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EXAME Abril 2020

Nesta edição analisamos o impacto da crise provocada pelo Covid 19 a nível global, no continente africano e em Moçambique, recorrendo à opinião de diversos especialistas. Mas não só. Procuramos também opiniões de como sair dela. A secção Inovação apresenta um conjunto de iniciativas que se estão a desenvolver para o ataque a este vírus. E a resposta só pode vir da inovação.

Nesta edição analisamos o impacto da crise provocada pelo Covid 19 a nível global, no continente africano e em Moçambique, recorrendo à opinião de diversos especialistas. Mas não só. Procuramos também opiniões de como sair dela.
A secção Inovação apresenta um conjunto de iniciativas que se estão a desenvolver para o ataque a este vírus. E a resposta só pode vir da inovação.

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CRISE ● Acentuou<br />

a competição global<br />

BAD ● Na vanguarda<br />

da resposta à recessão<br />

Nº 87 v <strong>Abril</strong> <strong>2020</strong> v 200Mt v 5<br />

Edição Moçambique<br />

PANDEMIA<br />

ATAQUE<br />

À ECONOMIA GLOBAL<br />

O coronavírus infectou e parou as economias mais desenvolvidas, tornando a crise<br />

de saúde pública inevitável uma terrível recessão global. Que impacto vão ter em<br />

Moçambique o possível alastramento da pandemia em África e o rombo causado<br />

pela COVID-19 na economia do planeta?<br />

INOVAÇÃO<br />

Corrida<br />

contra<br />

o vírus


REVISTA MENSAL — ANO 7 — N O 87 — ABRIL <strong>2020</strong><br />

TIRAGEM: 10 000 EXEMPLARES — CAPA: GETTY<br />

ECONOMIA<br />

44 Desnutrição O país perde anualmente cerca de 1,6 mil<br />

milhões de dólares devido à desnutrição crónica<br />

NEGÓCIOS<br />

50 Eventos Josefa Massinga aventurou-se em 2015 num<br />

negócio de venda de flores e actualmente faz a decoração<br />

de todo o tipo de eventos<br />

MOÇAMBIQUE<br />

54 Idai Um ano volvido sobre o ciclone, Myrta Kaulard,<br />

representante da ONU em Moçambique, faz o balanço<br />

da recuperação<br />

44<br />

DESNUTRIÇÃO:<br />

A patologia afecta<br />

o desenvolvimento<br />

da economia<br />

50<br />

JOSEFA MASSINGA:<br />

A ambição é crescer<br />

na área dos eventos<br />

D.R.<br />

58 Recomeçar Os realojados dos ciclones de 2019 fazem<br />

experiências com o apoio das Nações Unidas e ONG<br />

para tentar fazer crescer algo que os sustente<br />

GLOBAL<br />

62 Comércio Donald Trump, Presidente dos EUA, ameaça<br />

impor tarifas ao Brasil<br />

66 Desporto O super Flamengo pode tornar-se o primeiro<br />

bilionário do futebol brasileiro<br />

TECNOLOGIA<br />

7O Streaming Os serviços de streaming de música vão<br />

alcançar mil milhões de ouvintes em todo o mundo<br />

74 Saúde A tecnologia oferece soluções de qualidade<br />

para os mais idosos, mas o vírus não os poupa<br />

EDILSON TOMÁS<br />

88<br />

INOVAÇÃO:<br />

O coronavírus é um<br />

desafio para os<br />

inovadores em todo<br />

o mundo<br />

MARKETING<br />

78 Arte O calendário Pirelli de <strong>2020</strong> centra-se na visão<br />

contemporânea da personagem de Shakespeare<br />

GESTÃO<br />

84 Entrevista O presidente mundial do grupo de logística<br />

DHL, Frank Appel, explica como se comanda uma empresa<br />

num cenário de instabilidade<br />

86 Vendas A Embraco, o maior fabricante de compressores<br />

do mundo, melhorou o atendimento ao cliente<br />

GETTY<br />

ESPECIAL<br />

88 Inovação As soluções inovadoras surgem numa corrida<br />

contra-relógio com a pandemia<br />

SECÇÕES<br />

Editorial 6<br />

Primeiro Lugar 8<br />

Grandes Números 14<br />

Oil&Gas 48<br />

Bazarketing 76<br />

Mundo Plano 82<br />

Exame Final 98<br />

4 | Exame Moçambique


CAPA<br />

16 Da pandemia à recessão<br />

O novo coronavírus infectou brutalmente as<br />

economias mais desenvolvidas da Ásia, Europa, África<br />

e Estados Unidos, obrigando-as a quase parar, e alastra<br />

em África. Os prejuízos são astronómicos, os governos<br />

gastam milhares de milhões no combate à pandemia<br />

e socorro à economia. A recessão global, inevitável,<br />

causará um impacto devastador em todas as<br />

economias. Moçambique terá de enfrentá-lo.<br />

GETTY


CARTADODIRECTOR<br />

IRIS DE BRITO<br />

DIRECTORA<br />

O REGRESSO<br />

DA CONFIANÇA<br />

O<br />

mundo despertou este ano para uma pandemia<br />

que não escolhe credos, raças ou<br />

classes sociais, que a todos, do mais vulnerável<br />

ao mais saudável, vai afectar. Para lidar<br />

com ela, a vida vai ter que mudar. Em nome da<br />

defesa da vida. Mais do que pensarmos no que<br />

está para trás, temos de pensar no que podemos<br />

fazer para minimizar os seus impactos e<br />

TODOS TEREMOS<br />

prepararmo-nos para uma nova realidade. Esta<br />

crise passará por três fases: contenção, mitigação DE NOS<br />

e recuperação.<br />

REINVENTAR.<br />

Com maior ou menor celeridade, os países UMA VEZ MAIS<br />

tomaram medidas para conter uma ameaça para<br />

a qual não há ainda uma solução. Mas o conceito de responsabilidade social é<br />

agora cada vez mais importante, à medida que nos apercebemos que os estados<br />

não têm capacidade para lidar com esta crise sozinhos. Os empresários vencedores<br />

serão aqueles que, enfrentando um mar de desafios, como todos, se<br />

irão comportar como comandantes em tempos de guerra, fazendo tudo para<br />

defender as suas tropas, sem se esquecerem da importância de comunicar com<br />

os seus clientes, e pensando em novas alternativas de negócio quando possível.<br />

Uma destruição massiva dos postos de trabalho vai acontecer em muitos<br />

sectores. Os esforços no sentido da protecção do trabalho deverão eventualmente<br />

incidir nos sectores com maiores perspectivas de sobrevivência, havendo<br />

apoios para reconversão nos outros. Esta é uma escolha difícil mas que deve<br />

ser ponderada. Na guerra por vezes é necessário sacrificar um braço para salvar<br />

uma vida. Só depois se podem pensar em próteses.<br />

Os apoios económicos a nível global, de uma dimensão absolutamente inédita,<br />

irão ajudar no longo prazo a mitigar os impactos económicos da crise.<br />

Mas serão tanto mais eficientes quanto mais reduzida for a fase de contágio,<br />

ou seja, quanto menor o peso da destruição económica.<br />

Em épocas de incerteza, todas as previsões económicas são difíceis.<br />

No entanto, exceptuando para alguns economistas mais conservadores, como<br />

Nouriel Roubini, prevalece a ideia de que a recuperação irá trazer fases de crescimento<br />

acelerado em 2021, ou ainda no último trimestre de <strong>2020</strong>.<br />

A China apresentou em Março indicadores de produção acima da expectativa<br />

dos analistas, demonstrando o regresso a uma quase normalidade.<br />

No entanto, o lockdown cada vez mais global e a própria redução do consumo<br />

interno irão reflectir-se numa progressão lenta da actividade industrial que terá<br />

consequências ao nível do emprego, não só na China mas em todo o mundo.<br />

Numa economia global todos sofreremos os impactos da presente crise, mas<br />

devemos perceber que o mundo tenderá para um novo equilíbrio. Para isso<br />

todos teremos de nos reinventar. Uma vez mais.b<br />

Edifício Rovuma, Rua da Sé, n.º 114,<br />

Escritório 109<br />

MAPUTO, MOÇAMBIQUE<br />

geral@examemocambique.co.mz<br />

Directora: Iris de Brito<br />

Director Executivo: Luis Faria<br />

(luis.faria@luisfaria.com)<br />

Arte: Pedro Bénard<br />

Colaboradores Regulares:<br />

Valdo Mlhongo,<br />

Thiago Fonseca (crónica),<br />

Edilson Tomás (fotografia),<br />

e Pedro Pinguinha (arte final)<br />

Colaboraram nesta edição:<br />

Filipe Serrano, Ivan Padilla, Lucas Amorim,<br />

Lucas Agrela, Luís Fonseca, Paula Rocha, Rodrigo<br />

Caetano..<br />

Direitos Internacionais:<br />

<strong>EXAME</strong> Brasil (texto e imagens),<br />

AFP, Graphic News e IStockPhoto<br />

Coordenação Geral: Marta Cordeiro (projecto),<br />

Inês Reis (arte)<br />

Multimédia e Internet: Plot.<br />

www.examemocambique.co.mz<br />

PUBLICIDADE<br />

+258 843 107 660<br />

comercial@examemocambique.co.mz<br />

Comercial: Gerson dos Santos<br />

ASSINATURAS<br />

Moçambique: Nádia Pene, +258 845 757 478<br />

Portugal: Ana Rute Sousa, +351 213 804 010<br />

assinaturas@examemocambique.co.mz<br />

REDACÇÃO<br />

+ 258 21 322 183<br />

redaccao@examemocambique.co.mz<br />

Produção: Ana Miranda<br />

Número de registo: 09/GABINFO - DEC/2012<br />

Tiragem: 10 mil exemplares<br />

Distribuição:<br />

Moçambique: Flotsan, Bairro Patrice Lumumba,<br />

Rua “A” Casa 242, Matola<br />

Tel.: +258 84 492 2014; +258 82 301 3211.<br />

e-mail: mozadmin@africandistribution.net<br />

Portugal: VASP, MLP Quinta do Grajal, Venda Seca<br />

2739-511 Agualva Cacém Tel.: +351 214 337 000<br />

Impressão: Minerva Print<br />

Av. Mohamed Siad Barre, n.º 365<br />

Maputo<br />

A revista <strong>EXAME</strong> (Moçambique) é um<br />

licenciamento internacional da revista <strong>EXAME</strong><br />

(Brasil), propriedade da Editora <strong>Abril</strong>.<br />

Sociedade Moçambicana<br />

de Edições, Lda.<br />

Director-Geral<br />

Miguel Lemos<br />

Conselho de gerência<br />

Luís Penha e Costa<br />

Rui Borges<br />

António Domingues<br />

6 | Exame Moçambique


PRIMEIRO<br />

LUGAR<br />

MOÇAMBIQUE ESSENCIAL. PEQUENAS NOTÍCIAS SOBRE UM GRANDE PAÍS<br />

BANCO DE MOÇAMBIQUE:<br />

Lançou medidas para<br />

mitigar o impacto da crise<br />

do novo coronavírus<br />

D.R.<br />

AS MEDIDAS DO BANCO DE MOÇAMBIQUE<br />

PARA MITIGAR EFEITOS DO VÍRUS<br />

O Banco de Moçambique (BM) “deliberou introduzir uma linha de<br />

financiamento de 500 milhões de dólares para instituições participantes<br />

no mercado cambial interbancário por um período de<br />

nove meses, a partir do mês de Março. Segundo um comunicado<br />

enviado à nossa redacção, o BM decidiu também autorizar a não<br />

constituição de previsões adicionais pelas instituições de crédito<br />

e sociedades financeiras nos casos de renegociações dos termos<br />

e condições de empréstimos antes do seu vencimento para os<br />

clientes afectados pela pandemia COVID-19. As medidas visam<br />

disponibilizar liquidez em moeda estrangeira e moeda nacional,<br />

permitindo que os empresários e as famílias honrem os seus compromissos,<br />

na sequência do agravamento dos riscos decorren-<br />

COVID-19<br />

tes dos impactos macroeconómicos do novo coronavírus. O BM<br />

promete continuar a tomar medidas correctivas adicionais sempre<br />

que for necessário.<br />

O banco central decidiu na semana passada reduzir em 150<br />

pontos base o coeficiente de reservas obrigatórias, de 13% para<br />

11,5% na moeda local, e de 36% para 34,5% na moeda estrangeira,<br />

com efeitos a partir do período de constituição que se inicia<br />

a 7 de <strong>Abril</strong> próximo.<br />

A decisão tomada pelo conselho de administração do Banco de<br />

Moçambique visa, segundo o comunicado, libertar liquidez para o<br />

sistema bancário enfrentar, com maior resistência, os riscos crescentes<br />

que resultam dos impactos macroeconómicos do COVID-19.<br />

8 | Exame Moçambique


A crise vai acelerar a decomposição e balcanização<br />

da economia mundial.<br />

Nouriel Roubini, economista.<br />

GÁS<br />

EXXONMOBIL ADIA A DECISÃO FINAL DE INVESTIMENTO<br />

O grupo norte-americano ExxonMobil<br />

deverá adiar a aprovação do projecto<br />

de gás natural na bacia do Rovuma,<br />

no Norte de Moçambique, devido ao<br />

impacto do novo coronavírus e ao<br />

ambiente que se vive nos mercados<br />

internacionais, escreve a agência financeira<br />

Reuters, citada pelo Macauhub.<br />

O grupo anunciou no mês passado que<br />

está a equacionar cortes “significativos<br />

na despesa de capital e nos custos<br />

operacionais, acompanhando outros<br />

grupos e empresas que têm estado a<br />

reduzir despesa devido à queda abrupta<br />

dos preços do petróleo, bem como da<br />

procura em resultado da contracção<br />

da actividade económica. “A pandemia<br />

está a afectar o investimento em<br />

Moçambique, bem como os financiadores<br />

chineses e coreanos”, disseram<br />

fontes citadas pela agência Reuters.<br />

Sabe-se que o investimento do projecto<br />

da Área 4 é estimado em 30 mil<br />

milhões de dólares. O bloco Área 4<br />

tem como participantes a Mozambique<br />

Rovuma Ventures, uma parceria detida<br />

pelos grupos ExxonMobil, ENI e China<br />

National Petroleum Corporation, que<br />

em conjunto controlam 70%, estando<br />

os restantes 30% divididos em partes<br />

iguais entre o grupo português Galp<br />

Energia, sul-coreano Kogas e a estatal<br />

moçambicana Empresa Nacional<br />

de Hidrocarbonetos.<br />

A província de Cabo Delgado tem sido<br />

alvo de ataques até aqui desconhecidos,<br />

sendo que o último aconteceu já<br />

no mês passado em Mocímboa da Praia,<br />

a norte da província, o que tem contribuído<br />

para o receio dos investidores.<br />

Fevereiro<br />

64,90<br />

Fevereiro<br />

1,91<br />

Fevereiro<br />

52,91<br />

SALA DE<br />

MERCADOS<br />

MOEDA<br />

(Meticais por USD)<br />

GÁS NATURAL<br />

(USD/MMBtu)*<br />

CRUDE<br />

(USD/barril)<br />

CARVÃO DE COQUE<br />

(USD/ton.)<br />

Março<br />

66,37<br />

Março<br />

1,60<br />

Março<br />

23,36<br />

ÁREA 4: ExxonMobil adia decisão final de investimento<br />

Fevereiro<br />

141,63<br />

Março<br />

139,89<br />

MILHO<br />

(USD/Bushel)**<br />

Fevereiro<br />

382,00<br />

D.R.<br />

Março<br />

343,50<br />

Fevereiro<br />

1645,00<br />

OURO<br />

(USD/t oz)***<br />

Março<br />

1572,00<br />

COTAÇÕES A 22/02/<strong>2020</strong> E A 23/03/<strong>2020</strong><br />

* MMBtu = milhões de British Thermal Unit<br />

(medida da capacidade térmica)<br />

** 1 bushel de milho = 25,4 Kg<br />

*** t oz = onças troy = 31,21 g.<br />

FONTES: BM, Bloomberg, CME Group.<br />

D.R.<br />

abril <strong>2020</strong> | 9


PRIMEIRO LUGAR<br />

GRAFITE<br />

SYRAH RESOURCES<br />

SUSPENDE ACTIVIDADE<br />

O grupo Syrah Resources suspendeu temporariamente<br />

a actividade na mina de grafite de<br />

Balama, na província de Cabo Delgado, no<br />

Norte de Moçambique, devido à pandemia<br />

de COVID-19. O grupo recorda, em comunicado,<br />

que o governo de Moçambique impôs<br />

um conjunto de medidas no sentido de impedir<br />

a propagação do novo coronavírus, que<br />

incluem a suspensão da concessão de vistos<br />

e quarentena de 14 dias para todas as pessoas<br />

que chegam ao país, “sendo que a combinação<br />

destas medidas limita a mobilidade<br />

de uma parte significativa do pessoal a laborar<br />

em Balama. A suspensão das operações<br />

teve lugar a 28 de Março, não tendo o grupo,<br />

que em Moçambique opera através da subsidiária<br />

Twigg Exploration and Mining, mencionado<br />

uma data para o reinício da extracção<br />

de grafite. O grupo informou igualmente que<br />

as encomendas respeitantes a produto já em<br />

armazém continuarão a ser processadas, mantendo<br />

a subsidiária capacidade para exportar<br />

grafite através do porto de Nacala, “se bem<br />

que esta situação possa alterar-se a qualquer<br />

momento”. A Syrah Resources anunciou recentemente<br />

que a operação de extracção de grafite<br />

em Moçambique, cujo produto abastece<br />

a fábrica de Vidalia, onde suspendeu a operação,<br />

se mantinha sem alteração. A empresa<br />

australiana suspendeu a laboração na fábrica<br />

de Vidalia, nos Estados Unidos, na sequência<br />

da ordem de “permanecer em casa” anunciada<br />

pelo governador do estado da Louisiana no<br />

dia 22 de Março, a fim de evitar a propagação<br />

do novo coronavírus.<br />

SYRAH RESOURCES: A sua subsidiária<br />

suspendeu a operação em Cabo Delgado<br />

devido ao COVID-19<br />

D.R.<br />

EVENTO<br />

FACIM <strong>2020</strong> ADIADA DEVIDO AO COVID-19<br />

A edição de <strong>2020</strong> da Feira Internacional de Maputo foi adiada para data a anunciar,<br />

informou em Maputo o porta-voz do Conselho de Ministros, Filimão Suazi. A 56ª<br />

edição da feira conhecida pela sigla FACIM — Feira Agrícola, Comercial e Industrial<br />

de Moçambique — deveria realizar-se de sábado, 1 de Agosto, a quarta-feira, 5 de<br />

Agosto, nas instalações de Ricatla, no distrito de Marracuene, província meridional<br />

de Maputo. Filimão Suazi, que anunciou igualmente o adiamento do 11.º Festival<br />

Nacional da Cultura, disse que a decisão decorre da pandemia de COVID-19.<br />

NUMERÁRIO<br />

BM E BANCOS ASSINAM MEMORANDO<br />

DE ENTENDIMENTO<br />

FACIM:<br />

Já não abrirá<br />

no início de<br />

Agosto<br />

A responsabilidade na gestão do ciclo de numerário vai passar a ser partilhada<br />

pelo Banco de Moçambique (BM) e as instituições de crédito, de acordo com um<br />

memorando de entendimento assinado entre as partes. Esta partilha de responsabilidades<br />

reveste-se de capital importância no processo de recirculação de<br />

numerário do país. O governador do BM, Rogério Zandamela, disse que o acordo<br />

ajudará a modernizar a gestão do ciclo de numerário, promovendo maior eficiência<br />

ao garantir que a selecção, a contagem, o transporte e a distribuição de notas e<br />

moedas de metical são realizadas correctamente e a baixo custo. Em breve, serão<br />

emitidas normativas apropriadas para a operacionalização da partilha de responsabilidade.<br />

Zandamela frisou ainda que o BM vai garantir a integridade das notas e<br />

moedas em circulação. “Enquanto banco emissor, cabe ao Banco de Moçambique<br />

assegurar a integridade das notas e moedas de metical em circulação e acompanhar<br />

o nível da sua qualidade, bem como educar o público em matéria de manuseamento<br />

e conservação de notas e moedas.” O acordo abrangeu 19 instituições<br />

de crédito que operam em Moçambique, como o Standarbank, Absa Bank, BCI,<br />

Socremo, Capital Bank, Banco Societé, Banco ABC, Eco Bank, FNB, Mozabanco,<br />

Banco Mais, UBA, Banco Letsego, BNI, Banco Único, Banco Bic e Bayport.<br />

D.R.<br />

10 | Exame Moçambique


PRIMEIRO LUGAR<br />

ABSA BANK:<br />

Um bom desempenho obtido num<br />

ano adverso<br />

BANCA<br />

ABSA BANK CRESCE ACIMA DO MERCADO<br />

O Absa Bank Moçambique obteve um resultado líquido superior a um bilião e<br />

quarenta e oito milhões de meticais, tendo os empréstimos a clientes aumentado<br />

32,5%, materialmente acima da média de mercado e depósitos de clientes 14,7%,<br />

também acima da média do mercado. “O rácio de liquidez é dos mais elevados<br />

do mercado, em linha com a estratégia alicerçada em níveis robustos de capital<br />

e liquidez e a abordagem prudente adoptada pela administração, mas com foco<br />

contínuo no desempenho financeiro e na satisfação dos clientes”, refere o banco<br />

em comunicado. O Absa assinala ainda que o crescimento do balanço acima do<br />

mercado resulta “da melhoria dos níveis de serviço e de uma oferta de produtos<br />

adequada às necessidades dos clientes, sendo que ambos potenciaram um<br />

aumento do envolvimento bancário por cliente”. Para Rui Barros, administrador<br />

delegado do banco, “o excelente desempenho do Absa Bank Moçambique, no<br />

exercício económico de 2019 deveu-se, em grande medida, aos programas implementados<br />

pela gestão para o aumento da eficiência e incremento do volume de<br />

negócios, contribuindo, assim, para o crescimento da receita e para o resultado<br />

líquido acima de um bilião de meticais.” O administrador delegado realçou o<br />

facto de este desempenho da instituição ter sido conseguido num ano adverso<br />

para o sector financeiro, marcado por desastres naturais, e em que Absa Bank<br />

