número de licenças
comerciais aprovadas de 4554, em 2017, para 5699,
em 2019, e o licenciamento industrial que também
conheceu um aumento de 33 para 280 no período
em referência.
Este elenco caminha para o fim do seu
mandato. Como avalia o trabalho desenvolvido
pela sua equipa desde que assumiu o mandato
até hoje?
Foi bastante positivo na medida em que consolidámos
a unidade e coesão dos membros e, também,
o papel da CTA no contexto do aprimoramento
do diálogo público-privado. Conseguimos colocar
TUCANO PHOTOGRAPHY
GANHOS DO DIÁLOGO
ENTRE PÚBLICO E PRIVADO
O presidente da CTA enumera os principais ganhos até aqui
verificados no âmbito do diálogo público-privado. Não foram
poucos. Foram simplificados procedimentos com a revisão de
várias regulamentações, contando-se, no balanço final, os sectores
da agricultura e do turismo entre os mais beneficiados:
“Tivemos um período de avanços e recuos. Referimo-nos a
avanços em termos de aceitação de algumas medidas propostas.
Neste diapasão, importantes instrumentos foram aprovados,
de que são exemplos o visto de fronteira, que foi um grande
desafio sob o ponto de vista da segurança, a taxa de turismo,
a simplificação de procedimentos consubstanciada na revisão
do Código Comercial, Registo Predial, Obtenção de Electricidade,
Pauta Aduaneira, Aviação Civil e Comércio Internacional.
Na verdade, o sector da agricultura e do turismo foram dos
mais beneficiados. No sector da agricultura foram aumentados
os benefícios fiscais na importação de equipamentos para as
empresas que pretendam investir na sua capacidade. No sector
do turismo, o visto de fronteira, a taxa de turismo, bem como
a eliminação do IVA na importação de aeronaves e a redução
da taxa liberatória, tendem a aumentar o fluxo de turistas.
A obtenção de electricidade foi simplificada para apenas três
procedimentos, contra sete.
CTA: Uma organização
empresarial de topo,
no momento emque
o país desenvolve uma
economia de mercado
“PRESTAMOS ASSISTÊNCIA
A EMPRESAS PARA SUBMETEREM
PROJECTOS NO ÂMBITO
DO 11º FUNDO EUROPEU
DE DESENVOLVIMENTO
NUM VALOR ESTIMADO
EM 150 MILHÕES DE EUROS”
março 2020 | 19
CAPA CTA
a CTA no eixo dos principais centros de diálogo, quer
internamente, quer externamente. Hoje, a CTA é
uma organização de referência no contexto do movimento
associativo empresarial, e não só. Por outro
lado, todas as nossas promessas eleitorais, sufragadas
em Plano Estratégico Trienal, foram realizadas.
Tornámos efectiva a descentralização do processo
de coordenação do diálogo público-privado para
todas as províncias e a maior parte dos distritos do
país, um processo que prossegue sem sobressaltos
e tem demonstrado ser uma das melhores estratégias
para o aprofundamento da parceria entre a
CTA e os governos, a todos os níveis, para a prossecução
do nosso objectivo de remoção das barreiras
aos investimentos e melhoria do ambiente
de negócios à escala nacional. Portanto, consideramos
bastante positiva a nossa auto-avaliação.
A CTA conseguiu cumprir os objectivos
traçados para este triénio?
Pela avaliação que fizemos em finais de 2019, concluímos
que já tínhamos realizado acima de 90%
das acções a que nos propusemos para o período
2017-2020.
Em termos globais, que realizações destaca
neste mandato que está prestes a terminar?
Uma nova CTA ressurgiu com o nosso mandato,
inaugurado em Maio de 2017. Hoje, a CTA está
NÚMEROS DO APOIO DA CTA
60 milhões de dólares
foram mobilizados em financiamento para as empresas
com o Memorando que a CTA assinou com Active Capital
150 milhões de euros
valor dos projectos empresariais, no âmbito do 11º Fundo
Europeu de Desenvolvimento assistidos pela CTA
1,4 mil milhões de dólares
valor dos projectos de empresas assistidos pela CTA
e avaliados no African Investment Forum
25 mil milhões de dólares
valor de uma nova linha de financiamento para as empresas,
anunciada em conjunto com o Banco de Exportação e Importação
de África, para projectos de negócios que serão concluídos
na Inter African Trade Fair
CICLONES: A CTA apurou os muitos milhões de custos que implicaram
sobre a actividade empresarial
GETTY
20 | Exame Moçambique
a ser reconstruída a partir dos anseios e ideais dos
seus membros, a quem procuramos servir com todo
o nosso cometimento. Ao longo destes quase dois
anos e meio temos vindo a trabalhar para reconquistar
a confiança dos nossos parceiros, dentro
e fora do país, e a credibilidade no seio da nossa
sociedade, como verdadeira entidade de utilidade
pública, por meio do dinamismo, do engajamento
de todos e, em especial, pelo exemplo.
O ambiente de negócios tem evoluído
positivamente no país?
Certamente que um ambiente favorável de negócios
é preponderante para a criação de um sector
privado forte e expressivo, que por sua vez constitui
o pressuposto básico para o crescimento e
desenvolvimento económico de qualquer país.
Na perspectiva do Doing Business, o ambiente
de negócios no país não tem evoluído de forma
satisfatória ao longo dos anos comparativamente à
situação de outros países. Mais uma vez, a recente
avaliação do Doing Business 2020, que evidencia
uma queda de três posições de Moçambique
no ranking, para a posição 138, dá a indicação de
que fazer negócios em Moçambique é menos fácil
relativamente ao que sucede noutras economias.
Todavia, importa realçar que a deterioração do
posicionamento de Moçambique não é resultado da
ausência de esforço para a melhoria do ambiente,
o que pode ser atestado com o volume de reformas
que foram sendo aprovadas ao longo destes
anos, mas há que ter em conta que as políticas
para a melhoria do ambiente de negócios devem
ser dinâmicas e contínuas. O facto de outros países
estarem num passo acelerado no processo de
reformas deixa ao nosso país o desafio de acelerar
o ritmo que imprimimos às reformas bem como
à sua efectiva aplicação.
Que aspectos primordiais têm de melhorar?
O primeiro passo deve ser a implementação efectiva
das reformas já aprovadas, bem como a flexibilização
da aprovação de reformas complementares.
De seguida acreditamos que ainda há lugar para se
simplificarem os procedimentos e com isso reduzir
os custos de transacção, se consideramos que
estamos em plena época da revolução das tecnologias
de informação e comunicação que flexibilizam
os processos que outrora eram morosos.
Aqui gostaria de chamar a atenção para a necessidade
de aceleração da informatização do processo
de cumprimento das obrigações fiscais dos
contribuintes.
PROJECTOS
APOIADOS
Estas foram as áreas que
tiveram mais apoio da CTA
na preparação de projectos:
PRODUÇÃO DE CIMENTO
GERAÇÃO DE ENERGIA
PRODUÇÃO DE EMBALAGEM
PRODUÇÃO
DE CANA-DE-AÇÚCAR
E BANANA PARA
EXPORTAÇÃO
Que perspectivas tem a CTA para 2020?
A nível macroeconómico as perspectivas para
2020 são de forte recuperação da actividade económica
e baixa inflação. Aqui destaca-se o processo
de recuperação pós-ciclones e o impulso ao
sector da construção e outras actividades, decorrente
dos investimentos nos megaprojectos de gás
natural liquefeito. Em termos empresariais, acreditamos
num 2020 mais promissor e na capacidade
das nossas micro, pequenas e médias empresas de
ultrapassarem todas as dificuldades, mesmo os problemas
mais complexos e difíceis que a nossa economia
poderá apresentar, e a melhoria das condições
do acesso ao crédito bancário por consequência da
redução da taxa de juro do mercado. Esperamos a
restituição do subsídio/incentivo de uma taxa reduzida
do IRPC para 10% na agricultura. Este é um
incentivo muito grande para um sector nevrálgico
do nosso país que ainda precisa de estímulos concretos.
No contexto do Doing Business, esperamos
que o país registe melhorias significativas na qualidade
de implementação de reformas, contribuindo,
assim, para a melhoria do ambiente de negócios e a
subida no ranking internacional. Mas existem alguns
riscos que podem colocar em causa as boas perspectivas
para 2020, como a violência a todos os níveis,
quer familiar, social ou política, principalmente esta
última que, por impactar directamente nos sectores
nevrálgicos como os transportes, a logística e
a livre circulação de pessoas e bens, pode influenciar
o crescimento económico. Acreditamos, no
entanto, na capacidade do nosso governo para manter
a estabilidade social, política e económica, daí
a nossa confiança num ano bom em 2020.
Quais são os grandes desafios que a CTA
enfrenta hoje e nos próximos anos?
No curto e médio prazo o grande desafio prende-
-se com a concretização das linhas mestras do
nosso Plano Estratégico 2017-2020. Em termos
de resultados esperamos que a nossa acção permita
que Moçambique melhore nas diversas classificações
sobre o ambiente negócios o que, só por
si, significará a remoção dos obstáculos que ainda
apoquentam o fazer negócios no país. Com vista
à dinamização do agro-negócio, sector que elencamos
como prioritário no nosso mandato, temos
em vista o mapeamento de pequenos produtores e
facilitar a colocação de recursos financeiros à sua
disposição, bem como promovermos parcerias de
modo a garantir que os grandes espaços comerciais
existentes adquirem a produção dos pequenos produtores...
continuaremos a defender a necessidade
março 2020 | 21
CAPA CTA
de reduzir o IRPC do sector agrícola para 10%.
Prosseguiremos com a advocacia de reformas que
concorram para a melhoria do ambiente de negócios.
Neste sentido, apresentaremos propostas concretas
junto do governo para reduzir ou facilitar
o processo de abertura de empresas. Não faz sentido
que o custo de abertura de uma empresa esteja
acima do rendimento per capita nacional, facto
que, de per si, afecta a formalização da economia.
Pela sua relevância, esperamos a aprovação da lei
do conteúdo nacional, por forma a garantir a participação
das empresas nacionais na cadeia de valor
dos grandes projectos. Esperamos que a lei seja um
mecanismo para maximizar os benefícios para os
moçambicanos.
Quais foram os impactos dos ciclones Idai
e Kenneth, ocorridos o ano passado, ao nível
empresarial?
A CTA, como entidade de utilidade pública, fez o
diagnóstico do impacto das calamidades, informação
essa que serviu de base para a concepção de políticas
de intervenção para a restauração do tecido económico
danificado. A partir de um levantamento
feito sobre os danos e perdas em 692 empresas nas
quatro províncias da região Centro apurou-se que
os custos totais do ciclone Idai foram de cerca de
550 milhões de dólares. Estes custos do ciclone no
tecido empresarial são resultantes, por um lado, dos
danos em infra-estruturas produtivas, equipamentos
e destruição de matérias-primas e mercadorias
diversas e, por outro lado, do negócio perdido com
a interrupção dos negócios. Verificámos ainda que
os sectores com grandes perdas financeiras foram
a indústria, o agro-negócio, incluindo a avicultura,
e o comércio. Quanto ao ciclone Kenneth, as
localidades mais abaladas situam-se na faixa costeira
da província de Cabo Delgado. Do levantamento
feito dos impactos desta catástrofe no tecido
empresarial os danos são estimados em cerca de
11,9 milhões de dólares, sendo que os sectores
que mais se ressentem do ciclone são o turismo e
a pesca, actividades dominantes naquela parcela
do país. De uma forma global os ciclones tropicais
Idai e Kenneth, determinaram a retracção do
crescimento real do PIB, para 2% no terceiro trimestre
de 2019.
De que forma a CTA apoiou as empresas
afectadas?
Desde a eclosão das calamidades naturais a CTA
tem acompanhado a situação, tendo-se, numa
primeira fase, engajado em acções de mobiliza-
D.R.
CRESCIMENTO EMPRESARIAL
As dificuldades não travaram o número de empresas criadas nos três últimos anos
a avaliar pelas licenças concedidas
LICENÇAS COMERCIAIS APROVADAS
4 554
LICENÇAS INDUSTRIAIS APROVADAS
33
2017 2019 2017
2019
Fonte: Balcão Único de Atendimento/Maputo.
5 699
280
22 | Exame Moçambique
EVOLUÇÃO DA CTA
A constituição da Comissão de Trabalho
das Associações deu-se em 1996, uns bons
anos depois de Moçambique ter abandonado
uma economia planificada e optado
por uma economia de mercado.
O Estado demorou a adaptar-se ao novo
figurino económico e não se criou verdadeiramente
um ambiente favorável à realização
de negócios. Pesaram as grandes
empresas públicas estatais e a burocracia.
Criada como “um fórum de coordenação
para interagir com o governo e induzir
a adopção de novas leis que criassem
um melhor ambiente de negócios”, como
acentua a própria organização, a CTA transformou-se,
em 1999, em Confederação das
Associações Económicas de Moçambique.
Os membros da CTA são as associações
de empresas que produzam, distribuam ou
vendam produtos ou serviços, bem como
as respectivas federações e uniões.
A CTA tem 132 associações como membros,
que representam vários sectores de
actividade. No total, estas associações representam
cerca de 3500 empresas, com um
crescimento constante.
ção de apoios para ajuda humanitária às vítimas.
Na segunda fase, para melhor assistência às empresas,
a CTA realizou um levantamento sobre os danos
sofridos pelas empresas, conforme referi anteriormente.
Este estudo permitiu-nos obter evidências
sobre as principais necessidades das nossas empresas
para que possam reerguer-se. Foi neste âmbito
que a CTA iniciou acções de mobilização de financiamentos
junto dos seus parceiros e, juntamente
com o governo, realizou a avaliação das necessidades
para a recuperação que foram apresentadas na
conferência internacional dos doadores. Igualmente
em parceria com a FAN e a GAP, procedeu-se ao
lançamento do Fundo Especial de Financiamento
a PME no âmbito do Programa de Apoio à Recuperação
e Expansão de Negócios Pós-Idai & Kenneth
AFREXIMBANK:
A CTA e o Banco
Africano de Exportação
e Importação
anunciaram uma
linha de financiamento
de 25 mil milhões
de dólares
(FEREN), que se destina ao financiamento das actividades
de assistência técnica e financeira às micro,
pequenas e médias empresas cujos negócios tenham
sido afectados pelos ciclones Idai e Kenneth.
Moçambique é um país vulnerável a cheias
e eventos extremos. Até que ponto o
empresariado está preparado para lidar
com este tipo de situações?
O empresariado nacional está a aprender a lidar com
este fenómeno, o que acarreta outro tipo de investimentos,
quer seja na criação de infra-estruturas
mais resilientes, deslocação de unidades produtivas
das zonas de maior risco para as mais seguras,
ou mesmo numa maior consciencialização sobre
temas associados à sustentabilidade ambiental.b
março 2020 | 23
ECONOMIA UNIÃO AFRICANA
ARMAS CALADAS
E FRONTEIRAS
ABERTAS
A União Africana reconheceu oficialmente a ameaça armada do Norte de Moçambique
e até disse como poderia ajudar. Calar as armas é a prioridade no continente, com o novo
presidente da União Africana, Cyril Ramaphosa, a prometer impulsionar o Acordo de Livre
Comércio em África
LUÍS FONSECA *
24 | Exame Moçambique
CIMEIRA: A União Africana dedicou
grande atenção aos actos de terrorismo
no continente
e abrir caminho à formação de um governo
de unidade nacional”. Anunciou também
que a África do Sul irá acolher, em Maio,
uma cimeira extraordinária da UA sob o
lema do silenciamento das armas no continente,
para avaliar o programa adoptado
em 2013 com o objectivo de acabar com os
conflitos em África até 2020.
“Da cimeira que vamos acolher têm de
sair acções concretas que, como africanos,
temos de tomar para acabar com os conflitos
e lidar com actos de terrorismo em
muitos países em regiões como o Sahel e o
Corno de África, e que agora estão a alastrar
a outras partes”, disse. Moçambique é
uma dessas partes. Smail Chergui, comis-
“ F
ocaremos os nossos
esforços na resolução de
conflitos no continente,
especialmente naqueles
países que vivem conflitos
prolongados.” Foi com estas palavras
que o chefe de Estado sul-africano, Cyril
Ramaphosa, deixou clara a sua prioridade.
Desejo expresso ao assumir a presidência
da União Africana (UA), a 9 de Fevereiro,
na 33.ª Cimeira da organização. Ramaphosa
recebeu simbolicamente o martelo
e a bandeira da UA das mãos do homólogo
egípcio Al-Sissi. Na ocasião, prometeu
envidar esforços para organizar uma
conferência sobre a Líbia de modo a promover
“um cessar-fogo” e estabelecer o diálogo
entre as partes em conflito, bem como
“trabalhar com as partes no Sudão do Sul
para implementar as decisões do acordo
“O ACORDO [DE LIVRE
COMÉRCIO] SERÁ
FUNDAMENTAL PARA
A INDEPENDÊNCIA
ECONÓMICA DE ÁFRICA”
BENEDICT ORAMAH
PRESIDENTE DO AFREXIMBANK
STR
AGENDA 2063:
UMA MOEDA,
UM MERCADO,
UM PASSAPORTE
Em 21 de Março de 2018, na
cimeira extraordinária da União
Africana (UA), que decorreu em
Kigali, capital do Ruanda, 44 dos
54 Estados-membros da organização
pan-africana aprovaram o
acordo que prevê lançar o tratado
de criação da Zona de Livre
Comércio Africana (ZLEC). A adesão,
que permitirá criar o maior
mercado do mundo, é voluntária
e já cativou 40 dos 55 estados da
UA, representando um PIB acumulado
de 2,5 biliões de dólares.
A ZLEC inscreve-se no quadro de
um processo que, até 2028, prevê
a constituição de um mercado
comum e de uma união económica
e monetária de África, razão
pela qual também está em curso
a implementação do Passaporte
Único Africano, tudo incluído na
chamada Agenda 2063, que visa
desenvolver económica, financeira
e socialmente o continente
até àquele ano.
março 2020 | 25
ECONOMIA UNIÃO AFRICANA
STR
sário para a paz e segurança da UA, disse
durante a cimeira que o terrorismo está
a atingir vários países “e a avançar para
outras regiões”, apontando como exemplo
o Norte de Moçambique. Tal como Ramaphosa,
o comissário apontou assim, também,
para a necessidade de “uma cimeira
extraordinária da UA, em Maio, na África
do Sul, para analisar as raízes dos problemas,
país a país, para encontrar soluções”.
Chergui referiu que a organização poderia
ajudar Moçambique “com partilha de
informação, fornecimento de equipamento
e treino de soldados moçambicanos”.
A UA poderia também ajudar Moçambique
a compreender o fenómeno terrorista de
forma a “responder holisticamente”, disse.
LÍDERES AFRICANOS: Vão pôr em prática o Acordo de Livre Comércio no continente
MUDANÇAS CLIMÁTICAS
Será que África deve mendigar por
causa das alterações climáticas? Não,
não deve, foi a resposta imediata do
presidente do Banco Africano de
Desenvolvimento (BAD), Akinwumi
Adesina, considerando que os países
mais poluidores devem também
suportar a factura. Em entrevista à
agência Associated Press à margem
da cimeira da União Africana, Adesina
vincou que os países mais poluidores
“têm de pagar” e defendeu que
o financiamento prometido a África
pelas consequências das alterações
climáticas “tem de ser posto em cima
da mesa”. A população do continente
— 1,2 mil milhões de africanos — é a
que mais vai sofrer com o aquecimento
global. Isto apesar de serem os
que menos contribuem e os que estão
mais mal equipados para lidar com os
efeitos, dizem os estudos, que apontam
para ciclones cada vez mais fortes
devido ao aquecimento das águas
do oceano Índico.
“Tem de haver justiça climatérica”,
defendeu o presidente do BAD, acrescentando
que 40% do aumento do
financiamento, de 12,5 mil milhões de
dólares para 25 mil milhões de dólares,
já é para a adaptação ao clima.
Para Akinwumi Adesina, “o continente
africano não devia estar numa situação
em que está a mendigar”, porque
não se lida “com as mudanças climáticas
simplesmente falando sobre elas”.
DEPOIS DAS PALAVRAS,
QUAIS OS ACTOS?
O Instituto de Estudos de Segurança (ISS),
organização independente de análise, reviu
as posições assumidas e declarações feitas
durante a cimeira da UA, concluindo que
a organização “reconheceu finalmente” a
ameaça terrorista no Norte de Moçambique.
No entanto, o ISS está pessimista: refere
que o tema pode ficar fora da agenda oficial
da organização. Um funcionário da UA,
citado pelo instituto depois de participar
em discussões à porta fechada sobre paz e
segurança, disse que “apesar de Moçambique
reconhecer que precisa de assistência,
a situação dificilmente chegará à agenda
oficial do Conselho de Paz e Segurança
(CPS) da UA em breve”. Moçambique
passa a integrar o conselho em Abril, por
um mandato de dois anos, e “no passado
os membros têm sido avessos a ver a situação
do seu próprio país apresentada pelo
conselho”, sublinhou. Tais discussões precisariam
também da aprovação da Comunidade
para o Desenvolvimento da África
Austral (SADC), disse o oficial. O ISS nota
que a África do Sul, sem ser membro do
CPS, mas como presidente da UA, pode
colocar questões na agenda.
O maior desafio para Moçambique e para
a UA “é a falta de informação sobre quem
é exactamente responsável pelos ataques”
— que já afectaram 156 400 pessoas com
perda de bens ou obrigadas a abandonar
casa e terras em busca de locais seguros,
26 | Exame Moçambique
segundo um relatório do governo moçambicano
divulgado em Fevereiro. O documento
não faz referência a vítimas mortais, mas
diferentes estimativas apontam para, pelo
menos, 350 mortos. Tudo isto na província
de Cabo Delgado, aquela onde avançam as
obras dos megaprojectos que daqui a quatro
anos vão colocar Moçambique no top
10 dos produtores mundiais de gás natural.
APOSTA NO LIVRE COMÉRCIO
Em matéria económica, Cyril Ramaphosa
assumiu o compromisso de finalizar
o Acordo de Livre Comércio em África
(AfCFTA, na sigla em inglês) e anunciou a
realização de uma cimeira extraordinária
da organização sobre este tema, também
em Maio. O potencial é enorme. Segundo
as contas feitas por Benedict Oramah, presidente
do Banco Africano de Exportações
e Importações (Afreximbank), o acordo
pode aumentar as trocas regionais para
134 mil milhões de dólares, 35% acima do
valor actual. Ou seja, trata-se de um acordo
que será fundamental para a independência
económica de África, cujos países podem
aumentar os níveis actuais de trocas no
continente de 15% para 25% numa década.
Os líderes africanos, disse, devem preparar
medidas de compensação da perda
de receitas fiscais causadas pela livre circulação
de bens no continente, que pode
representar uma verba de 4 mil milhões
de dólares por ano. “Devem garantir que
o sector privado está bem preparado para
aproveitar as vantagens de mercado proporcionadas
pelo acordo e esforçar-se por
implementar mecanismos que melhorem
o acesso a informações comerciais credíveis,
especialmente entre agentes privados
africanos”, disse Oramah. Para já, o
compromisso de Cyril Ramaphosa está
lançado. Tem um ano pela frente, depois
será a vez de a República Democrática do
Congo (RDC) assumir a presidência rotativa
da União Africana.
Se, por um lado, é preciso abrir fronteiras,
por outro é preciso ajudar África a combater
a corrupção, disse o secretário-geral
das Nações Unidas, António Guterres, ao
intervir na cimeira. O líder da ONU fez
um pedido expresso à comunidade internacional
para ter mais determinação na
“A COMUNIDADE
INTERNACIONAL
DEVE COMPLEMENTAR
ESTES ESFORÇOS
[DE ÁFRICA] COM UMA
DETERMINAÇÃO MAIS
FORTE EM COMBATER
A EVASÃO FISCAL,
O BRANQUEAMENTO
DE CAPITAIS E FLUXOS
FINANCEIROS ILEGAIS”
ANTÓNIO GUTERRES
SECRETÁRIO-GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS
UE PREPARA CIMEIRA
DE OUTUBRO COM ÁFRICA
Desde 2018 que a União Europeia (UE)
acentua a discurso de parceria com
África, destacando novas potencialidades
do trabalho conjunto. Não espanta,
por isso, que o presidente do Conselho
Europeu, Charles Michel, tenha dito em
Adis Abeba que a Europa quer olhar
para África com “novos olhos”, passando
da abordagem da ajuda para a
do investimento, “tendo em consideração,
por exemplo, a importância de
construir infra-estruturas robustas no
continente”. Charles Michel encontrou-
-se com chefes de Estado e de governo
africanos para preparar a cimeira UE-
-África, marcada para Outubro, em
Bruxelas. “Gostaria que não tivéssemos
o mesmo tipo de cimeira em que
os países africanos chegam com centenas
de prioridades. Gostaria de, nos
luta contra os fluxos financeiros ilegais,
para complementar os esforços de combate
à corrupção dos países africanos. “Tenho
testemunhado os esforços de muitos países
em África para eliminarem a corrupção,
reformarem os sistemas de impostos e
melhorarem a governação das instituições,
mas a comunidade internacional deve complementar
estes esforços com uma determinação
mais forte em combater a evasão
fiscal, o branqueamento de capitais e fluxos
financeiros ilegais.” O secretário-geral das
Nações Unidas sublinhou que estes “flagelos”
estão a “privar os países africanos de
recursos essenciais para o desenvolvimento”.
Convidado a participar na recta final dos
encontros anuais da organização africana,
António Guterres sublinhou também na
sua intervenção a importância da cooperação
entre as duas instituições, assegurando
“apoio total” das Nações Unidas à
implementação da agenda de desenvolvimento
da UA, a Agenda 2063. b
* Serviço especial da Lusa para a EXAME.
próximos meses, ter vários encontros
bilaterais para entender quais são as
prioridades deles e explicar as nossas”,
adiantou. Para o responsável europeu,
a prioridade é perceber como a estratégia
de desenvolvimento e investimento
da Europa em relação a África
pode ser mais eficaz.
Questionado pelos jornalistas sobre
se esta nova relação não devia começar
com um pedido de desculpas a África
pelo passado colonial europeu, Charles
Michel considerou que o mais importante
é perceber como estabelecer esta
relação no futuro. “Cada vez mais as
novas gerações na Europa nasceram
depois da independência dos países
africanos e cada vez mais é possível
ter maior ambição para esta parceria
com África, sem nostalgia.”
março 2020 | 27
LEGISLAÇÃO
ENTRE O
GLAMOUR E
O SOSSEGO
Com a proliferação de novas e mais fáceis formas
de captação e transmissão de informação, o legislador veio,
no final do ano, regular a protecção da vida privada
FABRÍCIA DE ALMEIDA HENRIQUES E RUI PATRÍCIO
O
ano de 2019 terminou com
a revisão do Código Penal
Moçambicano, pela Lei n.º
24/2019, de 24 de Dezembro,
revisão esta que, de
encontro à moda dos tempos, revelou especial
preocupação com o capítulo dos “crimes
contra reserva da intimidade da vida
privada”. Em sintonia com uma época digital
em que a captação do momento é fácil
e imediata, em que a partilha impensável
se tornou banal, e em que a proliferação
da (des)informação não conhece fronteiras
geográficas, as barreiras entre a rede
social glamorosa e a reserva da vida privada
parecem ameaçadas. É o verdadeiro
duelo entre a minha liberdade de partilha,
de expressão, de informar – e de ser informado
– e o direito do outro à reserva da
vida privada, à imagem, enfim, ao sossego.