Moçambique executou a mudança de marca e um complexo processo de separação<br />

tecnológica.<br />

D.R.<br />

FINANÇAS<br />

FINTECH.MZ QUER SER<br />

“VOZ ACTIVA”<br />

Um conjunto de 12 membros fundadores apresentou<br />

em Março, em Maputo, a Fintech.mz —<br />

Associação das Fintechs de Moçambique, uma<br />

entidade que agrega empresas tecnológicas ligadas<br />

ao sector financeiro e que pretende ser “uma<br />

voz activa, quer no processo de inclusão financeira,<br />

quer no diálogo com reguladores para ajudar<br />

a criar novas leis”, entre outras acções conjuntas,<br />

anunciou João Gaspar, presidente da direcção.<br />

A venda de seguros através de plataformas<br />

móveis, a criação de sistemas de pagamento electrónico<br />

(gateways) que podem ser usados, por<br />

exemplo, no comércio on-line ou aplicações de<br />

transferências de dinheiro internacionais, são<br />

algumas das áreas que as fintechs moçambicanas<br />

estão a desenvolver. O país conta com<br />

16 empresas que estão a começar a trabalhar<br />

na área, quatro numa plataforma de ensaios<br />

(denominada no meio pelo termo inglês sandbox)<br />

criada pelo Banco de Moçambique, outras<br />

em nichos de mercado ou sob regime piloto, “em<br />

busca de escala e impulso”, assinala João Gaspar.<br />

Num país onde só uma percentagem muito<br />

pequena da população tem conta bancária (entre<br />

9% a 10% de um total de 28 milhões de habitantes),<br />

estas empresas assumem especial importância,<br />

refere. A associação FSD Moçambique<br />

é uma organização de promoção de inclusão<br />

financeira que tem impulsionado a criação de<br />

fintechs no país. O Financial Sector Deepening<br />

Moçambique (FSD Moçambique) é um programa<br />

financiado pelo Departamento para o Desenvolvimento<br />

Internacional (DFID) do Reino Unido<br />

e pela Agência Sueca de Cooperação para o<br />

Desenvolvimento Internacional.<br />

TECNOLÓGICAS: Contribuir para a inclusão<br />

na área financeira<br />

D.R.<br />

12 | Exame Moçambique


abril <strong>2020</strong> | 13


GRANDES<br />

NÚMEROS<br />

PARA SABER LER OS SINAIS DE UMA ECONOMIA EM MUDANÇA<br />

GÉNERO<br />

QUE PODER<br />

É QUE ELAS TÊM?<br />

Ainda no último mês comemorou-se o Dia Internacional da<br />

Mulher. Como é que, actualmente, o mundo valoriza as mulheres,<br />

quer no que respeita ao seu contributo para a economia,<br />

quer quanto ao poder que efectivamente detêm?<br />

Vários estudos provam que um maior equilíbrio de género<br />

melhora o desempenho económico dos países e o bem-estar e<br />

qualidade de vida em geral. Quem estudou o tema garante que<br />

uma maior igualdade entre homens e mulheres trará maiores<br />

benefícios à sociedade, mas quando se olha para o panorama<br />

actual, e de acordo com o último relatório da Organização Internacional<br />

do Trabalho (OIT), verifica-se que se 75% dos homens<br />

encontram-se inseridos no mercado de trabalho, a participação<br />

feminina é bem menor: 45%.<br />

Outro estudo, realizado pelo Banco Mundial em 2018, calcula<br />

que a riqueza total no mundo aumentaria 14% se fosse alcançada<br />

a igualdade salarial entre homens e mulheres. O documento<br />

avança um número avassalador quantos aos benefícios<br />

económicos trazidos pela igualdade de género. Nos 141 países<br />

analisados a desigualdade de género traduz-se numa perda de<br />

160 triliões de dólares (milhões de milhões), valor que duplica<br />

o PIB global devido à perda de riqueza em capital humano.<br />

A organização norte-americana Council on Foreign Relations<br />

desenvolve o programa Mulheres e Política Externa, que<br />

criou o Índice do Poder das Mulheres, classificando 193 Estados-membros<br />

da ONU quanto ao seu grau de paridade na participação<br />

política, o que passa por saber quantas mulheres são<br />

chefes de Estado, lideram governos ou deles participam, quantas<br />

marcam presença nos parlamentos nacionais e nos órgãos<br />

de poder local. O número de mulheres na chefia do Estado<br />

aumentou. Moçambique recebe 40 pontos no que respeita à paridade<br />

política actual. Em 1 de Janeiro de 2019, 29% dos cargos<br />

ministeriais eram ocupados por mulheres. Entre os candidatos<br />

à Assembleia Nacional, 41% foram moçambicanas.<br />

As mulheres ocupam actualmente a presidência ou a chefia do<br />

governo em 19 países do mundo. Apenas um deles é africano,<br />

a Etiópia. A Costa Rica é o país que desde 1946 é liderado por<br />

um maior número de mulheres (74). Seguem-se a Islândia (69)<br />

e um país africano, o Ruanda (67), o único a figurar no top 10<br />

da paridade política.<br />

ACESSO AO MERCADO DE TRABALHO<br />

A percentagem de homens inseridos<br />

no mercado de trabalho em todo o mundo<br />

é muito superior à de mulheres<br />

Inseridos<br />

Mulheres<br />

Homens<br />

Fonte: CFR.<br />

Total<br />

45%<br />

100%<br />

75% 100%<br />

14 | Exame Moçambique


Nunca me considerei feminista, mas não acredito que se possa<br />

ser mulher neste mundo sem o ser.<br />

Oprah Winfrey, apresentadora de televisão dos EUA.<br />

19<br />

9<br />

dos 193 países, têm uma<br />

mulher como chefe de<br />

Estado ou de Governo<br />

dos 193 países têm, pelo<br />

menos, 50% de mulheres<br />

no governo<br />

Fonte: CFR.<br />

4<br />

parlamentos<br />

nacionais dos 193 países<br />

são constituídos em 50%<br />

por mulheres<br />

DISCRIMINAÇÃO SALARIAL<br />

Salários de médicos de cuidados primários<br />

no mundo em 2019 por género<br />

258<br />

207<br />

189<br />

em milhares de USD<br />

Homens<br />

Mulheres<br />

136<br />

108<br />

157<br />

111<br />

92<br />

49<br />

38<br />

16 13<br />

Fonte: Statista.<br />

EUA<br />

Reino<br />

Unido<br />

Alemanha França Brasil México<br />

abril <strong>2020</strong> | 15


CAPA PANDEMIA<br />

A ECONOMIA<br />

GLOBAL DE<br />

QUARENTENA<br />

A ameaça do novo coronavírus parou a Europa e os Estados Unidos depois de impor<br />

um cerco absoluto a 58 milhões de chineses. Afundou tudo: o preço das matérias-primas,<br />

as bolsas, a procura e a oferta. Uma recessão global é inevitável. Se o vírus alastrar<br />

em África e na Índia, o saldo ainda será pior. Depois de uma crise global de saúde pública<br />

colapsar os serviços de saúde dos países “mais avançados” e deixar um rasto, por enquanto,<br />

de dezenas de milhar de mortos, a economia vai retomar a normalidade, fazendo<br />

a recessão económica outras dezenas de milhar de vítimas, ou isto será contrariado<br />

por financiamentos internacionais e renascerá mudada? Uma pergunta cuja resposta vale<br />

muito mais do que um milhão de dólares, mas os cépticos levam vantagem<br />

LUÍS FARIA<br />

16 | Exame Moçambique


PANDEMIA:<br />

O novo coronavírus abateu-se sobre<br />

as economias mais desenvolvidas<br />

e gerou uma crise global<br />

GETTY<br />

A<br />

epidemia do novo coronavírus, com<br />

origem na China, onde deflagrou em<br />

Dezembro na província de Hubei, de<br />

58 milhões de habitantes, impedindo<br />

que os cidadãos pudessem sair de<br />

casa, alastrou-se aos outros continentes e converteu-se<br />

numa pandemia sem precedentes. A 11 de<br />

Março passado, a Organização Mundial de Saúde<br />

(OMS) reconheceu o surto como uma pandemia,<br />

com o número de infectados, de mortes e de países<br />

onde a infecção se manifesta a aumentar dia após<br />

dia. Se seguisse necessariamente a habitual rota<br />

dos surtos de gripe, a ameaça migraria agora em<br />

força para sul, em busca da época do tempo mais<br />

fresco, contagiando grandes massas populacionais<br />

em África, onde os serviços de saúde pública não<br />

têm a capacidade de resposta de que dispõem os da<br />

Ásia, Europa ou América do Norte. Seria uma catástrofe<br />

se a epidemia que começou na China, alastrou<br />

a outros países do Sudeste Asiático e atingiu severamente<br />

a Europa, em especial Itália e Espanha, e o<br />

Estados Unidos, engolisse África. As gripes têm um<br />

ciclo migratório, procuram as temperaturas mais<br />

baixas. Ora, acontece que o COVID-19 (assim foi<br />

baptizada a nova doença epidémica e como SARS-<br />

-CoV-2 o vírus que a causa) não é uma gripe. O seu<br />

ácido nucleico é completamente uniforme, o que significa<br />

que o seu núcleo é diferente do do vírus da<br />

gripe. Tem outra natureza, outro ADN. Dele pode<br />

esperar-se tudo, embora os seus antecessores, os<br />

outros coronavírus, tenham mostrado dar-se mal<br />

com temperaturas mais elevadas. Mas, ainda que,<br />

por agora, a sua força e velocidade de contágio pareçam<br />

muito menos virulentas a sul, nada garante<br />

que não se dê bem com o calor. A UNICEF chegou<br />

a admitir que não resistiria a uma temperatura de<br />

26º/27º. Mas o surgimento de casos de contaminação<br />

em quase todos os países do Hemisfério Sul, e<br />

o conhecimento laboratorial do vírus, leva a OMS<br />

a colocar muitas reservas a que a taxa de propagação<br />

da pandemia possa desacelerar em temperaturas<br />

mais quentes. No fundo, ainda resta a secreta<br />

esperança de que tal aconteça, pelo menos o Hemisfério<br />

Sul está muito menos infectado. Na África do<br />

Sul, onde se registaram os primeiros casos de infecção,<br />

quase em paralelo com os países da Europa<br />

que empilham hoje milhares de mortos, o contágio<br />

progrediu muito pouco, com pouco mais de um<br />

milhar de casos confirmados no final de Março, e<br />

a doença fez poucas vítimas mortais. Angola registou<br />

sete casos e duas mortes. Moçambique tem<br />

oito casos activos e nenhuma morte. Cabo Verde<br />

regista cinco casos, um dos quais fatal, e a Guiné-<br />

abril <strong>2020</strong> | 17


CAPA PANDEMIA<br />

-Bissau oito casos. São Tomé e Príncipe ainda não<br />

havia entrado, à data destes dados, último dia de<br />

Março, no mapa global da epidemia. Quando este<br />

texto chegar aos leitores os números serão mais<br />

elevados. Quanto? Uma progressão lenta e contida<br />

pode reforçar a esperança de que o vírus, que<br />

se propagou como lume em palha seca no Hemisfério<br />

Norte, não se dá bem nem com a humidade<br />

nem com temperaturas mais elevadas. A questão é<br />

que a África Austral vai entrar agora na estação do<br />

cacimbo, mais fresca, e a OMS já demonstrou uma<br />

grande preocupação com a disseminação da pandemia<br />

em África.<br />

A antecipação tem provado ser o melhor antídoto<br />

para a velocidade com que se propaga a pandemia.<br />

Moçambique, ainda antes de registar o primeiro<br />

caso, colocou as pessoas provenientes de países<br />

com mais de mil casos confirmados em quarentena<br />

de 48 horas. Também a LAM cancelou alguns<br />

voos internos, sobretudo os que têm ligação com o<br />

estrangeiro. Uma antecipação que poderá ter frutos<br />

na contenção da doença, pois este é um vírus<br />

que não descarta as boleias da aviação comercial<br />

para se espalhar pelo mundo. Poucos dias depois, a<br />

meio de Março, as autoridades elevaram o estado de<br />

alerta e reforçaram as medidas de prevenção, colocando<br />

de quarentena obrigatória de 14 dias todos<br />

os passageiros provenientes de países com transmissão<br />

activa. E, no final do mês, foi declarado o<br />

estado de emergência.<br />

VÍRUS INESPERADO<br />

Desde a década de 1980 duas endemias ceifaram<br />

25 milhões de vidas. Desde 1980 morreram<br />

3 milhões de pessoas anualmente de malária, a pior<br />

doença tropical e parasitária, e, desde 1981, o HIV/<br />

SIDA matou 22 milhões, mas nenhuma teve uma<br />

dimensão global, ao ritmo frenético de circulação<br />

de pessoas actual, paralisando, de infecção em<br />

infecção, a economia e a sociedade global. É como<br />

se se tratasse de uma infecção em rede com antivírus<br />

desconhecido que vai paralisando a vida social<br />

e, naturalmente, a actividade económica. Mas a<br />

infecção não se deu na rede, como muitos pressagiavam,<br />

não houve um vírus informático a neutralizar<br />

infra-estruturas básicas, não se tratou de um<br />

golpe demolidor das potências que mantêm uma<br />

guerra surda em matéria de intrusão informática.<br />

O vírus que contaminou o mundo não é digital, é<br />

real, é biológico. Surgiu na China, num mercado que<br />

transacciona animais vivos em Wuhan, a metrópole<br />

da China Central, com mais de 11 milhões<br />

de habitantes, implantada da província de Hubei,<br />

IMPACTO BRUTAL<br />

NOS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO<br />

As Nações Unidas alertam que a pandemia COVID-19 vai atingir<br />

de forma desproporcionada os países em desenvolvimento,<br />

quer na saúde, quer na economia, antecipando perdas de 220 mil<br />

milhões de dólares. Em comunicado, a Conferência das Nações<br />

Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD na sigla em<br />

inglês) avisa que a crescente crise da COVID-19 ameaça atingir desproporcionadamente<br />