Assim, à semelhança do previsto no
código penal português, a revisão introduziu
o tipo legal de crime de “devassa da
vida privada” no Código Penal Moçambicano,
punindo-se com pena de prisão até
um ano e multa correspondente, quem,
sem consentimento e com intenção de
devassar a vida privada das pessoas, designadamente
a intimidade da vida familiar
ou sexual (i) interceptar, gravar, registar,
utilizar, transmitir ou divulgar conversa,
comunicação telefónica, imagem,
fotografia, vídeo, áudio, facturação detalhada,
mensagens de correio electrónico,
de rede social ou de outra plataforma de
transmissão de dados, (ii) captar, fotografar,
filmar, manipular, registar ou divulgar
imagem das pessoas ou de objectos ou
espaços íntimos, (iii) observar ou escutar
às ocultas pessoas que se encontrem em
lugar privado, ou (iv) divulgar factos relativos
à vida privada ou a doença grave de
outra pessoa, não sendo este caso punível
quando praticado como meio adequado
para realizar um interesse público legítimo
e relevante.
E eis que surgem as questões: significará
esta introdução legislativa um reconhecimento
da restrição da liberdade de expressão?
Ou o final dos perfis hollywoodescos
Fabrícia de Almeida
(sócia da HRA Advogados)
e Rui Patrício (sócio da Morais Leitão)
e recheados das redes sociais? Considerar-se-á
o trabalho do jornalista sempre
excluído desta tipificação por orientado
a realizar um interesse público legítimo
e relevante?
As respostas não são nem sim, nem não
– espante-se – mas um típico depende. E
depende mesmo, porque também para
estes pratos existe uma balança: o princípio
da proporcionalidade. Sublinhe-se,
primeiro, que este crime exige expressa e
cumulativamente a ausência de consentimento
do visado e a intenção de devassar
a vida privada. Acresce que a divulgação
dos factos relativos à vida privada
não é punível quando consubstancie um
28 | Exame Moçambique
Perguntas & Respostas
As imagens partilhadas num perfil
pessoal público podem ser usadas
por outros?
Quando colocamos uma fotografia
numa rede social, tanto num contexto
público como num contexto privado
(envio de mensagem privada, por
exemplo), devemos estar conscientes
de que já não controlamos o que é
feito com essa imagem. Pode ser
descarregada e repartilhada, sem que
disso tenhamos sequer consciência.
O legislador manifestou alguma
preocupação com esta falta de
controlo, daí a referência explícita à
utilização ou gravação sem
consentimento, isto é, indevida.
Existindo uma queixa por falta de
consentimento do visado, inicia-se o
processo penal.
A REVISÃO INTRODUZIU
O TIPO LEGAL DE CRIME
DE “DEVASSA DA VIDA
PRIVADA” NO CÓDIGO
PENAL MOÇAMBICANO
meio adequado para realizar o interesse
público legítimo e relevante. Sobre a previsão
desta excepção importa referir que
tal não é o mesmo que dizer que a captação
de uma fotografia num local público
obsta, por si só, à responsabilidade criminal.
Na verdade, é mediante um juízo
de proporcionalidade – eis o regresso da
balança – que a realização de um interesse
público legítimo e relevante, associado,
por exemplo, ao direito a informar
e à liberdade de imprensa, pode justificar
a captação e a divulgação de imagens de
pessoas em eventos públicos ou em contextos
semelhantes.
Ora, foi perante estes verdadeiros duelos,
não raramente inconscientes, de lados e de
direitos, ambos com a devida acomodação
constitucional na CRM, que o direito
substantivo penal veio (tentar) definir uma
barreira, clarificando até onde, afinal, se
pode estender cada lado da barricada. b
Posso fotografar uma estrela da
música num espaço público?
As pessoas de maior notoriedade,
chamadas normalmente de figuras
públicas, também têm direito à
privacidade e a uma vida privada. A
fama não é desculpa para uma
existência permanentemente
escrutinada. Fotografar uma pessoa
contra a sua vontade é um acto de
fotografia ilícita, explicitamente
previsto no Código Penal. Ainda assim,
é evidente que têm um nível menor de
protecção, porque pode ser entendido
um interesse público legítimo e
relevante para a divulgação daquela
fotografia em concreto. Resta a dúvida:
o pequeno-almoço em família de uma
estrela da televisão ou da música (ou
mesmo de um político!) é assim tão
importante para o grande público?
março 2020 | 29
ECONOMIA RELATÓRIO
O VALOR
DA EDUCAÇÃO
PARA O BAD
As despesas destinadas às infra-estruturas e à educação são complementares
e é mais produtivo investir em ambos os sectores, acentua o Banco Africano de
Desenvolvimento, que prevê que Moçambique vá crescer acima da média africana
LUÍS FARIA
EDUCAÇÃO: O capital humano
é dos principais factores
de crescimento
GETTY
30 | Exame Moçambique
A
economia moçambicana
vai crescer este ano acima
da média estimada para
África, com o continente
a registar também progressos,
de acordo com as expectativas
do Banco Africano de Desenvolvimento
(BAD), reflectidas no seu relatório anual
sobre as perspectivas para a economia do
continente, nesta edição fortemente voltadas
para a educação e a inclusão, questões
que ocupam parte substancial das
220 páginas do documento. Moçambique
deverá crescer 5,8% este ano e 4% no próximo.
Já para a economia do continente,
que terá crescido 3,4% em 2019, antecipa-
-se uma melhoria para 3,9%, este ano, e
para 4,1% em 2021. Acontece mesmo que
seis das dez economias mais dinâmicas do
mundo situam-se no continente: Ruanda,
Etiópia, Costa do Marfim, Gana, Tanzânia
e Benim.
O BAD assinala, no entanto, que em
apenas num terço dos países africanos se
verificou um crescimento inclusivo, com
a redução da pobreza e a desigualdade.
O relatório deixa as pistas para uma maior
capacidade de inclusão no crescimento
económico de África. Duas delas são a
intensificação das reformas estruturais
com vista à diversificação da base produtiva
e o reforço da resiliência a episódios
climáticos extremos, como os que afectaram
Moçambique em 2019 e travaram o
crescimento da África Austral, através da
adopção de técnicas agrícolas inteligentes
do ponto de vista climático, fornecendo
às famílias as plataformas de partilha de
riscos. O BAD faz outras recomendações,
como a criação de maior folga orçamental
para atender às necessidades de protecção
social, o aumento da eficiência na
implementação dos programas definidos
e a eliminação dos obstáculos à mobilidade
dos trabalhadores. Para o BAD não
há crescimento inclusivo sem “reforço do
capital humano”, a concretização de estratégias
educativas e a expansão dos programas
de educação e formação, de modo a
melhorar o emprego e a produtividade. Nas
suas perspectivas deste ano, a instituição
financeira continental apela a um “universalismo
progressivo” no que respeita
às despesas com educação, demonstrando
no relatório que as despesas públicas consagradas
às infra-estruturas e à educação
são fortemente complementares, pelo que
investir em ambos os sectores é mais produtivo
do que investir apenas num deles.
CRESCER 5,8% ESTE ANO
Após o abrandamento económico de
2019, na sequência dos ciclones Idai e
Kenneth, em que o PIB terá registado
um crescimento de 1,9%, Moçambique
deverá crescer este ano 5,8% e 4%
em 2021, refere o relatório do Banco
Africano de Desenvolvimento (BAD).
O documento regista o contributo das
descobertas de gás natural, adiantando
que deverão dar ao país a possibilidade
de diversificar a economia, melhorando,
para isso, a sua resiliência e a sua competitividade.
Ao analisar em especial a
economia moçambicana, o relatório
do BAD considera que o sector do gás
poderá transformar a agricultura de
subsistência em agro-indústria, apoiar
a electrificação do país através de diferentes
soluções energéticas e favorecer
outras indústrias, como a dos fertilizantes,
dos combustíveis e da metalurgia.
Para o BAD a exploração do gás natural
deverá igualmente reforçar a estabilidade
macroeconómica, com as crescentes
receitas a contribuírem para excedentes
orçamentais e para um fundo soberano
capaz de absorver choques externos.
O relatório do BAD nota que as necessidades
em infra-estruturas dos projectos
ligados à exploração de recursos
naturais poderá desencadear um ciclo
de investimento privado e público-privado,
alertando para o impacto dos
projectos de exploração de gás sobre
as transacções correntes ao aumentar
consideravelmente o volume de importações,
acentuando as vulnerabilidades
da balança de transacções correntes e
acrescentando “desafios suplementares
em matéria de financiamento dos
Apesar de África ser, entre as regiões em
desenvolvimento, das que consagra uma
parte significativa do PIB à educação, a eficácia
da despesa pública nela efectuada é
baixa e tem incidido mais na quantidade
das pessoas abrangidas do que na quali-
défices e de gestão das reservas internacionais”.
Os indicadores da evolução da economia
nacional citados pelo BAD são
positivos. O aumento dos preços diminui,
com a inflação a baixar de 3,9%, em
2018, para 3,4%, em 2019, em contraste
com o nível elevado registado em 2016
e 2017. O banco central conduz com prudência
uma política monetária de redução
da taxa de juros, tendo a taxa base
descido em mais de 1 000 pontos base
após ter atingido, em 2016, um máximo
de 23,25%. O défice corrente aumentou,
entretanto, para 54,2% do PIB, já
muito alimentado pelo aumento das
importações ligadas ao arranque dos
grandes projectos.
“O investimento directo estrangeiro
(IDE) e os empréstimos externos financiaram
parcialmente o défice, enquanto
as reservas caíram para um nível confortável
de 3,2 mil milhões de dólares
em Agosto de 2019. A pobreza,
embora tenha caído de 52,8% em 2003
para 46,1% em 2015, ainda é elevada e
quase 80% dos pobres vivem em áreas
rurais longe dos serviços públicos básicos.
Moçambique registou uma taxa
de desemprego de 20,7% em 2015 e
o desemprego jovem eleva-se a 30%”,
refere o relatório. O BAD considera que
o défice orçamental, que estima irá corresponder
a 4,5% do PIB este ano, suscita
preocupações quanto à sustentabilidade
da dívida. Sublinha, no entanto,
que o país está a reduzir o seu rácio de
dívida em relação ao PIB, a melhorar a
colecta de impostos e a fazer acordos
para a reestruturação da dívida.
março 2020 | 31
ECONOMIA RELATÓRIO
dade da qualificação recebida. Entre as
medidas propostas para melhorar a qualidade
do ensino, o BAD destaca aquela
que aponta para que o financiamento seja
baseado nos resultados obtidos pelos projectos
educativos. Este critério, que faz
depender o financiamento dos projectos
do seu desempenho, já foi introduzido
em Moçambique, assim como na República
Democrática do Congo, Camarões
e Tanzânia, mas ainda é cedo para avaliar
o impacto de um instrumento de
longo prazo.
O relatório lembra que, apesar de as
doações para a educação em África terem
aumentado nos últimos anos, atingindo, em
2017, 14,8 mil milhões de dólares, o “financiamento
da educação concedido por doadores
a países em desenvolvimento ainda
não atinge metade do défice de financiamento
da educação, estimado em 39,5 mil
milhões de dólares para o período 2015-
2030”. Para o BAD, a melhoria da qualidade
da educação passa pelo aumento das
doações a esta dirigidas e pelo desenvolvimento
de parcerias público-privadas no
ensino e na formação, onde os governos
assumem o papel de orientadores, reguladores
e parceiros. Ainda no sentido de
superar o défice no financiamento da
educação, o relatório defende que sejam
SEIS DAS DEZ
ECONOMIAS MAIS
DINÂMICAS DO MUNDO
ENCONTRAM-SE
EM ÁFRICA
facilitadas as contribuições de natureza
filantrópica do sector privado e que seja
dinamizado o crédito estudantil, as ajudas
financeiras plafonadas e os mecanismos
de partilha de custos, recomendando, de
igual modo, o estudo de “opções inovadoras”
de financiamento para atrair os capitais
privados internacionais para o ensino.
A DÍVIDA E A SUA ESTRUTURA
Embora, no conjunto, a estabilidade
macroeconómica tenha melhorado, o
PIB PER CAPITA (dólares)
A parcela do PIB que cabe a cada africano decaiu depois de 2014 para tornar a crescer em 2018
432
Moçambique
1863
527
2009
África
2109 2136 2161
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
Fonte: African Statistical Yearbook 2019.
591 606 620
CHOQUES EXTREMOS NO PIB
O ciclone tropical Idai que atingiu África
em Março de 2019 foi uma das tempestades
mais mortíferas no Hemisfério
Sul, refere o relatório do BAD, que
lembra que as “inundações e deslizamentos
de terra causados pela tempestade
dizimaram a infra-estrutura
física e as terras agrícolas no Malawi,
em Moçambique e no Zimbabwe e afectaram
mais de 2,6 milhões de pessoas.
Também a maior precipitação média
na África Oriental e Austral e as secas
de 2016 causadas pelo El Niño fizeram
África conhecer os custos económicos
e sociais dos choques climáticos
extremos. Se estes não forem bem
geridos podem ter um impacto significativo
sobre o bem-estar”, sublinha
o BAD. “Os choques climáticos
estão associados a uma contracção,
no curto e longo prazo, da ordem de
528
1921
378
1769 1764
424
504
2 pontos percentuais no crescimento
do PIB. Os desastres naturais perturbam
os sistemas de transporte, causam
danos infra-estruturais e absorvem os
recursos do governo”, refere o relatório.
O BAD assinala que nas regiões africanas
onde o capital humano é apreciável
as catástrofes naturais têm “um
efeito menos negativo na produção”.
Defende uma maior eficiência governamental
e rendimentos per capita
mais elevados, pois estes factores
estão associados a custos macroeconómicos
muito menores. O BAD considera
que no Sul de África, Malawi,
Moçambique e Zimbabwe se enfrentarão
decisões difíceis no domínio das
políticas fiscal e monetária, “uma vez
que os actuais orçamentos públicos
são já insuficientes para atender às
necessidades”.
1817
32 | Exame Moçambique
D.R.
BANCO DE MOÇAMBIQUE: O BAD considera que o banco
central conduz uma política monetária prudente
“monstro” da dívida continua a crescer.
Em termos médios, o peso da dívida no
PIB, que era de 38% há dez anos, ultrapassa
actualmente em África 56% da riqueza
gerada anualmente pelos diferentes países.
O conjunto da dívida pública do continente
atinge cerca de 500 mil milhões
A EFICÁCIA DA DESPESA
PÚBLICA EFECTUADA
NA EDUCAÇÃO É BAIXA
de dólares, correspondendo apenas a
quinta parte a euro-obrigações. “A tendência
ascendente dos rácios da dívida
externa é em parte um subproduto do
final do superciclo das commodities e da
desaceleração do crescimento e das receitas
de exportação, em particular entre
produtores de bens básicos. Mas também
deriva de um ambiente macroeconómico
e de uma governação mais estáveis,
o que permitiu que um maior número
de países africanos aceda pela primeira
vez a mercados de títulos internacionais,
alguns com vencimento a 30 anos”, refere
o documento.
A dívida dos estados africanos modificou
a sua estrutura, reduzindo a dependência
dos empréstimos concedidos pelas
instituições multilaterais e dos credores
oficiais do Clube de Paris, ganhando
um acesso mais amplo ao financiamento
a longo prazo nos mercados internacionais
e aos credores bilaterais emergentes,
como é o caso da China. Por outro lado,
o aumento do recurso ao endividamento
público interno reflecte necessidades de
financiamento elevadas em infra-estruturas.
Traduz também aspectos positivos,
como a diminuição progressiva da inflação,
uma maior credibilidade monetária
e a capacidade de colocar dívida denominada
em moeda nacional junto dos
credores internacionais. Trata-se de “um
contexto em que África não conhece qualquer
crise de dívida sistémica, sendo, no
entanto, necessário melhorar significativamente
as ligações entre dívida e investimento
e entre investimento e crescimento
para garantir sustentabilidade da dívida
a longo prazo”, assinala o BAD.
O PESO DAS REMESSAS
África mantém estável o valor do financiamento
que capta no exterior. Em 2018
O ATRASO
TECNOLÓGICO
AFRICANO
África regista um grande atraso no
emprego das tecnologias da última
revolução industrial. Os países do
continente apresentam um grau
de ligação em rede muito fraco,
salienta o relatório do Banco Africano
de Desenvolvimento (BAD).
Antes de 2017, quase toda a infra-
-estrutura robótica do continente
encontrava-se instalada na África
do Sul. Actualmente, mais de 100
unidades da infra-estrutura robótica
concentram-se no Norte de
África, sendo que cerca de 75%
estão afectas à indústria automóvel
marroquina, distribuindo-se
os restantes 25% pelo Egipto e
Tunísia (base de dados da Federação
Internacional de Robótica).
Se a África do Sul é o país africano
mais avançado em robotização,
é também um dos menos
preparados do mundo na era da
automação inteligente, com uma
pontuação de 41 em 100 no Índice
de Preparação da Automação, que
avalia políticas e estratégias de
inovação, educação e mercado
de trabalho.
março 2020 | 33
ECONOMIA RELATÓRIO
recebeu 205,7 mil milhões de dólares. Contudo,
alterou-se a importância relativa
das fontes de financiamento, com predomínio
para as remessas e o investimento
directo estrangeiro (IDE). As remessas
atingiram 82,8 mil milhões de dólares
em 2018, mais 7% que no ano anterior.
O IDE aumentou 10,9% em 2018, fixando-
-se em 45,9 mil milhões de dólares, mesmo
assim aquém do seu valor mais elevado,
registado em 2015: 56,9 mil milhões de
dólares. As remessas representam mais
EM 2018 ÁFRICA
RECEBEU 205,7 MIL
MILHÕES DE DÓLARES
DO EXTERIOR
de 10% do produto interno (PIB) do Lesoto,
Gâmbia, Cabo Verde, Libéria, Comores
e Egipto, correspondendo em Moçambique,
que se coloca na segunda metade da
tabela das remessas recebidas pelos diferentes
países, a 2,5% do PIB. Quanto ao
IDE, é de salientar que em 2018 África foi
a região que conheceu o mais forte crescimento
dos fluxos de investimento directo
estrangeiro. “Este aumento foi suportado
pela entrada contínua de fundos destinados
à exploração de recursos naturais, certos
investimentos diversificados e uma recuperação
na África do Sul após vários anos
de baixo afluxo. O IDE em África deverá
aumentar 15% em 2019, com uma ligeira
aceleração do crescimento económico
e do progresso na integração regional.
A rentabilidade do IDE recuperou para
6% em 2017 e melhorou ainda mais em
2018, para atingir 6,5% após um longo
declínio desde 2010”, precisa o relatório.
O crescimento de África depende de
múltiplos factores macroeconómicos e,
sobretudo, considera o BAD, dos seus
“motores” a longo prazo: o capital físico,
o capital humano, a mobilização de mão-
-de-obra e a produtividade total dos factores.
Esta última é actualmente mais
elevada no Egipto, Maurícias, Argélia e
Gabão, ficando Moçambique a meio da
tabela que integra o conjunto dos países
africanos. b
DR
ESCOLARIZAÇÃO NA SADC (Taxa % bruta de escolarização no secundário)
As Maurícias e a África do Sul apresentam a taxa de escolarização no ensino secundário
mais elevada entre os países da SADC. Moçambique progride muito nos períodos considerados
África do Sul
Angola
Botswana
Essuatini (Suaz.)
Lesoto
Madagáscar
Malawi
Maurícias
Moçambique
Namíbia
Zimbabwe
Rep. Dem. Congo
Fonte: African Statistical Yearbook 2019.
2008-2014 2001-2007
0 20 40 60 80 100
DESASTRES:
África conheceu
os custos
económicos
e sociais dos
choques
climáticos
34 | Exame Moçambique
março 2020 | 35
PUBLIREPORTAGEM
2ª Edição do Fórum RH
Moçambique 2019
Organizado pela ATITTUDE, uma empresa de consultoria
de RH focada na identificação de moçambicanos na diáspora, realizou-se nos dias
27 e 28 de Novembro de 2019, em Maputo a 2ª edição do Fórum RH Moçambique
com o lema: O Futuro dos Recursos Humanos em Moçambique.
Os mais de 20 especialistas de RH do painel, provenientes
de Portugal, Quénia, África do Sul e Angola partilharam
a sua experiência e visão com uma audiência constituída
por mais de 150 Gestores de Topo e profissionais da área,
dos sectores públicos e privados, provenientes de todo o
país. José Bancaleiro, Managing Parter da Stanton Chase
Portugal, um dos keynote Speakers Internacionais abriu o
evento com uma reflexão sobre transformação dos Recursos
Humanos e os desafios que esta coloca aos profissionais
do sector.
Fernanda Aparício, Professora do instituto Politécnico
de Tomar debrouçou-se sobre o Employer branding proposition
como forma de atracção e retenção de talentos,
que pode ser considerado um problema efectivo, quer em
Moçambique, quer a nível global.
Além destes, o Fórum abordou temáticas relevantes e de
interesse geral como, os desafios da industria petrolífera,
a liderança inclusiva, a gestão dos Millennials, ou formas
de gerir os planos de Sucessão, entre outros.
O Director de RH do Grupo TAP Air Portugal, Pedro
Ramos fechou este evento com uma antevisão sobre O
Futuro dos Recursos Humanos.
O 2º Fórum RH Moçambique foi patrocinado pela Vale
Moçambique, International Youth Foundation, Upstading
Talent Management e a Companhia de Desenvolvimento
do Porto de Maputo.
Evento organizado por:
Evento patrocinado:
36 | Exame Moçambique
Ilídio Caifaz
Representante da International Youth Foundation (IYF)
O que motivou a IYF a patrocinar o Fórum RH ?
Por três grandes razões: quando se fala em RH, estamos a
falar de um público maioritariamente jovem e queremos ter
acesso a quem trabalha com os jovens e fale a mesma linguagem
que nós. A 2ª é que os profissionais de RH são aqueles
que vão fazer a revolução nas empresas, que vão saber atender
as necessidades dos jovens em função do seu potencial,
dos seus pontos fortes e sem receio de arriscar, de apostar na
sua formação. Por isso é preciso que sejam sensíveis às potencialidades
dos jovens. A 3ª é que o Fórum é organizado pela
ATITTUDE da Marlene de Sousa, jovem, entusiasta, cheia
de força, energia e com muita criatividade.
Quais são as iniciativas que a IYF tem desenvolvido e
que podem contribuir para o desenvolvimento do RH?
Estamos por exemplo a começar uma intervenção nos centros
de emprego. O currículo que chamamos “Minha carreira,
meu futuro”, pretende dar uma orientação profissional,
em que os candidatos ao emprego passam por um processo
de preparação antes de serem apresentados às empresas. O
candidato quando chega à empresa já passou por nós, e está
avisado sobre as atitudes, comportamentos e habilidades que
deve ter para ser uma mais-valia.
De que forma pretendem envolver as empresas de RH
nas iniciativas de desenvolvimento dos jovens?
O Fórum RH é uma plataforma que nos dá contacto directo
com profissionais de RH, e esses é que vão fazer a revolução
nas empresas, aportando um recrutamento mais eficaz,
mais efectivo. A IYF é especialista nisso há 30 anos, em todo
o mundo. Abordamos as empresas e leva-mo-las a perceber
que tão valioso como o diploma técnico profissional é a capacidade
de saber ser, saber estar.
Para o futuro de que forma como Country Manager
pretende ter a IYF envolvida neste tipo de iniciativas?
O Fórum RH é uma iniciativa muito importante, excelentemente
organizada pela ATITTUDE e, por isso, queremos
continuar a ser os parceiros preferenciais do Fórum.
Marlene de Sousa
Fundadora da ATITTUDE e do Fórum RH Moçambique.
Qual o balanco que faz da segunda edição do Fórum RH
Moçambique?
A 2ª edição foi a confirmação da relevância deste Fórum.
Mais do que partilha de experiência, o Fórum traz aprendizagem,
oportunidades de negócio e, acima de tudo, inspiração
para os profissionais.
O comentário de um director que afirmou: “quem não participou
deste evento perdeu um ano de trabalho” mostra o
quão importante é este evento e motiva-nos a mim e a toda a
equipa a continuar a fazer cada vez melhor.
Acredito que após esta edição as expectativas para a 3ª
edição são elevadas e neste momento temos uma equipa em
Moçambique e Portugal 100% dedicada a desenhar os temas,
a convidar oradores e fazer com que se mantenha a qualidade
em termos de conteúdo, organização e toda a logística necessária
que faz deste fórum uma grande referencia nacional e
em breve internacionalmente.
O que podemos esperar da 3ª Edição do Fórum RH
Moçambique?
Realiza-se nos dias 17 e 18 de Setembro a 3ª Edição e temos como
tema: A Transformação dos Recursos Humanos” As tecnologias
de informação e a inteligência artificial vão mudar radicalmente
a forma como gerimos as nossas pessoas, resultando
numa necessidade concreta de adaptação a esta nova realidade
sendo fundamental pensar o futuro e as novas profissões.
No dia 17 contamos com a abertura feita por Pedro Ramos
(Director de RH da Tap Portugal) e no dia 18 com a Leyla Nascimento
do Brasil que é a Presidente da World Federation of
People Management.
Contamos com oradores nacionais, pela primeira vez uma
maior intervenção do sector público nos painéis, tendo em
conta que e o maior empregador do país.
Trazer especialistas de RH de diversas geografias e profissionais
responsáveis por gerir pessoas (independentemente da
área), de diversas parte do país é o nosso grande objectivo para
esta edição. Pretendemos criar uma cultura verdadeiramente
inclusiva da profissão e dos profissionais. Só assim teremos
maior impacto no desenvolvimento do RH em Moçambique.
março 2020 | 37
DOSSIER TRABALHO
REABERTA UMA
REVISÃO NECESSÁRIA,
MAS FRACTURANTE
Doze anos após a entrada em vigor da actual Lei do Trabalho, o governo moçambicano
concluiu, em 2019, uma proposta de revisão pontual. Agora, o Executivo empossado em
Janeiro deverá reabrir as discussões. A rigidez na contratação de mão-de-obra estrangeira
é um dos pontos de atrito com o sector privado
PAULO MACHICANE *
38 | Exame Moçambique
LEI LABORAL:
Na agenda do Executivo,
parceiros sociais e juristas
Fonte do novo Ministério do
Trabalho e Segurança Social
refere que o governo recém-
-empossado decidiu reabrir as
discussões sobre a revisão do Lei
do Trabalho, visando o aperfeiçoamento
do documento. “Uma vez que se está a iniciar
um novo ciclo de governação, julgamos
oportuno colher mais sensibilidades
sobre o processo de revisão em curso da
Lei do Trabalho”, afirmou a fonte. Nesse
sentido, prosseguiu, já foram auscultados
os principais sindicatos e a CTA e mais
reuniões com as partes interessadas irão
suceder-se.
“Podemos não ter uma revisão perfeita,
mas queremos uma revisão o mais harmoniosa
possível, porque a Lei do Trabalho
não é para o governo, é para os trabalhadores,
patronato, economia e sociedade
em geral”, destacou. A fonte assinalou
que o novo ciclo de debates sobre a alteração
pontual do diploma cumpre uma
recomendação da anterior Assembleia
da República, que aconselhou no sentido
do enriquecimento do texto. “Durante
as audições feitas em sede de comissão
especializada na AR, houve inquietações
O GOVERNO
RECÉM-EMPOSSADO
DECIDIU REABRIR AS
DISCUSSÕES SOBRE
A REVISÃO DO LEI
DO TRABALHO
à volta da proposta de revisão e foi vista
a necessidade de mais discussões”, afirmou.
O governo pretende que o processo
termine ao longo deste ano, acrescentou.
Na sequência da formação do novo
governo moçambicano, o Presidente da
República, Filipe Nyusi, decidiu reestruturar
o Ministério do Trabalho, Emprego
e Segurança Social, criando no seu lugar o
Ministério do Trabalho e Segurança Social.
A vertente do emprego passa para outro
gabinete: foi criada a Secretaria de Estado
da Juventude e Emprego, dirigida por
Osvaldo Petersburgo, que foi vice-ministro
do Trabalho e Segurança Social no mandato
de 2015-2020. Filipe Nyusi já tinha
sinalizado no seu discurso de tomada de
posse, a 15 de Janeiro, que o emprego para
os jovens seria uma prioridade.
A nova ministra do Trabalho e Segurança
Social passa a ser Margarida Talapa,
antiga chefe da bancada da Frente de
Libertação de Moçambique (FRELIMO)
na Assembleia da República. Talapa substitui
no cargo Vitória Diogo, que ocupou
a pasta nos últimos cinco anos e que foi
nomeada secretária de Estado na província
de Maputo.
O QUE CONSTA NA PROPOSTA
Entre as mudanças de fundo que constam
no texto depositado pelo Executivo
moçambicano no Parlamento, avulta a
imposição de duas renovações nos contratos
com trabalhadores estrangeiros para
um máximo de seis anos, o alargamento
da licença de maternidade de 60 para
90 dias no sector privado, em linha com
o que já acontece no aparelho do Estado,
e de paternidade, de um dia para sete
dias a cada dois anos. A limitação para
as empresas da celebração de contratos
de trabalho a termo certo aos primeiros
oito anos de actividade, introdução do
pluriemprego, teletrabalho, aumento da
idade mínima para o trabalho de 15 para
18 anos (mantendo os 15 anos para casos
excepcionais e mediante autorização do
representante legal), bem como a proibição
de revistas intrusivas para efeitos de
segurança, são outras das mexidas prevista
na Lei do Trabalho. É também alargado
o leque de parentes cujo falecimento dá
direito a cinco dias de faltas justificadas,
passando a incluir também a madrasta,
sogros, genros e nora.
O governo moçambicano não tem dúvidas
sobre o imperativo da revisão, defendendo
que as transformações ocorridas
desde 2007, ano em que foi aprovada a
norma em vigor, justificam mudanças
“pontuais”. “Esta Lei [do Trabalho] está
em vigor há mais de dez anos e há necessidade
premente de ajustá-la ao actual
estado de desenvolvimento económico e
social”, disse a então ministra do Traba-
março 2020 | 39
DOSSIER TRABALHO
lho, Emprego e Segurança Social, Vitória
Diogo, no final da aprovação da proposta
pelo Conselho de Ministros, a 19 de Março
de 2019.
A governante explicou que há uma necessidade
“urgente de alinhar o ordenamento
jurídico nacional” às convenções internacionais,
como a convenção sobre o trabalho
forçado, saúde e segurança nas minas
e as piores formas de trabalho infantil.
Depois de terem concordado com o princípio
e a necessidade de revisão da Lei do
Trabalho, os empregadores repudiaram a
proposta depositada pelo Executivo com
o argumento de que as suas contribuições
não foram atendidas no documento.
COMPROMISSO: Para a
OTM, a proposta do
Executivo valoriza os
trabalhadores
“É UM RISCO”, DIZEM PATRÕES
A Confederação das Associações Económicas
de Moçambique (CTA), principal
organização patronal do país, entende
que, caso passem as modificações inseridas
no texto em causa, a viabilidade económica
das empresas e o emprego serão
colocados em risco. A rigidez na contratação
de mão-de-obra estrangeira, o regime
dos contratos a termo certo para as pequenas
e médias empresas nos primeiros anos
de actividade e os critérios de indemnização
são um travão ao desenvolvimento
do sector empresarial, considera a CTA.
A limitação na contratação de mão-de-
-obra estrangeira “pode retrair sobremaneira
o investimento estrangeiro, pois a
mesma não permitirá que o investidor ou
o seu representante trabalhe na sua própria
empresa por mais de seis anos”, defendeu
a firma de consultoria jurídica que assistiu
a CTA na elaboração do parecer à proposta
de revisão da lei. Para o consultor, a
limitação da renovação contratual com os
estrangeiros devia ser removida de todo.
Outra matéria alvo de grande divergência
entre o Executivo e o patronato prende-
-se com a celebração de contratos a termo
certo para as pequenas e médias empresas.
A proposta do governo é que as pequenas
e médias empresas podem celebrar livremente
contratos a termo certo durante
oito anos, após o início de actividade, mas
a CTA advoga um período de dez anos.
Os empregadores também repudiam os
novos critérios de cálculo da indemnização
40 | Exame Moçambique
A ORGANIZAÇÃO
DOS TRABALHADORES
DE MOÇAMBIQUE
CONSIDERA
QUE A PROPOSTA
DO EXECUTIVO
CORRESPONDE
AO ACORDO POSSÍVEL
porque o consideram incomportáveis para
as empresas. Para a Organização dos Trabalhadores
de Moçambique (OTM-Central
Sindical), a proposta apresentada pelo
Executivo corresponde ao acordo possível,
no âmbito de um esforço de compromisso
que exigiu cedências de parte a parte.
“Acreditamos que nesta nova legislatura
[que começa em 2020] é provável que se
chegue a algum consenso para que a lei
entre efectivamente em vigor. Esta proposta
vai, de certo modo, ‘humanizar’ o
trabalho”, declarou o secretário-geral da
OTM-Central Sindical, Alexandre Munguambe.
A proposta tenta valorizar as pessoas
que realmente criam riqueza neste
país, que são os trabalhadores, prosseguiu.
O especialista em Direito do Trabalho
e consultor do governo na actual Lei do
Trabalho, Casimiro Duarte, defende que
a proposta não enfrenta as lacunas prevalecentes
na norma ainda em vigor e que,
antes da revisão, a prioridade devia ser a
concretização de muitos artigos em sede
de um regulamento.
“Eu acho que tem de haver uma análise
mais profunda da razão de ser de cada uma
das alterações que estão a ser introduzidas,
e ao mesmo tempo estudar se não é
possível resolver muitas das questões que
estão a ser propostas através de um regulamento,
porque mexer constantemente na
lei não é muito aconselhável. Quando se
falou de uma revisão pontual, estávamos
a ver, provavelmente, modificações aqui
e acolá”, declarou. b
MERCADO DE TRABALHO:
PROCURA-SE CONSENSO
A proposta de revisão das leis laborais
apresentada pelo anterior governo
divide representantes empresariais e
sindicais. A própria proposta de revisão
poderá ser “revista”. A EXAME
quis saber quais os argumentos de
empresários, sindicatos e juristas em
relação à necessidade de mexer na
regulamentação do vínculo laboral e
como olham para a última proposta
de lei em particular.
O secretário-geral da Organização
dos Trabalhadores de Moçambique
(OTM), Alexandre Munguambe, diz-
-se confortado com o texto da proposta
e, em síntese, considera que
“vem tentar valorizar as pessoas que
realmente criam riqueza neste país: os
trabalhadores”. O lado sindical valoriza
os ganhos conseguidos em matéria
de licença de maternidade, idade
de acesso ao trabalho, contratação de
estrangeiros, presunção jurídica do
contrato de trabalho e período experimental.
Já quanto à fundamentação
do despedimento, os sindicalistas não
obtêm tudo o que querem da proposta
de lei. Posição diferente tem Agostinho
Vuma, presidente da Confederação
das Associações Económicas (CTA).
A proposta significa mesmo “recuos
em relação a conquistas anteriores do
sector privado. Para os empresários, a
proposta de revisão da legislação laboral
não beneficia a dinâmica do mercado
de trabalho ao não promover a
mobilidade laboral e coloca mesmo
mais dificuldades à tesouraria e às suas
operações. A obrigação de comunicar
com 30 dias de antecedência a transferência
de um trabalhador dificulta
a mobilidade e pode afectar a produção,
e as novas disposições quanto ao
regime de férias trazem complicações
acrescidas às tesourarias. A proposta
de que o trabalhador passe a ter direito
a 30 dias de faltas justificadas anualmente
também penaliza a actividade
empresarial, de acordo com a CTA.
Para Agostinho Vuma, “a lei penaliza
os empresários que tenham tomado
medidas para evitar o encerramento
da unidade produtiva”.
Casimiro Duarte, consultor do
governo na elaboração da legislação
em vigor, considera que a sua revisão
é inoportuna e que seria preferível
regulamentar aspectos que nela
estão pouco esclarecidos e representam
custos avultados para as empresas.
O especialista diz que a proposta
de revisão ainda traduz mais confusões
e que as alterações introduzidas deveriam
ser mais bem explicadas.
Para Paula Duarte Rocha, sócia da
HRA Advogados, a proposta de revisão
vem clarificar vários aspectos da
legislação laboral, entre os quais o que
classifica como “áreas cinzentas” nos
direitos dos trabalhadores, como os
pormenores no contrato de trabalho
a termo certo e a presunção da relação
laboral, cabendo ao empregador
provar que existe uma relação de
trabalho. A sócia da HRA Advogados
considera que o processo de alteração
deve ser acompanhado por empresas,
trabalhadores e juristas.
Balanço feito, a proposta de lei do
último governo colhe aprovações e
objecções. Esta últimas vêm sobretudo
dos representantes das empresas,
as quais deviam ser das principais
beneficiárias da legislação em vigor
no mercado de trabalho em termos
da racionalização dos custos, flexibilização
da actividade e agilização
dos negócios.
* Serviço especial da agência Lusa para a EXAME.
março 2020 | 41
DOSSIER TRABALHO
EMPRESAS COM MAIS
RESPONSABILIDADES
Paula Duarte Rocha, sócia da HRA Advogados, assinala que a proposta de lei
que revê o quadro jurídico laboral é mais “actual”, conferindo responsabilidades
acrescidas aos empregadores
LEVY-SERGIO MUTEMBA*
Em Moçambique está em discussão
uma nova Lei do Trabalho
que introduz alterações legislativas
importantes para os agentes
económicos, privados e públicos.
Antecipando grandes investimentos
directos estrangeiros no sector energético
ao longo dos próximos anos e a criação de
empresas que estes vão suscitar, o Estado e
o governo são naturalmente levados a proceder
a actualizações permanentes do quadro
legal moçambicano, em particular o do
mercado do trabalho. Por exemplo, segundo
o Ministério do Trabalho, Emprego e Segurança
Social (MITESS) e o Instituto Nacional
de Petróleo (INP), cerca de 5 mil profissionais
nacionais e 12 mil estrangeiros serão contratados
ao longo do desenvolvimento da exploração
da bacia do Rovuma pela Anadarko.
No decurso de um seminário organizado
em Maputo no último ano, o gabinete HRA
Advogados destacou o carácter “mais actualizado”
da nova lei, na medida em que “reafirma
o poder de aplicação do princípio do
tratamento mais favorável ao trabalhador na
relação entre contrato de trabalho e outras
fontes, assim como no critério de decisão do
concurso entre instrumentos de regulamentação
colectiva”. Paula Duarte Rocha, sócia
da HRA Advogados, apontou ainda a flexibilização
da gestão do tempo de trabalho,
a uniformização do período de férias para
30 dias de trabalho efectivo e o reforço da
protecção na maternidade e na paternidade
como pontos favoráveis a destacar na nova lei.
PAULA DUARTE ROCHA:
A proposta de revisão
da lei do trabalho é
clarificadora
42 | Exame Moçambique
Em entrevista à EXAME, Paula Duarte
Rocha assinala também o papel do sector
privado como principal impulsionador das
alterações à Lei do Trabalho. Apostando na
assessoria a clientes estrangeiros na implementação
e desenvolvimento da sua actividade
em Moçambique, a HRA está presente
no país desde 2012, sendo constituída por
uma equipa de advogados moçambicanos
sob a liderança de dois sócios, ambas do
género feminino.
Quais as principais áreas da lei que
serão alteradas?
Esta nova proposta da nova lei vem reforçar
os direitos do trabalhador naquilo que são
áreas cinzentas, tal como a clarificação dos
pormenores dos contratos a termo certo e
a presunção da relação laboral, no sentido
que cabe ao empregador e não ao trabalhador
provar que existe uma relação de trabalho.
A nova lei regulará também o trabalho
intermitente ou prestado de forma não contínua,
incluindo o tratamento dos períodos
de actividade e de suspensão dos mesmos.
É também de referir que a nova lei incluirá
normas sobre o trabalho à distância ou teletrabalho
prestado, com recurso a meios das
tecnologias de informação e comunicação,
e novas clarificações acerca do regime de
pluralidade de empregadores para permitir
que um trabalhador possa ter mais de
que um empregador em caso de desconforto
económico.
Qual poderá ser o impacto da nova
lei sobre o trabalho informal?
Cremos que a nova lei desincentivará as
empresas a recrutarem trabalhadores num
quadro de uma relação não documentada.
Haverá, sobretudo, uma maior necessidade
por parte dessas empresas de esclarecer se
se trata de uma relação de trabalho ou de
uma relação de prestação de serviços, que
são duas situações diferentes com impactos
diferentes no trabalhador.
No entanto, para uma lei do trabalho
ser eficiente presumimos que tem de
existir disponibilidade em termos de
competências e talentos individuais.
Qual pode ser o alcance desta proposta
de lei, a ser aprovada, sem que haja,
“A NOVA LEI REAFIRMA
O PODER DE APLICAÇÃO
DO PRINCÍPIO DO
TRATAMENTO MAIS
FAVORÁVEL AO
TRABALHADOR
NA RELAÇÃO ENTRE
CONTRATO DE
TRABALHO E OUTRAS
FONTES”
em paralelo, uma vontade política
muito forte em relação à formação
profissional?
Ao nível da legislação laboral, há sempre um
esforço muito grande por parte do governo
e da sociedade civil em transmitir e trazer
ao conhecimento do público o modo como
são reguladas as relações de trabalho. Portanto,
estamos em crer que, no momento da
entrada em vigor da lei, haverá esse esforço.
Ao mesmo tempo, os próprios empregadores
têm de estar cientes das eventuais responsabilidades
acrescidas e, aí, cremos que
o papel dos advogados e dos juristas será
muito importante, ajudando a entender e a
perceber o novo quadro legal.
Haverá um período de vacatio legis,
ou seja, um período que decorre
entre a entrada em vigor da lei e a sua
aplicação?
É comum, no âmbito do nosso ordenamento
jurídico, a verificação de um período de vacatio
legis. Porém, há vezes em que as leis são
aprovadas e entram imediatamente em vigor.
Nestas circunstâncias, o acompanhamento
do processo de aprovação de qualquer nova
lei por parte das empresas, dos trabalhadores
e, principalmente, dos juristas, é muito
importante para permitir que sejam tempestivamente
acomodadas no momento em que
a nova legislação entre em vigor.
Todos os trabalhadores, desde os de
uma empresa local de construção ao
quadro técnico de uma multinacional,
serão afectados da mesma maneira
com a nova lei?
A lei aplicar-se-á linearmente e do mesmo
modo aos diferentes tipos de trabalhadores.
A única diferença que pode haver prende-
-se com os períodos probatórios concedidos
às empresas para avaliarem as qualificações
de um quadro técnico superior, como o trabalhador
de um banco, por exemplo. Mas
isso não é novidade e já estava previsto na
lei em vigor.
Como é regulada a transferência das
competências ou dos conhecimentos
por parte das empresas e/ou
trabalhadores estrangeiros?
As alterações previstas na nova lei não abarcam
especificamente a contratação de mão-
-de-obra estrangeira. Mas, no âmbito do
diploma que regula actualmente o regime
de contratação de mão-de-obra estrangeira,
estes trabalhadores têm a obrigação
de transferir conhecimentos para os trabalhadores
nacionais. Claro que é difícil
garantir a ocorrência efectiva dessa transferência,
mas as empresas têm a obrigação
de ter aprovado um plano de formação dos
trabalhadores locais que permite avaliar
em quem medida a dependência dos trabalhadores
estrangeiros pode ser reduzida
ao longo do tempo. Depois, cabe ao Ministério
do Trabalho confirmar, por exemplo,
se o trabalhador X, supostamente designado
para receber formação sobre a utilização do
programa informático Excel, recebeu, de
facto, essa formação.
Qual é o nível de cooperação ou
interacção em Moçambique no
contexto das alterações importantes da
Lei do Trabalho?
O que se nota com frequência é que o sector
privado, incluindo as associações e confederações
profissionais, são os principais promotores
ou impulsionadores das alterações
à Lei do Trabalho, naturalmente no âmbito
daquilo que os afecta mais directamente.
O governo, por outro lado, raramente adopta
novas medidas sem o envolvimento dos
próprios sindicatos. Nota-se que as negociações
se concentram nas alterações ligadas
ao salário. b
* Serviço especial da agência Lusa para a EXAME.
março 2020 | 43
DOSSIER TRABALHO
PROPOSTA DE REVISÃO
NÃO ATACA LACUNAS
O antigo consultor do governo moçambicano na elaboração da Lei do Trabalho actualmente
em vigor e especialista em Direito do Trabalho, Casimiro Duarte, considera inoportuna
a revisão do diploma.
PAULO MACHICANE *
Casimiro Duarte, docente de
Direito do Trabalho na Universidade
Eduardo Mondlane
(UEM), critica a falta de termos
de referência da proposta
de revisão da Lei do Trabalho, assinalando
que esta situação obscurece os fundamentos
por detrás das modificações que se pretendem
introduzir. Advoga um regime específico
para figuras já conhecidas, como o
trabalho intermitente, e para novas, como o
teletrabalho, para não haver margem para
ambiguidades. “Eu acho que tem de haver
uma análise mais profunda da razão de ser
de cada uma das alterações que estão a ser
introduzidas e, ao mesmo tempo, estudar
se não é possível resolver muitas das questões
que estão a ser propostas através de
um regulamento, porque mexer constantemente
na lei não é muito aconselhável.
Quando se falou de uma revisão pontual,
estávamos a ver, provavelmente, modificações
aqui e acolá”, declarou.
CASIMIRO DUARTE:
A proposta de revisão
laboral deixa problemas
por resolver
Teve um papel fundamental na
elaboração da Lei do Trabalho em
vigor. Considera oportuna a revisão
em curso, após doze anos de vigência
do actual texto?
Eu não avalio a questão em função do
tempo mas em função da necessidade,
porque até podia ser uma lei que estivesse
a vigorar há um mês e se manifestasse
a necessidade de fazer a respectiva
44 | Exame Moçambique
alteração, por isso olho mais pela necessidade
que existe. Ao invés de se estar a
fazer uma revisão da lei — ainda que lhe
tenham chamado revisão pontual —, se
calhar a prioridade devia ser a regulamentação
da actua Lei do Trabalho. Este
é um aspecto.
O segundo aspecto tem a ver com o facto
de que se inicia um processo de revisão em
que não ficaram muito claros quais são os
termos de referência. Como consequência,
neste momento não há muita clareza
sobre o que vai ser alterado e porque está
a ser alterado.
São estes dois aspectos, que considero
prévios, que, antes de se iniciar o processo,
deviam ter sido considerados; verificar,
por um lado, se não valeria a pena
fazer apenas a regulamentação da actual
lei, por forma a suprir uma série de lacunas,
e, por outro lado, ficar muito claro o
que se pretende alterar e porque se está
a alterar. E, infelizmente, do que me foi
dado a ver, porque não participei directamente
no processo, há uma série de figuras
que foram introduzidas ou estão a
ser introduzidas sem terem sido resolvidos
os problemas que a anterior lei traz.
Ao invés de se estar a resolver um problema,
do meu ponto de vista podemos
estar a criar um problema ainda maior.
Que aspectos problemáticos deviam
ser sanados na lei em vigor ou
acautelados na proposta de revisão?
Eu vou só apontar alguns, mas são vários.
Por exemplo, no âmbito da contratação,
temos o contrato a termo certo que não
deixa claro se é permitida ou não a chamada
contratação sucessiva. O que é que
isso quer dizer? Se eu celebrei um contrato
a termo certo com um trabalhador por um
período, por exemplo, de um ano, quando
terminar esse período ele fica uma semana
ou um mês em casa e eu volto a contratá-lo.
Será que há continuidade entre estes dois
contratos ou devem ser considerados díspares?
E isso tem uma consequência, porque,
efectivamente, se forem considerados
contratos sucessivos, no final, quando for a
contar o tempo de serviço do trabalhador,
será maior do que se estiver a considerá-los
isoladamente. A lei não resolve essa questão
“NÃO DEVIA SER
UMA PREOCUPAÇÃO
INCREMENTAR O
NÚMERO DE HORAS”
e tem havido discussões sérias, mesmo nos
tribunais, porque em determinadas áreas
de actividade, por exemplo na construção
civil, é comum o empreiteiro contratar por
períodos curtos em função da actividade
que o trabalhador vai realizar; findo esse
período é dispensado, mas se entretanto
ele tiver outra obra volta a contratar e a
questão é que o trabalhador, quando se
vai queixar, quando termina a relação de
trabalho, diz: “Eu estou a trabalhar desde
2000.” No entanto, com intervalos entre
contratos em que é que ficamos? A lei não
clarifica. Podíamos também falar da questão
dos despedimentos. No processo disciplinar
há uma lacuna em relação à fase
de instrução, ou seja, se o trabalhador,
quando se está a defender, pedir à entidade
empregadora para realizar determinadas
diligências probatórias, a lei não
estabelece claramente qual é o período de
que dispõe a entidade empregadora para
realizar essas tais diligências probatórias.
Consequência: se a entidade empregadora
descurar a realização das diligências, o trabalhador,
naturalmente, e o sindicato, que
é chamado também para emitir um parecer,
não vão aceitar o documento [da decisão
do processo disciplinar]. Vão dizer que
foi pedida a realização de diligências probatórias
que não foram realizadas devido
a questões meramente formais.
As entidades patronais entendem
que certos aspectos da actual Lei do
Trabalho são um travão à mobilidade
e flexibilidade laboral e à criação de
emprego. Que comentário lhe merece
esta análise das entidades laborais?
Do meu ponto de vista, um factor que
podia até entusiasmar as entidades empregadoras,
nesse contexto de uma revisão
pontual da Lei do Trabalho, seria mais
nesta perspectiva, a de procurar resolver
as lacunas da actual Lei do Trabalho,
de procurar solucionar alguns aspectos.
As entidades patronais perceberam que
na proposta de revisão que estava a ser
apresentada não se estavam a resolver os
problemas que tinham. Pelo contrário,
estavam a ser criadas situações que, provavelmente,
vão contribuir para mais complicações.
Perante este facto, acho que faz
todo o sentido eles sentirem-se defraudados.
Quando se diz “vamos avançar para
uma revisão” e não está muito claro o que
vamos rever e porque estamos a rever, é
óbvio que em algum momento pode desagradar
a uma das partes envolvidas no
processo de revisão legislativa.
A introdução da decisão arbitral
obrigatória seria uma forma simulada
de reintroduzir a obrigatoriedade da
prévia mediação laboral?
Não, o que se trata em relação à mediação
obrigatória é mais para salvaguardar
os interesses de natureza pública porque,
como sabe, há empresas que perseguem
interesses públicos, para toda a sociedade.
Alguns sectores do patronato
manifestaram preocupação com
a possibilidade de redução dos
períodos probatórios porque lhes
reduz a margem de avaliação
das aptidões profissionais dos
trabalhadores. Como olha para essa
inquietação?
Acho que faz sentido. Vamos pegar num
caso concreto: eu contratei um técnico
médio ou superior na área de construção
civil para ele estar à frente de uma obra.
Não é possível em menos de seis meses
avaliar se ele tem capacidade ou não de
orientar a construção de uma obra. Convenhamos
que isso não faz sentido.
Em suma, não está optimista quanto
a esta revisão?
Tenho reservas de que, efectivamente, este
momento seja oportuno. Acho que tem
de haver uma análise mais profunda da
razão de ser de cada uma das alterações
que estão a ser introduzidas e, ao mesmo
tempo, deve-se estudar se não é possível
resolver muitas das questões que estão a ser
propostas através de um regulamento. b
* Serviço especial da agência Lusa para a EXAME.
março 2020 | 45
DOSSIER TRABALHO
VALORIZAR
AS PESSOAS
O secretário-geral da Organização dos Trabalhadores de Moçambique (OTM), Alexandre
Munguambe, considera que a nova proposta é um passo para a “humanização do sector
do trabalho”, valorizando as pessoas que realmente criam riqueza em Moçambique
ESTÊVÃO CHAVISSO *
As quase 150 páginas
da proposta de lei
apresentam grandes
novidades, em
aspectos essenciais,
em relação à legislação de 2007?
Acho que sim. A nova proposta de lei tem
algumas alterações que poderão beneficiar
os trabalhadores. Por exemplo, a licença
de maternidade passa para 90 dias e a de
paternidade passa de um para sete dias.
Em relação à admissão ao trabalho há também
novidades pela positiva. Nesta nova
proposta, a idade mínima passa para os
18 anos. Excepcionalmente, o empregador
pode admitir um menor com, pelo menos,
15 anos, mas mediante autorização escrita
do seu representante legal.
ALEXANDRE MUNGUAMBE:
A proposta de lei tem
alterações que poderão
beneficiar o trabalhador
O que pensa sobre as regras para contratação
de estrangeiros?