os países em desenvolvimento, não apenas<br />

como uma crise de saúde a curto prazo, mas também como uma<br />

crise devastadora do ponto de vista económico e social nos próximos<br />

meses e anos”. “As perdas de rendimento podem exceder<br />

os 220 mil milhões de dólares”, acrescenta o comunicado divulgado<br />

em Nova Iorque, no qual se aponta que “com cerca de 55%<br />

da população global sem acesso a protecção social, estas perdas<br />

vão reverberar nas sociedades, impactando a educação, os direitos<br />

humanos e, nos casos mais severos, a segurança básica alimentar<br />

e a nutrição”. O défice em financiamento poderá atingir<br />

dois a três mil milhões de dólares durante os próximos dois anos.<br />

As Nações Unidas pedem ainda a anulação da dívida dos países<br />

em desenvolvimento este ano, o correspondente a um trilião de<br />

dólares, estimando que as consequências desta pandemia juntamente<br />

com uma recessão mundial serão catastróficas para numerosos<br />

países em desenvolvimento. A UNCTAD pede que seja criado<br />

um plano de apoio a esses países, que inclua a “injecção” de um<br />

trilião de dólares em dinheiro e a concessão de 500 mil milhões<br />

em subsídios para serviços de saúde de emergência e programas<br />

de ajuda social.<br />

D.R.<br />

18 | Exame Moçambique


onde vivem 58 milhões de almas. Reza a história,<br />

contada em directo na televisão enquanto o Ocidente<br />

celebrava o Ano Novo, que, por negligência<br />

das autoridades chinesas, o vírus foi deixado fora de<br />

controlo. A China conteve a epidemia em Wuhan<br />

pondo em prática uma espécie de “lei marcial” que<br />

garantia o isolamento total da população da cidade,<br />

vigiando-a porta a porta, não excluindo meios para<br />

isolar os infectados e exibindo uma grande capacidade<br />

de resposta, de que é exemplo a edificação<br />

de um novíssimo e amplo hospital em poucos dias.<br />

Os países próximos ou territórios autónomos infectados,<br />

designadamente o Japão, Coreia do Sul (onde<br />

o vírus ceifou muitas vidas), Singapura, Taiwan<br />

e Macau, controlaram a epidemia à sua maneira.<br />

Esta passou para a Europa, atingindo, com impiedosa<br />

brutalidade, a Itália, onde, na rica região da<br />

Lombardia, introduziu uma atmosfera de pavor.<br />

Em Bergano, o epicentro da epidemia no país, nas<br />

ruas desertas desfilam, numa procissão macabra,<br />

camiões militares que transportam caixões que o<br />

serviço local de cremação de corpos, lotado, já não<br />

aceita. Nas principais cidades europeias, em Milão,<br />

Paris, Londres, Madrid, o silêncio que envolve as<br />

ruas, agora com um ar mais respirável, é apenas perturbado<br />

pelo silvo das sirenes das ambulâncias e os<br />

megafones das patrulhas que pedem que as pessoas<br />

permaneçam em casa “pela sua saúde”. O Centro<br />

de Congressos de Madrid foi convertido em hospital<br />

de recurso, e o mítico Palácio do Gelo em morgue.<br />

Todos os dias, habitantes refugiados nas suas<br />

casas em cidades fantasmas acordam para o pavor<br />

da actualização dos boletins do número de mortos<br />

e infectados, que continua a aumentar. Os que<br />

morrem não têm direito a funeral para evitar ajuntamentos<br />

de pessoas. Os europeus estão proibidos<br />

de se juntarem, na felicidade e no drama.<br />

ECONOMIA DESABA<br />

Na Europa, a progressão do vírus foi parando a economia.<br />

Primeiro o turismo, o comércio e os serviços.<br />

Depois as unidades fabris. Algumas recorrem<br />

à imaginação e procuram conversões inovadoras<br />

e repentinas para passar a assegurar equipamento<br />

médico e de protecção pessoal para o mercado nacional,<br />

num momento em que a oferta internacional,<br />

sobretudo chinesa, é ferozmente disputada a preços<br />

especulativos. Com a escalada e o reforço das<br />

medidas de quarentena, as economias europeias vão,<br />

dia após dia, anúncio após anúncio de mais mortos<br />

e infectados, ficando cada vez mais confinadas<br />

aos serviços vitais. Os escritórios fecham e, quando<br />

é possível, as empresas recorrem ao teletrabalho.<br />

O QUE O<br />

OCIDENTE<br />

ESTÁ A<br />

FAZER<br />

PROTEGER<br />

O EMPREGO<br />

assumindo os<br />

governos, pelo menos<br />

em parte, os salários<br />

dos empregados<br />

menos necessários<br />

ou em isolamento<br />

APOIAR<br />

O RENDIMENTO<br />

libertando os cidadãos<br />

de obrigações fiscais<br />

imediatas, podendo<br />

estes ainda beneficiar<br />

de moratórias nas<br />

rendas de casa e<br />

compromissos com a<br />

banca. Os EUA apoiam<br />

mesmo directamente<br />

a população<br />

GARANTIR<br />

LIQUIDEZ<br />

desonerando as<br />

empresas das<br />

obrigações fiscais<br />

correntes e garantido<br />

linhas de crédito<br />

abertas pela banca<br />

às tesourarias<br />

REFORÇAR<br />

A SAÚDE<br />

comprando<br />

equipamentos<br />

e materiais de<br />

protecção, sobretudo<br />

à China, para<br />

aumentar a<br />

capacidade sanitária<br />

e reduzir os óbitos<br />

RESTRINGIR<br />

A CIRCULAÇÃO<br />

à medida que o<br />

contágio avança,<br />

tomando medidas<br />

cada vez mais<br />

restritivas, com<br />

controlos policiais,<br />

que colocam em casa<br />

à quase totalidade da<br />

população<br />

As companhias aéreas deixam os seus aviões em<br />

terra e acumulam prejuízos astronómicos. Milhões<br />

de pessoas deixaram de circular diariamente por via<br />

aérea e a vida passou a desenrolar-se na Internet.<br />

Às fábricas que encerram os governos procuram<br />

assegurar parte das remunerações e garantir que<br />

não se percam os postos de trabalho. Aos consumidores,<br />

que se retraem nas suas compras, limitando-<br />

-se a adquirir produtos básicos em supermercados<br />

e farmácias nas poucas vezes que quebram o isolamento,<br />

as autoridades concedem moratórias em<br />

alguns pagamentos. Como a distanciação social é a<br />

única defesa disponível, a vida colectiva, as relações<br />

sociais, alteram-se radicalmente, o que irá influenciar<br />

a recuperação económica no pós-crise. Todos<br />

os espectáculos estão suspensos, grandes eventos<br />

são sucessivamente desmarcados, o Campeonato<br />

Europeu de Futebol já foi adiado, na sequência da<br />

paragem dos torneios da UEFA e dos campeonatos<br />

nacionais, assim como a realização das próximas<br />

Olimpíadas de Tóquio, no próximo ano. Milhões<br />

de pessoas estão acantonadas em suas casas para<br />

tentarem fugir a um inimigo invisível, desconhecido<br />

e voraz. Ninguém já vai ao café, muito menos<br />

viajar. Os grandes eventos profissionais, os espectáculos<br />

musicais de Verão no Hemisfério Norte, um<br />

culto para milhares de jovens, estão cancelados. São<br />

obcessivamente vistos os canais de televisão entregues<br />

à cobertura da epidemia. Os restantes enchem<br />

as programações com reposições. Tudo o que existe,<br />

para quem vive o isolamento, é a pandemia e o passado.<br />

O presente está suspenso. Uma atmosfera que<br />

torna real a narrativa de várias ficções cinematográficas<br />

sobre o terror de pandemias que anteciparam.<br />

É interessante rever filmes como o premonitório<br />

Contágio, que Steven Soderbergh assinou em 2011,<br />

e Pandemia, de 2016. O isolamento é a única arma<br />

contra o contágio. Por todo o Hemisfério Norte,<br />

a sociedade e a economia estão de quarentena.<br />

EFEITOS IMEDIATOS<br />

Os efeitos económicos imediatos do novo coronavírus<br />

foram, com efeito, devastadores. No início de<br />

Março as bolsas caíram para os mínimos da crise<br />

de 2008 e o preço das matérias-primas energéticas<br />

tombou, com o gás a cair de 2,2 dólares para<br />

1,7 dólares por MMBtu (a unidade térmica utilizada<br />

no mercado) entre Dezembro e o princípio<br />

do mês de Março. O que aconteceu com o petróleo<br />

foi muito pior. Primeiro desceu para o nível de<br />

45 dólares por barril, o mesmo valor que sobressaltou<br />

os países produtores em 2017 e conduziu ao<br />

entendimento dos fornecedores da matéria-prima,<br />

abril <strong>2020</strong> | 19


CAPA PANDEMIA<br />

O VÍRUS QUE DEVOROU <strong>2020</strong><br />

O coronavírus deve o nome ao seu aspecto. Ao microscópio<br />

parece ser emoldurado por uma coroa. O novo vírus, que provoca<br />

a doença COVID-19, espalha-se a uma velocidade digital. Para se<br />

ter uma ideia, basta dizer que o vírus do SARS, o seu mais perigoso<br />

antecessor, demorou 130 dias a infectar as primeiras mil pessoas.<br />

O novo coronavírus só precisou de 48 dias para o fazer. Menos<br />

letal que os seus antecessores mais imediatos, é muito mais veloz<br />

e agressivo, contagiando muito mais pessoas e acabando por saldar-se<br />

num elevado número de mortos. Os sintomas da doença<br />

são idênticos aos da gripe comum, consistindo em febre elevada,<br />

dificuldades respiratórias e tosse seca. E vão-se acrescentando<br />

outros, como a perda de olfacto e paladar. Acontece que, até<br />

os sintomas se revelarem, tanto quanto se sabe podem passar-<br />

-se entre 2 a 14 dias. Ou seja, qualquer pessoa, ainda que “assintomática”<br />

pode contagiar, até se saber que é portadora do vírus,<br />

as outras com quem se cruza ao longo de…14 dias. A experiência<br />

dos países que mais recorreram a testes da doença mostram que<br />

70% dos infectados são contagiados por aqueles que não apresentam<br />

sintomas, os assintomáticos.<br />

Trata-se de uma infecção respiratória, em que o grau de mortalidade,<br />

a taxa de letalidade, aumenta com a idade, matando mesmo<br />

cerca de 15% dos infectados nas idades superiores a 70 anos. Pode<br />

alojar-se só no nariz e na garganta nos casos mais benignos, ou<br />

infiltrar-se também nos pulmões, gerando pneumonias, colapsos<br />

cardíacos e falência renal. Transmite-se directamente através de<br />

gotículas emitidas pela pessoa infectada e propaga-se também<br />

através das superfícies, mas ainda há muitas interrogações sobre<br />

a progressão do vírus. Dentro do corpo hospedeiro o vírus apodera-se<br />

do sistema natural das células para replicar-se. Já existem<br />

duas variantes do novo vírus e poderão vir a ocorrer novas mutações.<br />

Uma possibilidade terrível, notando os especialistas que a<br />

doença apresenta taxas de letalidade diferentes nas primeiras<br />

regiões mais atingidas: China, Itália e Irão.<br />

Sendo um vírus desconhecido, o organismo humano<br />

não possui anticorpos que se lhe oponham,<br />

ao contrário do que acontece com a<br />

gripe. Numa corrida sem precedentes<br />

a ciência já decifrou o genoma<br />

do vírus, descobriu como este<br />

invade o organismo (disfarçado<br />

de proteína) e anuncia-se que<br />

vai ser obtida uma vacina em<br />

tempo recorde. O último anúncio<br />

veio do potentado farmacêutico<br />

Johnson & Johnson, que estará<br />

em condições de disponibilizar uma<br />

vacina no início de 2021.<br />

sobretudo os dois maiores, Arábia Saudita e Rússia.<br />

Esperava-se, entretanto, que mais uma vez os<br />

dois grandes produtores da matéria-prima, a Arábia<br />

Saudita e a Rússia (desde a última crise petrolífera,<br />

esta e mais nove países passaram a conjugar esforços<br />

com a Organização dos Países Exportadores de<br />

Petróleo — OPEP), chegassem novamente a acordo.<br />

Os sauditas propunham que se retirassem do mercado<br />

mais 1,5 milhões de barris diariamente até ao<br />

final do ano. Surpreendentemente, ou não, os russos<br />

não estiveram pelos ajustes e a Arábia Saudita<br />

tomou a iniciativa de jorrar petróleo no mercado<br />

e fazer mesmo descontos nas vendas mais imediatas.<br />

O objectivo da Rússia será “levar ao tapete” a<br />

produção de petróleo extraído do xisto nos Estados<br />

Unidos, que garante ao país a sua autonomia energética,<br />

como Donald Trump não se cansa de repetir.<br />

A ironia é que, no passado recente, foi a Arábia Saudita<br />

a assumir a audácia de neutralizar a produção<br />

norte-americana e tudo acabou, face à persistente<br />

baixa do preço, na frente alargada constituída pela<br />

OPEP e outros dez grandes produtores não alinhados<br />

na organização. A 9 de Março, na abertura do<br />

mercado asiático, o nervosismo provocou, em poucas<br />

horas, uma queda de 30% na cotação da matéria-prima,<br />

só equiparável à verificada aquando da<br />

Guerra do Golfo. Dissiparam-se muitas nuvens de<br />

poluição no céu da China e o maior cliente mundial<br />

vai importar menos petróleo. No dia 9 de Março<br />

o preço do barril de Brent desceu ao patamar dos<br />

35 dólares, o que mostra como um vírus desconhecido<br />

e veloz amedronta os mercados e faz vir<br />

ao de cima as tensões nele existentes e mal resolvidas.<br />

Mas o pior ainda estava para vir, a expressão<br />

mais utilizada a propósito da progressão deste<br />

vírus, com os futuros de Brent a descerem para a<br />

casa dos 20 dólares por barril, o que constitui um<br />

rombo nos países exportadores da matéria-prima<br />

e que vivem das receitas que obtêm com esta para<br />

equilibrarem os balanços fiscais, assim como imobiliza<br />

a produção norte-americana de óleo e gás a<br />

partir da fragmentação do xisto, já de si altamente<br />

endividada, comprometendo a autonomia energética<br />

de que os Estados Unidos tanto se orgulham<br />

de ter alcançado.<br />

As bolsas entraram em pânico, evoluindo erraticamente,<br />

mas deixando sempre um lastro de<br />

enorme descapitalização das empresas cotadas e<br />

corrigindo, para muitos, numa visão que adopta o<br />

optimismo possível, a espiral especulativa em que<br />

se encontravam. A 9 de Março os principais índices<br />

de Wall Street caíram 7% e o Dow Jones caiu<br />

2 mil pontos, a que terá sido a sua maior quebra diá-


PIB A PIQUE<br />

A recessão originada pela crise global de saúde pública é uma consequência incontornável para instituições e analistas<br />

Antes da Pandemia<br />

Com a Pandemia<br />

6,6<br />

3,6<br />

2,9<br />

1,9<br />

4,8<br />

2,9<br />

2,3<br />

1,2<br />

5,8<br />

3,3<br />

2,0<br />

1,3<br />

6,5<br />

3,4<br />

1,7<br />

1,4<br />

6,6<br />

3,6<br />

2,9<br />

1,9<br />

4,8<br />

2,9<br />

2,3<br />

1,2<br />

5,8<br />

3,3<br />

2,0<br />

1,3<br />

-0,9<br />

-1,3<br />

-2,6<br />

-3,2<br />

2018 2019 <strong>2020</strong><br />

2021<br />

2018<br />

2019<br />

inicial<br />

<strong>2020</strong><br />

inicial<br />

<strong>2020</strong><br />

pandemia<br />

Zona Euro EUA Produção Mundial China<br />

Fonte: FMI, previsões de Janeiro de <strong>2020</strong> excepto a previsão para <strong>2020</strong> pós-pandemia da Oxford Economics.<br />

ria, após o colapso do preço do petróleo. O índice<br />

S&P 500 perdeu 6,59%, e o tecnológico Nasdaq<br />

6,19%. Wall Street viveu o pior dia desde a crise de<br />

2008/2009, com as quebras a levarem à interrupção<br />

da sessão, como acontecera então. Viveu-se o<br />

mesmo ambiente do cataclismo financeiro do final<br />

de 2008, com o novo coronavírus a garantir uma<br />

recessão internacional. Na Europa, as bolsas também<br />

foram ao fundo. “Foi um dos piores dias que<br />

vivi em bolsa”, disse à AFP Oliver Roth, analista do<br />

Oddo Seydler Bank, em Frankfurt, onde o índice<br />

Dax registou a maior queda desde 2001 (7,94%).<br />

As quebras sucederam-se a uma velocidade furiosa<br />

no mercado à medida que a contaminação progrediu.<br />

A Itália entrava em quarentena, uma situação<br />

sem precedentes, e os Estados Unidos fechavam as<br />

portas à Europa, interditando os voos provenientes<br />

do Velho Continente.<br />

O SURTO<br />

EPIDÉMICO<br />

PODERÁ<br />

CUSTAR 130 MIL<br />

MILHÕES DE<br />

DÓLARES ÀS<br />

COMPANHIAS<br />

DE AVIAÇÃO<br />

ESTE ANO,<br />

DE ACORDO<br />

COM<br />

A IATA<br />

AMEAÇA AOS EUA<br />

Nos Estados Unidos, o novo coronavírus pôs Nova<br />

Iorque em casa e os hospitais vivem o mesmo clima<br />

de horror de Itália ou Espanha, transmitido pela<br />

comunicação global a espectadores sedentos de<br />

informação no isolamento das suas casas. O Presidente<br />

norte-americano, Donald Trump, classificou<br />

o o vírus como uma ameaça externa. A FED, a<br />

reserva federal norte-americana, que funciona como<br />

banco central com poderes alargados, decidiu, a 3 de<br />

Março, baixar a taxa de juro de referência em meio<br />

ponto percentual, o maior corte efectuado desde a<br />

crise financeira de 2008, colocando a taxa de juro<br />

de referência num intervalo entre 1% e 1,25%. Com<br />

a progressão do vírus e os sucessivos anúncios das<br />

autoridades europeias e norte-americanas, os mercados<br />

de capitais passaram a viver numa montanha-<br />

-russa, espelhando tempos de incerteza profunda.<br />

As autoridades norte-americanas haviam começado<br />

por aprovar um plano de emergência de 8,3<br />

mil milhões de dólares destinado a combater a<br />

disseminação da infecção e acelerar o desenvolvimento<br />

de uma nova vacina, a que acrescentaram, a<br />

12 de Março, 50 mil milhões de dólares destinados<br />

a fornecer apoio ao capital e tesouraria das pequenas<br />

empresas. O que ainda não era nada face ao<br />

que estava para vir.<br />

New Rochelle é uma pequena cidade do Estado de<br />

Nova Iorque, um dos subúrbios do aglomerado mais<br />

cosmopolita do mundo. Foi a primeira dos Estados<br />

Unidos a ser atacada severamente pelo novo vírus.<br />

O medo sentiu-se na cidade, o álcool em gel evaporou-se<br />

rapidamente, os habitantes puseram más-<br />

abril <strong>2020</strong> | 21


CAPA PANDEMIA<br />

LONGEVIDADE VULNERÁVEL<br />

D.R.<br />

Quando a indústria da saúde ganhou lugar na primeira linha das<br />

notícias graças aos prodígios tecnológicos alcançados no domínio<br />

do bem-estar e dos cuidados dos mais velhos, irrompeu um vírus<br />

que contaminou o mundo inteiro e abalou os sistemas de saúde<br />

dos países mais desenvolvidos. Questionou a certeza quanto ao<br />

advento do bem-estar na velhice que a ciência, a tecnologia e a<br />

indústria pareciam prometer. As marcas vêm associando a tecnologia<br />

de saúde aos objectos com que mais lidamos, o vestuário,<br />

o calçado, o relógio. O desenvolvimento dos sistemas de saúde<br />

aumentou a longevidade para níveis inimagináveis há um século e<br />

cobriu-a de high-tech nos países mais ricos. Para que adianta viver<br />

mais se não se viver bem, com qualidade? Contudo, a panóplia<br />

de serviços e equipamentos dirigidos aos mais velhos só beneficia<br />

uns quantos, mesmo nos países ricos, e um vírus que os escolhe<br />

como o seu alvo mais letal trouxe ao de cima a invisibilidade para<br />

que são atirados pela mesma civilização que lhes prolonga a vida.<br />

O novo coronavírus instalou o pânico nos lares de idosos por toda<br />

a Europa, mostrando a vulnerabilidade da vida que se alongou.<br />

caras. O ambiente tenso estendeu-se a todo o país<br />

através da comunicação social e das redes sociais.<br />

Em New Rochelle foi convocada a Guarda Nacional<br />

para distribuir alimentos e atender a outras urgências.<br />

Uma imagem de estado de sítio semelhante à<br />

que era dada por Itália, com os seus monumentos,<br />

ruas e praças desertos. O alarme estava dado nos<br />

Estados Unidos, a primeira potência mundial teria<br />

de enfrentar a pandemia, que deslocara o seu epicentro<br />

para a Europa, com a martirizada Itália, e a<br />

seguir a Espanha, a superarem o número de mortes<br />

infligidas pela COVID-19 na China.<br />

Estão a ser gastas, nesta pandemia, pelos Estados<br />

Unidos, somas inimagináveis. O país praticamente<br />

fechou as fronteiras e endureceu a contenção interna<br />

do surto. A pandemia atingiu ferozmente Nova Iorque,<br />

cresce, de um modo muito preocupante, em<br />

Washington e na Califórnia, e espalha-se pelos diferentes<br />

estados, ameaçando desencadear uma situação<br />

caótica no Louisiana. Face a isto, menos de duas<br />

semanas depois de anunciar as primeiras medidas,<br />

Trump subiu muito a parada e propôs à aprovação<br />

do Congresso um pacote de medidas de emergência<br />

para aguentar a economia no valor astronómico<br />

de 2 triliões (milhões de milhões) de dólares.<br />

A COMPETIÇÃO<br />

GLOBAL<br />

INTENSIFICOU-<br />

-SE COM<br />

A PANDEMIA,<br />

COM A CHINA<br />

E OS ESTADOS<br />

A TROCAREM<br />

ACUSAÇÕES<br />

Os fundos anunciados pelos diferentes governos para<br />

combater a crise de saúde totalizam quase 5 triliões<br />

de dólares. O impacto na sociedade é demolidor.<br />

A factura económica vai ser uma das mais elevadas<br />

de sempre. Quando, e como, conseguirão os Estados<br />

Unidos estancar uma crise que os está a subalternizar<br />

face à China, onde nasceu o novo coronavírus<br />

que, por negligência, não foi logo contido, mas<br />

que exulta a rápida superação do surto e pratica<br />

uma política activa de marketing na ajuda à Europa?<br />

A Europa, por seu lado, anunciou um pacote<br />

financeiro de 25 mil milhões de euros, afinal uma<br />

mera reafectação de verbas já programadas em<br />

fundos europeus e o mesmo valor disponibilizado<br />

pelo governo de Itália, o país europeu mais atingido<br />

pela pandemia e abandonado à sua sorte pelos seus<br />

pares europeus. Se a Alemanha, na primeira reacção<br />

aos impactos sobre a economia, se dispunha a<br />

aplicar 12,4 mil milhões de euros na sua dinamização,<br />

subiu a parada para 550 mil milhões de euros.<br />

França liberta 345 mil milhões em garantias de crédito<br />

e apoio a trabalhadores e empresas, e Espanha<br />

200 mil milhões. Portugal, que começou por<br />

anunciar um programa de apoio de 200 milhões<br />

de euros, já se comprometeu com 9 mil milhões<br />

22 | Exame Moçambique


de euros, muito dirigidos ao turismo, introduziu<br />

o lay-off flexível, em que o governo se compromete<br />

a pagar dois terços dos salários dos trabalhadores de<br />

empresas que suspendam a actividade, moratórias<br />

fiscais, manutenção dos arrendamentos e apoio aos<br />

“isolados” (a esmagadora maioria da população) e<br />

às tesourarias das empresas. Só o lay-off flexível irá<br />

custar ao governo português mil milhões de euros<br />

por mês, havendo ainda outros choques sobre as<br />

contas públicas, como o aumento do desemprego<br />

e dos respectivos subsídios.<br />

Os apoios chovem por toda a Europa (serão,<br />

mesmo assim, suficientes?), mas a coordenação<br />

dos países do euro não tem sido a melhor nem a<br />

mais atempada e disciplinada, face ao exemplo da<br />

província chinesa de Hubei e aos avisos de cientistas<br />

e médicos. Quando o novo coronavírus atacou<br />

a União Europeia, esta estava a braços com uma<br />

nova crise migratória e a ameaça da abertura de<br />

fronteiras do líder turco Recep Erdogan. Antes de<br />

anunciar as medidas que o Banco Central Europeu<br />

(BCE) iria tomar, a sua presidente, Christine<br />

Lagarde, avisara: “Iremos ver um cenário que irá<br />

lembrar, a muitos de nós, a crise financeira de 2008.”<br />

A tensão irá acentuar-se ao ritmo, muito rápido,<br />

do crescimento da propagação da doença e obriga<br />

a acrescentar vários zeros às medidas de emergência.<br />

Lagarde, quando o BCE apresentou, a 12 de<br />

Março, as suas medidas para apoiar a economia,<br />

afirmou ser claro para todos “que a economia da<br />

Zona Euro está perante um enorme choque”, defendendo<br />

que tudo irá depender de quão prolongada<br />

a pandemia será e, por outro lado, de quão rapidamente<br />

a propagação irá ocorrer. Christine Lagarde<br />

deu a sua aprovação aos esforços dos diferentes<br />

governos europeus na área orçamental, sendo que,<br />

ao contrário da FED norte-americana, o BCE não<br />

tem qualquer influência na política fiscal. Embora,<br />

contra as expectativas, o BCE não tenha mexido<br />

nas suas taxas de juro de referência (com o actual<br />

nível de taxas de juro na Europa tem muito pouca<br />

margem de manobra), comprometeu-se a autorizar<br />

rácios de capital mais baixos por parte dos bancos<br />

e dar “descontos” nas taxas de juro cobradas<br />

em operações de financiamento (à banca) a longo<br />

prazo, numa tentativa de estimular a concessão<br />

de crédito às pequenas e médias empresas. O BCE<br />

procurou transmitir uma mensagem positiva aos<br />

mercados financeiros ao aumentar as compras de<br />

dívida em 120 mil milhões de euros até ao final do<br />

ano. Não foi suficiente e as bolsas reagiram mal.<br />

Uma semana depois, nas últimas horas de uma<br />

quarta-feira, o BCE, entretanto muito criticado,<br />

OS ESTADOS<br />

UNIDOS E, EM<br />

GERAL, OS<br />

PAÍSES DE<br />

TRADIÇÃO<br />

SAXÓNICA<br />

PARECEM<br />

PREFERIR OS<br />

ESTÍMULOS<br />

DIRECTOS,<br />

PONDO<br />

DINHEIRO NO<br />

BOLSO DAS<br />

PESSOAS<br />

rectificava, aumentando muito a “parada” e prevenindo<br />

que iria utilizar uma verdadeira “bazuca”<br />

financeira. O Banco Central Europeu aumentava<br />

para 750 mil milhões de euros o montante destinado<br />

à recompra de dívida emitida por governos<br />

e empresas da Zona Euro. O dinheiro irá passar<br />

pelos bancos e os empresários desconfiam que a<br />

intermediação bancária irá significar juros elevados,<br />

numa altura em que precisam de crédito para<br />

ocorrer a dificuldades de tesouraria.<br />

Após os sucessivos e enormes apoios anunciados<br />

pelos países da UE mais atingidos pela pandemia, a<br />

presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula<br />

von der Leyden, através do Twitter, veio formalizar<br />

o óbvio (uma vez que os orçamentos dos diferentes<br />

países haviam sido pulverizados) e comunicar<br />

aos governos europeus, alguns ainda sufocados em<br />

dívida e, até agora, a tentar equilibrar orçamentos<br />

com sacrifício de funções sociais, que estão suspensas<br />

as regras do défice (que, segundo as normas<br />

europeias, não pode superar 3% do produto)<br />

e que os diferentes membros do euro podem injectar<br />

o que for preciso nas suas economias para tentar<br />

travar a vaga epidémica. É a primeira vez que<br />

a Comissão Europeia acciona a chamada “cláusula<br />

de salvaguarda” que suspende as regras do défice.<br />

Um reconhecimento da dimensão da crise, para a<br />

qual os países do bloco monetário não encontram<br />

resposta conjunta, o que atira graves responsabilidades,<br />

uma vez mais, para as costas da Alemanha,<br />

estando em causa a defesa do euro. Em<br />

termos monetários, é disso que se trata. Só que a<br />

União Europeia está dividida e a pandemia poderá<br />

vir a precipitar a queda da moeda única. A maior<br />

parte dos países reclama que o dinheiro necessário<br />

para aguentar o emprego e relançar a economia<br />

provenha da emissão de dívida mutualizada entre<br />

todos os Estados-membros, ou seja, de títulos cujo<br />

risco é partilhado por todos, a que alguns já chamam<br />

“coronabonds”. Mas a oposição por parte de<br />

alguns estados do Norte da Europa, e sobretudo a<br />

posição da hesitante Alemanha, apesar do desespero<br />

da França, poderá fazer que o bloco monetário<br />

se venha a desfazer. A Comissão Europeia não<br />

tem margem orçamental para fazer mais do que<br />

admitir a reafectação de verbas desviadas de outros<br />

programas de apoio. A Europa tem de encontrar<br />

rapidamente uma solução para o financiamento<br />

dos défices impostos pela pandemia, mas mostra-<br />

-se atarantada, lenta e desunida face à catástrofe<br />

que enfrenta. Esta demonstrou que os laços de solidariedade<br />

entre os países que constituem a União<br />

Europeia são, como se suspeitava, muito frágeis.<br />

abril <strong>2020</strong> | 23


CAPA PANDEMIA<br />

CATADUPA DE APOIOS<br />

O Fundo Monetário Internacional (FMI) põe à<br />

disposição dos países mais atingidos pela pandemia<br />

um financiamento de emergência de 50 mil<br />

milhões de dólares. Os director e o vice-director<br />

dos Assuntos Orçamentais do FMI, Vítor Gaspar<br />

e Paolo Mauro, partilhando uma preocupação já<br />

manifestada pela OCDE, consideram que os governos<br />

devem “gastar dinheiro para prevenir, detectar,<br />

controlar, tratar e conter o vírus”. Escrevem,<br />

no blogue do FMI, que os governos devem “dar<br />

subsídios salariais às pessoas e empresas para ajudar<br />

a conter o contágio”. Em França, no Japão e na<br />

Coreia do Sul foram apoiados os funcionários em<br />

quarentena ou que precisem de dar apoio a crianças.<br />

Nos Estados Unidos, o Congresso aprovou<br />

um pacote financeiro de 8,3 mil milhões de dólares<br />

para o combate ao coronavírus no país. A mais<br />

poderosa economia europeia, a Alemanha, anunciou,<br />

no mesmo dia (9 de Março) em que o país<br />

registou as suas primeiras duas mortes entre cerca<br />

de mil infectados, medidas para tentar evitar uma<br />

derrapagem económica descontrolada. A produção<br />

industrial alemã está há seis meses deprimida,<br />

tendo caído 5,7% no último trimestre, reflectindo<br />

a maior recessão industrial desde a reunificação do<br />

país, em 1990. Primeiro, a 9 de Março, as autoridades<br />

alemãs anunciaram um plano de investimento<br />

público envolvendo 12,4 mil milhões de euros a ser<br />

implementado nos próximos quatro anos e ainda<br />

um envelope de 8 mil milhões de euros destinado<br />

a obras rodoviárias e ferroviárias e à construção<br />

civil. Além disso, o governo dispunha-se a garantir<br />

a tesouraria das empresas que registassem que-<br />

PARA A<br />

MAIORIA DOS<br />

ECONOMISTAS,<br />

A PRIORIDADE<br />

É PARAR<br />

RAPIDAMENTE<br />

A PANDEMIA<br />

E REABILITAR<br />

A ECONOMIA,<br />

COM POLÍTICAS<br />

FISCAIS<br />

EXCEPCIONAIS<br />

MUNDO VAZIO:<br />

Um homem passa pelos<br />

famosos degraus<br />

espanhóis de Roma<br />

bras bruscas na receita e estender a mais empresas<br />

o programa que permite às empresas reduzirem o<br />

número de horas trabalhadas. A iniciativa alemã<br />

foi de pronto considerada “unilateral” por muitos<br />

analistas na União Europeia. A economia alemã<br />

vem dando sinais de desaceleração e já ameaçava<br />

mesmo uma recessão, dispondo, no entanto, de<br />

uma confortável almofada orçamental. No último<br />

ano, as contas públicas alemãs apresentaram um<br />

excedente de 50 mil milhões de euros. A Alemanha<br />

tem imposto aos seus parceiros do euro uma<br />

convicção férrea nas virtudes da austeridade nas<br />

contas públicas. Uma boa parte das economias<br />

europeias continua muito endividada e os recursos<br />

que terão de ser aplicados na contenção da<br />

devastação provocada pelo surto epidémico irão<br />

arrasar o equilíbrio fiscal e agravar a situação de<br />

endividamento com que se debatem muitos países<br />

europeus, como a Itália, Espanha, Grécia e<br />

Portugal. Criticado no resto da Europa por avançar<br />

sozinho, o governo alemão também não escapou<br />

a críticas internas. A Deutsche Welle (DW), a<br />

emissora internacional da Alemanha, publicava a<br />

18 de Março um texto de opinião na sua página de<br />

Internet no qual se fazem duras críticas à chanceler<br />

Angela Merkel. A autora do texto, Cristina<br />

Burack, é peremptória a dizer que “Merkel desperdiçou<br />

uma oportunidade crucial e demonstrou<br />

falta de liderança face à crise”. Ora, passados<br />

dois dias, Merkel anunciava um fundo dotado de<br />

500 mil milhões de euros para conceder linhas<br />

de crédito e permitir injecções de capital nas empresas.<br />

Berlim prevê ajudas de Estado no montante de<br />

180 mil milhões de euros. Mas a Alemanha dis-<br />

D.R.<br />

24 | Exame Moçambique


põe-se a ir mais longe, contrariando todos os seus<br />

sacrossantos princípios sobre a dívida europeia. Preferirá,<br />

no entanto, não avalisar dívida em conjunto<br />

com parceiros endividados na União Europeia.<br />

A Itália, o país mais castigado pelo COVID-19, e<br />

também o mais responsável pela sua propagação na<br />

Europa, dado que as medidas de contenção andaram<br />

a reboque do fulminante processo de contágio<br />

e foram amplamente desrespeitadas pelos italianos,<br />

anunciara, uma semana antes, a 4 de Março, um<br />

pacote de estímulos de 7,5 mil milhões de euros<br />

destinado a apoiar formas de trabalho flexíveis,<br />

procurando garantir a preservação de empregos e a<br />

produção. Uma vez mais, a velocidade do contágio<br />

e a escalada de mortos tornou irrelevante a verba<br />

anunciada. A 11 de Março, o pacote de ajuda italiana<br />

disparou para 25 mil milhões de euros, um<br />

problema agudo para um país cuja dívida pública<br />

atinge 130% do produto interno (PIB). A Espanha,<br />

o segundo país europeu mais atingido, anunciou,<br />

seis dias depois, uma injecção de 200 mil milhões<br />

de euros na economia para fazer face à destruição<br />

operada pelo vírus. Na véspera, o governo francês<br />

anunciara que irá disponibilizar 345 mil milhões<br />

de euros, dos quais 300 mil milhões destinam-se<br />

à garantia de empréstimos e 45 mil milhões ao<br />

apoio de trabalhadores e empresas.<br />

O IMPACTO DA ECONOMIA GLOBAL<br />

É impossível prever os danos que serão causados<br />

à sociedade global pois é impossível antecipar<br />

a rota do vírus. O que se sabe é que se está<br />

perante um novo tipo de crise, não uma crise<br />

gerada no universo financeiro, mas uma crise de<br />

saúde pública que suspende a economia real, a<br />

oferta e a procura. Afundam-se tanto uma como<br />

a outra. As previsões, cada vez mais catastróficas,<br />

sucedem-se, procurando acompanhar a velocidade<br />

com que a doença epidémica se espalha.<br />

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento<br />

Económico (OCDE), que agrupa os países<br />

mais desenvolvidos, afirmou, no início de Março,<br />

que num cenário de pandemia causada pelo novo<br />

coronavírus o crescimento mundial poderá descer<br />

para metade (1,5%) em relação à sua previsão<br />

de há quatro meses. A OCDE traçara um cenário<br />

mais optimista, com o surto a ficar confinado<br />

à China e Hong Kong, em que o PIB global cairia<br />

apenas para 2,4%. Não foi, contudo, o que aconteceu,<br />

e a epidemia espalhou-se rapidamente aos<br />

outros continentes. Em qualquer dos cenários, a<br />

procura interna na economia chinesa, que corresponde<br />

a 17% do produto interno bruto (PIB)<br />

A ESCALA<br />

DOS GASTOS ESTATAIS<br />

Os Estados Unidos e os países anglófonos apostam nos apoios<br />

directos dos orçamentos nacionais como forma de proteger<br />

rendimentos e consumo<br />

Explosão Orçamental da COVID-19 (em milhões de dólares)<br />

1100000<br />

85000 79300 68000 50000 35300 27700 27500<br />

Estados<br />

Unidos<br />

Austrália<br />

Reino<br />

Unido<br />

Alemanha França Espanha Japão Itália<br />

Fonte: Goldman Sachs com valores convertidos em dólares ao câmbio corrente.<br />