Na contratação de estrangeiros foi introduzida
uma nova matéria no artigo 31.º,
que estabelece que a contratação em organizações
não governamentais estrangeiras
será decidida por um despacho do ministro
que superintende a área do trabalho.
Portanto, há uma nova abordagem que
vai melhorar as coisas para os moçambicanos.
Durante o debate, nós propusemos
a contratação de trabalhadores estrangeiros
sujeita a apenas a duas renovações e
que tem de ter a componente de formação
de moçambicanos. Entendemos que
46 | Exame Moçambique
o governo de Moçambique tem de criar
as condições para resolver os problemas
do desemprego dos seus cidadãos e não
procurar resolver o desemprego dos cidadãos
de outros países. No geral, acreditamos
que há melhorias.
Acham que será uma realidade
em breve?
Nós já fomos notificados pelas comissões
especializadas no Parlamento, em
encontros nos quais emitimos a nossa opinião.
Acreditamos que nesta nova legislatura
é provável que se chegue a algum
consenso para que a lei entre, efectivamente,
em vigor. Esta proposta vai,
de certo modo, “humanizar” o sector.
A proposta vem tentar valorizar as pessoas
que realmente criam riqueza neste
país: os trabalhadores.
O mercado do trabalho vai passar
a funcionar melhor com a aprovação
da nova lei?
Sim, acaba por dar algum trabalho decente
às pessoas. É necessário que não se sintam
trabalhadores descartáveis. Tem de haver
garantias para os trabalhadores e não
podem viver com o medo de perderem, a
qualquer momento, o emprego. Essa segurança
vai garantir a estabilidade social e
económica. É verdade que não conseguimos
ver tudo o que queríamos incluído na lei,
na medida em que os empregadores também
têm razões para não aceitarem algumas
das nossas exigências. Mas estamos
confortados com aquilo que acordámos.
Quais são os pontos que acham que
ficaram por ser melhorados?
Um dos principais tem que ver com a
questão da dispensa dos trabalhadores.
Nós entendemos que era preciso olhar
para este ponto de maneira a evitar as
demissões sem motivações claras. Neste
caso a questão é que o trabalhador tem
de sentir que faz parte da empresa e não
ir para o serviço com receio de que, a
qualquer momento, pode ser dispensado.
É preciso que os trabalhadores sintam que
aquela empresa também é deles. Deste
modo, eles também vão dar tudo para o
aumento da produção.
“TENTÁMOS GARANTIR
QUE A ENTIDADE
EMPREGADORA
APRESENTE UMA
JUSTIFICAÇÃO
COLECTIVA PARA O
DESPEDIMENTO”
Em relação à presunção jurídica da
existência de um contrato de trabalho,
este será estabelecido, se aquela
ocorrer, por tempo indeterminado.
Até que ponto isto beneficia
o trabalhador?
Não havendo um contrato, em caso de conflito
considera-se que um trabalhador foi
empregue por tempo indeterminado. Isso
é uma forma de também responsabilizar
a entidade empregadora a formalizar os
contratos de trabalho. Isto permite também
responsabilizar a empresa em caso
de problemas.
Por outro lado, encurta-se o período
probatório para os trabalhadores
de nível médio e inferior. Os tempos
máximos fixados são suficientes para
as empresas avaliarem
o novo trabalhador?
Entendemos que sim. Note que, quando o
trabalhador está num período probatório,
a empresa não precisa de uma justificação
para o dispensar. A empresa coloca-o a trabalhar
durante um determinado período
de tempo e depois dispensa-o. Com esta
nova lei, o tempo fixado é suficiente para
a avaliação do trabalhador, mas passado
esse período a empresa é obrigada a contratar
o trabalhador definitivamente ou, pelo
menos, a explicar que não o vai contratar.
As indemnizações decorrentes da
rescisão do contrato de trabalho por
motivos estruturais, tecnológicos ou
de mercado são razoáveis para os
trabalhadores?
Neste ponto nós até tentámos “puxar mais”,
mas não conseguimos. Os empregadores não
permitiram e, porque eles também cederam
nalguns pontos, preferimos também
dar o braço a torcer neste ponto. Mas reitero
que tentámos proteger o trabalhador.
O despedimento colectivo abrange
agora oito contratos de trabalho
nas pequenas empresas. Isso é um
avanço?
Este ponto esteve relacionado com o das
indemnizações. O que tentámos garantir
na proposta de lei foi que a entidade empregadora
apresente uma justificação colectiva
para o despedimento. Primeiro é necessário
avisar a administração do trabalho sobre
a necessidade de despedimento, porque
o que notamos é que algumas empresas
começam a despedir sem motivos estruturais:
é preciso que se prove que há mesmo
necessidade de o fazer.
Seja como for, os conflitos laborais
passam a ser submetidos à mediação.
Vai facilitar a sua resolução?
A mediação permite que os assuntos sejam
tratados amigavelmente. É preciso recordar
que nesta nova lei nós propusemos que
houvesse mediação na ausência dos tribunais
de trabalho, que agora são dois, na
província e na cidade de Maputo. Os tribunais
de trabalho são recentes em Moçambique.
Mas queremos que a mediação seja
feita antes mesmo de o assunto chegar ao
tribunal, na medida em que essa prorrogativa
é onerosa em muitos casos e o clima
que gera não é muito bom.
São alargados os motivos de falta
justificada e outras ausências passam
a ser justificadas.
Aqui a novidade é a extensão da lista de
parentes. Agora, com a nova proposta
de lei, em caso de falecimento de um
genro ou de uma nora a pessoa passa a
ter direito a faltar durante cinco dias. Esta
é a grande novidade e justa, na medida
em que nas culturas africanas estas duas
figuras (genro e nora) são muito importantes
e são parte directa da família.
É preciso que se entenda que o trabalhador
é humano. b
* Serviço especial da agência Lusa para a EXAME.
março 2020 | 47
DOSSIER TRABALHO
REVISÃO NÃO FAVORECE
MERCADO DE TRABALHO
Para Agostinho Vuma, presidente da CTA, a revisão da legislação laboral proposta pelo
anterior governo não favorece a dinâmica do mercado de trabalho, cria mais problemas
às empresas e não contribui para captar mais investimento e criar mais emprego
LUÍS FARIA
A
proposta de legislação de
alteração das regras laborais
pelo anterior governo,
e que ainda está em cima da
mesa, não estimula as PME
a inserirem mais gente na área do trabalho
formal, estando mais preocupada em
garantir os postos de trabalho actuais do
que em contribuir para a criação de novos
postos de trabalho, o que, considera Agostinho
Vuma, presidente da CTA, Confederação
das Associações Económicas, contrasta
com os discursos governamentais virados
para a atracção de investimento e criação
de emprego. Para a CTA, as incongruências
da proposta legislativa são muitas, os formalismos
demasiados, há recuos em relação
a conquistas anteriores do sector privado e
muitas figuras agora introduzidas têm de
ser regulamentadas. Mais: a iniciativa legislativa
não promove a mobilidade laboral, as
novas disposições quanto ao regime de férias
afectam a tesouraria das empresas e as faltas
justificadas até 30 dias “podem abrir espaço
para quebra de produção na empresa”. O
presidente da maior estrutura empresarial
moçambicana analisa, a pedido da EXAME,
os pontos mais polémicos da lei proposta.
É difícil concluir, da perspectiva dos empresários,
que a revisão da legislação laboral,
tal como figura na proposta que ainda está
sobre a mesa, vá ao encontro da dinâmica
do mercado de trabalho ou das necessidades
do tecido empresarial. Muito separa,
AGOSTINHO VUMA:
A proposta de lei laboral
dificulta a mobilidade
e traz mais problemas
às empresas
48 | Exame Moçambique
com efeito, os empresários da reformulação
da legislação laboral avançada pelo
governo. Será que o novo Executivo vai
mudar de agulha?
As quase 150 páginas da proposta
de nova Lei do Trabalho apresentam
grandes novidades, em aspectos
essenciais, em relação à anterior
legislação de 2007?
Do ponto de vista de mudanças foram feitas
alterações profundas à actual lei. Algumas
alterações positivas e outras negativas, que
com certeza virão alterar a vida das empresas.
Infelizmente, as alterações introduzidas
mantêm, de certa forma, a tendência que se
tem vindo a registar nas últimas alterações
legislativas sobre a matéria, o que contrasta
com os discursos governamentais tendentes
a atrair o investimento e a gerar emprego
(com o consequente combate à pobreza). A
título de exemplo: o excesso de formalismo
continua presente, com destaque especial
para as regras do processo disciplinar, o que
evidencia a primazia da justiça formal em
detrimento da justiça material, tendo as decisões
tomadas nesta perspectiva um impacto
negativo na disciplina e produtividade no
trabalho. Por fim, é importante realçar que
Moçambique tem neste momento 650 mil
trabalhadores inscritos no sector formal,
que são os pagantes de impostos e Segurança
Social. Porém, temos 14 milhões de
habitantes em idade de emprego e que formalmente
expressaram o seu interesse em
trabalhar no Censo de 2017. Assim, temos
de ter uma legislação laboral que tenha a
simplicidade e flexibilidade necessária que
permita às PME (que em qualquer país são
as grandes geradoras de emprego) o alargamento
do trabalho formal.
O mercado de trabalho vai passar a
funcionar melhor com a aprovação da
nova lei?
Existem na proposta algumas alterações
que de certeza vão melhorar a dinâmica
do mercado de trabalho, mas infelizmente
essas alterações são insignificantes. Preocupa-nos
bastante o facto de o proponente
ter-se preocupado mais em garantir os postos
de trabalho actuais e não ter olhado para
as alterações que possam contribuir para a
“A LEI PENALIZA OS
EMPRESÁRIOS QUE
TENHAM TOMADO
MEDIDAS PARA EVITAR
O ENCERRAMENTO DA
UNIDADE PRODUTIVA”
criação de novos postos de trabalho.
Até à aprovação da nova legislação
laboral que modificações poderiam
ainda ser introduzidas?
A CTA advoga uma legislação mais flexível
que responda às novas dinâmicas do
mercado laboral e que, acima de tudo, seja
uma revisão responsável por causa da sua
transversalidade. Ė preciso que se tenha
em consideração a demais legislação aplicável
à relação laboral para que não permaneçam
as incongruências que a actual
lei apresenta. Reduzir o excesso de formalismos
e formalidades que as empresas são
obrigadas a suportar. A proposta mantém
a falta de remessa ao órgão sindical como
um factor de invalidade do processo disciplinar.
A questão que se coloca é, não tendo
o parecer do órgão sindical carácter vinculativo
(nem podia), porquê elencá-lo como
um factor de invalidade do processo? Entendemos
que a intervenção do órgão sindical
é justa para amparar o trabalhador, mas o
incumprimento não deve cominar com a
invalidade do processo (mera formalidade).
Deverá, no nosso modo de ver, deixar-se a
possibilidade de o tribunal poder avaliar
a matéria factual e decidir se o comportamento
infractor foi suficientemente grave
para justificar o despedimento, sendo que,
nesses casos, o incumprimento das formalidades
não terá qualquer efeito. Pois, actualmente,
com esta medida o que se tem notado
é uma verdadeira promoção da indisciplina
no trabalho, estando os tribunais despidos
do poder de exercerem também uma das
suas funções, que é a pedagógica (disciplina
e honestidade no trabalho).
Quanto à presunção jurídica da
existência de um contrato de trabalho,
que novidades traz a legislação
proposta?
A presunção existe mesmo na actual lei.
No entanto, não se deve presumir de forma
leviana, é necessário que esta presunção seja
sempre feita considerando os elementos
constitutivos do contrato de trabalho, caso
contrário estaríamos a perpetrar injustiças.
Encurta-se o período probatório para
os trabalhadores de nível médio e
inferior. Os tempos máximos fixados
são suficientes para as empresas
avaliarem o novo trabalhador?
Há ganhos positivos que o sector privado
tinha conquistado na revisão anterior que
a proposta vem retirar. Por esse motivo, a
CTA tem advogado uma revisão responsável.
Introduzem-se modificações nas
transferências de trabalhadores. A
nova lei melhora a mobilidade do
trabalho?
Não. A proposta introduz procedimentos
a observar pelo empregador em caso de
transferência (temporária ou definitiva) do
trabalhador para outro local de trabalho,
incluindo a comunicação com aviso prévio
mínimo de 30 dias. Às vezes a mobilidade
do trabalhador pode ser justificada
por razões de emergência que não se compadecem
com o longo período de aviso prévio
que a proposta apresenta.
São alargados os motivos de falta
justificada e passam a ser consideradas
justificadas outras ausências do
trabalhador...
As ausências para prestar assistência a filhos
menores devem ser cobertas pela Segurança
Social. Legislar logo a priori que o trabalhador
tem direito a 30 dias de faltas justificadas
por ano pode abrir espaço para a
quebra de produção da empresa.
As indemnizações decorrentes da
rescisão do contrato de trabalho por
motivos estruturais, tecnológicos ou
de mercado são razoáveis para as
empresas?
A lei penaliza os empresários que tenham
tomado medidas para evitar o encerramento
da unidade produtiva. b
março 2020 | 49
OIL
& GAS
LUÍS FARIA
GÁS EM DEBATE:
O evento sobre
mineração, energia,
petróleo e gás
deverá atrair mil
participantes
MOÇAMBIQUE
EVENTO INTERNACIONAL DEBATE PETRÓLEO E GÁS
D.R.
A 7ª Conferência e Exposição Internacional
de Mineração, Energia, Petróleo e Gás de
Moçambique (MMEC) vai decorrer de 22 a
23 de Abril no Centro de Conferências Joaquim
Chissano, em Maputo. O evento de dois
dias desenvolve-se sob o tema “Utilização
de Recursos Naturais como Catalisador do
Desenvolvimento e Diversificação Económica”.
Sendo a MMEC 2020 a mais bem-sucedida
exposição industrial em Moçambique,
estima-se que o evento atraia mais de mil
participantes provenientes de 30 países
para a 7ª edição.
A MMEC é o maior evento de mineração,
energia, petróleo e gás de Moçambique e tem
vindo a concentrar-se nos principais desenvolvimentos,
políticas e projectos nas indústrias
energéticas e extractivas de Moçambique,
tornando-se uma plataforma importante
para ligar todos os interessados e mostrar
as enormes oportunidades destes sectores
de elevada importância para a economia.
A última edição contou com mais de 500 participantes
especialistas provenientes de mais de
20 países. A MMEC 2020 irá destacar Moçambique
como sendo um palco bastante favorável
para as empresas, implementando
políticas para encorajar investimento directo,
nacional e internacional, para as indústrias
de energia e extracção. A maior parte dos
participantes no evento provém de sectores
de fornecimento de serviços de tecnologias
e de soluções, investimento e serviços financeiros
e exploração mineira e de hidrocarbonatos.
O evento providencia uma APP para
que os participantes possam interagir uns
com os outros, visualizar ou agendar reuniões
com outros participantes.
A MMEC é o maior evento de mineração,
energia, petróleo e gás em Moçambique.
Espera, este ano, duplicar o número
de participantes
MMEC Participantes
MMEC Países de Proveniência
Última edição
Edição 2020*
*Estimativa Fonte: MMEC.
500
20
1000
30
50 | Exame Moçambique
ÁREA 4
INSTITUTO DOS PETRÓLEOS
ESPERA DECISÃO ATÉ JUNH0
SONANGOL: 30% das acções da petrolífera estatal angolana vão ser privatizadas
AFRICA OIL & POWER ANGOLA FAZ PARCERIA
A consultora Africa Oil & Power
anunciou uma parceria com Angola
para promover o investimento
estrangeiro no país neste sector,
antevendo um fluxo de investimentos
de 10 mil milhões de dólares até
2023. “Num esforço para continuar
a promover as reformas em curso
no sector, o ministro dos Recursos
Minerais e Petróleo fez uma parceria
com a Africa Oil & Power para promover
e atrair investimento directo
estrangeiro naquela que é uma das
maiores economias de África”, lê-se
num comunicado desta consultora
citado por Plataforma on-line. “As
reformas no sector incluem a privatização
parcial, até 2022, de 30%
da companhia petrolífera nacional,
a Sonangol, e de empresas fora da
área central de actuação da petrolífera,
que oferece oportunidades significativas
para quem quiser entrar
no sector do petróleo e gás no país;
as previsões iniciais apontam para
um fluxo de capital de até 10 mil
milhões de dólares nos próximos
três anos, quando os agentes externos
substituírem a Sonangol nos
serviços de apoio que antes eram
prestados pela petrolífera nacional”,
lê-se ainda no comunicado.
D.R.
Carlos Zacarias, líder da entidade reguladora, confirmou, no
início de Fevereiro, que a decisão deve ser tomada “o mais
breve possível, até finais deste semestre”.
O momento, que marca o início da contagem decrescente
para que a produção comece — e que no sector recebe a
sigla de FID, do inglês final investment decision — está nesta
altura dependente da formalização do compromisso, já acordado
entre todos os sócios. A decisão envolve a exploração
da jazida Mamba da bacia do Rovuma, um investimento que
pode ascender a 25 mil milhões de dólares, com o arranque
da produção previsto para 2025. O mesmo consórcio vai
também explorar uma jazida mais pequena, designada Coral
Sul, com um navio plataforma que ficará ancorado em permanência
no alto-mar por cima da jazida. A construção do
navio está a mais de 60% do processo e está marcado para
final de 2021 o rebocamento para o canal de Moçambique,
para começar a extrair e produzir gás natural liquefeito em
2022. A Área 4 é operada pela MRV, uma joint venture co-
-propriedade da ExxonMobil, ENI e Corporação Nacional
de Petróleo da China (CNPC), que detém 70 % de interesse
participativo no contrato de concessão para pesquisa e produção
naquela área. A Galp, KOGAS e a Empresa Nacional
de Hidrocarbonetos de Moçambique detêm, cada uma, 10%
de interesse participativo.
RECEITA PROJECTO ROVUMA
(mil milhões de dólares)
O Standard Bank tem um estudo económico pormenorizado
sobre o projecto Rovuma e estima, num quadro de “Capex
Alta”, receitas elevadas para a operação
2,32 6,26 6,44 7,32 7,57 7,48
Menos exportações
Em 2019 Angola exportou menos petróleo e com o barril a um preço inferior
2024 2025 2026 2030 2035 2040
Fonte: Standard Bank.
Vol.
Exportação
(milhões
de barris)
496,88
536,83
EXXONMOBIL E ENI:
Lideram o consórcio
da Área 4
p/barril
(USD)
66,1
70,34
2019
2018
Fonte: Minfin Angola.
D.R.
março 2020 | 51
GLOBAL ESTADOS UNIDOS
UM INÍCIO
TENSO
A crise do Irão é um novo sinal de que os países estão a agir
cada vez mais por si sós, em vez de procurarem em conjunto
soluções para os conflitos globais — um cenário que traz
instabilidade
FILIPE SERRANO E CARLA ARANHA
N
um discurso duro face ao
Irão feito em Maio de 2018,
o secretário de Estado americano,
Mike Pompeo, justificou
a decisão do Presidente
Donald Trump, tomada algumas semanas
antes, de deixar o acordo nuclear com
o Irão, assinado em 2015. Avisou que, de
então em diante, os Estados Unidos adoptariam
uma política de “pressão máxima”
sobre o regime iraniano com o objectivo
de estrangular o país financeiramente e
fazer com que os iranianos aceitassem
imposições americanas mais rígidas. Nas
palavras de Pompeo, o Irão não teria mais
“carta branca” para armar grupos pelo
Médio Oriente que, volta e meia, faziam
ataques contra alvos americanos e dos
seus aliados. Entretanto, em vez de uma
redução da violência, o que se viu de lá
para cá foi uma escalada nas ofensivas
patrocinadas pelo Irão, numa espécie de
guerra terceirizada, algo que trouxe ainda
mais instabilidade. A recente crise no início
de 2020 que, por pouco, não levou a
uma nova guerra no Médio Oriente, foi
o ápice da política de intimidação sobre
o Irão, que começa a ficar sem saídas.
O país ou se senta para negociar, ou intensifica
os seus ataques ao mesmo tempo
que retoma o programa nuclear, como
os líderes iranianos ameaçam fazer. Num
mundo que já sofre o impacto do aumento
do nacionalismo e do proteccionismo, a
tensão no Médio Oriente é um péssimo
início de ano. O que chama a atenção nesta
crise é que nada disto seria necessário se
os Estados Unidos não tivessem saído do
acordo nuclear, assinado em conjunto com
o Reino Unido, França, Rússia e China —
que são membros do Conselho de Segurança
da Organização das Nações Unidas
— e ainda a Alemanha. O Irão cumpriu
os seus compromissos desde 2015, mas
Trump acreditava que o acordo, tecido
pelo ex-Presidente Barack Obama, era
demasiado favorável aos iranianos. A decisão
de Trump colocou os Estados Unidos
e os países europeus em lados opostos.
Enquanto os norte-americanos partiram
para a coacção, a Europa optou por negociar
e tentar salvar o acordo. Foi por isso
que nenhum dos países europeus nem a
China apoiaram o ataque norte-americano
que matou o general iraniano Qassem
Soleimani. Assim como os europeus,
as organizações internacionais, como as
Nações Unidas ou a aliança militar da
NATO, foram apanhadas de surpresa.
“Não há união entre estas organizações
HASSAN ROUHANI,
PRESIDENTE DO IRÃO:
O país é cada vez mais
pressionado pelos
norte americanos
DONALD TRUMP:
Menosprezo pelas
instituições
internacionais
52 | Exame Moçambique
A GLOBALIZAÇÃO EM XEQUE
O comércio mundial e o investimento directo
estrangeiro têm tido um desempenho fraco,
afectados por uma tendência de maior
proteccionismo
Variação anual do volume
de comércio global (em %) (1)
20
15
10
5
0
-5
Jan
2010
Out
2019
Fluxo de investimento directo estrangeiro
no mundo (em triliões de dólares)
2
REUTERS GETTY
1,5
1
0,5
0
2005 2007 2011 2015 2008
(1)
Em relação ao mesmo mês do ano anterior.
Fonte: CPB e UNCTAD.
e os Estados Unidos desempenham um
papel relevante na maioria delas, dificultando
uma reacção coordenada”, diz
Robert Jervis, professor de Política Internacional
na Universidade de Colúmbia,
em Nova Iorque.
Se fosse um caso isolado, a opção dos
Estados Unidos de agir sozinho na crise do
Irão, sem procurar o apoio dos aliados ou
da comunidade internacional, poderia ser
esquecida com o passar do tempo. Mas o
que se vê é que esse tipo de atitude se tem
tornado o padrão no mundo, principalmente
depois da chegada de Trump à Casa
Branca, há três anos. Em vez de procurar
soluções em conjunto com os demais países
e organizações multilaterais, os Estados
Unidos e outros países têm preferido
resolver os seus conflitos com as próprias
mãos, de uma forma unilateral. A guerra
comercial com a China é um bom exemplo.
A iniciativa de aumentar as tarifas não foi
debatida nem submetida à aprovação da
março 2020 | 53
GLOBAL ESTADOS UNIDOS
Organização Mundial do Comércio (OMC),
que tem o papel de arbitrar as disputas no
comércio internacional. Os Estados Unidos,
inclusive, têm bloqueado a nomeação
de juízes para o órgão de recurso da
OMC, que está paralisado desde Dezembro.
O Presidente Trump nunca escondeu
o menosprezo pelas instituições multilaterais.
Durante a sua governação, o Presidente
norte-americano abandonou tratados
internacionais, como o Acordo de Paris,
ANGELA MERKEL, DA ALEMANHA, E VLADIMIR PUTIN, DA RÚSSIA:
Os demais países procuram salvar o acordo nuclear com o Irão
deixou cair acordos comerciais, como a
Parceria Transpacífica, e criticou duramente
a NATO e a ONU. “Para os especialistas,
a avaliação é que os Estados Unidos
estão a distanciar-se cada vez mais da sua
tradicional posição de garante multilateral”,
refere Edward Newman, professor
de Segurança Internacional na Universidade
de Leeds, em Inglaterra, e especialista
no tema.
Na sua condição de maior força militar
e económica do planeta, os Estados
Unidos habituaram-se a agir como se
pairassem acima das regras internacionais,
como o mostra a invasão do Iraque
em 2003. No entanto, existia um entendimento
comum de que as instituições
globais ajudavam a promover a prosperidade
e a liberdade em todos os países, e
isso, afinal, era benéfico para os próprios
norte-americanos. Essa visão enfraqueceu.
Sem o apoio dos norte-americanos
nem de governos liderados por políticos
nacionalistas pelo mundo fora, as organizações
e tratados internacionais tendem
a perder ainda mais importância.
Com os países mais avessos a trabalharem
uns com os outros o receio é de
que o mundo esteja a caminhar para
um novo ambiente, em que haja menos
cooperação, menos integração global e
REUTERS
menos trocas comerciais. Durante boa
parte de 2019, o comércio internacional
manteve-se praticamente estagnado e até
chegou a retrair em alguns meses. Além
disso, a quantidade de recursos que as
empresas investem em países no exterior
(o chamado fluxo de investimento directo
estrangeiro) tem diminuído desde 2015,
segundo a Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento
(UNCTAD).
Com o multilateralismo e a cooperação
internacional relegados para segundo
plano, quem perde são principalmente os
países em desenvolvimento, que conseguiam
ter uma voz importante nos fóruns
de discussão internacionais. Em relação
aos países do Médio Oriente, há ainda o
receio de uma progressiva fragmentação
da segurança e aumento da força de grupos
paramilitares. Milícias iraquianas apoiadas
pelo Irão já anunciaram que poderão
planear acções contra tropas americanas
estacionadas no país (no dia 14 de Janeiro
novos rockets atingiram uma base iraquiana
perto de Bagdade que abriga militares
norte-americanos). “A tendência é
para que seja criada uma nova ordem
geopolítica na região e no mundo, com a
proliferação de actos de terrorismo praticados
por grupos contrários aos Estados
Unidos”, diz o analista político iraquiano
Dlawer Ala’Aldeen, presidente do Middle
East Research Institute, no Iraque. “Sem
uma mediação internacional, os países
podem ver-se cada vez mais mergulhados
em crises domésticas.”
O Irão não é uma excepção. Desde
Novembro, jovens têm saído à rua para
protestarem contra o governo e medidas
impopulares, como o aumento do preço
do combustível. No ano passado, a economia
iraniana retraiu cerca de 9,5%,
segundo projecções do Fundo Monetário
Internacional, em grande parte devido às
sanções económicas dos Estados Unidos.
As manifestações ganharam um novo
fôlego depois de o governo reconhecer
ter abatido por engano o avião comercial
da Ukraine International Airlines.
Até agora, há poucos sinais de um movimento
internacional para conter a crise.
O mundo ficou um pouco mais inseguro. b
54 | Exame Moçambique
março 2020 | 55
GLOBAL CRESCIMENTO
O OUTRO
LADO DO
CRESCIMENTO
A desaceleração da economia nunca é uma boa notícia.
Mas tentar recuperar o dinamismo a todo o custo
pode ser pior, segundo o casal vencedor do Nobel
de Economia deste ano
ABHIJIT BANERJEE E ESTHER DUFLO
U
ma das notícias mais preocupantes
de 2019 não teve
a cobertura que se poderia
esperar dos meios de comunicação
nos Estados Unidos
e na Europa, mas é provável que a desaceleração
económica na China e a desaceleração
potencialmente acentuada do
crescimento na Índia recebam consideravelmente
mais atenção em 2020.
O Fundo Monetário Internacional,
o Banco Asiático de Desenvolvimento
e a Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Económico baixaram
as estimativas de crescimento da Índia
em 2019-2020 para cerca de 6% ao ano, o
que seria o índice mais baixo desde o início
da década. Outros afirmam que esta
previsão ainda é optimista e projectam
cenários mais problemáticos. Por exemplo,
Arvind Subramanian, até recentemente
o principal consultor económico
do governo indiano, argumentou, com
base na triangulação de evidências de
vários indicadores, que o índice de crescimento
pode cair para 3,5%. Na China,
o crescimento do produto interno bruto
diminuiu de 14,2%, em 2007, para 6,6%,
em 2018. O Fundo Monetário Internacional
projecta que possa cair para 5,5%
até 2024. O rápido crescimento chinês
e indiano tirou milhões de pessoas da
pobreza e é possível que a actual desaceleração
impeça o progresso da melhoria
da vida dos pobres.
O que é que a China e a Índia deviam
fazer? Ou melhor, o que é que não deviam
fazer? Quando estávamos a escrever o
nosso livro Good Economics for Hard
Times (“Boa economia para tempos difíceis”,
numa tradução livre) em 2018, antes
de começarem a sair as más notícias sobre
a Índia, já estávamos preocupados com
uma potencial desaceleração naquele país
(a desaceleração na China já era conhecida).
Antecipando a queda do crescimento,
alertámos para que “a Índia deveria temer
a complacência”. O que argumentávamos
é simples: nos países que partem de uma
situação em que os recursos são mal utilizados,
como a China sob o comunismo
ou a Índia em nos seus dias de extremo
dirigismo, os primeiros benefícios da
reforma podem advir da transferência
de recursos para melhores utilizações.
No caso das indústrias indianas houve
uma forte aceleração na actualização tec-
56 | Exame Moçambique
ÍNDIA: A atenção à
tecnologia impulsionou
o crescimento
GETTY
nológica das fábricas e alguma realocação
para as melhores empresas de cada sector
após 2002. Isto parece não ter relação com
nenhuma mudança na política económica
e foi descrito como “o misterioso milagre
industrial da Índia”. Mas não foi milagre,
apenas uma modesta melhoria, saindo de
um ponto de partida bastante sombrio.
Pode-se imaginar várias razões pelas
quais isso possa ter ocorrido. Talvez tenha
resultado de uma mudança geracional, já
que o controlo passou de pais para filhos,
frequentemente educados no exterior, mais
A CHAVE É NÃO PERDER
DE VISTA QUE O PIB
É UM MEIO, E NÃO
UM FIM. O OBJECTIVO
CONTINUA A SER
AUMENTAR A
QUALIDADE DE VIDA
ambiciosos e mais esclarecidos sobre tecnologia
e mercados mundiais. Ou talvez
a acumulação de lucros modestos tenha
eventualmente possibilitado radicar a
mudança para fábricas maiores e melhores.
Ou talvez ambos os motivos — e mais
alguns — tenham desempenhado algum
papel relevante.
De um modo geral, talvez a razão pela
qual alguns países, como a China, conseguem
crescer tão rapidamente durante
tanto tempo é que começam com muito
potencial e recursos mal utilizados, que
março 2020 | 57
GLOBAL CRESCIMENTO
GETTY
podem ser direccionados para actividades
mais valiosas. Mas, à medida que a economia
descarta as suas fábricas e empresas
precárias e resolve os problemas mais
graves de má alocação de recursos, naturalmente
diminui o espaço para novas
melhorias. O crescimento da Índia, como
o da China, tinha de desacelerar. E não há
garantia de que diminuirá apenas quando
a Índia atingir o mesmo nível de rendimento
per capita da China. A Índia pode
incorrer na mesma “armadilha de rendimento
médio” que aprisionou a Malásia,
a Tailândia, o Egipto, o México e o Peru.
O problema é que os países têm dificuldade
em abandonarem o hábito do crescimento.
Há o risco de os formuladores
de políticas atirarem para qualquer lado
na sua busca para retomar o crescimento.
A história recente do Japão devia servir
de alerta. Se a economia do Japão tivesse
mantido a taxa de crescimento registada
na década de 1963-1973, teria ultrapassado
os Estados Unidos em termos de produto
per capita em 1985 e de PIB geral em 1998.
O que aconteceu é suficiente para ficar de
sobreaviso: em 1980, um ano após o professor
de Harvard Ezra Vogel ter publicado
Japan as Number One (“O Japão em
primeiro”, numa tradução livre), a taxa de
crescimento caiu e nunca mais recuperou.
Durante todo o período de 1980-2018, o
PIB real do Japão cresceu a uma anémica
taxa média anual de 0,5%.
A questão era simples: a baixa fertilidade
e a quase completa ausência de imigração
significavam que o Japão estava (e está)
a envelhecer rapidamente. A população
em idade activa atingiu o pico no final da
década de 90 e, desde então, tem vindo a
declinar a uma taxa anual de 0,7% (e continuará
a declinar). Além disso, durante
as décadas de 50, 60 e 70 o Japão estava a
recuperar do desastre da Guerra do Pacífico,
com a população com nível univer-
58 | Exame Moçambique
IDOSAS EXERCITAM-SE NO JAPÃO: A obsessão de sucessivos governos em gerar
crescimento enquanto a população envelhece não produziu resultados
sitário a ser empregue gradualmente nas
melhores funções possíveis. De 1980 em
diante, isso acabou. Na euforia das décadas
de 70 e 80, muitas pessoas (no Japão
e no exterior) convenceram-se de que o
Japão sustentaria um rápido crescimento
inventando novas tecnologias, o que provavelmente
explica a razão por que a elevada
taxa de investimento (superior a 30%
do PIB) continuou ao longo da década
de 80. Muito dinheiro bom correu atrás
de muito poucos projectos bons na chamada
economia da bolha dos anos 80.
Como resultado, os bancos acabaram com
inúmeros maus empréstimos, o que levou
à enorme crise financeira dos anos 90.
E o crescimento foi interrompido. No final
da “década perdida” de 90, os políticos do
Japão podiam ter percebido o que estava
a acontecer e o que tinham a perder. Afinal,
o Japão já era uma economia relativamente
rica, com muito menos desigualdade
do que a maioria das economias ocidentais,
um sistema educativo forte e muitos
problemas importantes a serem enfrentados,
entre os quais como garantir qualidade
de vida decente a uma população
que envelhece rapidamente. Mas as autoridades
pareciam incapazes de se ajustarem
— restaurar o crescimento era uma questão
de orgulho nacional. Como resultado,
sucessivos governos disputaram a criação
de uma série de pacotes de estímulo, gastando
triliões de dólares principalmente
em estradas, barragens e pontes que não
serviam qualquer objectivo óbvio. Talvez
previsivelmente, o estímulo nada fez
para aumentar o crescimento económico
e levou a um enorme aumento da dívida
nacional, para cerca de 230% do PIB em
2016, de longe a mais elevada dos países
do G20 e um possível prenúncio de uma
enorme crise na dívida.
A lição para os políticos na China e
na Índia é clara: devem aceitar que, inevitavelmente,
o crescimento diminuirá.
Os líderes da China estão cientes disso e
fizeram um esforço consciente para gerirem
as expectativas do público de acordo
com a realidade. Em 2014, o Presidente Xi
Jinping falou de um “novo normal” de 7%
de crescimento anual, em vez de 10% ou
mais. Mas não está claro que mesmo esta
projecção seja realista e, enquanto isso, a
China está a embarcar em enormes projectos
globais de construção, o que não
é necessariamente um bom presságio.
A chave, em última análise, é não perder
de vista o facto de que o PIB é um
meio, e não um fim. É um meio útil, sem
dúvida, em particular quando cria empregos,
aumenta salários ou ajusta o orçamento
do governo para poder redistribuir
melhor a riqueza. Mas o objectivo final
continua a ser aumentar a qualidade de
vida da média da população — especialmente
a mais pobre. E qualidade de vida
significa mais do que apenas consumo.
A maioria dos seres humanos preocupa-
-se em sentir-se digna e respeitada e sofre
quando sente que está em falta consigo e
com a sua família. Embora viver melhor
consista, de facto e em parte, em ser capaz
de consumir mais, mesmo pessoas muito
pobres também se preocupam com a saúde
dos pais, a educação dos filhos, em serem
ouvidas e serem capazes de correr atrás
dos sonhos. Um PIB mais elevado é apenas
um modo de o conseguir.
Não se deve assumir que este é sempre
o único objectivo. Muitos dos importantes
sucessos do desenvolvimento das últimas
décadas são resultado directo de um
enfoque político nessa concepção mais
ampla de bem-estar, mesmo em alguns
países que eram e permaneceram muito
pobres. Por exemplo, ocorreu uma redução
maciça da mortalidade de menores
de 5 anos, inclusive em alguns países
muito pobres que não estavam a crescer
com particular rapidez, em grande parte
graças à atenção dada ao atendimento ao
recém-nascido, à vacinação e à prevenção
da malária.
O que nos leva de volta à desaceleração
da Índia e da China. Ainda há muito
que os políticos dos dois países podem
fazer para melhorar o bem-estar dos
cidadãos e nos ajudar a termos alguma
esperança em relação ao futuro do planeta.
Um objectivo míope de aumentar
a taxa de crescimento do PIB poderia
desperdiçar essa oportunidade. b
Abhijit Banerjee é professor de Economia no MIT.
Esther Duflo é professora de Alívio da Pobreza
e Economia do Desenvolvimento no MIT. São
co-fundadores e co-directores do Laboratório
de Acção contra a Pobreza Abdul Latif Jameel
(J-PAL) no MIT e (com Michael Kremer) vencedores
do Prémio Nobel da Economia de 2019.
março 2020 | 59
GLOBAL INTERNET
COMO TORNAR A INTERNET
SEGURA PARA A DEMOCRACIA
A regulação das empresas de Internet é um beco sem saída — não em princípio,
mas na prática. Por isso temos de pensar nas medidas antitrust,
afirma o célebre autor de O Fim da História
E
m Outubro, eclodiu um confronto
entre uma das principais
candidatas democratas à Presidência
dos Estados Unidos,
a senadora Elizabeth Warren,
e o patrão do Facebook, Mark Zuckerberg.
FRANCIS FUKUYAMA
Warren havia pedido o desmembramento
do Facebook, e Zuckerberg disse num discurso
interno que tal representava uma
ameaça “existencial” à empresa. O Facebook
foi, então, criticado por publicar um
anúncio da campanha de reeleição do Presidente
Donald Trump, que apresentava
uma alegação evidentemente falsa, acusando
de corrupção o ex-vice-presidente
Joe Biden, outro importante candidato
democrata. Warren provocou a empresa
colocando ela própria um anúncio deli-
60 | Exame Moçambique
beradamente falso. Este desentendimento
reflecte os graves problemas que os media
sociais representam para a democracia
norte-americana — e para todas as democracias.
A Internet, em muitos aspectos,
deslocou os media de outrora, como jornais
e televisão, como a principal fonte e o
local onde são discutidos os eventos públicos.
Mas os media sociais têm um poder
muito maior de amplificar certas vozes e
serem utilizados como armas por forças
hostis à democracia. Isso levou a exigências
para que o governo regulasse as plataformas
da Internet de modo a preservar
a própria retórica democrática.
Mas que formas de regulação são constitucionais
e viáveis? A Primeira Emenda
da Constituição norte-americana contém
protecções muito fortes à liberdade de
expressão. Embora muitos conservadores
tenham acusado o Facebook e o Google
de “censurar” vozes à direita, a Primeira
Emenda concerne apenas às restrições ao
governo oficial. A lei e a jurisprudência
GETTY
ZUCKERBERG, NO SENADO DOS EUA:
Embate para salvar o Facebook
de uma ameaça existencial
protegem a competência de partes privadas,
como as plataformas da Internet, de
modelarem os próprios conteúdos. Além
disso, a secção 230 da Lei de Decência das
Comunicações, de 1996, isenta-as de responsabilidade
própria, algo que, de outra
forma, as impediria de seleccionarem os
seus conteúdos. O governo norte-americano
enfrenta fortes restrições quanto à
sua capacidade de censurar o conteúdo da
Internet de uma maneira directa, como
o faz, por exemplo, a China. Há, porém,
maneiras menos invasivas de regulamentar
o discurso, como já foi feito em relação
aos media radiofónicos e televisivos
de antigamente: os governos moldavam o
discurso público por meio da sua autoridade
para licenciar canais de transmissão,
proibir certas formas de expressão (como
a incitação ao terrorismo ou à pornografa)
e criar emissoras públicas com mandato
para fornecerem informações confiáveis
e politicamente equilibradas. O mandato
original da Comissão Federal de Comunicações
(FCC, na sigla em inglês) não era
apenas para regular as emissoras privadas,
mas também atingir um amplo “interesse
público”. Isto evoluiu para a Doutrina da
Justiça da FCC, que determinava que as
emissoras de televisão e rádio fizessem as
coberturas com opiniões politicamente
equilibradas. A constitucionalidade dessa
intromissão no discurso privado foi contestada
no caso Red Lion Broadcasting
versus FCC, em 1969, mas a estação de
rádio foi obrigada pelo Supremo Tibunal
a dar direito de resposta a um comentador
conservador. A decisão foi justificada
pela escassez do espectro de transmissão
e pelo controlo oligopolista exercido pelas
três principais redes de televisão da época.
A decisão do caso Red Lion não se transformou
em jurisprudência, mas presidentes
republicanos vetaram repetidamente
TEMOS DE CONSIDERAR
O ANTITRUST COMO
UMA ALTERNATIVA
À REGULAMENTAÇÃO
as tentativas democratas de transformar
a Doutrina da Justiça em estatuto e a própria
FCC rescindiu-a em 1987 através de
uma decisão administrativa.
A ascensão e queda da Doutrina da Justiça
mostra como seria difícil criar um
equivalente na era da Internet. Existem
muitos paralelismos entre aquela época
e agora. Hoje, o Facebook, o Google e o
Twitter hospedam a grande maioria dos
discursos na Internet e estão na mesma
posição oligopolista que as três grandes
redes de televisão da década de 60.
No entanto, não se consegue imaginar
a FCC a articular hoje um equivalente
moderno da Doutrina da Justiça. A política
americana é muito mais polarizada;
seria impossível chegar a um acordo sobre
o que constitui discurso inaceitável. Uma
abordagem regulatória à moderação de
conteúdo é, portanto, um beco sem saída,
não em princípio mas na prática.
É por isso que temos de considerar o
anti truste como uma alternativa à regulamentação.
O direito das partes privadas
de autorregularem o conteúdo foi protegido
com extremo zelo nos Estados Unidos;
não reclamamos porque o The New
York Times recusa-se a publicar artigos
de Alex Jones, o locutor que propaga teorias
da conspiração, porque o mercado de
jornais é descentralizado e competitivo.
Uma decisão do Facebook ou do YouTube
de não o publicar tem mais consequências
devido ao seu controlo monopolista
sobre a Internet.
Dado o poder que uma empresa privada
como o Facebook exerce, tomar essas decisões
raramente será visto como algo legítimo.
Em contrapartida, estaríamos muito
menos preocupados com as decisões de
moderação de conteúdo do Facebook se
este fosse simplesmente uma das várias
plataformas competitivas da Internet com
visões diferentes sobre o que constitui um
março 2020 | 61
GLOBAL INTERNET
discurso aceitável. Isto aponta para a necessidade
de repensar muito bem os fundamentos
da Lei Antitrust. A estrutura sob a
qual reguladores e juízes analisam actualmente
o antitrust foi estabelecida durante
as décadas de 70 e 80 como um subproduto
da ascensão da Escola de Economia
dos Mercados Livres de Chicago. Como
é registado no recente livro de Binyamin
Appelbaum, The Economists’ Hour
(“A hora dos economistas”, numa tradução
livre), figuras como George Stigler,
Aaron Director e Robert Bork lançaram
uma crítica sustentada à aplicação zelosa
da Lei Antitrust. O principal argumento
foi económico: a lei estava a ser utilizada
contra empresas que haviam crescido
muito porque eram inovadoras e eficientes.
Argumentaram que a única medida
legítima de dano económico provocado
por grandes corporações era o menor
bem-estar do consumidor, medido pelo
preço ou pela qualidade. Acreditavam que
a concorrência acabaria por regular até
mesmo as maiores empresas. Por exemplo,
a sorte da IBM mudou não por causa
da acção antitrust do governo, mas pela
popularização do computador pessoal.
A crítica da Escola de Chicago apresentou
outro argumento: os autores originais da
Lei Antitrust de Sherman, de 1890, estavam
interessados apenas no impacto económico
em grande escala e não nos efeitos
políticos do monopólio. Como o bem-estar
do consumidor era o único padrão para
a acção do governo, seria difícil defender
a sua aplicação a empresas como a Google
e o Facebook, que distribuem os seus
principais produtos gratuitamente. Mas há
uma grande reavaliação desse conjunto de
leis à luz das mudanças provocadas pela
tecnologia digital. Economistas e especialistas
em Direito começam a reconhecer
que os consumidores são prejudicados por
coisas como a invasão de privacidade e a
renúncia à inovação, pois o Facebook, o
Google Facebook e o Google vendem os
dados dos utilizadores e compram startups
que podem desafiá-los.
Os prejuízos políticos causados pela
enorme abrangência também são questões
críticas e devem ser considerados na
aplicação de medidas antitrust. Os media
sociais armaram-se para minar a democracia,
acelerando deliberadamente o fluxo
de informações más, teorias da conspiração
e difamação. Apenas as plataformas
da Internet têm a capacidade de filtrar e
atirar esse lixo para fora do sistema. Mas
o governo não pode delegar a uma única
empresa privada (amplamente controlada
por um único indivíduo) a decisão sobre
qual o discurso político que é aceitável.
A nossa preocupação com este problema
seria muito menor se o Facebook fizesse
parte de um ecossistema de plataformas
mais descentralizado e competitivo.
As soluções serão bem difíceis de implantar:
é da natureza das redes recompensar
o alcance e não está claro como uma
empresa como o Facebook poderia ser desmembrada.
Mas temos de reconhecer que,
embora o discurso digital deva ser auditado
pelas empresas privadas que o hospedam,
esse poder não pode ser exercido
com segurança se não estiver distribuído
num mercado competitivo. b
Francis Fukuyama é membro sénior da Universidade
de Stanford e co-director do seu Programa
sobre Democracia e Internet.
GETTY
EXTREMA-DIREITA
NORTE-AMERICANA:
O oligopólio das redes
sociais favorece as
teorias da conspiração
62 | Exame Moçambique
março 2020 | 63
GLOBAL AMAZÓNIA
O NEGÓCIO
AMAZÓNIA
O Brasil construiu a sua indústria aeronáutica a partir de um centro de estudos
de inspiração americana — o ITA. O cientista Carlos Nobre propõe-se replicar
o modelo para salvar a Amazónia com uma nova industrialização
RODRIGO CAETANO
O
marechal Casimiro Montenegro
Filho é considerado
um visionário da aeronáutica
brasileira. Foi ele quem
inaugurou o Correio Aéreo
Nacional, ao voar do Rio de Janeiro para
São Paulo em 1931. O seu grande feito
ocorreria, no entanto, na década de 50
com a criação do Instituto Tecnológico
de Aeronáutica, o ITA, em São José dos
Campos. A ideia havia ganho corpo anos
antes, durante a Segunda Guerra Mundial.
Em 1942, Montenegro viajou para os
Estados Unidos com a missão de comprar
aviões de combate. Em solo americano, o
militar visitou o Massachusetts Institute
of Tecnology (MIT) e a experiência convenceu-o
de que importar aeronaves não
era um bom negócio. Numa época em que
o Brasil não produzia sequer bicicletas, o
marechal sonhou com uma indústria aeronáutica
brasileira. Para isso, foi importado
um corpo docente altamente qualificado
dos Estados Unidos e da Europa. Nos anos
iniciais do ITA, professores de dezasseis
nacionalidades chegaram a dar aulas na
instituição. Os resultados começaram a ser
colhidos menos de duas décadas depois:
em 1968 foi lançado o Bandeirante, o primeiro
avião desenvolvido pela Embraer.
Ao longo de quase 70 anos, mais de 5 mil
engenheiros foram formados pelo ITA.
O instituto transformou o Brasil num
64 | Exame Moçambique
A GRANDE FLORESTA:
Para desenvolver ciência
de ponta na região é preciso
criar uma instituição capaz
de atrair talentos e gerar
mão-de-obra
formador de mão-de-obra especializada
para uma das indústrias mais tecnológicas
do mundo. O legado de Montenegro
continua presente não apenas nas empresas
brasileiras que fornecem a cadeia aeronáutica,
mas também na capacidade de
fomentar novos empreendedores.
No Brasil de hoje, o cientista Carlos
Nobre inspira-se na epopeia vivida pelo
marechal para levar em frente um projecto
igualmente ambicioso. “Quero criar
AO APROVEITAR
O POTENCIAL
ECONÓMICO
DA AMAZÓNIA,
O BRASIL APOSTARIA
NOS GANHOS QUE
A BIOECONOMIA
PODE GERAR
o ITA da Amazónia”, diz Nobre. “Temos
a maior biodiversidade do mundo. Se quisermos
competir globalmente, temos de
olhar para os sectores em que somos mais
fortes e criar condições para industrializar
os nossos activos naturais.” Um dos
mais renomados cientistas brasileiros,
Nobre também é um visionário. Formado
em Engenharia pelo próprio ITA e doutorado
no MIT, foi um dos pioneiros no
estudo de modelos climáticos, métodos
matemáticos de simulação das dinâmicas
naturais, que são a base das modernas
investigações sobre o clima.
Agora o cientista quer replicar a experiência
do ITA na região Norte e criar
uma estrutura de geração de conhecimento
para fomentar uma indústria de
biotecnologia no Brasil. A ideia é unir
esforços do governo e da iniciativa privada
para financiar a investigação, construir
laboratórios, formar mão-de-obra
qualificada e atrair académicos de todo
o mundo para trabalharem com uma das
maiores riquezas do país: a biodiversidade
da Amazónia. O projecto está numa
fase inicial. Nobre tem conversado com
pessoas do meio académico no Brasil e
noutros países latino-americanos — a
sua ideia é criar um esforço pan-amazónico.
Quem está por dentro dos planos é
Guilherme Leal, um dos fundadores da
fabricante de cosméticos Natura. O cientista
e o empresário trocaram e-mails
sobre o assunto, partilhando ideias semelhantes.
Leal confirmou à EXAME que
tem conversado com Nobre, por quem
o empresário nutre um grande respeito.
Mas salientou que se trata de uma ideia
ainda embrionária e preferiu não fazer
mais comentários.
A proposta de Nobre tem em vista o
potencial económico da Amazónia, uma
ideia que se inspira na chamada bioeconomia,
em alta em diferentes partes do
mundo. A bioeconomia é definida pela
produção de recursos renováveis e a sua
conversão em alimentos, energia limpa
e produtos de base biológica. O sector
engloba ainda desde fármacos até potenciais
substitutos do petróleo, como a lignina,
uma substância extraída do eucalipto
e da cana-de-açúcar que pode ser utilizada
na produção de plásticos e de combustíveis.
Na Europa, a bioeconomia já
movimenta mais de 2 triliões de euros
e proporciona 18 milhões de empregos.
Na região amazónica, a ciência e a tecnologia
seriam capazes de criar produtos
de alto valor acrescentado, em vez de
apenas inputs ou commodities. Um exemplo
deste potencial é o açaí, um fruto da
floresta. Típico da Amazónia, o fruto
gera actualmente cerca de 2 mil milhões
de reais (463 mil milhões de dólares) de
receita anual aos produtores, que exportam
a maior parte da produção. Um valor
que é multiplicado por dez por empresas
no exterior que vendem diversos produtos
derivados do açaí. No modelo proposto
por Nobre, a investigação de base
— financiada pelo governo — descobriria
os inputs. Já as empresas “bancariam”
o desenvolvimento dos produtos.
O governo tem outros planos para incentivar
a bioeconomia na Amazónia. O ministro
do Meio Ambiente, Ricardo Salles,
chegou a convidar Nobre para um jantar
em sua casa, em São Paulo. No encontro,
discutiram o modo de incentivar o sector.
Para Salles, o caminho faz-se unicamente
através da iniciativa privada. “O problema
não é a falta de ciência, é uma visão anticapitalista”,
disse o ministro à EXAME,
durante a Conferência das Nações Unidas
sobre as Mudanças Climáticas, em
Madrid. “Precisamos de criar as condições
para que as empresas se sintam encorajadas
a assumirem riscos. Não podemos ter
um modelo no qual, se dá certo, a empresa
ganha, se dá errado, o governo paga.”
março 2020 | 65
GLOBAL AMAZÓNIA
CARLOS NOBRE:
Para o cientista, a Indústria
4.0 oferece uma oportunidade
única de “saltar etapas”
Essa visão está presente na reformulação
que a Superintendência da Zona Franca
de Manaus promove no Centro de Biotecnologia
da Amazónia. O CBA, em tese,
devia fomentar o desenvolvimento tecnológico
na região. O projecto foi criado
em 2002, em Manaus, para estimular a
investigação na área biológica, e conta
com uma estrutura de 12 mil metros quadrados
onde funcionam 25 laboratórios.
Em 2018, o governo de Michel Temer já
havia elaborado um plano para aproximar
o CBA do sector privado. Apesar
dos 65 milhões de reais (15 milhões de
dólares) gastos pelo governo, a avaliação
era de que poucas pesquisas haviam
resultado em negócios. Foi feito um edital
para transformar o centro numa organização
social, vencido pela Aliança para
a Bioeconomia da Amazónia, um grupo
formado por diversas instituições de pesquisas,
entre as quais a Fundação Oswaldo
Cruz. O governo Bolsonaro, no entanto,
revogou o edital. Em vez da pesquisa de
base, a ideia é ter como objectivo a atracção
de grandes empresas de biotecnologia.
“Não vamos mais desenvolver pesquisas
que levam anos e não resultam em
O DESENVOLVIMENTO
BASEADO NA POSSE
DA TERRA É UM MODELO
DO PASSADO
REUTERS
nada”, diz Fábio Calderaro, que assumiu
o comando do CBA no início de 2019.