mundial, cairá 4% no primeiro trimestre do ano e<br />

2% no segundo. No cenário mais severo, registar-<br />

-se-á uma diminuição de 2% na procura na maioria<br />

dos países da região da Ásia-Pacífico e nas economias<br />

mais desenvolvidas do Hemisfério Norte<br />

no segundo trimestre deste ano, uma quebra de<br />

20% no mercado de capitais e no preço das matérias-primas<br />

não alimentares e “um aumento de<br />

50 pontos base no prémio de risco no investimento<br />

em todos os países”. A OCDE, poucos dias após<br />

revelar as suas projecções, adiou, numa decisão<br />

inédita, a divulgação dos seus indicadores avançados.<br />

A formulação de previsões, um acto sempre<br />

arriscado, tornou-se agora impossível, dado<br />

o grau de incerteza que existe quanto à evolução<br />

do vírus e o seu impacto na economia mundial.<br />

A Organização Mundial do Turismo (OMT) prevê<br />

que o coronavírus provoque perdas entre 30 e<br />

50 mil milhões de dólares. O transporte aéreo é<br />

fortemente atingido. O surto epidémico poderá<br />

custar 130 mil milhões de dólares às companhias<br />

de aviação só este ano, de acordo com a IATA,<br />

a associação internacional de transporte aéreo.<br />

O sector prepara-se para enfrentar a pior crise<br />

desde 2008. As transportadoras vêem-se obrigadas<br />

a estabelecer planos de contingência e a cancelar<br />

rotas para os principais focos de propagação<br />

do vírus. A queda de passageiros, com que já se<br />

debatiam, tornou-se agora brutal. b<br />

abril <strong>2020</strong> | 25


CAPA PANDEMIA<br />

A RECESSÃO<br />

E COMO SAIR<br />

DELA<br />

Sair de uma crise global<br />

exige coordenação mundial<br />

LUÍS FARIA<br />

Até Junho, pelo menos, Europa e Estados<br />

Unidos vão manter-se parados.<br />

A China retoma, entretanto, a normalidade,<br />

vendendo freneticamente<br />

equipamento e material de protecção<br />

contra o vírus. Em África e na América Latina,<br />

a possibilidade de o vírus escalar a níveis insuportáveis<br />

ainda é uma interrogação. Em todo o caso, ainda<br />

SOLUÇÃO:<br />

A governação mundial<br />

tem de encontrar<br />

respostas para uma das<br />

maiores recessões<br />

de sempre<br />

JÁ NÃO<br />

RESTAM<br />

DÚVIDAS A<br />

NINGUÉM QUE<br />

A RECESSÃO<br />

MUNDIAL É<br />

INEVITÁVEL,<br />

FALTA SABER<br />

QUANTO CAIRÁ<br />

O PRODUTO<br />

GLOBAL<br />

D.R.<br />

que a um ritmo inicial mais lento (aliás, já observado<br />

noutras latitudes), vai alastrando. A pandemia<br />

escancara as portas à recessão da economia global,<br />

que oscilava com a moderação do crescimento chinês,<br />

e na Europa com os apuros da Itália e a desaceleração<br />

alemã. O primeiro e segundo trimestres<br />

do ano já estão marcados pela recessão. Poderá, na<br />

melhor das hipóteses, assistir-se a alguma recuperação<br />

já no terceiro trimestre.<br />

Já não restam dúvidas a ninguém que a recessão<br />

mundial é inevitável, falta saber com alguma aproximação<br />

quanto decairá o produto global, o que<br />

depende da duração da pandemia. A directora-geral<br />

do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina<br />

Georgieva, avisou, no final de Março, que a<br />

economia global já se encontrava em recessão. Paul<br />

Thomsen, encarregue da área europeia do FMI, num<br />

artigo publicado no blogue da instituição, lembra<br />

que os serviços fechados representam cerca de um<br />

terço da produção, o que “significa que cada mês<br />

de serviços fechados se traduz numa descida de 3%<br />

do produto interno bruto (PIB) anual europeu”. E a<br />

Europa estará fechada, pelo menos, por três meses.<br />

A consultora Oxford Economics prevê, para os<br />

Estados Unidos, uma recessão de apenas 0,2%, e para<br />

a Zona Euro uma recessão de 2,2%. A China crescerá<br />

apenas 1% (contra os 5,5% estimados na última<br />

revisão da estimativa do crescimento da potência<br />

asiática) e a economia mundial estagnará (a previsão<br />

anterior à pandemia era de 2,5%). A consultora<br />

é, no entanto, optimista para o período que se<br />

seguirá ao termo da crise sanitária. “A perspectiva<br />

de evolução a curto prazo é extremamente desafiante,<br />

mas a actividade vai recuperar depois das<br />

medidas de distanciamento social”, beneficiando<br />

também com a combinação dos estímulos monetários<br />

e orçamentais e da despesa discricionária”,<br />

diz. Antecipa um crescimento de 5,3% da economia<br />

mundial no último trimestre deste ano e uma<br />

média de 4,4% em 2021. No entanto, estas estimativas<br />

suaves da consultora são temperadas pelo pior<br />

cenário que coloca e que se está a verificar, com o<br />

agravamento da pandemia, que congela de todo os<br />

mercados ocidentais. Neste caso, a economia mundial<br />

poderá ter um crescimento negativo de 1,3%,<br />

com os Estados Unidos a caírem 2,6%, a Zona Euro<br />

3,2% e a China 0,9%.<br />

Por seu lado, o Instituto de Finanças Internacionais<br />

(IIF, na sigla em inglês) estima que o crescimento<br />

da economia global deve desacelerar para<br />

1% em <strong>2020</strong>, ritmo mais fraco desde a crise financeira<br />

de 2008, como efeito do choque causado pelo<br />

coronavírus. O relatório divulgado pelo IIF redu-<br />

26 | Exame Moçambique


ÁFRICA QUER PERDÃO DE DÍVIDA POR TRÊS ANOS<br />

O impacto da recessão originada pela pandemia vai prolongar-se<br />

em África por três anos, pelo que o continente pede<br />

que, nesse período, os países que o integram sejam libertados<br />

dos encargos da dívida. Esta a conclusão do segundo<br />

encontro dos ministros das Finanças africanos, liderado pela<br />

secretária-executiva da Comissão Económica das Nações<br />

Unidas para África (UNECA), realizada por videoconferência,<br />

com alguns dos ministros a usarem máscaras. Os governantes<br />

defenderam que o continente “está a enfrentar um<br />

profundo e sincronizado abrandamento económico e que<br />

a recuperação pode demorar até três anos”. O pedido de<br />

perdão de dívida, já formulado uma semana antes, mas só<br />

por um ano, foi alargado no início deste mês a todo o tipo<br />

de dívida e a todos os países do continente durante os próximos<br />

três anos. “Os ministros pediram um alívio da dívida<br />

por parte dos parceiros bilaterais, multilaterais e comerciais<br />

com o apoio de instituições financeiras multilaterais e bilaterais,<br />

como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial<br />

e a União Europeia, para garantir que os países africanos<br />

garantem a margem orçamental de que precisam para lidarem<br />

com a crise da COVID-19”, lê-se no comunicado divulgado<br />

no final da reunião. “Dado que a economia global entrou<br />

num período sincronizado de abrandamento, com a recuperação<br />

a só dever acontecer dentro de 24 a 36 meses, os parceiros<br />

para o desenvolvimento devem considerar um alívio<br />

financeiro e um perdão dos juros durante dois a três anos<br />

para todos os países africanos, sejam de baixo ou de médio<br />

rendimento”, escrevem os governantes. Os países africanos<br />

continuam a focar a despesa nas necessidades de saúde exigidas<br />

pela pandemia.<br />

A ideia do perdão da dívida foi lançada pelo Fundo Monetário<br />

Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM): “Com efeito<br />

imediato, e consistente com as leis nacionais dos países credores,<br />

o Grupo BM e o FMI apelam a todos os credores oficiais<br />

bilaterais que suspendam os pagamentos de dívida<br />

dos países [abrangidos pela] Associação para o Desenvolvimento<br />

Internacional (IDA, na sigla em inglês) que assim<br />

o solicitem”, lê-se num comunicado conjunto. “Isto vai ajudar<br />

os países com necessidades imediatas de liquidez a lidarem<br />

com os desafios colocados pela pandemia do novo coronavírus<br />

e dar tempo para uma análise do impacto da crise e<br />

sobre as necessidades de financiamento para cada país.”<br />

A IDA é uma instituição que funciona no âmbito do Banco<br />

Mundial com a missão de apoiar os 76 países mais pobres,<br />

entre os quais estão todos os países lusófonos africanos,<br />

à excepção de Angola e Guiné Equatorial.<br />

“O FMI e o BM acreditam que neste momento é imperativo<br />

fornecer um sentimento global de alívio aos países em<br />

desenvolvimento, bem como um forte sinal aos mercados<br />

financeiros”, conclui-se no comunicado, que incide apenas<br />

sobre a dívida bilateral e não sobre a dívida emitida nos<br />

mercados internacionais e detida por investidores privados<br />

ou institucionais.<br />

Tim Jones, economista-chefe da ONG Comité para o Jubileu<br />

da Dívida, argumenta que a pandemia da COVID-19 “torna<br />

ainda mais vital” que Moçambique não pague as dívidas<br />

ocultas, defendendo uma moratória sobre as outras dívidas.<br />

O dinheiro, vincou, “precisa de ficar em Moçambique para<br />

ajudar a financiar os serviços de saúde e lidar com a crise<br />

económica e a queda nos preços das matérias-primas”. Para<br />

o economista-chefe desta organização que defende a emissão<br />

de dívida de forma responsável, “também é preciso uma<br />

moratória nos pagamentos de dívida a outros credores externos”.<br />

Um estudo da ONG conclui que os juros de nova dívida<br />

pública para mercados emergentes subiu para uma taxa de<br />

10% desde o final de Fevereiro.<br />

D.R.<br />

abril <strong>2020</strong> | 27


CAPA PANDEMIA<br />

A PANDEMIA E O GÁS NATURAL<br />

Mesmo que o petróleo se mantenha em patamares muito baixos<br />

(o preço do barril já rondou os 20 dólares), os preços do<br />

gás natural liquefeito podem aumentar no final desta década.<br />

No entanto, o “efeito cascata” da quebra dos preços do petróleo<br />

pode contagiar o gás natural, pondo em causa as decisões<br />

finais de investimento em relação a novos projectos de exploração<br />

de gás, de acordo com a Bloomberg, que lembra que<br />

há quase 20 megaprojectos em busca de financiamento pelos<br />

investidores internacionais, depois de um número recorde ter<br />

atingido o marco crítico da Decisão Final de Investimento (FID,<br />

na sigla em inglês) no ano passado, e que já antes da queda dos<br />

preços do petróleo e das perturbações mundiais decorrentes<br />

da pandemia de COVID-19 “os promotores dos projectos estavam<br />

sob pressão devido à queda dos preços do gás, temperaturas<br />

quentes para o Inverno e restrições na procura”. “Com<br />

uma pressão para a descida dos preços no gás natural e com os<br />

preços do petróleo já baixos, alguns projectos podem começar<br />

a parecer realmente pouco rentáveis”, disse Jeff Moore, analista<br />

da consultora especializada em energia S&PGlobal Platts,<br />

em declarações à Bloomberg.<br />

O surto pandémico pode pressionar o preço do gás natural<br />

liquefeito no imediato, no entanto as perspectivas para o mercado<br />

do gás a longo prazo são bastante optimistas. Aliás, há,<br />

desde logo, um facto muito curioso a registar. O aumento de<br />

importações de commmodities energéticas subiu significativamente<br />

nos primeiros dois meses do ano, um dado que foi ofuscado<br />

pelo impacto do novo coronavírus. Informação alfandegária<br />

divulgada a 7 de Março mostra que as importações chinesas de<br />

petróleo bruto atingiram uma média de 10,48 milhões de barris<br />

por dia (bpd) nos dois primeiros meses, um aumento de 5,2% em<br />

relação ao mesmo período do ano passado. As importações de<br />

gás natural através de oleodutos e gás natural liquefeito (GNL)<br />

aumentaram 2,8%, para 17,8 milhões de toneladas — talvez o<br />

desempenho mais surpreendente dado o diferimento relatado<br />

de várias cargas de GNL em Fevereiro devido ao coronavírus,<br />

bem como a fraca procura de um Inverno mais quente do que o<br />

habitual. Durante uma reunião conjunta da Louisiana Mid-Continent<br />

Oil and Gas Association e Louisiana Oil & Gas Association<br />

que teve lugar na primeira semana de Março, altos executivos<br />

de grandes empresas de energia reafirmaram a sua convicção<br />

de que a procura por energia irá continuar a subir. A ExxonMobil<br />

Fuels & Lubricants espera que a procura por petróleo e gás<br />

aumente 8% e 6%, respectivamente, nos próximos 20 anos.<br />

“Mesmo com as mudanças introduzidas pelo Acordo Climático<br />

de Paris, haverá um enorme crescimento da procura por petróleo<br />

e gás”, disse Bryan Milton, presidente da empresa, acrescentando<br />

que esta espera investimentos da ordem de 21 triliões<br />

de dólares até 2040. Uma boa parte deve beneficiar a costa do<br />

Golfo. Frederic Phipps, presidente da Shell nos EUA, afirma que<br />

a procura a longo prazo de gás natural liquefeito permanece<br />

forte — apesar das perturbações decorrentes do coronavírus,<br />

já que o gás continua a ser o combustível de escolha para soluções<br />

de energia mais limpas. Para Phipps, “uma população crescente<br />

e padrões de vida crescentes continuarão a impulsionar<br />

a procura por energia com emissões mais baixas”.<br />

Mas a verdade é que, no imediato, a pandemia significa um<br />

duro golpe nos três maiores mercados de importação de gás<br />

natural liquefeito — Japão, China e Coreia do Sul. Os três principais<br />

importadores de LNG do mundo foram, inicialmente, os<br />

três países mais atingidos pelo surto de coronavírus, mas também<br />

aqueles que tiveram mais sucesso no combate à doença.<br />

O alastramento da pandemia à Europa e aos Estados Unidos<br />

teve muito menor impacto nos preços do gás do que no valor<br />

do petróleo.<br />

O presidente do Instituto Nacional de Petróleos (INP) de<br />

Moçambique, Carlos Zacarias, disse esperar que a queda do<br />

preço de petróleo no mercado internacional não tenha um<br />

impacto negativo nos investimentos no sector de gás natural<br />

no país. “Como regulador, espero que essa baixa de preço de<br />

petróleo não seja por muito tempo e não tenha impacto negativo<br />

no investimento”, declarou Carlos Zacarias. A queda de preços<br />

e o impacto da pandemia de COVID-19 coloca as empresas<br />

do sector energético em alerta, porque se trata de “situações<br />

sensíveis”, acrescentou Zacarias, que lembrou que “há compromissos<br />

[assumidos pelos investidores], mas há também desenvolvimentos<br />

que fogem do controlo dos actores do mercado”.<br />

Os investimentos da bacia do Rovuma poderão atingir 50 mil<br />

milhões de dólares e representam o maior investimento privado<br />

em curso em África.<br />

(com Lusa)<br />

D.R.<br />

28 | Exame Moçambique


TURISMO: As perdas<br />

deverão atingir 50 mil<br />

milhões de dólares<br />

D.R.<br />

ziu as previsões para o avanço do produto interno<br />

bruto (PIB) dos Estados Unidos (de 2% para 1,3%) e<br />

da China (de 5,6% para “pouco menos” de 4%). Para<br />

o IIF, “há claros abalos nas cadeias de fornecimento<br />

industriais, mas as potenciais consequências do vírus<br />

na economia incidem no sector dos serviços, no qual<br />

o impacto depende da escala da transmissão e do<br />

alcance das medidas de contenção”.<br />

As previsões para o desastre económico avançadas<br />

pelas entidades que ainda se arriscam a fazê-las<br />

conduzem todas para a queda brutal das expectativas<br />

anteriores ao tsunami sanitário, e quase todas apontam,<br />

a começar no FMI, para uma recessão pior que<br />

a de 2008. Os analistas do Morgan Stanley admitem<br />

uma queda de 30% no PIB dos Estados Unidos no<br />

segundo trimestre, o que abre as portas a uma recessão<br />

técnica na principal potência mundial. Também<br />

o Goldman Sachs, na sua última estimativa, projecta<br />

uma queda de 1% da economia norte-americana no<br />

final do ano. Mesmo assim, no meio do descalabro,<br />

o banco J P Morgan aproveita para ir às compras, já<br />

que a crise lhe oferece, confessa, a oportunidade de<br />

adquirir startups no sector tecnológico e financeiro<br />

para combater o avanço de concorrentes inesperados<br />

e fortíssimos como a Amazon e o Google.<br />

INCERTEZA ABSOLUTA<br />

O problema é que não se consegue prever com satisfatório<br />

rigor até onde irá a pandemia. Não há modelo<br />

económico para um pós-crise quando não se sabe<br />

ENFRENTAR<br />

A GIGANTESCA<br />

CRISE<br />

ECONÓMICA<br />

GLOBAL QUE<br />

AÍ VEM EXIGE<br />

COORDENAÇÃO<br />

E COOPERAÇÃO<br />

À ESCALA<br />

MUNDIAL,<br />

ALGO QUE<br />

DIFICILMENTE<br />

IRÁ<br />

ACONTECER<br />

quando esta acaba e qual a extensão do seu impacto<br />

na economia. Tal como o vírus, a recessão já se contabiliza<br />

ao trimestre e chegará à economia de todos os<br />

países. Só não se sabe quando e com que intensidade.<br />

À evidente crise da procura, com os consumidores<br />

encafuados nas suas casas a reduzirem muito as<br />

compras, junta-se, como referimos, a crise da oferta.<br />

E é a componente da oferta que pode tornar a próxima<br />

recessão global muito diferente das duas últimas<br />

(2001 e 2008), alerta Kenneth Rogoff, antigo<br />

economista-chefe do FMI e professor na Universidade<br />

de Harvard. Num texto divulgado a 8 de<br />

Março, Rogoff considera ser “demasiado cedo para<br />

prever o impacto de longo prazo do surto de coronavírus.<br />

Mas não é demasiado cedo para reconhecer<br />

que a próxima recessão global pode estar a chegar<br />

— e que pode ser muito diferente das que começaram<br />

em 2001 e 2008”. Nouriel Roubini, que antecipou<br />

a recessão de 2008, afirma que esta será muito<br />

pior. Para o economista, esta recessão não terá nem<br />

a configuração tradicional em “V”, a mais benigna,<br />

em que a um choque inicial se sucede uma rápida<br />

recuperação, nem em “U”, em que a recuperação se<br />

faz mais lentamente, nem em “L”, em que à quebra<br />

na economia se segue um período de “estagflação”.<br />

A pandemia vai gerar, para Roubini, um mergulho<br />

vertical da economia global, algo que se assemelha<br />

a uma inédita curva de recessão, em “I”. O abismo.<br />

Há quem aproveite para chamar a atenção para<br />

o que o surto traz à superfície quanto ao mau fun-<br />

abril <strong>2020</strong> | 29


CAPA PANDEMIA<br />

cionamento das sociedades e da economia. É o que<br />

faz Raghuram G. Rajan, ex-governador do Reserve<br />

Bank da Índia e professor de Finanças na Universidade<br />

de Chicago, ao assinalar que “o COVID-19 foi<br />

rápido a expor o amadorismo e a incompetência”,<br />

acrescentando que, “na arena política, um sistema<br />

profissional mais acreditado terá a oportunidade de<br />

promover políticas sensatas que abordem os problemas<br />

que os pobres enfrentam sem dar início à<br />

guerra de classes. Mas essas aberturas não durarão<br />

eternamente. Se os profissionais falharem em capitalizá-las,<br />

a pandemia não oferecerá oportunidades<br />

— apenas mais pavor, mais divisão, mais caos e mais<br />

miséria”. Para fazer face à pandemia, os países ou<br />

se isolam completamente ou integram um esforço<br />

global para erradicar o vírus. A questão é não haver<br />

uma entidade nem ninguém capazes de assumir<br />

essa convergência de esforços. Não se sabe do G7,<br />

o G20 desapareceu (fóruns que agrupam os países<br />

mais influentes), as Nações Unidas não têm poder<br />

efectivo, a própria União Europeia tem muita dificuldade<br />

em entender-se sobre fundos comuns que<br />

possam financiar os milhares de milhões de euros<br />

tirados dos orçamentos nacionais para cobrir as<br />

situações de calamidade e que conduzirão, no caso<br />

de países como Itália, Espanha e Portugal, se tiverem<br />

que recorrer ao mercado para se financiarem,<br />

à bancarrota. Parece, na esfera política, haver pouca<br />

coordenação. A competição aumentou, mesmo com<br />

a China e os Estados a trocarem acusações e a confirmar-se<br />

que vivemos num mundo fragmentado<br />

por diferentes poderes, como o dos Estados Unidos,<br />

China, Rússia, Irão.<br />

Como sair da inevitável e severa recessão que aí<br />

vem? O risco que correm muitos analistas é não perceber,<br />

como a maior parte dos actores, que uma crise<br />

destas dimensões acarreta uma mudança que não<br />

deixa “no dia seguinte” as coisas no mesmo sítio.<br />

É uma ilusão imaginar que basta retomar o que por<br />

ela foi interrompido. Os dirigentes políticos hesitaram<br />

muito em tomar medidas drásticas, tentando conciliar<br />

uma crise global de saúde pública com o menor<br />

prejuízo económico. Uma pretensão que se arrisca a<br />

permitir vários ciclos consecutivos da epidemia, o que<br />

ficará muito mais caro do que pôr, de uma vez por<br />

todas e no menor tempo possível, termo ao espectro<br />

do contágio. Bill Gates, numa entrevista à CNN,<br />

disse não acreditar que se consiga motivar alguém a<br />

comprar casa nova ou comemorar com amigos num<br />

restaurante, quando as pessoas estão preocupadas a<br />

defender a sua vida e dos seus próximos. Por outro<br />

lado, o colapso total dos sistemas de saúde poderia<br />

traduzir-se no aumento da taxa de letalidade da<br />

CONTAGEM:<br />

Isoladas, as pessoas<br />

vêem o vírus alastrar-<br />

-se de dia após dia<br />

doença pandémica. Na chamada Gripe Espanhola,<br />

que matou entre 50 e 100 milhões de pessoas, a taxa<br />

de contaminação era inferior mas a taxa de letalidade<br />

superior (agravada por outras condições). Caso<br />

alastrasse descontroladamente, o COVID-19 causaria<br />

o colapso total dos serviços de saúde ocidentais<br />

e, dado o enorme número de infectados, atingiria<br />

uma letalidade muito elevada, traduzindo-se numa<br />

catástrofe social e económica de dimensões aterradoras.<br />

Para Raghuram G. Rajan “dentro dos países,<br />

a acção imediata — após a implementação de medidas<br />

para conter o vírus — é apoiar os que operam na<br />

economia informal e os trabalhadores independentes,<br />

cujos meios de subsistência serão interrompidos<br />

por quarentenas e distanciamento social”. Os Estados<br />

Unidos e, em geral, os países de tradição saxónica,<br />

parecem preferir os estímulos directos, pondo<br />

dinheiro no bolso das pessoas, para impedir a quebra<br />

brutal de rendimentos e da procura, mas os países<br />

da União Europeia, fustigados pela epidemia, e<br />

alguns, como Itália, Espanha e França, com os sistemas<br />

de saúde implodidos, mostram grande vulnerabilidade<br />

financeira e terão grande dificuldade<br />

em financiar-se se não mudar o clima desavindo na<br />

União Europeia.<br />

Para Anatole Kaletsky, co-presidente da Gavekal<br />

Dragonomics e autor de Capitalism 4.0: The Birth of<br />

a New Economy in the Aftermath of Crisis (Capitalismo<br />

4.0: O Nascimento de Uma Nova Economia<br />

no Pós-Crise, numa tradução livre), caso se queira<br />

evitar uma catástrofe económica pior do que a de<br />

30 | Exame Moçambique


2008 “os governos das maiores economias devem<br />

garantir a remuneração ilimitada de todos os rendimentos<br />

e salários perdidos, em todas as empresas<br />

e funcionários afectados por quarentena e contenção<br />

— ou, se a compensação de 100% não for possível,<br />

dever-se-ão compensar perdas de pelo menos<br />

80-90%”. Kaletsky advoga também o crédito a longo<br />

prazo a taxa de juro zero, concedido a grandes<br />

empresas ou, então, a prestação de garantias. “Muito<br />

claramente, na actual situação a política monetária<br />

nada poderá fazer para estimular a actividade<br />

económica.” Kaletsky considera muito mais eficaz<br />

uma forte intervenção orçamental, equivalente a<br />

25% do PIB, que várias medidas fiscais espaçadas,<br />

que são menos eficazes e tornam-se mais caras, não<br />

se comprometendo assim tanto o equilíbrio orçamental<br />

a longo termo. Em segundo lugar, os bancos<br />

centrais, através do reforço do quantitative easing<br />

(compra de dívida), podem absorver a emissão de<br />

dívida suplementar. Em suma, a base monetária de<br />

cada uma das economias do G7 teria uma expansão<br />

equivalente a 25% do PIB. Kaletsky coloca uma<br />

outra opção para a saída da crise. É a do chamado<br />

“dinheiro atirado do helicóptero”, uma ideia inédita<br />

que o economista Milton Friedman lançou em 1969<br />

e que põe o banco central a entregar directamente<br />

dinheiro às pessoas. Contraria o receio da inflação,<br />

pois a queixa actual é da falta dela, e lembra que os<br />

agricultores já beneficiam do sistema de compensação<br />

integral quando as suas culturas são atingidas<br />

por catástrofes naturais. E sublinha que “desde<br />

O RISCO É NÃO<br />

PERCEBER<br />

QUE UMA<br />

CRISE DESTAS<br />

DIMENSÕES<br />

ACARRETA<br />

UMA<br />

MUDANÇA,<br />

NÃO SE VOLTA<br />

AO MESMO<br />

UNSPLASH<br />

2008, bancos, companhias de seguros e mercados<br />

financeiros beneficiam de transferências orçamentais<br />

efectivas em muitos países que totalizam bem<br />

mais do que 25% do PIB. A diferença, neste caso, é<br />

que o desastre afecta todos os seres humanos, o que<br />

justifica uma compensação ainda maior. A única<br />

razão pela qual os governos em todo o mundo ainda<br />

raciocinam em termos de garantias de empréstimos<br />

e créditos, e não em termos de compensação orçamental<br />

directa, é porque nenhum lobby com interesses<br />

especiais, como os lobbies agrícola e bancário,<br />

pede, desta vez, assistência específica”. É inevitável<br />

que a crise de saúde pública desencadeie uma profunda<br />

recessão. Transmitiu-se com um impacto<br />

brutal à economia real, com paralisação da maior<br />

parte da actividade na Europa, primeiro, e Estados<br />

Unidos, depois, e os bancos centrais têm de arranjar<br />

forma de impedir que a crise também contagie<br />

fortemente o sistema financeiro. Há políticas económicas<br />

inéditas para sair da recessão. Para a maioria<br />

dos economistas, a prioridade é parar rapidamente<br />

a pandemia e reabilitar a economia, com políticas<br />

fiscais excepcionais e intervenções dos bancos centrais<br />

que garantam ao sistema financeiro liquidez<br />

suficiente para ocorrer à tesouraria das empresas.<br />

Muitos esperam que a pandemia termine para retomar<br />

os negócios — business as usual — e que, mais<br />

cedo ou mais tarde, a sociedade esquecerá os constrangimentos<br />

e os dramas destapados pela crise.<br />

Alguma coisa, porém, mudará. As cadeias de valor,<br />

de produção, logística e serviços, disseminadas pelo<br />

mundo, tenderão a encurtar, reforçando as tendências<br />

mais proteccionistas, como as protagonizadas pelo<br />

Presidente da principal potência mundial, Donald<br />

Trump. Ironicamente, a saída económica desta crise<br />

aconselha que os Estados Unidos e a China suspendam<br />

a guerra comercial, flexibilizando mesmo<br />

algumas das tarifas em vigor. Nos países em desenvolvimento,<br />

se o vírus aí se propagar com a intensidade<br />

com que o fez na China, Coreia do Sul, Japão e<br />

outros países asiáticos, Europa e Estados Unidos, a<br />

crise de saúde pública trará uma catástrofe humanitária<br />

ainda maior e muito mais dificuldades em<br />

tomar as medidas necessárias para reactivar as economias.<br />

A limitada capacidade destes países para<br />

emitir dívida em moeda nacional, tendo de concorrer<br />

à emissão em divisas fortes, constituirá um obstáculo<br />

ao endividamento necessário para responder<br />

a uma crise de saúde pública de tamanha dimensão.<br />

Sobreviver ao vírus e à gigantesca crise económica<br />

global que aí vem exige coordenação e cooperação<br />

sem precedentes à escala mundial, algo que dificilmente<br />

irá acontecer.b<br />

abril <strong>2020</strong> | 31


32 | Exame Moçambique


abril <strong>2020</strong> | 33


CAPA PANDEMIA<br />

PIETRO TOIGO: Ainda<br />

é cedo para os detalhes<br />

do apoio à economia,<br />

mas as coisas decorrem<br />

com muita rapidez<br />

BAD NA VANGUARDA<br />

DO COMBATE<br />

O Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) estará na vanguarda da resposta<br />

a uma recessão cavada pelo vírus, que atingirá profundamente áreas vitais da economia<br />

do continente, garante Pietro Toigo, que representa a instituição em Moçambique<br />