A sua intenção é dar uma missão mercantil
ao centro, com apoio ao desenvolvimento
de produtos e negócios. Para Nobre, a
estrutura actual de produção de conhecimento
na Amazónia é, de facto, obsoleta.
A diferença em relação à visão de Calderaro
é que, para ele, de nada adianta criar
hubs de inovação para a iniciativa privada
se as empresas não puderem contar com
universidades que despejam no mercado
capital humano e intelectual, assim como
o ITA fez com a Embraer e outras empresas
em seu redor durante décadas. “Nos
Estados Unidos, a maior parte dos investimentos
em pesquisa académica vem do
governo”, refere o investigador. Dados da
Fundação Nacional da Ciência, uma agência
americana para a inovação, mostram
que o governo federal e os locais responderam
por mais de 60% do financiamento
de investigações académicas no país em
2016 (último dado disponível). Considerando
o cenário de investigação como um
todo, a proporção inverte-se: 7 de cada
10 dólares aplicados vêm das empresas.
A geógrafa americana Susanna B. Hecht,
da Universidade da Califórnia, uma das
maiores especialistas do mundo em economia
da Amazónia, alerta que todos os
governos brasileiros, até hoje, partilham a
mesma visão desenvolvimentista equivocada
em relação aos seus recursos naturais.
“É uma opção por um desenvolvimento
baseado na posse da terra, um modelo que
remete para o passado”, afirma. A alternativa
seria a criação de plataformas abertas
de geração de conhecimento. Essa é uma
diferença, por exemplo, entre os estados
americanos da Califórnia e do Mississippi.
No primeiro caso, a opção é pela ciência e
tecnologia. Não foi por acaso que Silicon
Valley nasceu aí. “Já o Mississippi vende
commodities”, diz Susanna. No Brasil, é
preciso olhar para a Indústria 4.0. “Vivemos
uma fase de transição, a chamada
Quarta Revolução Industrial. O que nos
oferece uma oportunidade única de pular
etapas na industrialização e, finalmente,
alinharmo-nos com os países desenvolvidos”,
afirma Nobre. No passado, o sonho do
marechal Montenegro parecia um delírio.
Mas o tempo provou que estava certo.b
66 | Exame Moçambique
março 2020 | 67
MUNDO
PLANO
GABRIELA RUIC
REUTERS
ESTADOS UNIDOS
O FUTURO É FEMININO
As mulheres estão a tornar-se uma presença
cada vez mais marcante no mercado
de trabalho dos Estados Unidos. Pela primeira
vez numa década superaram o número
de homens, ocupando 50,04% dos postos
de trabalho (excluindo trabalhadores rurais
e autónomos) e superando os homens em
109 000. É o que revelam os dados mais
recentes do Departamento de Trabalho dos
Estados Unidos, divulgados em 2020 e referentes
a Dezembro de 2019. Os dados mostram,
ainda, que as mulheres com idade
entre os 25 e os 54 anos regressaram ao
mercado de trabalho em maior número
que os homens desde 2010, no pós-crise.
Os economistas atribuem os bons indicadores
ao crescimento de sectores tradicionalmente
ocupados pelas mulheres, como
educação e saúde, que representaram 25%
dos 145 mil empregos criados em Dezembro
passado. Esta conquista feminina no
mercado de trabalho dos Estados Unidos
é, sem dúvida, um marco importante. Mas,
apesar da boa notícia, a diferença de salários
entre homens e mulheres com o mesmo
cargo ainda é gritante no país. Para cada
dólar que os homens ganham, as mulheres
recebem apenas 81 centavos.
Pela segunda vez desde 1980, as mulheres
são a maioria entre as pessoas empregadas
Percentagem de mulheres no mercado
de trabalho dos Estados Unidos (em %)
55%
50%
45%
40%
35%
Fonte: NPR e Departamento de Trabalho dos Estados Unidos.
50,04
1980 2000 2019
68 | Exame Moçambique
GUIANA
UM CRESCIMENTO
DE 86%?
Há anos que a economia na América Latina
deixa a desejar. Este ano, contudo, um
pequeno país deve ser uma surpreendente
excepção. Segundo o FMI, a economia da
Guiana deve crescer 86% em 2020 (a média
regional prevista é de 1,3%). O motor do
crescimento é o petróleo, que passou a ser
extraído no final de 2019. A previsão é que
a produção chegue a 870 mil barris por dia
até 2025. Não é suficiente para colocar a
ex-colónia inglesa entre os grandes produtores,
mas pode garantir prosperidade ao
país de 777 mil habitantes — se o dinheiro
for gasto com sabedoria.
HOSPITAL NA CHINA: O país quer aumentar a expectativa de vida
DR
Ajudada pela recente produção
de petróleo, a economia da Guiana
deve crescer 86% em 2020
Variação do PIB em países da América
Latina em 2020 (projecção em %)
Guiana
Colômbia
Peru
Brasil
México
Chile
Equador
Argentina
Venezuela
Fonte: FMI.
86%
3,5%
3,2%
1,7%
1,3%
1%
0,1%
-1,3%
-14%
SAÚDE
DESPESAS DEVEM DUPLICAR EM 2020
O rápido envelhecimento da população
tem tido um impacto considerável
nas despesas com saúde pelo mundo
fora. Segundo um relatório recente da
consultoria Economist Intelligence Unit,
este tipo de despesa deve aumentar
6,2% em 2020, o dobro do observado o
ano passado, somando mais de 10% do
PIB mundial. A análise da consultora foi
feita com base nos dados de 60 países.
As regiões que devem registar a maior
taxa de crescimento nas despesas são
o Médio Oriente e África, seguidos da
Ásia e Austrália e da Europa Ocidental.
No entanto, os dois maiores mercados
para o sector da saúde em 2020 serão
os Estados Unidos e a China. O curioso
é que os dois países vivem momentos
distintos. Nos Estados Unidos, a expectativa
é de que o aumento das despesas
desacelere de 4,4%, em 2019, para
3,9%, este ano. Já na China, a tendência
é de aumento (de 2,2% para 4,8%), com
o maior investimento no tratamento de
doenças crónicas e de idosos. A medida
faz parte de um plano do governo chinês
para aumentar a expectativa de
vida da população, dos actuais 76 anos
para 79 até 2030, acima da média global,
de 72 anos.
Na maioria das regiões do mundo, os gastos com saúde devem aumentar significativamente
Aumento das despesas com saúde em 2020, por região (em %)
2,0 3,9 4,8 5,7 7,6 10 6,2
D.R.
GUIANA: A expectativa é de um milagre
económico em 2020
América
Latina
América
do Norte
Europa
Ocidental
Ásia
e Austrália
Médio Oriente
e África
Economias
em transição
Mundo
Fonte: The Economist Intelligence Unit.
março 2020 | 69
BAZARKETING
THIAGO FONSECA
Sócio e director de Criação da Agência GOLO.
PCA Grupo LOCAL de Comunicação SGPS, Lda
A RAZÃO
DA EMOÇÃO
O racional versus o emocional no
marketing é um debate que existe
com muita razão e é discutido
com muita emoção. Eu tenho a certeza
de que a maior parte das pessoas
irá dizer, especialmente as pessoas mais
racionais, inteligentes, que há factos,
razões e evidências que explicam que,
claramente, o racional é o caminho a seguir.
Porque o compreendemos. Porque
sabemos como funciona e temos provas
concretas. Só assim podemos chegar a
conclusões que levam a decisões tomadas
todos os dias. E se se perguntar a
qualquer pessoa, o mais provável é essa
pessoa dizer que claramente o lado racional
é mais importante. A maior parte
das pessoas dirá isso. Mesmo apesar
de nós, como seres humanos, sermos,
ao mesmo tempo, criaturas racionais e
emocionais. É disso que somos feitos. E é
assim que os nossos cérebros funcionam.
E enquanto vamos vivendo o nosso dia-
-a-dia toda a gente irá expor a sua razão,
sempre para argumentar o seu ponto de
vista aos outros e dizer conscientemente:
“Isto está correcto, aquilo está errado.”
E a vida segue assim com todos cheios
de razão e de razões. E é por isso que se
perguntar, a maior parte das pessoas irá
concluir racionalmente que o racional é
mais importante e poderoso que o emocional.
E é esse o caminho que deve guiar
as nossas decisões, correcto? Porque um
mais um são dois, certo? É lógico.
Mas o ponto é que a Emoção não
está nem um pouco preocupada com as
razões da Razão. A maior das razões.
Vamos, por momentos, imaginar que a
Razão e a Emoção são duas pessoas. E se
a Razão e a Emoção fossem duas pessoas
diferentes e estivessem a ter esta conversa,
esta discussão, a Razão argumentaria
contra a Emoção sem parar. Iria tentar
deixar a Emoção sem argumentos.
O ponto é que a Emoção nem sequer
abriria a boca para responder. Não se explica.
Nem mesmo fala. E se falasse diria
apenas: “És a Razão.” Mal sabendo
a Razão que a Emoção é a maior das
razões. Porque a Emoção não precisa
de se explicar. Ela é o que é. Não
precisa de justificar nem provar
nada. Enquanto a Razão tem muito
a provar. E acredita cegamente
que está cheia de razões imbatíveis.
A Emoção fica ali sentada,
com calma e serenidade, a ver o
tempo a passar e todas as razões
do mundo a serem explicadas.
Mas o tempo vai passando e
chegam as decisões tomadas
com base na Razão. E chega
o dia em que, por exemplo,
temos de deixar a nossa família,
os nossos melhores
amigos do coração, e ir
trabalhar em outra província.
Porque é uma boa
oferta de trabalho. Ou
70 | Exame Moçambique
quando temos de ir estudar para fora.
Porque é uma decisão racional. Mas aí
é que está o problema da Razão. A Razão
manda, mas não comanda. Quando
nos convencemos de que estamos a
fazer o mais correcto, é nesse momento
que a Emoção deixa que tomemos a decisão
justificada e fica apenas a observar.
E, sem nos darmos conta, a Emoção vence
a Razão completamente. Com uma
única palavra, que nem sequer precisa
de dizer ou pronunciar: Amor.
E derrete todas as razões. A Emoção
conquista a Razão com
amor. E de repente, sem percebermos
por que razão, começamos
a sentir. E a Razão fica
sem razões. A Razão começa
a repensar tudo. Começa
a reflectir em tudo o
que não está a entender.
Os sentimentos tocam
mais forte e sente que,
se calhar, afinal não
está assim tão certa de
tudo. A Razão muda
de ideias. A Razão
começa a mudar de
ideias. A tentar arranjar
razões que
ela não entende,
apenas sente para
preencher aquele
vazio. Começa a
procurar razões
MARCAS IMORTAIS SÃO
CONSTRUÍDAS COM
PROFUNDOS LAÇOS
EMOCIONAIS
não racionais. Porque a Emoção que está
a sentir é maior. A Razão apercebe-se de
que, afinal, as coisas não estão a correr do
modo como tinha pensado. E a Emoção
sorri nesse momento. Não sorri porque
está a ganhar o argumento. A verdadeira
Emoção é pura. Ela sorri apenas de alegria.
Por saber que a Razão, mesmo sem
se saber explicar porquê, estava a sentir
a Emoção. E acontece tão simplesmente
quanto isso. Tudo à volta dos sentimentos
puros que fazem de nós humanos. A mais
pura felicidade não se baseia nas coisas
racionais. Ninguém está preparado para
bater a Emoção. Porque é verdadeira e
nos deixa sem qualquer argumento. Ninguém
se pode programar para Ela. E isso
acaba com todas as discussões sobre este
tema.
A lógica não produz magia. Marcas
imortais são construídas com profundos
laços emocionais. Não vou sequer tentar
ser mais racional para explicar a razão
do emocional e nem há mais espaço para
escrever aqui. E tem toda a razão se questionar.
Mas sim, este é um artigo sobre
marketing. b
março 2020 | 71
CONSUMO FORTUNAS
O HOMEM
MAIS RICO
DO MUNDO?
Ainda não. Mas a aquisição da joalheria Tiffany coloca
o francês Bernard Arnault, dono do conglomerado
LVMH, na luta pelo topo do pódio — e denota o bom
momento do mercado de luxo
FERNANDO EICHENBERG, EM PARIS, E IVAN PADILLA
Aos 22 anos, o estudante de
Engenharia francês Bernard
Arnault viajou pela
primeira vez até Nova Iorque.
No táxi amarelo que
o levou do aeroporto John F. Kennedy a
Manhattan, perguntou ao motorista se
conhecia Georges Pompidou, Presidente
francês naquele ano de 1971. Ele nunca
ouvira falar do líder francês, mas afirmou
saber quem era o estilista Christian Dior.
O breve diálogo soou-lhe como uma revelação.
Em França, BA — como lhe chamam
os seus funcionários — formou ao longo
dos anos o grupo número 1 do mundo
em artigos de luxo, o LVMH, constituído
por 75 marcas, incluindo a Dior. No final
do ano passado, aos 70 anos, concluiu a
aquisição da joalheria norte-americana
Tiffany, pela qual desembolsou 16,2 mil
milhões de dólares, o maior negócio do
mercado de consumo de luxo de todos
os tempos.
A operação, somada ao crescente desempenho
do grupo LVMH, impulsionou
Arnault como forte candidato a ocupar o
topo do ranking das fortunas do planeta,
ameaçando os dois principais concorrentes,
ambos de sectores tecnológicos: os norte-
-americanos Jeff Bezos, dono da Amazon,
e Bill Gates, da Microsoft. A excelência não
alcançada em duas das suas maiores paixões,
o piano — embora ainda toque nas
horas vagas — e o ténis — mesmo já tendo
trocado bolas com o amigo Roger Federer
—, acabou por ser atingida no âmbito profissional.
“O que gosto é de ganhar, ser o
número 1”, disse em entrevista recente ao
jornal britânico The Telegraph. “Há a excitação
daquele momento em que se está prestes
a fechar um enorme negócio e não se
sabe se correrá bem ou não.”
A aventura de Arnault começou em
1984 com a compra da Boussac Saint-Frères,
uma empresa têxtil endividada mas
que detinha o controlo da Christian Dior
72 | Exame Moçambique
BERNARD ARNAULT:
Agressividade nas
aquisições e apelido
de “lobo de caxemira”
GETTY
e das lojas da cadeia Le Bon Marché. Com
o tempo, o empreendedor compulsivo —
alcunhado tanto de “conquistador” como
de “exterminador” — construiu um império,
com sucessivas aquisições de marcas
como Louis Vuitton, Kenzo, Fendi,
Céline, Sephora, TAG Heuer, Rimowa,
Moët & Chandon, Veuve Clicquot. Devido
à agressividade nos negócios, também lhe
chamam “lobo de caxemira”. “Existe uma
brincadeira entre os funcionários de que
ninguém entra no elevador com ele”, diz
um ex-executivo do grupo.
Em 2018 a LVMH registou um recorde
de facturação: quase 47 mil milhões de
euros, um crescimento de 10% em relação
ao ano anterior. Nos primeiros nove
meses de 2019 a receita acumulada foi
de 38,4 mil milhões de euros, um aumento
de 16%. A valorização das acções do grupo
até ao início de Dezembro de 2019 superava
61%. Para Isabelle Chaboud, directora do
curso de Gestão de Moda, Design & Luxo
da Escola de Administração de Grenoble,
o sucesso do LVMH está ancorado na
diversificação geográfica de produto e de
marca, aliada a uma ousada capacidade
de inovação. “Arnault é um visionário, um
estratega e um financeiro”, afirma Isabelle.
“O seu plano de segmentação sempre
visou marcas emblemáticas. A Bulgari era
uma empresa familiar, reputada pela qualidade
das criações. O mesmo se passou
com a Loro Piana, famosa pela caxemira.
Com o suporte financeiro colossal que possui,
promove mudanças, estabelece novas
colaborações, aumenta o desejo de marca.
E investe no longo prazo.”
NOMES DE VANGUARDA
O maior segmento do grupo é o da moda,
com 18,5 mil milhões de euros de facturação
em 2018. No sector, a principal geradora
de receita é a Louis Vuitton, a maior
marca de luxo do planeta segundo a consultora
Interbrand, avaliada em 32 mil
milhões de dólares. “Até há quinze anos
a Louis Vuitton não tinha esse apelo de
moda”, diz Martin Gutierrez, ex-director
de vendas do grupo JHSF e fundador da
MG Consulting. “A mudança de patamar
aconteceu com a chegada de Marc Jacobs
como director criativo, que fez um traba-
O IMPÉRIO ARNAULT
Maior conglomerado de luxo do mundo,
o grupo LVMH tem uma actuação diversificada
MARCAS: 75
FACTURAÇÃO: 47 mil milhões de euros
VALOR DE MERCADO:
409 mil milhões de euros
FUNCIONÁRIOS: 156 000
MODA E ACESSÓRIOS DE COURO
MARCAS: 17 (Louis Vuitton, Berluti, Rimowa,
Christian Dior, Givenchy, Marc Jacobs e Emilio
Pucci, entre outras)
FACTURAÇÃO: 18,5 mil milhões de euros
LOJAS NO MUNDO: 1852
RETALHO SELECTIVO
MARCAS: 5 (Le Bon Marché, Rive Gauche,
La Grande Épicerie de Paris, Starboard Cruise
Services, DFS, Sephora)
FACTURAÇÃO: 13,6 mil milhões de euros
LOJAS NO MUNDO: 1940
PERFUMES E COSMÉTICOS
MARCAS: 13 (Guerlain, Acqua di Parma,
Perfumes Loewe, Kenzo Parfums, Marc Jacobs
Beauty e Cha Ling, entre outras)
FACTURAÇÃO: 6 mil milhões de euros
VINHOS E BEBIDAS
MARCAS: 26 (Dom Pérignon, Moët & Chandon,
Chandon Brasil, Hennessy, Veuve Clicquot
e Belvedere, entre outras)
FACTURAÇÃO: 5 mil milhões de euros
RELÓGIOS E JOALHERIA
MARCAS: 6 (Chaumet, TAG Heuer, Zenith,
Bvlgari, Fred, Hublot)
FACTURAÇÃO: 4 mil milhões de euros
LOJAS NO MUNDO: 428
Desde a formação do grupo,
as receitas crescem fortemente
Facturação do grupo LVMH (1)
(em mil milhões de euros)
Relógios e jóias
Vinhos e destilados
Perfumes e cosméticos
Moda e couro Retalho
40
30
20
10
0 1995 2018
(1)
Não está incluída a categoria “outras actividades”,
que concentra hotéis, media, imobiliário, confeitaria e estaleiro.
Fontes: LVMH, pesquisa EXAME (dados de 2018) e Bloomberg.
março 2020 | 73
lho de marca comparável ao de Karl Lagerfeld
na Chanel e John Galliano na Dior.”
A contratação de nomes de vanguarda
para dirigir marcas históricas é uma táctica
que tem se mostrado vencedora como
forma de atrair as gerações jovens. Veja-se
as nomeações do americano Virgil Abloh,
o disruptivo estilista da marca italiana Of-
-White, como director artístico do vestuário
masculino da Louis Vuitton, do francês
Hedi Slimane para a criação da Céline e,
na Dior, da italiana Maria Grazia Chiuri,
a primeira mulher a ocupar o lugar desde
que a marca surgiu em 1946. Sem falar
na parceria firmada em 2019 com a cantora
Rihanna para lançar a sua marca de
moda, a Fenty Paris, uma estratégia para
bloquear a entrada no mercado de novos
criadores independentes.
O grupo também passou a esforçar-se
na frente digital. “Não temos dados oficiais,
mas podemos deduzir que de 15% a
20% da facturação vem do on-line”, refere
a especialista Isabelle. “As lojas físicas
serão sempre importantes.” Houve investimento
para colocar Ian Rogers, um ex-
-executivo da Apple, como novo director
digital. E a Louis Vuitton tornou-se uma
das primeiras marcas a transmitir um desfile
no Facebook.
Jean-Noël Kapferer, director de investigação
na Inseec School of Business & Economics,
de Paris, e autor do livro Luxury
Strategy, salienta o mérito de Arnault por
ter compreendido que big is beautiful.
“O storytelling do luxo diz que é preciso
permanecer pequeno, valorizar os artesãos,
mas a realidade é a necessidade de
escala. E a LVMH é o grupo ideal para responder
à procura asiática, que representa
80% do crescimento do mercado de luxo.”
Há o receio de que os protestos deste ano em
Hong Kong diminuam o ímpeto dos consumidores
asiáticos. Jean-Jacques Guiony,
vice-presidente financeiro do grupo, diz
que não vê o problema a longo prazo e
que as compras efectuadas por turistas
chineses podem compensar uma eventual
queda local.
A boa presença da Tiffany na Ásia foi
um dos motivos que despertaram o interesse
da LVMH. Mas é nos Estados Unidos,
onde nasceu, que a joalheria tem
D.R.
LOUIS VUITTON
EM HONG KONG:
Os protestos locais
podem abalar o
mercado asiático
mais força — e é esse o mercado onde o
grupo de Arnault mais quer entrar. Por lá,
18,6 milhões de pessoas têm mais de um
milhão de dólares na conta, segundo um
estudo do banco Credit Suisse. Isso representa
40% dos milionários do mundo.
Na China vivem 4,4 milhões de milionários.
“Os Estados Unidos não são percebidos
como um país que produza marcas
icónicas como a Europa”, diz Carlos Ferreirinha,
especializado em gestão de luxo e
presidente da MCF Consultoria. “Lá existe
a Ralph Lauren, a Coach, mas não são percebidas
como grifes de primeiro escalão.
A Tiffany é um caso único.”
A joalheria já estava em sintonia com o
movimento de apostar na comunicação
com as novas gerações. As suas campanhas
mais recentes apresentaram a cantora
Lady Gaga e tiveram como tema a diversidade
no amor. Em produtos, o investimento
dá-se em peças acessíveis: no Brasil
é possível comprar pingentes de coração
por 400 reais (92,5 dólares). “Para nós, a
acessibilidade não é uma estratégia, está
no nosso ADN”, diz Maximiliano Sufriti,
director-geral da Tiffany no Brasil. “Nascemos
em 1837 em Nova Iorque como um
empório, onde o cliente podia comprar
desde papelaria a objectos de decoração.
Claro que eram os melhores artigos. Hoje
as pessoas encontram aqui desde perfumes
até aos diamantes mais fabulosos. Mas o
que trouxe mais awareness foi a inserção
nos media sociais. A Tiffany foi uma das
marcas de luxo, se não a primeira, a colocar
os preços no Facebook.”
Para Jérôme Caby, especialista em finanças
empresariais na escola de negócios
IAE Paris-Sorbonne, a compra da Tiffany
era inevitável se a ideia é concorrer com a
Richemont e as suas marcas Cartier e Van
Cleef & Arpels. “Arnault poderá desenvolver
outros tipos de produto, como fez
com a Bulgari”, diz Caby. “Há espaço de
desenvolvimento, de melhoria das margens
e meios para que os 135 dólares pagos
por acção sejam rentabilizados. Há fusões
que geram dúvidas, mas nesta, em termos
de estratégia, não se vê um ponto fraco, o
que é raro.” Segundo o LVMH, a rentabilidade
da Bulgari foi multiplicada por cinco
desde que foi integrada no grupo em 2011.
A expectativa é de que, com a aquisição da
Tiffany, os actuais 9% de participação do
segmento de relógios e joalheria no total
74 | Exame Moçambique
A CAIXA AZUL-TURQUESA
A compra da americana Tiffany foi o maior
negócio do segmento de luxo de todos
os tempos
16,6 mil milhões de dólares
é o valor de mercado da Tiffany após
a aquisição pelo grupo LVMH
Cada acção foi vendida a 135 dólares,
um aumento de 57% nos últimos
três meses
4,4 mil milhões de dólares
foi a facturação da joalheria em 2018
A LOJA DA TIFFANY NA 5.ª AVENIDA,
EM NOVA IORQUE: Um símbolo americano
D.R.
de vendas do grupo aumentem para 18%.
O objectivo é superar a Richemont, hoje
líder no sector, com 14,8% do segmento.
Nas previsões do estudo realizado pelos
analistas da consultora Bain, o mercado de
luxo deverá crescer, em média, entre 3%
e 5% ao ano até 2025, atingindo um valor
entre 320 mil milhões e 365 mil milhões
de euros no mundo. Actualmente o segmento
é dominado por três conglomerados.
O grupo LVMH factura o quádruplo
da também francesa Kering, que reúne a
Gucci, Saint Laurent, Brioni e Girard Perregaux,
entre outras marcas, e quatro vezes o
que faz a Richemont. Entre as marcas independentes,
a Hermès e a Armani já foram
alvo de tentativas de compra por parte de
Arnault, assim como a Gucci. Momentos
em que Arnault falhou. Mas recentemente
teve um pequeno gosto de vitória.
Por algumas horas, o bilionário francês,
cuja fortuna provém na sua maior parte dos
47% em acções que detém no LVMH, chegou
a figurar no cimo do pódio dos mais
ricos do mundo. “Não é todo o dinheiro
que tenho na minha conta, mas o valor
das acções do grupo. Se as acções sobem,
a fortuna sobe. Voilà”, disse.
A sua trajectória está repleta de cifras e
também de simbologias. Numa cena do
filme Boneca de Luxo, de 1961, Audrey
Hepburn, num vestido preto Givenchy,
admira a montra da Tiffany da 5.ª Avenida
de Nova Iorque. Hoje, tanto a grife de
roupa quanto a marca da caixa azul brilham
na constelação de Arnault.b
março 2020 | 75
SUSTENTABILIDADE COP25
PROTESTO DE
JOVENS NA COP25:
Pressão para que
sejam tomadas
decisões
UMA NOVA GERAÇÃO
DE ACTIVISTAS
O clamor dos jovens nas principais discussões sobre como travar o avanço das mudanças
climáticas nunca foi tão intenso — e há indícios de que o movimento deverá crescer
RODRIGO CAETANO, EM MADRID, ESPANHA
76 | Exame Moçambique
D
ezenas de jovens de diversas
nacionalidades ocuparam
o palco principal instalado
para a realização da Conferência
sobre o Clima da
ONU, a COP25, na quarta-feira dia 11 de
Dezembro, nas imediações de Madrid, em
Espanha. Com a desordem habitual dos
adolescentes, o rosto pintado de verde e,
nas mãos, desenhos de um olho azul que
simboliza a necessidade de enxergar o
futuro, os jovens quebraram o protocolo
da organização e promoveram um protesto
pacífico. A principal exigência assentava
REUTERS
na reclamação de acções concretas, por
parte dos governos, para resolver a crise
climática — a conferência, realizada de
7 a 13 de Dezembro, terminou sem avanços
devido a divergências. Mais tarde, no
mesmo dia, os jovens voltaram a manifestar-se.
Pacificamente, cantaram e protestaram
frente à reunião plenária. Desta
vez, a segurança — da própria ONU —
interveio e expulsou-os. Mais de 300 pessoas
foram impedidas de regressarem à
conferência. Segundo a Convenção-Quadro
das Nações Unidas para as Alterações
Climáticas, secretariado responsável pelo
evento, as acções foram necessárias para
garantir a segurança de todos. A entidade
classificou o episódio como um infeliz
incidente e salientou a importância da
participação da sociedade civil nas discussões
sobre a crise climática. “Não estamos
aqui como entretenimento. Se vocês querem
um futuro, é melhor agirem. Essa é
nossa mensagem”, disse à EXAME Vega
Mänsson, de 16 anos, que levou vinte horas
de autocarro e comboio para se deslocar
da Holanda até Espanha. O clamor dos
jovens nas discussões sobre as mudanças
climáticas nunca foi tão evidente quanto
nesta edição da conferência. A sueca Greta
Thunberg, de 16 anos, eleita a “pessoa do
ano” pela revista norte-americana Time, é
o rosto mais conhecido desse movimento.
“É uma adolescente comum que se tornou
ícone de uma geração”, afirmou a reportagem
da Time. “Thunberg converte-se na voz
mais mobilizadora no tema mais importante
enfrentado pelo planeta.”
Embora o movimento nunca tenha encontrado
uma única figura tão visível quanto
Greta, não é de hoje que os jovens se mobilizam
em prol do ambiente. A primeira
movimentação organizada da juventude
aconteceu na COP11, em Montreal, em 2005,
quando surgiu o grupo international Youth
Climate Movement. Em 2009, na COP15,
realizada em Copenhaga, na Dinamarca,
foi criada a Youngo, corpo representativo
oficial da juventude na Convenção-Quadro
das Nações Unidas para as Alterações
Climáticas, que reúne uma série de entidades
estudantis. A COP15 também ficou
marcada por manifestações em favor da
justiça climática, uma agenda importante
MUITO PARA LÁ
DE GRETA THUNBERG
As principais actividades dos jovens
empenhados na discussão sobre o clima
— já há mais de 13 milhões de activistas
em 228 países
1. GREVES ÀS SEXTAS-FEIRAS
O movimento iniciado pela sueca Greta
Thunberg, de 16 anos, consiste em faltar
às aulas todas as sextas-feiras e sentar-se
frente à escola ou a um órgão governamental.
Exemplo
No dia 20 de Setembro, cerca de 2 milhões
de jovens faltaram, em todo o mundo, às aulas
para marcharem em defesa do meio ambiente
em cidades como Berlim, Londres e Melbourne.
2. PRESENÇA EM EVENTOS OFICIAIS
Grupos de jovens organizam-se para
se manifestarem em eventos relevantes,
como as conferências do clima da ONU.
Exemplo
No dia 11 de Dezembro, após manifestações
pacíficas, um grupo de jovens foi expulso
da área de realização da COP25, em Madrid.
3. “EDUCAÇÃO CLIMÁTICA”
Os jovens organizam na Internet núcleos
de discussão e de produção de conteúdos.
O objectivo é a consciencialização e a atracção
de novos participantes.
Exemplo
A organização Fridays For Future tem um guia
on-line sobre como iniciar um movimento local.
para os jovens actuais, e pela explosão do
chamado activismo on-line. A ascensão
meteórica de Greta ajudou a dar força ao
movimento. Pouco mais de um ano se passou
desde que ela decidiu iniciar o seu protesto
solitário, em Agosto de 2018. Todas
as sextas-feiras, Greta faltava à escola, na
Suécia, e dirigia-se para o Parlamento do
país, em Estocolmo, com um cartaz onde
se lia: “Greve escolar pelo clima.” A história
espalhou-se de imediato nas redes sociais.
Em Dezembro, fez um discurso durante a
COP24, em Katovice, na Polónia. A imagem
da miúda que questiona as autoridades
fortaleceu ainda mais a sua influência.
Milhares de jovens em todo o mundo segui-
março 2020 | 77
SUSTENTABILIDADE COP25
REUTERS
GRETA THUNBERG:
Inspiração para
outros jovens
ram o seu exemplo. No dia 20 Setembro de
2019 deste ano, mais de 4 milhões de pessoas
aderiram a uma greve global, convocada
pela Internet, a maior manifestação
pelo clima alguma vez realizada.
A organização Fridays For Future, criada
após as greves de Greta, une actualmente
grupos locais numa rede global, além de
incentivar a criação de novos colectivos.
Procura principalmente acelerar a transição
para uma economia de baixo carbono,
pondo termo a todos os novos projectos de
exploração de combustíveis fósseis. Além
disso, pede a inclusão de agendas sociais
nas discussões climáticas e que a voz dos
povos originários e indígenas seja ouvida
e levada em consideração nas tomadas
de decisão.
Os jovens, claro, não estão imunes à crítica.
Além de protestarem, o que propõem
exactamente como solução para as mudanças
climáticas? Outra crítica, especialmente
à postura de Greta, é o alarmismo excessivo.
O tempo dirá se ela tem ou não razão.
Mas um discurso tão forte como o desta
juventude já começa a ser ouvido até no
mercado financeiro. Um relatório de 34
páginas elaborado em Setembro pelo banco
Goldman Sachs alerta para o perigo das
mudanças climáticas. “Metade da população
mundial viverá em áreas com problema
de suprimento de água em 2025”,
assinala o documento. Outro relatório,
da consultora AT Kearney, aponta que
a indústria de gestão de emergências vai
avançar 6% com o aumento de catástrofes
naturais e superar a receita de 114 mil
milhões de dólares em 2020. Segundo as
projecções, o número de pessoas desalojadas
devido a condições climáticas extremas
aumentará 50% nos próximos dez
anos. O mesmo relatório da AT Kearney
também alerta para a possibilidade de os
conflitos geracionais se intensificarem.
Além da ascensão de Greta, protestos em
massa no Líbano e no Chile demonstram
a crescente insatisfação das gerações mais
novas com a actual liderança política. Em
Hong Kong, uma onda de manifestações
pró-democracia comandada por jovens já
dura há mais de seis meses. Em Maio, nas
eleições parlamentares da União Europeia,
havia a expectativa de uma ascensão
da extrema-direita. O que se viu, no
entanto, foi aflorarem os partidos verdes,
em particular na Alemanha, França,
Reino Unido e Irlanda. Nos Estados Unidos,
o mesmo fenómeno é reflectido pela
popularidade da deputada Alexandria
Ocasio-Cortez, de 30 anos, cuja principal
plataforma política gira em torno do
Green New Deal, um novo plano económico
para a maior economia do mundo.
A ousadia dos jovens e o efeito multiplicador
do activismo já irritaram alguns
líderes, como Donald Trump, que sugeriu
que Greta Thunberg se acalmasse, e Jair
Bolsonaro, que lhe chamou “pirralha”.
A sua aparência frágil torna-a um alvo
mais fácil. Tem 16 anos, mas aparenta
menos. “Ciente de que a sua geração vai
sofrer com as mudanças climáticas, Greta
não tem medo de pressionar para que
haja acções reais”, disse o ex-Presidente
Barack Obama no Twitter, obviamente
em antagonismo com Trump. “O futuro
será marcado por líderes como ela.” A atitude
de tratar os jovens como irrelevantes,
na verdade parece servir de motivação.
“Eles pensam que, quando a gente crescer,
isto vai passar. Só que não vai”, afirmou
Karina Penna, de 23 anos, estudante de
Biologia, do Maranhão, que cumpria a sua
terceira COP — faz parte da ONG Engajamundo,
criada em 2012 por lideranças
jovens que participaram da COP18, em
Doha, no Catar. Por detrás dessa motivação
está a consciência de que eles são,
de facto, o futuro. “Somos nós que tomaremos
as decisões, mas é preciso que nos
deixem um mundo”, disse a mexicana Xie
Bastida, de 17 anos, também presente na
Conferência das Nações Unidas. “Podemos
ser apenas pouco mais de 20% da população
mas somos 100% do futuro.”
Num ponto os jovens e não jovens deveriam
concordar: um mundo mais sustentável
fará bem aos cidadãos de todas
as idades.b
78 | Exame Moçambique
NAS NEGOCIAÇÕES, A TEMPERATURA APENAS SOBE
O impasse sobre as regras para a criação de um mercado global de carbono mantém-se
O principal ponto na agenda da Conferência
do Clima em Madrid, Espanha,
girou em torno do artigo 6 do Acordo
de Paris, que prevê a criação de um
mercado global de carbono. Este é
um dos pontos mais importantes do
documento assinado em 2015. De acordo
com esse mecanismo, os países desenvolvidos
que precisam de compensar
as suas emissões poderão fazer pagamentos
a países em desenvolvimento,
que necessitam de financiamento para
fazer a transição rumo a uma economia
de baixo carbono. Ninguém discorda
de que se trata de uma maneira eficiente
de incentivar as mudanças necessárias.
Os países ricos já se comprometeram a
pôr anualmente à disposição 100 mil
milhões de dólares para a compra desses
créditos a partir de 2020. Os países
emergentes querem, claro, receber.
Divergências sobre as regras do jogo, no
entanto, postergaram uma definição. Um
ponto crítico é o modelo de contagem.
O Brasil defende que os créditos negociados
possam contar para o cumprimento
da meta de redução de emissões
do país de quem vende e a favor do país
que os comprou. Mas, se o mesmo crédito
valesse para o comprador e para o
vendedor, as sobreposições acabariam
por inflacionar a contabilidade global
das metas. “O nosso objectivo ao negociar
é garantir o máximo de benefícios
para o Brasil”, afirmou o ministro brasileiro
do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
“É uma polémica vazia. O Brasil não
pode querer usar o crédito que vendeu”,
diz Ronaldo Seroa da Motta, professor
de Economia na Universidade Estadual
do Rio de Janeiro.
Num outro tópico polémico, Brasil e
Austrália defendem que créditos antigos,
O MINISTRO BRASILEIRO
RICARDO SALLES:
Irredutível em relação
a dois aspectos críticos
obtidos por mecanismos estabelecidos
pelo Protocolo de Quioto, de 1997, possam
ser carregados para o novo sistema.
Há 4,6 mil milhões de créditos (cujo valor
ainda não foi definido) passados, sendo
que a China detém 60% do total e o Brasil,
5%. Referem-se à redução de emissões
já obtidas mas que nunca foram
negociadas. Para os líderes europeus,
permitir o “carregamento” inundaria o
mercado com créditos “podres”. Estes
não serviriam como metas de redução
actuais e futuras, já que foram obtidos
no passado. “Do ponto de vista económico,
o melhor seria o Brasil ceder para
que as empresas pudessem beneficiar do
mercado de carbono”, diz Marina Grossi,
presidente do Conselho Empresarial Brasileiro
para o Desenvolvimento Sustentável,
que reúne 60 grandes empresas
que actuam no país. A validação de projectos
passados também poderia fazer
cair o preço do carbono, algo que não
agrada aos europeus. Durante a conferência,
a União Europeia anunciou um
plano para atingir a neutralidade carbónica
até 2050, iniciativa baptizada
Green Deal Europeu. O holandês Frans
Timmermans, vice-presidente da Comissão
Europeia que lidera o plano, disse
tratar-se de um “modelo de desenvolvimento
económico” a ser exportado
para o mundo.
Por detrás da ideia está também a possibilidade
de exportar tecnologia para a
geração de energia limpa. Um mercado
de carbono bem valorizado ajudaria a
criar incentivos para que mais projectos
sofisticados e caros saiam do papel.
Um dos alvos da Europa será a China.
Já se discute uma taxação na fronteira
europeia de produtos vindos de empresas
que ultrapassarem um certo nível
de emissões, uma preocupação para os
exportadores chineses. Em Setembro,
haverá uma reunião de cúpula entre o
Velho Continente e a China. O objectivo
dos líderes europeus é tornar a meta
chinesa mais ambiciosa.
A esperança de um acordo ficou para
a próxima conferência, daqui a um ano,
em Glasgow, na Escócia. Será o primeiro
grande evento no Reino Unido pós-Brexit.
Também será a primeira COP sem
os Estados Unidos, que anunciaram a
saída do Acordo de Paris. A temperatura
sobe. E a perspectiva de um desfecho,
mais uma vez, ficou para depois.
REUTERS
março 2020 | 79
IDEIAS CAPITALISMO
O CAPITALISMO
ESTÁ POUCO
CAPITALISTA
Com o aumento da concentração do poder económico
na era digital, o sistema que mais criou riqueza na história
da humanidade afasta-se da origem e amplia distorções,
segundo o livro The Myth of Capitalism, um dos melhores
de 2019. A saída: injectar competição. Mas como?
JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS
DISTRITO NO QUÉNIA:
O mau desempenho
do capitalismo moderno tem
trazido aumento de preços, mais
impactante para os mais pobres
Q
uando se trata de perspectivas,
o livro do economista
norte-americano Jonathan
Tepper, The Myth of Capitalism:
Monopolies and the
Death of Competition (“O mito do capitalismo:
monopólios e a morte da concorrência”,
sem versão para o português),
é um dos melhores do ano, segundo o jornal
inglês Financial Times, e incorpora
uma intensa busca de explicações para o
evidente desempenho defeituoso do capitalismo
moderno, que tem gerado uma
enorme insatisfação pelo mundo fora.
A tese de Tepper é que, embora o capitalismo
se tenha mostrado o melhor sistema
para a criação de riqueza e redução
da pobreza da população, hoje o que vemos
é algo totalmente diferente da sua origem,
baseada na existência de mercados concorrenciais.
Por outras palavras, a batalha
da competição está a ser perdida porque
todos os sectores estão a ficar altamente
concentrados nas mãos de poucos. E capitalismo
sem competição não é capitalismo.
O crescimento do poder de mercado
das formas dominantes tem resultado em
menos investimento, menor produtividade,
menor dinamismo, margens maiores,
menores salários e maior concentração
de riqueza. No sector tecnológico, o que já
não era bom ainda fica muito pior, dada a
prevalência do modelo “o vencedor leva
tudo”. Isso é especialmente relevante no
caso da Apple, Google, Amazon, Facebook
e Microsoft, que “são óptimas para
os accionistas mas são arrogantes e matam
a competição”, de acordo com Tepper.
Nos últimos dez anos, estas cinco grandes
empresas compraram 436 companhias,
REUTERS
desenvolvendo verdadeiros monopólios
em muitas áreas fundamentais (como
mecanismos de busca), tudo sem que os
reguladores tivessem dito algo relevante
a esse respeito. Foi só muito recentemente
que o Departamento de Justiça e a Federal
Trade Comission abriram processos
para investigar práticas anticompetitivas
de algumas dessas empresas.
O ponto central de Tepper é que se vive
um intenso processo de concentração da
produção dos diversos sectores da econo-
80 | Exame Moçambique
mia. Ao longo do livro, ele faz uma extensa
apresentação de evidências de monopólios
em segmentos tão distintos quanto as
redes sociais, leite, ferrovia, chips e sementes.
Duopólios aparecem em sistemas de
pagamentos, cerveja, publicidade on-line,
vidros e outros. E, finalmente, os oligopólios
marcam presença em segmentos
como empresas aéreas, companhias telefónicas,
bancos, assistência médica. Nalguns
casos, como na indústria de carne,
há uma reconstituição do caminho da
A BATALHA DA
COMPETIÇÃO ESTÁ A SER
PERDIDA POIS TODOS
OS SECTORES ESTÃO
A FICAR ALTAMENTE
CONCENTRADOS
concentração, citando em destaque a JBS
e a Tyson Foods.
Esta concentração decorre, naturalmente,
de grandes processos de fusões
e aquisições de empresas. Na história
dos Estados Unidos são bastante conhecidos
dois momentos muito intensos
nessa direcção: na passagem do século
xix para o século xx e após 1990. O primeiro
momento, que coincide com o
auge de figuras como JP Morgan e John
Rockefeller, acabou por levar à publi-
março 2020 | 81
IDEIAS CAPITALISMO
cação do Sherman Act, o principal instrumento
legal para o desenvolvimento
da política antitrust. São as idas e vindas
da força dessa política contra os monopólios
que explicam o momento actual.
Maior concentração implica maior poder
das empresas para elevarem os preços,
aumentando as suas margens. Em 2007,
o economista Matthew Weinberg publicou
um estudo sobre fusões entre competidores
dos 22 anos anteriores e descobriu
que a maioria dos negócios resultou em
aumento de preços, tanto naquelas que
se fundiram quanto nas rivais. Concluiu
que a evidência de que as fusões resultam
em aumento de preços, e de margens,
é devastadora.
Na mesma linha, John Kwoka, especialista
em política de competição, mostrou
que, em 95% dos casos, sempre que processos
de fusões e aquisições resultaram
em menos de seis competidores principais,
os preços aumentaram, em média,
4,3%. A consequência deste movimento
é o aumento persistente das margens das
grandes empresas, e isso também está
claramente demonstrado num trabalho
recente de economistas do Fundo Monetário
Internacional. Federico J. Díez e colegas
constataram que, entre 1980 e 2016, as
margens das maiores empresas nos países
avançados subiram, em média, 39%,
e nos Estados Unidos, 42%.
É inequívoco que a concentração nos
diversos sectores leva a maiores margens
e maiores lucros, com fortes consequências
no sistema económico. E estas não
são pequenas, como se mostra ao longo
do livro. A parcela dos salários no rendimento
nacional começa a contrair-se
82 | Exame Moçambique
influência da Escola de Chicago, liderada
por Milton Friedman, onde pontificaram
nomes como Eugene Fama,
Richard Posner e Robert Bork. A crença
de que a intervenção estatal sempre termina
mal e de que a desregulamentação
seria positiva levou, por exemplo,
à liberalização do sector financeiro e à
grande crise de 2007 e 2008.
Ao contrário da regulação, o que se
defendia era o livre funcionamento dos
mercados: se a actividade fosse lucrativa,
sempre apareceria a competição e
o bem-estar seria maximizado. Entretanto,
como a evidência mostra, não foi
o que aconteceu. Na verdade, a situação
limite verificou-se na importância
dos gigantes da tecnologia. Como disse
Tepper, a grande ironia é que, sendo
contra monopólios e a concentração de
poder, Friedman e outros propugnaram
políticas que acabaram por criar todas as
condições para que tal ocorresse.
A conclusão não poderia ser outra a não
ser a necessidade de uma reforma no sentido
de injectar competição no sistema.
Mas isso ainda não sabemos como fazer.
Estamos às voltas com aquele que parece
o maior problema da economia global: a
concentração do poder económico e suas
consequências. Afinal, capitalismo sem
competição não é capitalismo. b
José Roberto Mendonça de Barros, sócio da
consultora MB Associados, foi secretário de
Política Económica do Ministério brasileiro
da Fazenda de 1995 a 1998.
D.R.
REUTERS
GOOGLE:
A concentração
conduz a maiores lucros
na relação inversa da concentração dos
mercados, e com esta há um nítido agravamento
na distribuição do rendimento
pessoal, hoje universalmente conhecido e
debatido. Além da deterioração da classe
média, Tepper apresenta um dado que
chama a atenção: 84% de todas as acções
de empresas estão nas mãos dos 10% mais
ricos da população.
Toda essa transformação decorre do
auge e do declínio da política antimonopolista.
De facto, do final dos anos 30 ao
início dos anos 80, a política pró-competição
foi muito intensa. Em muitos casos,
não podendo comprar concorrentes, as
empresas começaram a fazer aquisições
noutras áreas, formando grandes conglomerados.
Mais recentemente, uma nova
fase de concentração veio a ocorrer e teve
como um dos seus suportes a imensa
JOHN
ROCKEFELLER:
O seu império
inspirou as leis
antitrust no início
do século XX
março 2020 | 83
FINANÇAS BRASIL
O BRASIL
INVESTE
ALÉM-
-FRONTEIRAS
Poucos brasileiros consideravam o exterior
uma possibilidade real de investimento. Mas os juros baixos
abriram as portas a um caminho sem retorno
— e não só para os ricos
MARÍLIA ALMEIDA
Com excepção do topo da pirâmide,
os brasileiros nunca
consideraram o exterior uma
possibilidade real de investimento.
Não valia a pena
diversificar a esse nível e correr mais riscos
por retornos inferiores à Selic (a taxa
de juro média dos títulos públicos). Mas
agora a situação mudou. A taxa básica
de juro num mínimo histórico, conjugada
com uma inflação controlada e o
avanço da tecnologia, permitem pensar
mais facilmente em investir fora de portas.
Juros baixos exigem maior diversificação
e assunção de risco. E o nível de
diversificação de um mercado maduro é
incomparável. Actualmente, cerca de 3500
empresas encontram-se listadas nas bolsas
americanas, sete vezes o número de
empresas com papéis negociados na B3
(a bolsa de valores oficial brasileira, com
sede em São Paulo).
O que está em questão é a possibilidade
de ganhar com tendências e negócios
que ocorrem fora do Brasil. É o caso
de grandes empresas de tecnologia, como
a Amazon, Google, Facebook, Apple e
Alibaba, e também de startups da economia
partilhada, como a Uber, listadas
em bolsas americanas. Este movimento
é global e passou a incluir recentemente
empresas nacionais — a última delas é a
XP, que abriu o capital em Dezembro no
NASDAQ (bolsa das empresas tecnológi-
BOLSA DE NOVA
IORQUE: O índice S&P
valorizou 29% em 2019
84 | Exame Moçambique
GANHOS NO EXTERIOR
A rentabilidade dos fundos com parte relevante
de investimentos no exterior aumentou em 2019
com o impulso do bom retorno da bolsa americana
2018 2019 (em %)
Fundos de investimento no exterior (1)
Acções
Multimercado
Rendimento Fixo
11,8
33,6
13,9
12,7
5,6
8,5
Outros fundos
O desempenho de fundos que investem até 20%
no exterior, mais acessível no retalho, também
aumentou acima do CDI
Fundos
Acções
Livre
Fundos
Acções
Índice Activo
Fundos
Multimercado
Livre
14 28
17 28 9 10
2018
CDI: 5,9
2019
Ibovespa: 17,1
CDI: 5,5
Ibovespa: 23,2
(1)
Categoria inclui fundos que investem mais de 40% em activos
no exterior. Fonte: Anbima/Base: Novembro de 2019.
REUTERS
cas norte-americana). Empresas de meios
de pagamentos, como PagSeguro e Stone,
também foram à bolsa no exterior do
país. De Janeiro a Novembro de 2019, os
fundos nacionais de acções que investem
parte relevante do património no exterior
registaram a segunda maior rentabilidade
entre os fundos de acções: 33,6%, segundo
dados da Anbima. Correspondeu ao triplo
da rentabilidade obtida por aqueles fundos
no mesmo período do ano anterior.
No ano passado, dados positivos relativos
ao crescimento nos Estados Unidos reflec-
março 2020 | 85
FINANÇAS BRASIL
tiram-se em índices de acções, como o
S&P500, que reúne as 500 maiores empresas
norte-americanas, com uma valorização
de 29%, o maior retorno desde 2013.
As eleições norte-americanas podem trazer
mais volatilidade aos papéis, mas este
risco adicional também oferece oportunidades
de ganhos. Já os títulos emitidos
no exterior por empresas como a Ford e
a Bradesco com vencimento entre 2025
e 2027 pagam actualmente de 4% a 6% ao
ano. Basta subtrair a inflação norte-americana
para chegar a um retorno maior
do que o proporcionado por aplicações
de rendimento fixo no Brasil.
Investir no exterior não é só para milionários.
A saída geográfica pode fazer
sentido para investidores do retalho em
alternativas mais democráticas, como
os fundos de índice (ETF) e os fundos
locais com exposição ao exterior, segundo
William Eid, professor no Centro de Estudos
em Finanças da Fundação Getúlio
Vargas (FGV). Já para quem tem mais
recursos, acima de 100 mil reais (mais
de 23 mil dólares), os títulos de dívida
de grandes empresas pagam bem e são
resilientes. É recomendável que a diversificação
no exterior represente de 10% a
15% do total do portefólio. “Uma vantagem
de investir fora é reduzir o risco político,
que está sempre presente no Brasil”,
diz Eid. É importante que a diversificação
no exterior, portanto, não seja encarada
como uma maior aceitação de risco mas
como uma protecção adicional. “A redução
da volatilidade de um portefólio é obtida
principalmente com uma baixa correlação
ou correlação negativa dos activos
que o compõem. O investimento em economias
e moedas diferentes cumpre esse
papel”, diz Carlos Takahashi, presidente
da gestora global BlackRock. Importante:
aplicações em rendimento fixo, em geral,
incluem hedge cambial. Ou seja, eliminam
o risco da moeda, enquanto investimentos
em rendimento variável costumam incluir
esse risco para aumentar a rentabilidade.
O movimento de mais empresas a abrirem
o capital fora do Brasil sagrou a tendência
de flexibilização das regras brasileiras
sobre aplicações no exterior. Após a abertura
de capital da XP, a Comissão de Valores
D.R.
GOOGLE: A oportunidade de investir nos gigantes da tecnologia nos Estados Unidos
Mobiliários abriu uma audiência pública
para democratizar o acesso de pequenos
investidores aos Brazilian Depositary
Receipts (BDR), recibos que representam
acções brasileiras listadas em bolsas
estrangeiras. O objectivo é que qualquer
investidor tenha acesso ao BDR Nível 1,
hoje disponível apenas para investidores
qualificados, e possa aplicar dinheiro em
empresas brasileiras que abram o capital
no exterior. Hoje, empresas com a maior
parte dos activos no Brasil, como a XP,
não podem participar no programa de
BDR. Por fim, a CVM também quer que
o programa inclua, além de acções, ETF
e títulos de dívidas, os bonds. A última
actualização das regras para a modalidade
de investimentos externos havia sido feita
pela CVM em 2014. Nesse ano a regulação
passou a permitir que fundos nacionais
invistam 100% do seu património em
activos no exterior. Contudo, quem deseja
investir num fundo que aplique a maior
parte de seu portefólio no exterior (pelo
menos 67%) ainda tem de ser qualificado,
ou seja, deter pelo menos 1 milhão de reais
(mais de 230 mil dólares) em investimentos.
Luís Antonio Berwanger, superintendente
de desenvolvimento de mercado da
CVM, indica que a regulação dos fundos
pode ficar ainda mais flexível. “É um processo
gradativo. Resolvemos flexibilizar
a regulação sobre os BDR porque no passado
havia empresas que abriam o capital
no exterior para fugirem da tributação brasileira.
Mas entendemos que não é o caso
das empresas que recentemente abriram
o capital lá fora”, diz Berwanger.
Uma barreira a menos é o processo de
abertura de contas no exterior, que nunca
foi tão simples. Um cadastro que antes
precisava de ser concluído em 15 dias,
actualmente pode ser feito on-line em
15 minutos: são necessários apenas um
documento de identificação e um comprovativo
de residência do investidor.