LUÍS FARIA<br />

34 | Exame Moçambique


P<br />

ietro Toigo, representante residente do<br />

Banco Africano de Desenvolvimento em<br />

Moçambique, alerta que a infecção pode<br />

espalhar-se de uma forma muito insidiosa,<br />

tendo feito colapsar os sistemas<br />

de saúde dos países avançados. A menor conectividade<br />

de África e as lições aprendidas com os países<br />

mais atingidos pelo surto podem, no entanto,<br />

“abrandar o alastrar da doença”.<br />

A doença COVID-19 está a entrar em cada vez<br />

mais nos países africanos. Pode prever-se<br />

um contágio em larga escala como na<br />

Europa, China e Sudoeste Asiático?<br />

É muito difícil de prever. A conectividade no continente<br />

africano é menos densa que na Europa ou<br />

na Ásia, o que pode abrandar o alastrar da doença.<br />

Algumas das lições aprendidas na Europa e na<br />

Ásia podem ser usadas no continente africano,<br />

e um grande número de governos africanos agiu<br />

rapidamente no sentido de implementar medidas<br />

mais restritivas que as de outros países na<br />

mesma fase da infecção. Em todo o caso, podemos<br />

verificar que a infecção pode espalhar-se de<br />

uma forma muito insidiosa e ultrapassar mesmo<br />

os sistemas de saúde dos países mais avançados.<br />

Quais os sistemas de saúde africanos com<br />

mais capacidade para enfrentar um surto<br />

do vírus?<br />

Não estou em posição de fornecer esse tipo de<br />

análise do sector da saúde.<br />

Existe algum tipo de apoio previsto, do<br />

Banco Africano de Desenvolvimento (BAD)<br />

ou algum organismo internacional, para a<br />

área da saúde, para fazer face a esta situação<br />

em África?<br />

É prematuro identificar qual seria a resposta mais<br />

eficaz em cada país — depende da natureza do<br />

impacto. Mas vários parceiros de desenvolvimento,<br />

especialmente aqueles com um histórico<br />

de trabalho em sistemas de saúde, já estão a trabalhar<br />

com governos e outros actores nos países<br />

afectados. É muito provável que, além de apoiarem<br />

os sistemas de saúde, os governos e as instituições<br />

financeiras de desenvolvimento tenham<br />

de implementar medidas para apoiar a economia,<br />

restaurar as cadeias de fornecimento e fornecer<br />

liquidez. Ainda é cedo, no momento em<br />

que falamos, para descrever os detalhes de um<br />

pacote abrangente, mas as coisas acontecem muito<br />

rapidamente.<br />

Que consequências terá o avanço da<br />

pandemia no continente nas economias<br />

africanas? Compromete projectos, reduz o<br />

investimento externo, conduz a uma recessão<br />

em alguns países? Além do impacto directo<br />

da doença, África vai sofrer o impacto da<br />

crise mundial, já reflectida na queda do preço<br />

das matérias-primas. É possível avaliar esse<br />

impacto?<br />

O impacto da pandemia nas economias industrializadas<br />

já é evidente, com várias delas a entrarem<br />

em recessão. É possível que algumas das economias<br />

africanas sejam fortemente atingidas, principalmente<br />

em consequência de uma ruptura nas<br />

cadeias de valor globais e uma queda na procura de<br />

mercadorias e serviços exportados do continente<br />

(incluindo o turismo). É provável que o impacto da<br />

segunda vaga na economia, mais do que o impacto<br />

directo da doença, represente desafios maiores para<br />

África. Os exportadores líquidos de matéria-prima<br />

“É POSSÍVEL QUE ALGUMAS<br />

DAS ECONOMIAS AFRICANAS<br />

SEJAM FORTEMENTE<br />

ATINGIDAS, PRINCIPALMENTE<br />

EM CONSEQUÊNCIA DE<br />

UMA RUPTURA NAS CADEIAS<br />

DE VALOR GLOBAIS”<br />

e, especialmente, os recursos minerais, verão reduzir-se<br />

o espaço fiscal; as interrupções na cadeia de<br />

fornecimento afectarão as empresas privadas e os<br />

projectos que dependem de inputs dos países afectados<br />

poderão sofrer atrasos na implementação.<br />

O Banco Africano de Desenvolvimento<br />

irá lançar acções específicas para apoiar<br />

financeiramente os países do continente face<br />

a uma recessão mundial?<br />

O presidente do BAD, Akinwumi Adesina, deixou<br />

claro que o BAD estará na vanguarda da resposta<br />

em África e trabalharemos em estreita colaboração<br />

com os países membros para criar o pacote mais<br />

eficaz para apoiar o sector público e privado numa<br />

rápida recuperação. Temos um histórico consistente<br />

de resposta rápida e eficaz à recessão global<br />

em 2008-2009, à crise do ébola na África Ocidental<br />

em 2014 e a uma série de desastres naturais que<br />

atingiram o continente, incluindo os ciclones Idai e<br />

Kenneth em Moçambique, Zimbabwe e Malawi. b<br />

abril <strong>2020</strong> | 35


CAPA PANDEMIA<br />

QUAL O<br />

IMPACTO<br />

DA COVID-19<br />

NA ECONOMIA?<br />

O crescimento económico é revisto em baixa,<br />

mas ainda ninguém prevê uma recessão<br />

em Moçambique. Só que o pessimismo reina<br />

entre os patrões, que já pedem um pacote<br />

de apoio inicial de 355 milhões de dólares<br />

para minimizar os danos, numa altura em que<br />

o real impacto da crise ainda está por calcular<br />

ADRIANO MALEIANE,<br />

COM O PRIMEIRO-MINISTRO:<br />

Para o ministro da Economia<br />

e Finanças, a forma de manter<br />

a economia a funcionar passa<br />

pela concessão de linhas de crédito<br />

LUÍS FONSECA *<br />

H<br />

á dois números que delimitam as<br />

expectativas do governo, revistas em<br />

baixa, para o crescimento económico<br />

de Moçambique este ano. A previsão<br />

de subida do produto interno bruto<br />

(PIB) era de 4,8% para <strong>2020</strong>, mas foi revista para<br />

2,2% num cenário pessimista e 3,8% num cenário<br />

optimista. O anúncio foi feito pelo ministro<br />

da Economia e Finanças, Adriano Maleiane, na<br />

última semana de Março. Segundo o governante,<br />

o impacto do abrandamento mundial será transversal<br />

a todos os sectores, da indústria extractiva à<br />

agricultura. “Alguns dos nossos importadores de<br />

madeira, algodão e camarão vão reduzir” as encomendas<br />

a Moçambique, exemplificou. Já para não<br />

falar da indústria extractiva. O sector do turismo<br />

também será dos sectores mais afectados: previa-<br />

-se um crescimento de 3%, agora revisto para 0,5%<br />

— para o primeiro trimestre de <strong>2020</strong> estava prevista<br />

a entrada de 500 mil turistas em Moçambique,<br />

mas o número fixou-se em 23 mil.<br />

O que fazer perante esta situação para minimizar<br />

os danos numa economia debilitada? A única<br />

forma de manter a economia a funcionar será concedendo<br />

linhas de crédito, disse Adriano Maleiane.<br />

Em linha com essa ideia, a pandemia provocada<br />

pelo novo coronavírus já tinha levado, dia antes, o<br />

banco central moçambicano a tomar várias medidas.<br />

36 | Exame Moçambique


TURISMO COM<br />

IMPACTO PROFUNDO<br />

O estudo da CTA refere que o turismo é o<br />

sector que irá apresentar maior desaceleração<br />

em <strong>2020</strong>, perdendo até um terço do<br />

volume de negócios, num cenário macroeconómico<br />

de desaceleração em que o crescimento<br />

económico deverá fixar-se entre<br />

2% a 2,3% — em linha com as previsões do<br />

governo. “É evidente que esta pandemia<br />

irá afectar todos segmentos da economia<br />

moçambicana, principalmente pelo facto de<br />

a economia nacional ser consideravelmente<br />

aberta ao resto do mundo e bastante vulnerável<br />

a choques externos”, nota a CTA. Por<br />

outro lado, “espera-se que o volume de investimento<br />

venha a ser afectado pela redução do<br />

fluxo de investimento directo estrangeiro ou<br />

pelo adiamento de iniciativas empresariais”.<br />

O governo moçambicano pediu aos parceiros<br />

internacionais um total de 700 milhões<br />

de dólares (653 milhões de euros) para fazer<br />

face ao impacto causado pela pandemia<br />

de COVID-19, anunciou o primeiro-ministro,<br />

“para a componente de saúde, prevenção<br />

e tratamento” — e ainda antes de ser<br />

conhecido o estudo da CTA. O governante<br />

especificou que, entre outros objectivos, o<br />

valor foi calculado para construir hospitais<br />

e cobrir o défice no Orçamento Geral do<br />

Estado, que poderá resultar da baixa captação<br />

de receitas.<br />

LUSA<br />

Foi anunciada a introdução de linhas de crédito em<br />

moeda estrangeira para os bancos, o relaxamento<br />

das condições de reestruturação dos créditos dos<br />

clientes bancários e a redução das reservas obrigatórias<br />

exigidas ao sistema bancário em moeda<br />

nacional (metical) e estrangeira.<br />

PATRÕES QUEREM SUSPENDER CONTRATOS<br />

A Confederação das Associações Económicas de<br />

Moçambique (CTA) sugere medidas mais musculadas.<br />

Os patrões defendem a suspensão dos<br />

contratos de trabalho durante seis meses, com<br />

substituição dos salários por subsídios, como forma<br />

de apoiar as empresas mais afectadas com a pandemia<br />

de COVID-19. O turismo, a aviação civil<br />

(à semelhança do que acontece em todo o mundo)<br />

e a agricultura serão os sectores em maior perigo,<br />

antecipa um estudo da principal associação patronal<br />

moçambicana. “Propõe-se a suspensão dos contratos<br />

de trabalho nestes sectores por um período<br />

de seis meses, sujeito a prorrogação dependendo<br />

da evolução da pandemia nos próximos meses.”<br />

A medida de suspensão de contratos (lay-off ) está<br />

prevista na lei, mas a novidade é que a Confederação<br />

defende, desta vez, que as empresas deixem<br />

de pagar os salários a 100%. “Para evitar os<br />

impactos sociais que esta medida pode acarretar,<br />

propõe-se a aprovação de um pacote de subsídio<br />

abril <strong>2020</strong> | 37


CAPA PANDEMIA<br />

aos trabalhadores” cobrindo toda a despesa salarial,<br />

o que pode ascender a 49 milhões de dólares.<br />

A CTA sugere “a mobilização de fundos, junto dos<br />

parceiros de cooperação, para a cobertura deste<br />

volume da massa salarial durante os seis meses<br />

do lay-off, de modo a assegurar a sobrevivência<br />

das empresas e a manutenção dos postos de trabalho<br />

e das condições de vida dos trabalhadores”.<br />

A instituição defende ainda medidas fiscais, aduaneiras<br />

e financeiras “aplicáveis a todos sectores<br />

económicos e que devem ser implementadas em<br />

função dos alertas do nível de gravidade do risco<br />

da pandemia da COVID-19”. No total, o “pacote de<br />

medidas imediatas a serem implementadas para os<br />

sectores prioritários”, proposto pela CTA, tem um<br />

custo de 355 milhões de dólares. O valor encontra-<br />

-se no meio da previsão de perdas totais do sector<br />

empresarial moçambicano, que oscila entre 212<br />

a 340 milhões de euros. As perspectivas traçadas<br />

no estudo foram obtidas através de entrevistas a<br />

118 empresas.<br />

ANALISTAS ESTRANGEIROS OSCILAM<br />

As revisões em baixa do PIB por parte do governo<br />

surgiram vinte dias depois de o Conselho de<br />

Ministros ter aprovado o Plano Quinquenal do<br />

governo por forma a ser discutido pelo Parlamento.<br />

No documento, antes de se prever o impacto da<br />

pandemia de COVID-19, o Executivo previa que a<br />

economia do país chegasse a 2024 com uma taxa de<br />

crescimento médio de 5,5%, contra os 2,2% registados<br />

em 2019, o valor mais baixo da última década.<br />

Entre as consultoras também há perspectivas mais<br />

pessimistas, outras mais optimistas.<br />

A consultora Economist Intelligence Unit (EIU),<br />

mais pessimista, alerta que o orçamento de Moçambique<br />

para este ano terá de ter “alterações significativas”.<br />

A pandemia surge numa altura em que se<br />

esperava “que os esforços de reconstrução depois<br />

dos dois ciclones de 2019 continuassem a dominar<br />

as decisões de política este ano”. No entanto,<br />

acrescenta, “apesar de esses esforços se manterem, a<br />

reduzida colecta fiscal e o abrandamento da actividade<br />

económica vai travar o ritmo da recuperação”.<br />

Os analistas chamam ainda a atenção para os<br />

atrasos na discussão e aprovação dos gastos para<br />

este ano devido às eleições do ano passado, considerando<br />

que “as deficiências operacionais das<br />

entidades públicas em Moçambique são estruturais,<br />

limitando a definição das políticas e o rumo<br />

das decisões e a capacidade de implementar reformas<br />

que fortaleçam a gestão financeira e melhorem<br />

o ambiente operacional”.<br />

CRESCIMENTO<br />

EM <strong>2020</strong><br />

4,8%<br />

PREVISÃO INICIAL<br />

2,2%<br />

CENÁRIO PESSIMISTA<br />

3,8%<br />

CENÁRIO OPTIMISTA<br />

Entre os efeitos da pandemia de COVID-19,<br />

a EIU lembra que as restrições às exportações a<br />

nível mundial “parecem cada vez mais prováveis”<br />

e aponta que este abrandamento no fluxo de bens e<br />

mercadorias “pode criar cortes nas cadeias de abastecimento<br />

das empresas moçambicanas”. Isto, por<br />

sua vez, “criaria restrições às importações de bens<br />

intermédios e de bens de consumo”, o que prejudicaria<br />

ainda mais as previsões de crescimento económico<br />

e de receita fiscal.<br />

Do lado mais optimista, a consultora espanhola<br />

FocusEconomics cortou em 0,5 pontos percentuais<br />

o crescimento económico previsto para Moçambique,<br />

antevendo ainda assim uma expansão de<br />

4,2% este ano — mais optimista que a melhor previsão<br />

do governo —, considerando que os investimentos<br />

no gás natural vão manter-se inalterados<br />

de modo a compensar os efeitos da pandemia.<br />

“A actividade económica deverá recuperar este ano,<br />

com o país a recuperar dos estragos dos ciclones<br />

do ano passado; as despesas de capital no sector<br />

do gás natural liquefeito também devem suportar<br />

o crescimento”, dizem os analistas. A FocusEconomics<br />

prevê que a inflação em Moçambique suba<br />

até 4,7% este ano, aumentando para 5,4% em 2021.<br />

GESTÃO PRUDENTE DAS<br />

FINANÇAS PÚBLICAS<br />

Alguns analistas locais revelam sentimentos de<br />

precaução e alerta: “A gestão prudente das finanças<br />

públicas é fundamental neste momento. Temos<br />

de gastar naquilo que é estritamente importante e<br />

garantir transparência, um elemento que tem faltado<br />

nos últimos tempos nas estratégias do governo”,<br />

declarou Celeste Banze, economista da organização<br />

não-governamental Centro de Integridade Pública<br />

(CIP). Jorge Matine, do Fórum de Monitoria do<br />

Orçamento (FMO), entende que todas as previsões<br />

de crescimento estão sujeitas a revisão e que o foco<br />

deve ser a contenção da pandemia. “Temos de reduzir<br />

a propagação e, se há casos registados em Maputo,<br />

temos de garantir que outras províncias não sejam<br />

afectadas.” Para o académico moçambicano Calton<br />

Cadeado, o impacto do encerramento de fronteiras<br />

como medida de prevenção da COVID-19 será mais<br />

acentuado em países menos desenvolvidos, como é o<br />

caso de Moçambique. “Moçambique é mais importador<br />

do que exportador e, obviamente, isso vai ter<br />

um impacto penoso. É verdade que todos os países<br />

vão sofrer, mas para nós será mais pesado porque<br />

nós não somos um país altamente industrializado<br />

e produtor do que consome”, afirmou. b<br />

* Trabalho especial da agência Lusa para a <strong>EXAME</strong> Moçambique.<br />

38 | Exame Moçambique


AS MEDIDAS DO GOVERNO<br />

Paula Rocha*<br />

Com a economia moçambicana “estagnada” nos últimos<br />

cinco anos — com algum crescimento apenas em torno dos<br />

megaprojectos —, o impacto da situação epidemiológica<br />

provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador<br />

da doença COVID-19, prevêm-se efeitos a longo prazo,<br />

adiando, novamente, o crescimento económico do país.<br />

O sector do turismo, sempre tão dependente do exterior,<br />

é já o primeiro a ressentir-se. Com o lockdown de vinte e<br />

um dias anunciado pelo Presidente da África do Sul, Cyril<br />

Ramaphosa, no dia 23 de Março, prevê-se uma redução na<br />

circulação de produtos e bens para o mercado nacional, com<br />

impactos e efeitos em cascata na economia moçambicana.<br />

A par do reforço das medidas para controlar o surto da<br />

doença do COVID-19, por parte das autoridades governamentais,<br />

destacam-se, também, algumas medidas visando<br />

mitigar o impacto económico da “nova” crise, que se avizinha<br />

(e se adivinha duradoura).<br />

Neste contexto, o governo aprovou recentemente o<br />

decreto que aprova o perdão total de multas e a redução<br />

de juros de mora — para o caso do pagamento integral da<br />

dívida e para o pagamento em prestações — resultantes<br />

das dívidas e contribuições ao Instituto Nacional de Segurança<br />

Social (INSS) por parte dos empregadores. Esta iniciativa<br />

visa, essencialmente, permitir aos trabalhadores e<br />

respectivos familiares poderem aceder aos benefícios da<br />

Segurança Social sem privações resultantes do incumprimento<br />

das respectivas obrigações por parte das entidades<br />

empregadoras.<br />

Quase que em paralelo, o conselho de administração do<br />

Banco de Moçambique deliberou a “introdução de uma<br />

linha de financiamento em moeda estrangeira para as instituições<br />

participantes no Mercado Cambial Interbancário,<br />

no montante global de 500 milhões de dólares, por um<br />

período de nove meses”, a partir de 23 de Março de <strong>2020</strong>;<br />

foi ainda autorizada “a não constituição de provisões adicionais<br />

pelas instituições de crédito e sociedades financeiras<br />

nos casos de renegociação dos termos e condições<br />

dos empréstimos, antes do seu vencimento, para os clientes<br />

afectados pela pandemia”.<br />

O Banco de Moçambique justificou estas medidas com a<br />

necessidade de “disponibilizar liquidez em moeda estrangeira<br />

e em moeda nacional para apoiar as empresas e as<br />

famílias a honrarem os seus compromissos, na sequência<br />

do agravamento dos riscos decorrentes dos impactos<br />

macroeconómicos”.<br />

Ao nível migratório, numa comunicação à nação, o Presidente<br />

da República, Filipe Nyusi, anunciou a suspensão<br />

da emissão de vistos de entrada em Moçambique e o cancelamento<br />

de todos os vistos já emitidos.<br />

Entretanto, em comunicado datado de 26 de Março de<br />

<strong>2020</strong>, e em consequência do cancelamento de voos por<br />

diversas companhias aéreas, impossibilitando os cidadãos<br />

estrangeiros de cumprirem os deveres previstos no Regime<br />

Jurídico do Cidadão Estrangeiro em Moçambique, foram instadas<br />

todas as Direcções Provinciais de Migração a receberem,<br />

a título excepcional, pedidos de prorrogação de vistos,<br />

nas seguintes situações: estrangeiros com vistos de negócio,<br />

visitante e turismo que atingiram o limite máximo de<br />

prorrogação previsto na lei; estrangeiros com autorização<br />

de trabalho de curta duração, cujos vistos tenham expirado;<br />

estrangeiros que entraram no país mediante visto de<br />

fronteira, que se sabe é improrrogável, e que já atingiram<br />

os trinta dias de permanência no país.<br />

Aos cidadãos estrangeiros titulares de Autorização de<br />

Residência que se encontram fora do país será permitida a<br />

renovação dos vulgo “DIRE” quando regressarem, desde<br />

que provem que não conseguiram regressar ao país antes<br />

da caducidade daquele documento devido às restrições<br />

decorrentes da pandemia da COVID-19.<br />

A nível judiciário, o Tribunal Supremo também aprovou,<br />

a 23 de Março de <strong>2020</strong>, um conjunto de medidas, sendo<br />

de destacar as seguintes recomendações: a realização de<br />

audiências com a presença das partes, advogados, testemunhas,<br />

declarantes ou outros intervenientes processuais;<br />

a não marcação de julgamentos de vários processos para<br />

a mesma hora; a não entrada simultânea de partes processuais<br />

para as salas de audiência, para julgamentos marcados<br />

para momentos diferentes.<br />

No que respeita à situação migratória, que tantas questões<br />

tem levantado aos trabalhadores expatriados e às empresas,<br />

informação conflituante não permite à data confirmar<br />

as medidas para a renovação de vistos e autorizações de<br />

residência de estrangeiros que estejam em Moçambique.<br />

É expectável que, a breve trecho, esta situação venha a ser<br />

tratada, tendo em conta o actual contexto do encerramento<br />

de fronteiras e da indisponibilidade de voos face à pandemia,<br />

por período ainda imprevisível.<br />

A 1 de <strong>Abril</strong> o Presidente de Moçambique decretou o<br />

estado de emergência por trinta dias.<br />

*Partner da HRA — ADVOGADOS<br />

abril <strong>2020</strong> | 39


CAPA PANDEMIA<br />

GÁS NATURAL:<br />

As operadoras reduzem<br />

despesas de capital<br />

TOTAL<br />

CONFIANTE,<br />

ENI<br />

E EXXON<br />

ADIAM<br />

RESPOSTAS<br />

Operadoras da Área 4<br />

de Moçambique anunciam revisão<br />

de investimentos, numa altura<br />

em que ainda está por anunciar<br />

a decisão final de investimento<br />

no projecto onshore<br />

LUÍS FONSECA *<br />

A<br />

s expectativas de crescimento e desenvolvimento<br />

de Moçambique assentam,<br />

sobretudo, nos megaprojectos<br />

de gás natural da bacia do Rovuma,<br />

no Norte do país. Mas até que ponto<br />

estes poderão ser retardados ou mitigados devido<br />

à pandemia da COVID-19 e à guerra de preços do<br />

petróleo? As petrolíferas dão dois tipos de respostas.<br />

A francesa Total mantém 2024 como o ano<br />

de início da produção, apesar das incertezas que<br />

a COVID-19 e o baixo preço do petróleo estão a<br />

provocar. “É difícil prever o curso dos acontecimentos,<br />

mas até hoje continuamos dentro dos prazos<br />

para fazer a entrega do primeiro carregamento<br />

40 | Exame Moçambique


de GNL (gás natural liquefeito) em 2024”, referiu<br />

fonte oficial da Total em Moçambique. A declaração<br />

surge mesmo depois de o director executivo<br />

da empresa, Patrick Pouyanné, ter anunciado um<br />

corte de um quinto nas despesas de investimento<br />

para este ano, assim como reduções nos custos<br />

operacionais.<br />

Em Moçambique, a Total diz-se “muito empenhada<br />

em impedir que a COVID-19 chegue ao<br />

projecto na península de Afungi e às comunidades<br />

circunvizinhas” das obras de construção do megaprojecto<br />

de exploração da Área 1 de gás natural —<br />

várias infra-estruturas já estão edificadas ou em<br />

funcionamento, como é o caso da pista de aviação<br />

do complexo de obras.<br />

A ENI DARÁ ESTE MÊS DETALHES<br />

SOBRE A REVISÃO DO PLANO<br />

DE NEGÓCIOS E OS PROJECTOS<br />

AFECTADOS<br />

Por outro lado, as petrolíferas Eni e ExxonMobil<br />

adiam respostas. “Mais detalhes sobre a revisão<br />

do plano de negócios e os projectos afectados<br />

estarão disponíveis no final de <strong>Abril</strong>, na apresentação<br />

trimestral” sobre a actividade e resultados<br />

da empresa, disse fonte da petrolífera italiana Eni<br />

quando questionada sobre as implicações para<br />

Moçambique. Claudio Descalzi, director executivo<br />

da Eni, anunciou cortes nas despesas de capital<br />

de <strong>2020</strong> e 2021, menos um quarto do previsto<br />

este ano e um corte de um terço no próximo ano.<br />

Os projectos em causa “estão relacionados principalmente<br />

com as actividades a montante [upstream],<br />

em particular a produção, optimização<br />

e desenvolvimento de novos projectos programados<br />

para começar a curto prazo”, referiu o<br />

CEO, sem mais pormenores. Mas um dos projectos<br />

de upstream que está previsto para 2022 é<br />

o início da exploração das reservas de gás Coral<br />

Sul, através de uma plataforma flutuante offshore<br />

(em mar alto).<br />

O parceiro da Eni na Área 4 de exploração de<br />

gás natural em Moçambique tem uma posição<br />

semelhante. “Com base neste contexto sem precedentes,<br />

estamos a avaliar todas as medidas apropriadas<br />

para reduzir significativamente as despesas<br />

de capital e operacionais no curto prazo”, disse,<br />

na segunda quinzena de Março, Darren Woods,<br />

presidente e director executivo da ExxonMobil.<br />

Questionada sobre eventuais impactos nos prazos<br />

previstos para anunciar uma decisão final de<br />

investimento em Moçambique, que estava prevista<br />

para este ano, fonte da empresa disse que,<br />

por princípio, a firma “não especula sobre os prazos”.<br />

“O projecto Rovuma LNG é complexo e levará<br />

vários anos para ser desenvolvido”, referiu, acrescentando<br />

que a ExxonMobil “tem em vigor protocolos<br />

de emergência e segurança para mitigar<br />

riscos numa variedade de cenários, incluindo os<br />

desafios globais da COVID-19”. Neste momento,<br />

“o foco é a saúde e a segurança do pessoal”.<br />

ANALISTAS ALERTAM PARA<br />

TENSÕES ACRESCIDAS<br />

O departamento de estudos do banco sul-africano<br />

Standard Bank considera que, em relação a<br />

Moçambique, a pandemia vai provavelmente pressionar<br />

a balança de pagamentos devido aos baixos<br />

preços das matérias-primas e possivelmente<br />

adiar a implementação dos projectos de gás natural.<br />

A consultora Fitch Solutions acrescenta que há<br />

outros factores negativos a ter em conta, mesmo<br />

antes da COVID-19: a perspectiva de evolução dos<br />

investimentos no sector do gás natural liquefeito<br />

em Moçambique “começa a perder brilho” devido<br />

à corrupção e ao aumento dos ataques de militantes.<br />

Na nota, com o título “Clima de Investimento<br />

no GNL de Moçambique começa a ficar negro”,<br />

enviada aos investidores, escreve-se que “o aumento<br />

do número de ataques na província de Cabo Delgado<br />

aumenta o risco dos grandes investimentos<br />

no sector”, com 2019 a registar “uma subida significativa<br />

do número de ataques” por parte de grupos<br />

insurgentes.<br />

A FRANCESA TOTAL MANTÉM<br />

2024 COMO O ANO DE INÍCIO<br />

DA PRODUÇÃO<br />

Para a Fitch Solutions, esta não é uma situação<br />

decorrente da actual pandemia de coronavírus:<br />

“Mesmo antes dos impactos mundiais da COVID-<br />

19 e do colapso do acordo da Organização dos Países<br />

Exportadores de Petróleo (OPEP), os ataques<br />

no Norte de Moçambique já tinham vindo a progredir.”<br />

O problema, sublinha, é que, agora, com<br />

a descida do preço do petróleo e a perspectiva de<br />

manutenção dos preços baixos, os projectos ficam<br />

menos rentáveis, o que pode afectar as decisões<br />

finais de investimento que ainda não foram tomadas<br />

— no caso, do projecto onshore da Área 4. b<br />

* Rrabalho especial da agência Lusa para a <strong>EXAME</strong> Moçambique.<br />

abril <strong>2020</strong> | 41


CAPA PANDEMIA<br />

PANDEMIA<br />

ACENTUA<br />

COMPETIÇÃO<br />

GLOBAL<br />

Para Harold James, professor<br />

na Universidade de Princeton<br />

e especialista em História da<br />

Economia, a pandemia acentua<br />

a competição entre sistemas<br />

políticos rivais e poderá impor<br />

retrocessos ao processo<br />

de globalização<br />

FABIANE STEFANO<br />

O<br />

historiador económico britânico<br />

Harold James, professor na Universidade<br />

de Princeton, acredita que a<br />

fase mais aguda da crise do coronavírus<br />

apenas tem destacado uma competição<br />

entre sistemas políticos rivais. Países ricos,<br />

como a Itália e os Estados Unidos, têm falhado na<br />

contenção da propagação do vírus. A China tem<br />

obtido bons resultados em função justamente do<br />

regime autoritário. Para Harold James, por ora a<br />

Coreia do Sul é o país que tem dado a resposta mais<br />

efectiva no combate à pandemia.<br />

James também alerta para os riscos de retrocesso<br />

na globalização. “Estamos a ver um recuo no processo<br />

de globalização, o qual já ocorre há algum<br />

tempo. Com o surto, acredito que esse movimento<br />

se intensifique”, diz o historiador.<br />

HAROLD JAMES,<br />

DE PRINCENTON:<br />

“A crise também deve<br />

dar um forte impulso<br />

à tendência existente<br />

de maior recurso<br />

à telemedicina”<br />

42 | Exame Moçambique


O surto de coronavírus está a alimentar uma reacção<br />

contra a globalização? Quais são as possíveis<br />

consequências?<br />

Estamos, de facto, a assistir a um recuo no processo<br />

de globalização, o qual já ocorre há algum tempo.<br />

É óbvio para todos que a propagação do vírus está<br />

ligada à mobilidade, e os esforços iniciais de contenção<br />

limitam a mobilidade, com proibições de<br />

viagens nos países e entre países. Com o surto, acredito<br />

que esse movimento antiglobalização se intensifique.<br />

Mas os principais efeitos no longo prazo<br />

estão principalmente relacionados com a psicologia<br />

política: a epidemia já gerou uma discussão sobre<br />

se pode ter sido causada pelos governos. Circulam<br />

rumores de que os chineses — ou, noutra versão, os<br />

norte-americanos — estão a utilizar a doença para<br />

enfraquecer ou destruir os seus rivais. Não acredito<br />

que exista base factual para nenhuma dessas<br />

reivindicações, mas, quanto mais o vírus se espalhar,<br />

mais interpretações estranhas proliferarão.<br />

Agora que o coronavírus ganhou proporções verdadeiramente<br />

globais, como analisa o momento<br />

actual?<br />

A fase mais aguda da crise destacou a extensão da<br />

competição entre sistemas políticos rivais. A China,<br />

com uma abordagem mais autoritária, pode lidar<br />

melhor com a pandemia? Portanto, a resposta mais<br />

emblemática para os regimes democráticos é a da<br />

Coreia do Sul.<br />

Outros países, nomeadamente a Itália, mas também<br />

o Reino Unido e os Estados Unidos, têm visivelmente<br />

falhado na tentativa de fornecer simples<br />

testes, os quais, é cada vez mais evidente, constituem<br />

uma ferramenta importante para gerir a contenção<br />

e o isolamento.<br />

A estratégia da China para conter o surto de coronavírus<br />

impôs um forte controlo sobre a sociedade,<br />

fechando cidades e colocando cidadãos em<br />

quarentena. O mundo passou a ver a China como<br />

um poder organizado para enfrentar qualquer<br />

tipo de crise ou continua a vê-la como o mesmo<br />

velho país comunista e autoritário?<br />

As evidências dos últimos dias sugerem que a<br />

China teve bastante sucesso em conter o avanço da<br />

doença. Os extensos controlos e o sistema de monitorização<br />

da população (que cruza dados do histórico<br />

de saúde do cidadão e verifica se há infectados<br />

entre os seus conhecimentos) são notavelmente<br />

sofisticados e bem-sucedidos. Se mesmo assim a<br />

China for seriamente atingida a longo prazo e se<br />

houver a percepção de que as autoridades não responderam<br />

adequadamente, não é irrealista prever<br />

desafios muito maiores para o regime e a sua legitimidade.<br />

Mas até agora, pelo menos, os controlos<br />

sociais da China parecem mais eficazes do que os<br />

sistemas de saúde bastante caóticos e visivelmente<br />

sobrecarregados de outros países. Isto quase certamente<br />

levará muitos outros países a quererem<br />

imitar a China — embora, provavelmente, não na<br />

Europa, onde há preocupações muito maiores com<br />

a privacidade. Mas espero que a crise produza um<br />

debate bastante amplo sobre a recolha (e a utilização<br />

e disseminação) de dados respeitantes à saúde<br />

e outros dados pelos governos.<br />

As contracções da actividade industrial na China<br />

estão a ser sentidas em todo o mundo, reflectindo<br />

o papel crescente da China nas cadeias de<br />

fornecimento e commodities. A China pode perder<br />

a participação no comércio global devido à<br />

crise de saúde pública?<br />

O efeito do vírus é perturbador, mas de curta duração.<br />

No entanto, muitos fabricantes terão consequências:<br />

com o receio de aumentar a probabilidade de<br />

eventos semelhantes no futuro não querem depender<br />

de cadeias de fornecimento longas e distantes.<br />

Os danos no turismo podem ser de longo prazo<br />

— imagino que muitas pessoas não desejem correr<br />

o risco de serem confinadas obrigatoriamente<br />

em navios de cruzeiro de alto risco. Mas os hotéis<br />

e companhias aéreas também podem sofrer um<br />

longo impacto, porque o vírus muda a percepção<br />

de longo prazo do que é um risco aceitável.<br />

Já antes da crise do coronavírus o Presidente<br />

Donald Trump exigia que as empresas multinacionais<br />

abandonassem a China e produzissem<br />

os seus produtos em fábricas norte-americanas.<br />

Este movimento aumentará e mais países<br />

adoptarão a mesma iniciativa?<br />

Sim, os argumentos para encurtar as cadeias de<br />

fornecimento já existiam antes de Trump — o que<br />

também representa as possibilidades tecnológicas<br />

de processos de produção difusos. Admito que a<br />

tendência prossiga e se intensifique.<br />

Espera que os políticos e partidos populistas<br />

dêem mais ênfase aos argumentos contra a<br />

imigração?<br />

Certamente farão esse apelo. Até que ponto é politicamente<br />

atraente e bem-sucedido? Isso dependerá<br />

da bondade, maior ou menor, do julgamento que<br />

se fizer sobre o modo como as autoridades geriram<br />

a crise. b<br />

abril <strong>2020</strong> | 43


ECONOMIA DESNUTRIÇÃO<br />

UM ENTRAVE AO<br />

DESENVOLVIMENTO<br />

FAO<br />

Os resultados do estudo “Custo da Fome” revelam que 43,1%<br />

das crianças em Moçambique sofrem de desnutrição crónica,<br />

a qual representa para o país uma perda anual de cerca<br />

de 1,6 mil milhões de dólares<br />

VALDO MLHONGO<br />

Cerca de 1,6 mil milhões de dólares é<br />

o valor que o país perde anualmente<br />

devido à desnutrição crónica infantil,<br />

revela à <strong>EXAME</strong> Felicidade Panguene,<br />

especialista da Organização das Nações<br />

Unidas para Alimentação e Agricultura<br />

(FAO) para a área da nutrição. Ao nível da<br />

produtividade, a situação é preocupante.<br />

Um estudo recente, intitulado “Custo da<br />

Fome em Moçambique”, mostra que, só em<br />

2015, cerca de 62 mil milhões de meticais<br />

(10% do PIB) foram perdidos pela economia<br />

em resultado da desnutrição infantil.<br />

A maior fatia deste custo é a perda da<br />

produtividade potencial como resultado<br />

da mortalidade relacionada com a desnutrição<br />

(9,4% do PIB), seguindo-se a saúde<br />

(1,27%) e a educação (0,29%). O estudo<br />

“Custo da Fome em Moçambique”, que<br />

contou com o envolvimento de técnicos<br />

dos sectores da saúde, educação, agricultura,<br />

pesca, estatísticas (INE), protecção<br />

social, economia e finanças, coordenado<br />

pelo Secretariado Técnico de Segurança<br />

Alimentar e Nutricional (SETSAN), concluiu<br />

que cerca de 1 441 940 horas de trabalho<br />

foram perdidas em 2015 devido à<br />

ausência da força de trabalho em resultado<br />

do aumento da mortalidade infantil<br />

ligada à desnutrição crónica. “Isto representou<br />

29,6 mil milhões de meticais, 5,2%<br />

do PIB do país”, apontam os técnicos que<br />

efectuaram o estudo. “É muito dinheiro<br />

que o país perde para fazer frente às diferentes<br />

necessidades de desenvolvimento”,<br />

salienta a especialista da FAO para a área<br />

da nutrição. Em sectores como a agricultura,<br />

é ainda mais claro o enorme entrave<br />

que a desnutrição crónica representa para<br />

o seu desenvolvimento. “A força de trabalho<br />

é limitada e debilitada, obstruindo<br />

aumentos de produção e produtividade,<br />

comercialização e oferta competitiva de<br />

produtos nacionais.” Uma das soluções<br />

para reduzir a desnutrição crónica, refere<br />

a especialista da FAO, passa por adoptar<br />

políticas, regulamentos e padrões alimentares,<br />

que priorizam a disponibilidade e<br />

acessibilidade a alimentos seguros e nutritivos.<br />

“Precisamos de investigação para<br />

providenciar aconselhamento científico<br />

e novas tecnologias. Precisamos de um<br />

sector privado robusto que possa influenciar<br />

positivamente a indústria do sector<br />

alimentar, adaptando os seus produtos às<br />

recomendações nutricionais. Finalmente,<br />

e muito importante, todos nós, indivíduos<br />

e famílias, enquanto consumidores, devemos<br />

melhorar as nossas escolhas e adoptar<br />

padrões alimentares saudáveis.”<br />

FELICIDADE<br />

PANGUENE, DA FAO:<br />

A desnutrição infantil<br />

traduz-se numa perda<br />

anual muito elevada<br />

IMPACTO NA ECONOMIA<br />

Num país caracterizado por consecutivos<br />

choques, como a estiagem, ciclones, inundações<br />

e pragas, os desafios no que respeita<br />

ao acesso à alimentação são enormes.<br />

O estudo que temos vindo a citar revela<br />

que, dos quase 14 milhões de pessoas envolvidas<br />

em actividades manuais, 4 milhões<br />

sofreram de desnutrição crónica na infância.<br />

Um número que, segundo o estudo,<br />

representou uma perda anual no seu potencial<br />

rendimento devido à baixa produtividade,<br />

que ultrapassou os 5,2 mil milhões<br />

de meticais. Os resultados dos últimos<br />

cinco anos do estágio da fome em Moçambique,<br />

resumidos em mais de 60 páginas,<br />

indicam ainda que 612 816 pessoas envolvidas<br />

em actividades não manuais também<br />

sofreram de desnutrição crónica na<br />

infância. “As perdas anuais estimadas de<br />

produtividade para este grupo são de 18<br />

mil milhões de meticais.” A desnutrição<br />

44 | Exame Moçambique


crónica conduz a perdas significativas no<br />

potencial humano e económico. O Banco<br />

Mundial estima que as crianças desnutridas<br />

correm o risco de perderem cerca de 10%<br />

do seu potencial rendimento durante toda<br />

a vida, afectando assim a produtividade<br />

nacional. Katia Dias, directora nacional<br />

da Global Aliança de Nutrição (GAIN),<br />

não receia afirmar que o país está com o<br />

futuro hipotecado. “A nossa taxa de desnutrição<br />

crónica não mudou quase nada<br />

nos últimos vinte anos. Mexeu apenas<br />

1%”, argumentou a directora nacional da<br />

GAIN. O importante agora, refere Katia<br />

Dias, é cortar esta prevalência e garantir<br />

que as próximas gerações não sofram<br />

com a desnutrição crónica. Até porque<br />

as projecções demográficas indicam que<br />

nos próximos trinta anos Moçambique<br />

A DESNUTRIÇÃO<br />

CRÓNICA CONDUZ A<br />

PERDAS SIGNIFICATIVAS<br />

NO POTENCIAL HUMANO<br />

E ECONÓMICO<br />

irá passar dos actuais 29 milhões para 80<br />

milhões de habitantes. “Neste momento,<br />

os nossos sistemas alimentares ainda não<br />

estão afinados para responderem sequer às<br />

necessidades de 29 milhões de habitantes”,<br />

refere Katia Dias. “Se não investirmos na<br />

redução da desnutrição crónica continuaremos<br />

a ter mortes prematuras e elevadas<br />

percentagens da população que não estarão<br />

aptas para contribuir de forma plena<br />

para o desenvolvimento do país. Continuaremos<br />

a ter perdas acentuadas em termos<br />

económicos no potencial produtivo<br />

nacional”, advertiu Felicidade Panguene.<br />

UMA LUTA DE TODOS<br />

Para a especialista da FAO em nutrição,<br />

a insegurança alimentar deve ser atacada<br />

numa vertente multissectorial. “Todos os<br />

sectores têm uma contribuição a dar para<br />

que o alimento esteja disponível e acessível<br />

a todo o momento para todos os segmentos<br />

da população. A agricultura, a indústria,<br />

o comércio, a educação, a saúde, os<br />

transportes, as estradas... devem trabalhar<br />

de mãos dadas para alcançar a segurança<br />

alimentar e nutricional”, frisou. Dados<br />

abril <strong>2020</strong> | 45


ECONOMIA DESNUTRIÇÃO<br />

da Plataforma da Sociedade Civil para o<br />

Movimento Scaling Up, uma rede de ONG<br />

que luta para garantir a segurança alimentar<br />

e combate todas as formas de malnutrição,<br />

indicam que, entre 2010 e 2019, apenas<br />

0,013% do Orçamento do Estado foi afectado<br />

à implementação do Plano de Acção<br />

Multissectorial para a Redução da Desnutrição<br />

Crónica (PAMRDC). O Banco Mundial,<br />

por sua vez, recomenda o investimento<br />

de cerca de 10 dólares (620 meticais) por<br />

cada criança menor de 5 anos, um valor que<br />

corresponderia a 1,1% do Orçamento do<br />

Estado. O cenário é preocupante e implica<br />

grandes desafios. No capítulo dos passos a<br />

seguir, o estudo recomenda a “coordenação,<br />

financiamento e monitoria de programas<br />

de segurança alimentar e nutricional<br />

em áreas específicas, o que requer compromissos<br />

por parte do governo, dos parceiros<br />

do sector privado e da sociedade civil,<br />

e tomada de decisões em termos de planificação<br />

e acompanhamento de todas as<br />

intervenções de segurança alimentar nutricional<br />

em Moçambique”. Mas nem tudo<br />

está perdido neste combate à desnutrição.<br />

Da parte do governo existe um com-<br />

PERDAS<br />

1,6 MILHÕES DE DÓLARES<br />

O valor que o país perde anualmente<br />

devido à desnutrição crónica infantil<br />

62 MIL MILHÕES DE METICAIS<br />

Foram perdidos pela economia em 2015<br />

devido à desnutrição infantil<br />

5,2 MIL MILHÕES DE METICAIS<br />

Foi o que se perdeu em 2015 no potencial<br />

de rendimento de 4 milhões de pessoas<br />

envolvidas em trabalhos manuais devido<br />

a desnutrição crónica na infância<br />

18 MIL MILHÕES DE METICAIS<br />

Foi o que se perdeu em produtividade<br />

das pessoas envolvidas em actividades<br />

não manuais<br />

“A NOSSA TAXA DE<br />

DESNUTRIÇÃO CRÓNICA<br />

NÃO MUDOU QUASE<br />

NADA NOS ÚLTIMOS<br />

VINTE ANOS”<br />

Katia Dias, directora nacional do GAIN<br />

promisso grande para reduzir os índices<br />

elevados da desnutrição crónica ao nível<br />

do país, e tal é visto como alta prioridade.<br />

No seu discurso de posse, o Presidente da<br />

República, Filipe Jacinto Nyusi, foi categórico<br />

ao identificar o combate à pobreza<br />

como emergência nacional, e assumir a<br />

segurança alimentar e o combate à desnutrição<br />

crónica como pilares da sua governação.<br />

“Neste quinquénio iremos primar<br />

por um sector agrário diversificado, competitivo<br />

e sustentável, que contribua para a<br />

segurança alimentar e a redução dos índices<br />

de desnutrição crónica. Queremos dar<br />

passos decisivos rumo àquilo a que chamamos<br />

fome zero”, referiu o Presidente. b<br />

FAO<br />

ALIMENTAÇÃO:<br />

Padrões saudáveis são<br />

indispensáveis para<br />

combater a desnutrição<br />

crónica<br />

46 | Exame Moçambique


abril <strong>2020</strong> | 47


OIL<br />

& GAS<br />

LUÍS FARIA<br />

PUTIN E<br />

MOHAMMAD BIN<br />

SALMAN: Rússia<br />

e Arábia Saudita<br />

não se entendem<br />

PETRÓLEO<br />

PREÇOS COLAPSAM<br />

D.R<br />

Com a crise do coronavírus a alastrar pelo<br />

mundo e a contagiar os mercados, a Arábia<br />

Saudita e os restantes membros da OPEP<br />

propuseram ao seu maior aliado exterior à<br />

organização, a Rússia, que se retirassem do<br />

mercado, diariamente, mais 1,5 milhões de<br />

barris de petróleo. No início de 2017, a Organização<br />

dos Países Produtores de Petróleo e<br />

10 outros países produtores, com a Rússia,<br />

o segundo maior produtor a seguir à Arábia<br />

Saudita, à cabeça, já haviam decidido um<br />

corte na produção diária da matéria-prima<br />

de 1,2 milhões barris, que foi aumentado no<br />

passado mês de Dezembro em 500 mil barris,<br />

a que se acrescentaram ainda 400 mil<br />

retirados do mercado individualmente pela<br />

Arábia Saudita. Mas, mesmo com estes ajustamentos,<br />

a oferta continuava a ser excedentária,<br />

receando-se que o impacto no<br />

mercado da epidemia COVID-19 pudesse<br />

atirar o valor da matéria-prima para níveis<br />

muito baixos, com o mês de Janeiro a representar<br />

já um movimento de descida. Esperava-se<br />

um novo entendimento do grupo que<br />

reúne os 13 membros da OPEP e 10 produtores<br />

não alinhados. Pelo que o anúncio, a<br />

6 de Março, de que não havia acordo quanto<br />

a novo corte surpreendeu. De seguida,<br />

a Arábia Saudita optou por uma guerra<br />

de preços, já ensaiada entre 2014 e 2016.<br />

O preço do barril de Brent desabou dia<br />

9 de Março para o patamar dos 34 dólares,<br />

a maior queda diária em onze anos. A anterior<br />

tentativa para derrubar a produção de<br />

petróleo de xisto norte-americana não resultou<br />

e os orçamentos dos países produtores<br />

dependem muito da receita de exportação<br />

da matéria-prima.<br />

Tombo do Brent<br />

Arábia Saudita e Rússia não se entenderam<br />

66,25 65,37 64 63,21 53,96 57,75 51,9 34,36<br />

59,51 54,01 54,95 45,27 38,39<br />

2<br />

Jan<br />

9<br />

Jan<br />

15<br />

Jan<br />

USD/Barril<br />

Fonte: Investing.<br />

22<br />

Jan<br />

28<br />

Jan<br />

4<br />

Fev<br />

11<br />

Fev<br />

18<br />

Fev<br />

25<br />

Fev<br />

2<br />

Mar<br />

6<br />

Mar<br />

9<br />

Mar<br />

11<br />

Mar<br />

48 | Exame Moçambique


GÁS<br />

PROCURA DUPLICA ATÉ 2040<br />

A Shell prevê que a procura global<br />

por gás natural liquefeito duplique<br />

para 700 milhões de toneladas até<br />

2040. Para isso contribuirão dois factores:<br />

o aumento da procura asiática<br />

e a busca por energias mais limpas.<br />

Para a companhia, o gás terá um<br />

papel relevante numa economia de<br />

baixo carbono. A previsão é de que<br />

cerca de 80% do crescimento da<br />

procura global por energia se dirija<br />

para o gás e as fontes renováveis.<br />

A Shell acredita que o gás natural<br />

liquefeito será uma das respostas<br />

ao aumento da procura global por<br />

energia nas próximas décadas, com<br />

a China a duplicar a sua utilização<br />

desta fonte de energia.<br />

“O mercado global de LNG continuou<br />

a evoluir em 2019, com a<br />

procura crescente por LNG e gás<br />

natural nos sectores da energia<br />

e não energia”, disse Maarten Wetselaar,<br />

que lidera a área do gás e<br />

novas energias da Shell, citado pelo<br />

Financial Times. “Os investimentos<br />

recordes em suprimentos corresponderão<br />

às crescentes necessidades<br />

das pessoas pelo combustível fóssil<br />

mais flexível e de queima mais<br />

limpa”, acrescentou o responsável<br />

da Shell. A empresa investiu significativamente<br />

em infra-estruturas<br />

de gás natural nos últimos anos.<br />

Embora seja contestado por grupos<br />

ambientalistas, o gás liberta<br />

menos emissões que o petróleo e<br />

o carvão e a Shell está convencida<br />

que será uma fonte indispensável<br />

tendo em conta o aumento da procura<br />

induzido pela crescente electrificação.<br />

MERCADO: O preço do LNG russo conquista<br />

o mercado europeu<br />

Exportação Russa de LNG<br />

A Rússia já é a segunda maior exportadora<br />

para o mercado europeu<br />

(milhões/tons)<br />

Fonte: Platts.<br />

7<br />

2018 2019<br />

16<br />

Gás Desce<br />

Os futuros de gás natural só estremeceram com o abalo do preço do petróleo<br />

(USD/MMBtu)<br />

11<br />

Fev<br />

Fonte: Investing.<br />

19<br />

Fev<br />

28<br />

Fev<br />

LNG: A Shell prevê um<br />

grande crescimento da<br />

procura de gás natural<br />

1,768 1,955 1,684 1,708 1,934<br />

6<br />

Mar<br />

11<br />

Mar<br />

PREÇOS<br />

LNG RUSSO AVANÇA NA EUROPA<br />

A Rússia, que afirma ter fundos para aguentar uma guerra<br />

de preços no petróleo, avança decididamente no mercado<br />

europeu. O Petroleum Economist nota que, no último ano, a<br />

Rússia tornou-se a segunda fornecedora de LNG à Europa,<br />

ultrapassando a Nigéria e pressionando outros fornecedores-chave,<br />

como a Argélia. “O custo do LNG russo na Europa<br />