Há corretoras de baixo custo, como a DriveWealth,
na qual o dinheiro pode ser
transferido através de remessas on-line,
e também corretoras centradas em atender
estrangeiros, a exemplo da Avenue,
fundada por brasileiros e cujo objectivo
é servir investidores latino-americanos.
Ambas operam nos Estados Unidos, mas
oferecem páginas em português. “Havia
um esforço das gestoras nacionais em protegerem
os seus produtos e não investirem
num portefólio internacional. Agora,
com juros baixos e maior concorrência, a
tendência é para que as diferenças diminuam”,
diz Roberto Teperman, director
da gestora Legg Mason, que tem 800 mil
milhões de dólares sob gestão. O mercado,
mais do que nunca, é global. b
86 | Exame Moçambique
ESPECIAL INOVAÇÃO
88 | Exame Moçambique
COM O APOIO DE:
EDUCAR
PARA
INOVAR
A escola é uma mola para a inovação,
mas estará ela própria a inovar-se?
A educação virada para a inovação acolhe
as novas tecnologias, apropria-se
e transforma a seu favor as tendências
sociais e está integrada em rede
na sociedade
94
96
MELHORES UNIVERSIDADES
As mais inovadoras
INOVAR O VESTUÁRIO
O conforto da tecnologia
GETTY
março 2020 | 89
ESPECIAL INOVAÇÃO
Antes de se tentar indagar
qual o papel que a educação
tem na inovação, deve
perguntar-se se a escola é
ela própria inovadora na
sua pedagogia, nos seus métodos, na sua
abordagem do conhecimento. Vários estudos
efectuados mostram que o modelo de
educação, apesar dos esforços para o adequar
a uma aprendizagem activa, à interacção
cooperativa e à preparação para a
vida laboral, mantém uma grande estabilidade,
na distribuição do tempo escolar
e nos métodos utilizados, muito centrados
na figura do professor. A mudança
no ambiente educacional é uma premissa
para que a educação conduza à inovação.
A ideia de que o grande objectivo da educação
é criar gente inovadora não é nova;
a maior referência da pedagogia moderna,
Jean Piaget, afirmara já, em 1972, que “a
principal meta da educação é criar homens
que sejam capazes de fazer coisas novas, não
simplesmente repetir o que as outras gerações
já fizeram. Homens que sejam criadores,
inventores, descobridores. A segunda
meta da educação é a formar mentes que
estejam em condições de criticar, verificar
e não aceitar tudo que a elas se propõe”.
Karen Selbach Borges, uma académica
brasileira, dedicou um estudo à contribuição
da educação para a inovação e enumerou
os vários factores necessários para que
esta se efective. À cabeça coloca a questão
da liberdade e da autonomia de cada um
como condições para que se desencadeie
o processo criativo. “A liberdade e a autonomia
(em todas as suas dimensões) são
elementos indispensáveis na formação
de sujeitos de inovação, pois promovem
o surgimento de características pessoais
importantes, tais como a iniciativa, a auto-
-regulação, a colaboração, a criatividade e a
atitude questionadora, entre outros”, refere.
A escola centrada no professor é, na
perspectiva da inovação, coisa do passado.
Na escola virada para a inovação o
ensino centra-se no aluno, sendo o professor
um facilitador da aprendizagem,
experimentação, pois a preparação para
experiências futuras enriquece o conhecimento
e deve incluir a prototipagem, que
permite “pensar com as mãos”. A última
condição colocada por Selbach Borges ao
modelo educativo que fixa como horizonte
a inovação é a sua contextualização na
cultura digital, a qual não equivale apenas
à “digitalização” da cultura, mas ao
surgimento de uma outra cultura. “Navegar
pela rede, localizar, filtrar e compilar
as informações é uma das aptidões
associadas às novas formas de aprender.
O desenvolvimento de competências e habilidades
é tão importante quanto a aquisição
do conhecimento técnico, pois dizem
respeito ao indivíduo e podem ser determiatendendo
esta mais à curiosidade e às
dúvidas dos sujeitos. O ensino ligado à
inovação procura desenvolver competências
na aquisição, comparação, classificação
e cruzamento de informações.
A produção de conhecimento, de várias
proveniências, é a matéria-prima da inovação.
Mas o conhecimento de dados isolados
é insuficiente, é preciso contextualizá-los
e relacioná-los através da interdisciplinaridade.
A colaboração e a cooperação são
outros aspectos a ter em conta pelo ensino
que quer formar gente inovadora. O trabalho
em conjunto, gerando interacções,
reforça a aprendizagem e pode ser posto
em prática através de parcerias ou grupos
de trabalho. A aprendizagem exige
90 | Exame Moçambique
A EDUCAÇÃO ORIENTADA
PARA A INOVAÇÃO
No seu estudo A Educação Orientada
para a Inovação, Selbach Borges
enuncia os elementos que compõem
a educação voltada
para o futuro
LIBERDADE E AUTONOMIA
ATENÇÃO CENTRADA NO SUJEITO
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
APRENDIZAGEM
CONTEXTUALIZADA
E INTERDISCIPLINAR
APRENDIZAGEM COLABORATIVA
E COOPERATIVA
EDUCAÇÃO:
Como contribui para
a inovação e como se inova
UNSPLASH
APRENDIZAGEM BASEADA
NA EXPERIMENTAÇÃO
E PROTOTIPAÇÃO
APRENDIZAGEM INSERIDA NO
CONTEXTO DA CULTURA DIGITAL
O ENSINO QUE QUER
FORMAR GENTE INOVADORA
DEVE SER COLABORATIVO
E COOPERANTE
nantes em situações que exijam mudanças
como, por exemplo, a recolocação profissional,
visto que a dinâmica do mundo do
trabalho exige, muitas vezes, mudança de
função ou, até mesmo, de área de actuação”,
refere a autora do estudo Educação
Orientada para a Inovação, que cita Lévi-
-Strauss: “As pessoas têm pois o encargo
de manter e enriquecer a sua colecção de
competências durante as suas vidas.”
Como é que se pode gerar, de uma forma
simples, um processo de inovação num
nível escolar básico introduzindo tecnologia,
habilitando assim o aluno a estruturar
um pensamento inovador? Mirian Eduarda
Pagamunci relata, num estudo, os efeitos
sobre o processo de aprendizagem do inglês
da introdução de ferramentas tão simples
como o e-mail e o Power Point numa escola
brasileira do ensino básico. Foi fornecida
aos alunos uma sequência didáctica para
dez aulas de inglês. A esmagadora maioria
dos alunos tinha e-mail, mas o sistema
em vigor na escola, o Linux, inviabilizava
o Hotmail, onde os alunos tinham as suas
contas. Constatou-se, quando foi pedido
aos alunos que enviassem um e-mail de
apresentação, que estes até tinham dificuldade
em preencher os campos da mensagem.
“Embora a classe nos anos anteriores
tenha obtido um conhecimento passivo
das estruturas básicas da língua, houve um
intenso envolvimento e trabalho activo por
parte dos aprendizes em quererem aplicar
o conhecimento, mas agora de uma forma
real”, conclui a autora do estudo Tecnologia,
Inovação e Educação: Uma Análise
Reflexiva. Quando as escolas têm a possibilidade
de aderir à nova torrente tecnológica,
a interacção entre professor e aluno
é intensificada. O professor tem de apropriar-se
dos novos recursos tecnológicos
postos ao dispor da sociedade e incorporá-
-los na sua prática docente, procurando
março 2020 | 91
ESPECIAL INOVAÇÃO
promover ambientes interactivos que
favoreçam a aprendizagem e o desenvolvimento
potencial dos alunos. Para que
as novas tecnologias sejam utilizadas em
prol de um processo educativo inovador
é necessário que os professores tenham
uma formação continuada. Uma escola
inovadora requer professores inovadores.
Mas a inovação já chegou de facto à
escola, ao processo de aprendizagem que
gera qualificações e quadros? Estão os
processos educativos a acompanhar as
transformações sociais induzidas pela
inovação que as novas tecnologias proporcionam?
Num artigo em que levanta a
questão da inovação na sala de aula, José
Reis Lagarto, da Universidade Católica
Portuguesa, lembra que “estamos numa
fase de rápidas mudanças de paradigma,
ainda que impostas de fora para dentro
no que reporta à escola. As TIC entram
no quotidiano dos alunos e, ainda que
sejam muitas vezes barradas à porta da
NA ESCOLA AS MUDANÇAS
DE PARADIGMA SÃO
IMPOSTAS DE FORA
PARA DENTRO
SEIS DIMENSÕES
DA INOVAÇÃO
PEDAGÓGICA
OBJECTIVOS PEDAGÓGICOS,
ou seja, em que medida os
objectivos curriculares específicos
alinham com necessidades e
competências para o século xxi
PROFESSORES têm que se apropriar
das novas TIC e colocá-las ao serviço
dos alunos
PAPEL DOS ALUNOS, características
cruciais na diferenciação entre
pedagogias emergentes
e tradicionais
TIC a utilizar, isto é, o nível
de actualização e sofisticação
da tecnologia disponível
CONEXÃO, ou seja, em que medida
a comunidade, como estudantes e
professores de outras escolas,
especialistas e pais, estão
envolvidos no processo de ensino
e aprendizagem
MULTIPLICIDADE de resultados de
aprendizagem resultantes directos
dos processos de aprendizagem.
Fonte: Inovação, Tic e Sala de Aula,
José Reis Lagarto
escola, um destes dias os portões cairão.
É frequente verificar a proibição do uso de
telemóveis na escola, algo bizarro quando
se pretende cada vez mais uma população
alfabetizada digitalmente. Na verdade,
podemos compreender estas decisões,
mas teremos de alertar os decisores que
devem ser inventivos e ousados. Em vez
de proibir, devem dar responsabilidade de
uso. Assim, esses pequenos computadores
que os alunos, na sua grande maioria,
transportam com eles, podem ser aliados
poderosos dos professores”.
Tal como não basta introduzir as novas
tecnologias de informação e comunicação
(TIC) no processo de inovação, também
não chega incluí-las no processo educativo
para obter progressos. Está demonstrado
que são necessárias no processo de
formar e aprender, mas têm de fazer mais
do que replicar, de outra maneira, o que
já se fazia. Têm, enfim, de gerar novas
formas de criar informação e conhecimento.
Reis Lagarto cita o relatório da
OCDE/CERI de 2010, que vê a inovação
educacional como “uma mudança dinâmica
orientada para acrescentar valor
a um processo educacional, que conduz
a resultados mesuráveis, seja em termos
de satisfação dos patrocinadores, seja em
termos de resultados educacionais”, sublinhando,
entretanto, que no relatório referido
“o termo ICT — enabled innovation
for learning — refere-se a formas completamente
novas de utilizar e criar informação
e conhecimento através da tecnologia,
em oposição ao uso das TIC para sustentar
ou replicar práticas tradicionais.
O potencial das TIC para suportar processos
de inovação deve ser acompanhado
por efectivas mudanças de caracter pedagógico
e até institucional”.
As escolas inovadoras são as escolas
mais abertas à comunidade e ao mundo,
onde a participação em projecto de cariz
internacional é sistemática, observa Reis
Lagarto. “Por outro lado, a escola inovadora
tem de ter uma liderança capaz
de assumir as inovações como o caminho
a trilhar. Sem liderança, a inovação
TECNOLOGIA:
O ensino deve apropriar-se
das tendências sociais
92 | Exame Moçambique
terá tendência a esmorecer após as motivações
provocadas pelos impactos iniciais
das propostas de mudança”, refere.
E acrescenta: “Uma escola envolvida em
AS ESCOLAS INOVADORAS
SÃO MAIS ABERTAS
À COMUNIDADE
E AO MUNDO
ambientes tecnologicamente enriquecidos
tem de possuir um padrão de comportamento
capaz de optimizar os seus
recursos e fazer uma demonstração sistemática
do bom uso das tecnologias.
Apenas as escolas digitalmente maduras
conseguem que a tecnologia se torne cada
vez mais transparente e menos incomodativa,
sendo inserida nos processos de
trabalho de todos de uma forma natural.
O currículo é desenvolvido com TIC,
os trabalhos administrativos e de gestão
UNSPLASH
também. Isto é, estamos perante uma
escola digital.”
Ao nível do ensino superior, a nova
era da inovação anunciou-se na própria
localização e organização dos espaços
universitários. Com a nova economia surgiram
os parques científicos e tecnológicos
e neles implantaram-se as academias.
A ligação à sociedade e, em particular, à
vida empresarial, com destaque para as
empresas tecnológicas, é cada vez maior.
A participação destas escolas do ensino
superior em redes internacionais é frequente.
A ligação entre ensino, conhecimento
e iniciativa remete para o exemplo pioneiro
de Stanford, que acabou por resultar
na mítica Silicon Valley, na Califórnia,
Estados Unidos, um modelo que se multiplicou,
desde as Tecnópoles francesas
aos Innovation Clusters na Coreia do Sul,
passando pelos Innovation Districts e
Technologics Clusters nos Estados Unidos.
Jorge Audy, da Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, Brasil, assinala
que actualmente os maiores parques tecnológicos
do mundo localizam-se na
China, Índia e Coreia do Sul, onde beneficiam
de um forte apoio dos respectivos
governos. “Temos uma nova geografia da
inovação no mundo, onde esses diferentes
ambientes de inovação determinam
o progresso das nações e apontam para
um novo futuro às sociedades onde estão
localizados. Esse novo modelo, seja qual
OS DIFERENTES AMBIENTES
DE INOVAÇÃO DETERMINAM
O PROGRESSO DAS NAÇÕES
for a sua variante de implantação, tem
o talento das pessoas como a base para
a nova economia. Talento em função do
seu conhecimento e talento empreendedor,
com capacidade para criar, inovar e
transformar o mundo em que vivemos.”
Nos países mais desenvolvidos as autoridades
põem à disposição programas destinados
a financiar o apoio à inovação.
A Comunidade Europeia, para o período
2014-2020, colocou em prática o programa
Horizonte 2020, dotado de um orçamento
superior a 77 mil milhões de euros, em
que a “excelência científica” constitui o
primeiro dos três pilares que constituem
a iniciativa, absorvendo cerca de 32%
do orçamento total. Os países que dispõem
de recursos para alterar o modelo
educativo, tornando-o mais inovador e
mais favorável à inovação, e financiar
esta mudança, levam um avanço considerável
quando o crescimento da economia
e o sucesso das empresas passou a
assentar na inovação que traz novos produtos,
novos mercados e novos modelos
de negócio. Por isso, o Banco Africano
de Desenvolvimento (BAD), como damos
conta nesta edição, centra agora as suas
perspectivas para o continente na aposta
da educação. b
março 2020 | 93
ESPECIAL INOVAÇÃO
UNIVERSIDADES
STANFORD,
UM EPICENTRO INOVADOR
No coração do californiano
Silicon Valley encontramos
a Universidade de Stanford,
considerada há cinco anos
sucessivos a mais inovadora
do mundo, de acordo com a classificação
que a Reuters faz anualmente das instituições
do ensino superior mais inovadoras
em todo o planeta. Na elaboração da lista
que inclui as 100 universidades mais inovadoras
são tomadas em consideração o
seu contributo para o progresso da ciência,
para a invenção de novas tecnologias e
para impulsionar novos mercados e áreas
de actividade. O ranking da Thomson Reuters
é compilado em conjunto com a Clarivate
Analytics e assenta na propriedade
de dados e análises, incluindo registos de
patentes e citações de trabalhos de pesquisa.
Situada no já icónico vale californiano
dos Estados Unidos, Stanford é, por assim
dizer, uma das origens da quarta revolução
industrial, que acelerou a mudança
no mundo em que vivemos, ligado em
rede. Foi um professor de Stanford, Vint
Cerf, quem, no início da década de 1970,
co-projectou os protocolos TCP/IP que
vieram a tornar-se o padrão de base para
a comunicação na Internet. Em 1991, os
físicos do Stanford Linear Accelerator
Center implantaram o primeiro servidor
da Internet fora da Europa. A fundação
de empresas emblemáticas, como a Google,
a Hewlett-Packard e a Cisco Systems,
deve-se a gente de Stanford. Os empresários
com origem na universidade, se juntassem
toda a sua receita, obteriam uma
economia que se incluiria entre as dez
maiores do mundo. Mas a força da instituição
não repousa nos pergaminhos
do seu recentíssimo passado. Ela desenvolve
permanentemente novas tecnologias
e gera novas patentes que a mantêm
no pódio da inovação. Actualmente desenvolve
uma nova geração de baterias que
STANDFORD:
Há cinco anos a universidade
mais inovadora do mundo
94 | Exame Moçambique
AS 10 MAIS
INOVADORAS
1
Stanford University
EUA
2
Massachusetts Institute
of Technology
EUA
3
Harvard University
EUA
4
University of Pennsylvania
EUA
5
University of Washington
EUA
6
University of North Carolina Chapel
Hill
EUA
7
KU Leuven
BEL
8
University of Southern California
EUA
9
Cornell University
EUA
10
Imperial College London
RU
podem aproveitar a energia resultante
da mistura de água salgada e água doce.
A tecnologia foi baptizada “energia azul” e
pode ser particularmente útil em estações
de tratamento de águas residuais costeiras,
tornando-as totalmente independentes
de energia. No último ano, Stanford
anunciou que irá converter uma das suas
instalações numa incubadora de ciências
da vida dedicada a apoiar empreendedores
no desenvolvimento de novas terapias
e curas para doenças críticas.
Não foi apenas Stanford que manteve a
sua posição na lista respeitante a 2019. Aliás,
as três primeiras universidades da tabela
mantiveram as suas posições nos cinco
últimos anos e todas elas são norte-americanas:
em segundo lugar surge o Massachusetts
Institute of Tecnology (MIT) e,
em terceiro, Harvard. Por outro lado, oito
das dez universidades mais bem classificadas
em 2018 permaneceram entre as dez
melhores e 18 delas continuaram a figurar
entre as 20 melhores no último ano. O que
parece demonstrar que a inovação requer
instituições fortes que permitam patentear,
publicar, produzir e comercializar.
A universidade que obtém melhor classificação
fora dos EUA, a KU Leuven da
Bélgica (na 7.ª posição), é uma instituição
com quase 600 anos que mantém uma das
maiores organizações independentes de
pesquisa e desenvolvimento do planeta.
A universidade mais bem classificada na
Ásia é a Universidade de Ciência e Tecnologia
de Pohang, ou POSTECH (em
12.º lugar), uma instituição fundada em
1986 pela empresa siderúrgica sul-coreana
POSCO e conhecida por seus laços únicos
com a indústria.
Os Estados Unidos continuam a dominar
a lista da Reuters respeitante ao último
ano, com 46 universidades entre as 100
melhores. A Alemanha é o segundo país
com melhor desempenho, com nove universidades.
A França sobe para a terceira
posição, com oito universidades na lista.
Japão, Coreia do Sul e Reino Unido possuem
seis. A China tem quatro. A Holanda
e a Suíça têm três. Bélgica, Canadá, Israel
e Singapura têm duas e a Dinamarca uma.
O Médio Oriente possui duas. Não figuram
universidades africanas entre as 100
melhores localizadas, assim como não
constam universidades da América do Sul
ou da Oceânia. O ranking da Reuters não
exclui, contudo, do conceito de inovação
universidades que desenvolvam processos
criativos e disruptivos em determinadas
áreas. Classifica as instituições pela
sua capacidade de avaliação em geral, traduzida
em indicadores práticos como o
registo de patentes. b
A AMBIÇÃO DA ALU
A African Leadership University (ALU)
propõe-se desenvolver milhares de
líderes éticos e empresariais para África
e para o mundo. Assenta num projecto
educativo orientado para o aluno com
vista a formar pessoas com capacidade
de aprenderem, ágeis e que se adaptam
a um mundo em constante mudança.
A instituição, que tem como reitora
(chancellor) Graça Machel, está presente
fisicamente no Ruanda e nas Maurícias.
Na sua filosofia, a ALU centra-se no
desenvolvimento das aptidões
requeridas no século xxi, como a
capacidade de liderança, a iniciativa
empreendedora, a capacidade de
identificar e avaliar uma situação, a
resiliência às adversidades, o espírito
crítico, o conhecimento das audiências
com que comunicam, a capacidade para
gerir projectos complexos, tendo deles
mais do que uma única perspectiva. Em
Outubro de 2015 abriu, nas Maurícias,
com 173 alunos, o campus inaugural da
ALU, o African Leadership College (ALC).
No Ruanda, a ALU abriu as portas do
seu campo universitário, localizado no
coração da capital do país, em Setembro
de 2017, a mais de 300 estudantes.
março 2020 | 95
ESPECIAL INOVAÇÃO
TÊNDENCIAS GLOBAIS
A roupa e o calçado, com as novidades trazidas pela
inovação, nunca mais serão "apenas roupa e calçado"
SOLA ACTIVA
Os sectores do têxtil,
vestuário e calçado tiveram
várias propostas na Lista
de Honra dos Prémios de
Inovação atribuídos pela
CES (Consumer Electronics
Show), que se realiza
anualmente no Centro de
Convenções de Las Vegas,
Estados Unidos. A 53ª
edição do certame teve
lugar no início deste ano.
A empresa italiana Wahu apresenta a primeira sola activa capaz de
adaptar a sua morfologia às alterações no ambiente externo, como o
terreno, temperatura e humidade, e ao estado dinâmico do utilizador
3ª
geração
LISTA DE HONRA
O EvoRide, o terceiro modelo de uma gama inovadora da Asics,
é ainda mais leve e mais eficiente em termos de energia
A INOVAÇÃO
DISTINGUE
UM LÍDER DE
UM SEGUIDOR”
Steve Jobs
O NOVO
CALÇADO
E VESTUÁRIO
•Fornece
informação
em tempo real
•Promove a saúde
•Aumenta
o desempenho
•Optimiza
a adequação
do vestuário
à morfologia
do corpo
LUÍS FARIA
Director Executivo Exame Moçambique
ADAPTAÇÃO E INOVAÇÃO,
DE DARWIN À
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Um dos grandes desafios da área de RH do
final do século xx foi a captação e retenção de
talentos. Mas de que forma evoluiu o conceito
de “talento” até aos nossos dias?
Hoje, em Moçambique, a falta de mão-de-
-obra com formação superior é ainda uma
realidade. E esta carência de técnicos reflecte-
-se numa elevada rotatividade da mão-de-obra
especializada a nível interno, por exemplo no
sector bancário. Mas de que forma o ensino em
geral, e as universidades em particular, estão a
antecipar a evolução do mercado de trabalho e
as necessidades e preferência dos empregadores
daqui a dez anos?
Será que o ensino está a preparar os alunos
para o que parece ser o desafio do século xxi,
a necessidade de adaptação constante das empresas,
a necessidade de adopção de dinâmicas
de inovação para manter quotas de mercado
e defender margens? Será que o ensino está a
criar alunos com conhecimentos, mas também
com flexibilidade para se adaptarem e, inclusivamente,
promoverem a inovação?
Esse é, talvez, hoje o desafio do ensino a nível
global. A acumulação de conhecimentos já não
é, provavelmente, uma das ou a questão mais
importante. As capacidades de adaptação e inovação
já estão, e serão, cada vez mais valorizadas.
Inovação que permita às empresas adaptarem-
-se aos novos contextos competitivos. b
96 | Exame Moçambique
EXAME FINAL
RAJ THAMPURAN
AGÊNCIA DE INOVAÇÃO DE SINGAPURA
O EXEMPLO
DE SINGAPURA
Ao investir em ciência, o país asiático
de 5 milhões de habitantes desenvolveu
indústrias de ponta. Para o conselheiro da
agência de inovação de Singapura, o objectivo
agora é avançar ainda mais
D.R.
Conhecida por ser um importante centro comercial e
industrial do Sudeste Asiático, Singapura é o exemplo
de um país que conseguiu desenvolver-se investindo
pesadamente em ciência e tecnologia. Boa parte
do avanço deve-se ao trabalho da Agência de Ciência, Tecnologia
e Pesquisa, conhecida como A*Star, que reúne 4800 cientistas
e trabalha de perto com as empresas para financiar pesquisas.
À frente da instituição está o engenheiro mecânico Raj Thampuran,
que foi director da A*Star de 2012 a 2019 e agora é um dos
seus principais conselheiros. O Dr. Raj, como é conhecido, falou
à EXAME acerca da importância da ciência para a economia.
Singapura é um país pequeno, com 5 milhões de
habitantes. Qual a razão de investir numa agência
de inovação avançada?
Quando a agência surgiu, em 1991, a razão era desenvolver as
nossas indústrias, em particular a manufactureira. Precisávamos
de elevar os padrões para que ela tivesse mais valor agregado.
E tínhamos a aspiração de nos tornarmos uma economia
baseada em conhecimento. Para isso, a inovação é um componente
crítico.
Qual é hoje o tamanho da agência?
A A*Star tem 20 institutos, com mais de 5 mil funcionários.
Cerca de 4800 são cientistas e engenheiros. Metade deles tem
o doutoramento. E, destes, metade vem de 61 países diferentes.
O investimento em investigação influenciou a economia
de Singapura nas últimas décadas?
A capacidade de inovar é vital para qualquer economia. Simplesmente
porque essa é a vantagem competitiva das empresas.
E a habilidade das empresas de encontrarem talentos e de
terem acesso à infra-estrutura de pesquisa acelera a sua capacidade
de inovar. Na história de Singapura, esse investimento foi
vital. Não temos recursos naturais ou outros atributos. Outro
resultado importante é a construção de talento. As empresas vão
para onde estão os talentos. Todos os anos, de 20% a 25% dos
investigadores deixam a agência para trabalharem nas empresas.
Porque é que essa troca de cientistas é importante?
Essa é a forma mais efectiva de transferir tecnologia. Os pesquisadores
vão trabalhar nas empresas e, então, recrutamos novas
pessoas. É algo que faz crescer a capacidade científica e tecnológica
das indústrias. Como consequência, o perfil da nossa
indústria mudou drasticamente.
Mudou em que sentido?
Na área electrónica, a nossa indústria era predominantemente
focada na produção de discos rígidos nos anos 90. Mas hoje
o foco são os semicondutores. É isso que quero dizer com a
mudança de perfil. São empresas com muito mais valor acrescentado.
Isso gera empregos bem qualificados.
Quais são as áreas de maior desenvolvimento daqui em diante?
Biomedicina, alimentos e nutrição são áreas em que estamos
a fazer bastante investimento. E vamos ter certamente muitas
tecnologias relacionadas com os serviços digitais.
Há como aumentar a colaboração com empresas brasileiras?
Sim. Temos 60 empresas de Singapura a operarem no Brasil.
E também há empresas brasileiras em Singapura. Há laços
entre os dois países a níveis diferentes. E uma das coisas que
exploramos é conseguir desenvolver laços também na ciência.
As empresas brasileiras que quiserem desenvolver produtos
adaptados ao mercado asiático poderiam usar Singapura como
base, por exemplo. Há muita oportunidade. b
98 | Exame Moçambique