é dos mais baixos do mundo. Pode chegar à Europa abaixo<br />

de 2 dólares/mn Btu”, afirma Samer Mosis, analista sénior na<br />

área do LNG da S&P Global Platts, citado pelo Petroleum Economist.<br />

Em 2018 a Rússia exportou para a Europa 7 milhões<br />

de toneladas de LNG. No último ano as exportações russas<br />

atingiram os 16 milhões, valor que fica apenas atrás do registado<br />

pelo Qatar, que exportou 21 milhões, e à frente do gás<br />

não convencional norte-americano (12 milhões). A quota conseguida<br />

pelos norte-americanos preocupa a Rússia e outros<br />

fornecedores. Enquanto produtora de petróleo, a Rússia tem<br />

capacidade de actuar sobre o preço da matéria-prima, o qual,<br />

quando baixa de 50 dólares por barril, põe em causa a viabilidade<br />

da exploração não convencional de petróleo e gás<br />

dos Estados Unidos. Com o aperfeiçoamento da tecnologia<br />

de fracking a produção norte-americana mostra-se capaz<br />

de resistir a preços cada vez mais baixos.<br />

abril <strong>2020</strong> | 49


NEGÓCIOS EMPREENDEDORISMO<br />

ENTRE DUAS<br />

ACTIVIDADES CRIATIVAS<br />

Em 2015 aventurou-se num negócio de venda de flores. Hoje, Josefa Massinga<br />

faz a decoração de todo o tipo de eventos e só pensa em crescer<br />

VALDO MLHONGO<br />

Foi por influência da madrinha<br />

que Josefa Massinga ganhou o<br />

gosto pelo negócio das flores.<br />

“Sim, foi com ela que ganhei o<br />

interesse por este tipo de negócio.<br />

E em 2015 decidi abrir a florista”,<br />

conta a empreendedora, hoje com 42 anos.<br />

“Em Dezembro de 2013 perdi a minha<br />

sobrinha, que se afogou numa piscina<br />

da casa da minha mãe, a Khyathu”, lembra.<br />

Está também explicado o nome da<br />

loja, localizada num rés-do-chão de um<br />

prédio baixo, na Avenida Sebastião Marcos<br />

Mabote, para quem vai ao Albazine,<br />

antes de entrar na estrada circular: Florista<br />

Flor Khyathu. O início do negócio<br />

não foi nada fácil. “Decidi abrir a loja no<br />

mês dos namorados e pensei que muita<br />

gente iria comprar, mas não consegui<br />

ter muito retorno face ao que esperava”,<br />

revela. “Os dias subsequentes foram de<br />

muito elogio mas pouca procura, porque<br />

estava a abrir um negócio que aqui<br />

na zona não era muito conhecido, mas<br />

“QUERIA SER PIONEIRA<br />

NUMA ÁREA DE NEGÓCIO<br />

QUE AQUI NÃO<br />

EXISTISSE”<br />

queria ser pioneira numa área de negócio<br />

que fosse diferente, que aqui não existisse.<br />

Eu queria que as pessoas conseguissem<br />

encontrar uma flor, uma rosa, um artigo<br />

de decoração. A ideia era trazer o que está<br />

na cidade mais para junto das pessoas e<br />

fazer a diferença”, conta.<br />

Se dantes era apenas uma loja de venda<br />

de flores, a persistência e a criatividade<br />

fizeram com que, com o tempo, a Flor<br />

Khyathu se transformasse numa empresa<br />

de prestação de diversos tipos de serviços.<br />

“Sim, hoje os nossos serviços alargaram-se.<br />

Tivemos de começar a fazer<br />

serviços de decoração de viaturas, ornamentação<br />

de eventos e igrejas, aluguer de<br />

louça” explica Josefa, acrescentando que<br />

“também fazemos o trabalho de assessoria<br />

de eventos, aluguer de material de<br />

decoração e convites para casamentos.<br />

Foi ficando acoplado dentro da florista”.<br />

O seu primeiro grande trabalho consistiu<br />

em fazer convites e a decoração<br />

para um casamento. “A cliente mandou-<br />

-nos fazer 100 convites para o casamento<br />

e o trabalho de decoração”, confidencia<br />

a empresária. “Levámos duas semanas<br />

nesse trabalho e facturámos, na altura,<br />

cerca de 50 mil meticais.” Em termos de<br />

rendimento, Massinga refere que é no trabalho<br />

de assessoria de eventos que tem<br />

mais ganhos. “Verdade, pois trata-se de<br />

um trabalho mais abrangente, mais completo,<br />

por isso dá-nos mais dinheiro”,<br />

adianta. A carteira de clientes também<br />

cresceu. “Temos uma carteira de clientes<br />

muito grande. Clientes fixos, podemos<br />

falar de cerca de cinco dezenas que<br />

regularmente solicitam os nossos serviços.<br />

Temos a sorte de cada cliente recomendar<br />

EDILSON TOMÁS<br />

50 | Exame Moçambique


JOSEFA<br />

MASSINGA<br />

IDADE: 42 ANOS<br />

NATURALIDADE:<br />

MAPUTO<br />

NOME DA EMPRESA:<br />

FLORISTA FLOR KHYATHU<br />

NEGÓCIO: VENDA DE<br />

FLORES E DECORAÇÃO DE<br />

TODO O TIPO DE EVENTOS<br />

INÍCIO DE ACTIVIDADE: 2015<br />

JOSEFA MASSINGA:<br />

O gosto pelo negócio<br />

das flores


NEGÓCIOS EMPREENDEDORISMO<br />

DIVERSIFICAR:<br />

A Flor Khyathu<br />

passou a prestar<br />

outros serviços<br />

EDILSON TOMÁS<br />

sempre os nossos serviços e, actualmente,<br />

temos feito trabalho na Matola, Maputo.”<br />

DE OLHOS NO FUTURO<br />

Na abertura da loja Massinga investiu<br />

cerca de 155 mil meticais, através de um<br />

empréstimo bancário. A empreendedora<br />

confessa que os primeiros dois anos não<br />

foram fáceis. “Sabe, comecei a ter um<br />

bom retorno daquilo que é o nosso trabalho<br />

só a partir do terceiro ano”, precisa.<br />

“Eu dou férias colectivas em Janeiro, mas<br />

sempre que reabro tento mudar um pouco<br />

a imagem da florista, não só para minha<br />

satisfação, mas também para a satisfação<br />

do cliente, para perceber que, de alguma<br />

forma, está a haver alguma evolução neste<br />

trabalho.” Inovar sempre numa perspectiva<br />

de crescimento. “Começar a vender<br />

NA REABERTURA DE<br />

FÉRIAS “TENTO SEMPRE<br />

MUDAR UM POUCO A<br />

IMAGEM DA FLORISTA”<br />

flores artificiais foi uma boa estratégia<br />

e ajudou-nos muito.” Trouxe uma dinâmica<br />

diferente à loja. “Começámos também<br />

a entrar num ritmo de trabalho<br />

muito grande.” No que respeita à ornamentação<br />

de viaturas, os preços variam<br />

entre os 2500 meticais os 7 mil meticais.<br />

A empreendedora refere que num<br />

ano chegou a registar acima de 500 mil<br />

meticais de facturação. “Principalmente<br />

quando começámos a introduzir os serviços<br />

complementares”, refere. De início<br />

Massinga só tinha três trabalhadores, mas<br />

agora a empreendedora conta com uma<br />

equipa de 12 elementos de protocolo que<br />

colabora em função do nível do trabalho.<br />

No mesmo prédio, no primeiro andar,<br />

uma outra loja foi inaugurada no dia 14<br />

de Fevereiro. “Lá em cima o atendimento<br />

é mais personalizado. Estamos a vender<br />

acessórios para noivas, aluguer de roupa<br />

para casamento”, esclarece.<br />

No futuro, Massinga sonha ser grande<br />

no seu ramo da actividade. “Sabe, quando<br />

comecei a fazer esse trabalho sempre me<br />

espelhei na Esperança Mangaze. Para<br />

mim ela está no topo a nível da cidade<br />

de Maputo”, revela. “E eu acho que posso<br />

chegar acima dela”, refere, não deixando<br />

escapar um sorriso de satisfação. b<br />

52 | Exame Moçambique


abril <strong>2020</strong> | 53


ECONOMIA IDAI UM ANO DEPOIS<br />

“RECONSTRUIR<br />

DE FORMA MAIS<br />

RESILIENTE PRECISA<br />

DE TEMPO”<br />

O subfinanciamento do sistema das Nações Unidas para apoiar Moçambique,<br />

diz Myrta Kaulard, é uma das dificuldades que se colocam à implantação de métodos<br />

resilientes na reconstrução e na agricultura, num país onde os desastres naturais têm<br />

ocorrido com frequência<br />

LUÍS FONSECA *<br />

MYRTA KAULARD,<br />

COORDENADORA RESIDENTE DA<br />

ONU EM MOÇAMBIQUE:<br />

“O impacto destes desastres<br />

naturais nas pessoas mais<br />

pobres é muito, muito forte”<br />

54 | Exame Moçambique


D<br />

urante as suas intervenções<br />

tem destacado o desafio<br />

que as mudanças climáticas<br />

significam para<br />

Moçambique. Porquê?<br />

Porque o ciclo dos desastres naturais em<br />

Moçambique é muito breve e o impacto<br />

é muito forte. Só há nove meses, entre o<br />

final de uma temporada de ciclones e o<br />

começo da outra. E o país ainda tem de<br />

completar o seu caminho até ao desenvolvimento<br />

sustentável. Por isso, é preciso<br />

pôr no centro das prioridades do país<br />

e da comunidade internacional os esforços<br />

de resiliência e de criação de capacidades<br />

de adaptação às mudanças climáticas. Isso<br />

é muito importante para assegurar o desenvolvimento<br />

sustentável de Moçambique.<br />

É uma missão de todos em Moçambique e<br />

da comunidade internacional. O impacto<br />

destes desastres naturais nas pessoas mais<br />

pobres é muito, muito forte, e quando não<br />

têm apoio as pessoas passam a mecanismos<br />

negativos de resposta — como o abandono<br />

escolar ou casamentos precoces para<br />

sustentar a família — e isso é contrário ao<br />

desenvolvimento sustentável.<br />

“O CICLO DOS<br />

DESASTRES NATURAIS<br />

EM MOÇAMBIQUE É<br />

MUITO BREVE E O<br />

IMPACTO É MUITO FORTE”<br />

KAREL PRINSLOO<br />

Então não seria de esperar que as vítimas<br />

dos ciclones de 2019 já tivessem<br />

casas e edifícios públicos resilientes?<br />

Reconstruir melhor, de forma mais resiliente,<br />

precisa de tempo. Não podemos<br />

esquecer o nível dos danos: cerca de 300<br />

mil habitações foram destruídas e 140 mil<br />

famílias têm uma casa temporária ou tendas.<br />

Agora temos de reconstruir melhor,<br />

porque estamos certos de que vai haver<br />

outros ciclones em Moçambique. Se chegarem<br />

outros, as casas vão ter de resistir.<br />

Mas isso precisa de tempo para estudos.<br />

Para verificar que não podemos pôr um<br />

tecto mais forte se o resto da estrutura não<br />

aguentar. Não podemos pensar construir<br />

abril <strong>2020</strong> | 55


ECONOMIA IDAI UM ANO DEPOIS<br />

capacidade de resiliência em poucos meses<br />

ou um ano. Isto tem de estar integrado nos<br />

planos de desenvolvimento do país. Mas foi<br />

feito muito trabalho que não podemos ver,<br />

muita preparação para esta reconstrução<br />

melhor. A partir do final deste ano, vamos<br />

ver mais casas, mais bem reconstruídas,<br />

e vamos ver mais infra-estruturas.<br />

De quanto dinheiro precisa a Organização<br />

das Nações Unidas para apoiar<br />

Moçambique?<br />

No ano passado, o plano de resposta humanitária<br />

das Nações Unidas precisava de 600<br />

milhões de dólares e recebemos cerca de<br />

metade. Agora precisamos de 120 milhões<br />

de dólares para podermos completar, em<br />

parte, essas necessidades e porque a situação<br />

evoluiu. Estamos numa nova temporada<br />

ciclónica e não temos como responder<br />

se houver outro ciclone porque todos os<br />

COMUNIDADES:<br />

Já se reconstruíram<br />

e adaptaram ao novo<br />

ambiente para onde<br />

tiveram de se mudar<br />

recursos recebidos já foram utilizados.<br />

O Instituto Nacional de Gestão de Calamidades<br />

(INGC) de Moçambique está a<br />

fazer agora muito trabalho de prevenção,<br />

de proteger vidas, com recursos do país. Os<br />

120 milhões de dólares são urgentes, para<br />

300 mil pessoas em zonas onde houve ciclones.<br />

O problema das secas, insegurança alimentar<br />

e mundo agrícola precisa de outros<br />

40 milhões, e isso é muito importante para<br />

as famílias que já vimos que não vão ter<br />

a produção que se esperava.<br />

E além desses valores, há as verbas prometidas<br />

numa conferência de doadores<br />

na Beira, em 2019...<br />

Do lado da reconstrução ainda faltam<br />

verbas. O comprometimento da comunidade<br />

internacional foi de 1,5 mil milhões<br />

de dólares face à necessidade de 3,2 mil<br />

milhões [calculada por Moçambique].<br />

KAREL PRINSLOO<br />

CIMEIRA<br />

CLIMÁTICA<br />

Face à prioridade que deve ser<br />

dada às mudanças climáticas,<br />

Myrta Kaulard destaca a importância<br />

da COP 26 — Cimeira do Clima,<br />

agendada para 9 a 19 de Novembro<br />

em Glasgow, na Escócia. Líderes<br />

globais de diferentes países e<br />

empresas, delegações da ONU e<br />

activistas deverão juntar-se para<br />

discutir os próximos passos na<br />

estratégia global de combate às<br />

mudanças climáticas, um encontro<br />

promovido pelas Nações Unidas<br />

— depois de não ter havido<br />

acordo no encontro de Dezembro<br />

de 2019. No discurso de encerramento<br />

da COP25, Carolina Schmidt,<br />

que é também ministra do<br />

Meio Ambiente chileno, apelou à<br />

necessidade de “uma resposta<br />

mais sólida, urgente e ambiciosa”<br />

para enfrentar a crise climática. A<br />

cimeira de Madrid, na qual participaram<br />

cerca de 200 países, terminou<br />

com a aprovação de um<br />

documento com poucas decisões<br />

no que toca aos assuntos concretos,<br />

como por exemplo as regras<br />

dos mercados internacionais de<br />

carbono. “Não estamos satisfeitos”,<br />

queixou-se Schmidt.<br />

Na reconstrução há que fazer planos, terminar<br />

os estudos e o desembolso vem<br />

etapa por etapa. É este o caminho e, por<br />

isso, o trabalho do gabinete de reconstrução<br />

é muito importante na planificação<br />

e mobilização de recursos.<br />

Será possível chegar aos 3,2 mil milhões?<br />

Temos de fazer o esforço possível, mas também<br />

não podemos ver estes números como<br />

estáticos porque podemos ter outras ameaças,<br />

outros problemas. Por exemplo, a seca,<br />

as cheias deste ano, tudo isto são novos elementos,<br />

pelo que a situação é dinâmica.<br />

56 | Exame Moçambique


Devia haver outra conferência de doadores?<br />

Essa é uma decisão das autoridades nacionais,<br />

não são as Nações Unidas que podem<br />

decidir fazer uma conferência de parceiros,<br />

mas o que estamos a fazer é muita advocacia<br />

e trabalhar de forma muito colaborativa,<br />

com parceiros internacionais, que<br />

têm feito um esforço muito importante.<br />

Tudo o que temos visto até agora tem sido<br />

ajuda dos parceiros internacionais.<br />

Em suma, um ano após o ciclone Idai<br />

ficou satisfeita com o que encontrou<br />

no terreno?<br />

Muitas vezes esse progresso não é tão visível<br />

ou compreensível para quem não acompanha<br />

estas situações. Eu estive nestas<br />

zonas em Julho de 2019 e então tudo era<br />

devastação, estava tudo por fazer. Agora<br />

podemos ver comunidades que se estão a<br />

reconstruir e que já se adaptaram a um<br />

novo ambiente, para o qual tiveram de se<br />

mudar. Quero felicitar e dar os parabéns<br />

às instituições e comunidades por terem<br />

sido tão resilientes e terem feito tantos progressos.<br />

Vimos comunidades que estão a<br />

criar formas de rendimento, meninos que<br />

continuaram nas escolas, vimos ajuda alimentar<br />

distribuída a 2,3 dos 2,5 milhões<br />

de pessoas afectadas, portanto uma preocupação<br />

a menos para as famílias, que assim<br />

puderam pensar na recuperação da sua<br />

vida. Vimos muitas coisas positivas, mas<br />

também muitas necessidades, como a de<br />

reconstrução das casas, mais resilientes.<br />

Confia na capacidade instalada para responder<br />

às necessidades?<br />

Eu penso que, no meio de todas as dificuldades,<br />

o país aprendeu também muitas<br />

coisas neste último ano sobre como responder,<br />

como se adaptar, e isso é algo que<br />

a comunidade internacional tem de continuar<br />

a apoiar. Vimos uma capacidade institucional<br />

no ano passado na resposta ao<br />

Idai e a forma como Moçambique coordenou<br />

a resposta internacional é um exemplo<br />

para muitos países. É muito bom que,<br />

agora que temos um gabinete de reconstrução,<br />

se desenvolvam as suas capacidades.<br />

Tal como vimos a capacidade de<br />

coordenação da resposta humanitária pelo<br />

Instituto Nacional de Gestão de Calamidades<br />

(INGC) e por parte das organizações<br />

moçambicanas, extremamente rápida.<br />

Agora, com o gabinete de reconstrução, é<br />

importante também ter uma capacidade<br />

muito forte de desenvolver e de articular<br />

todas as instituições para impulsionar um<br />

ciclo positivo que contrarie o ciclo negativo<br />

das mudanças climáticas.<br />

Mas já este ano houve população afetada<br />

por cheias, nas mesmas regiões,<br />

embora com menores danos...<br />

Há pessoas que perderam o cultivo o ano<br />

passado com os ciclones Idai e Kenneth e<br />

que agora o estão a perder com as cheias.<br />

Isto é um ciclo frequente em Moçambique<br />

e requer ajuda humanitária, adaptação,<br />

inovação, uma agricultura mais resiliente.<br />

O maior desafio são mesmo as mudanças<br />

climáticas. Como disse, os desastres<br />

naturais são muito fortes e o ciclo é muito<br />

breve: há só nove meses entre o final de<br />

uma temporada de ciclones e o começo<br />

da outra, então saber quanto tempo estas<br />

pessoas terão de esperar para terem casa<br />

nova depende da severidade da temporada.<br />

Se não se passar nada de greve, no<br />

próximo ano há melhorias. Mas se passar<br />

outro ciclone (e ainda temos um mês pela<br />

frente), isto vai levar mais tempo.<br />

DE NOVO, AS CHEIAS<br />

Um ano após os ciclones, acha que o<br />

cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento<br />

Sustentável (ODS) fica comprometido?<br />

É muito importante acelerar o caminho<br />

até aos ODS. No ano passado, todos os<br />

países membros da ONU assinaram, em<br />

Setembro, um compromisso para acelerar<br />

o caminho até ao desenvolvimento sustentável<br />

até 2030. Não há um país no mundo<br />

que esteja a cumprir o cronograma. Naturalmente,<br />

há países que têm mais dificuldades<br />

de desenvolvimento, precisam de<br />

fazer mais esforços para alcançarem estas<br />

metas e as mudanças climáticas são uma<br />

dificuldade enorme. Por isso, importa priorizar<br />

o investimento na resiliência como<br />

uma das maneiras de acelerar o caminho<br />

até aos ODS.<br />

Quase todos os relatórios mostram também<br />

que a insegurança alimentar é uma<br />

das heranças agravadas dos ciclones<br />

de 2019...<br />

O problema da insegurança alimentar<br />

está ligado a vários factores: por um lado,<br />

as cheias, por outro, a seca, e os dois estão<br />

relacionados com as mudanças climáticas.<br />

Já há uma transformação, que é complicada<br />

para as pessoas que vivem da agricultura.<br />

É há a situação em que se encontra<br />

toda a região da África Austral, não apenas<br />

Moçambique. É uma situação que precisa<br />

de respostas imediatas em termos de<br />

ajuda alimentar nutricional para as pessoas<br />

e respostas ao nível de desenvolvimento.<br />

Há que fazer uma adaptação, inovar nas<br />

práticas agrícolas e no uso da água. É preciso<br />

inovar e aumentar a capacidade tecnológica<br />

na previsão de desastres.<br />

Tudo somado, quantas pessoas precisam<br />

de ajuda em Moçambique?<br />

De uma maneira geral, um milhão de pessoas<br />

precisa de ajuda humanitária, e isto é<br />

para poderem seguir até que a reconstrução<br />

pós-ciclones esteja feita e também para responderem<br />

aos novos desafios das cheias e da<br />

seca, numa visão geral para todo o país. b<br />

* Serviço especial da Lusa para a <strong>EXAME</strong> Moçambique.<br />

Várias inundações assolaram o Centro de Moçambique na segunda quinzena de<br />

Fevereiro, provocando a retirada de 70 mil pessoas, o correspondente a 15 755<br />

famílias, para centros de acomodação ou casas de familiares situadas em locais<br />

seguros, anunciaram as autoridades. As cheias afectaram sobretudo a província<br />

de Sofala, atingindo 4565 hectares de campos de cultivo, o que afectou 3400<br />

camponeses que já tinham sido prejudicados pelo ciclone Idai em 2019.<br />

abril <strong>2020</strong> | 57


ECONOMIA IDAI UM ANO DEPOIS<br />

PAINÉIS SOLARES,<br />

FOGAREIROS E OUTRAS<br />

FORMAS DE RECOMEÇAR<br />

A vida ainda é difícil para os realojados dos ciclones de 2019. Perderam tudo e agora fazem<br />

experiências com o apoio das Nações Unidas e ONG para tentarem fazer crescer algo que<br />

os sustente. Os recursos disponíveis ainda não são os ideais mas há sempre esperança<br />

LUÍS FONSECA *<br />

ENERGIA SOLAR:<br />

Eugénio António utiliza-a no seu<br />

negócio de carregar telemóveis<br />

MYRTA KAULARD,<br />

COORDENADORA RESIDENTE DA<br />

ONU EM MOÇAMBIQUE:<br />

“O impacto destes desastres<br />

naturais nas pessoas mais<br />

pobres é muito, muito forte”<br />

58 | Exame Moçambique


Eugénio António, 40 anos, está<br />

sentado à beira de uma geringonça<br />

que salta à vista: uma<br />

espécie de pequena banca de<br />

madeira, pintada de verde e<br />

com um painel solar por cima. “É um sistema<br />

de carregamento de telemóveis com<br />

energia solar”, explica. Bastam 10 meticais<br />

para carregar cada um a 100%. É assim que<br />

Eugénio está a tentar recomeçar depois<br />

de o ciclone Idai o ter levado ao tapete.<br />

Morava na Praia Nova, o bairro de lata da<br />

cidade da Beira mais exposto à destruição<br />

por estar colado ao mar. Diabético,<br />

vivia a cortar o cabelo. Com a tempestade<br />

a casa desabou, a saúde degradou-<br />

-se e a retenção de líquidos causada pela<br />

diabetes obrigou-o a amputar uma perna.<br />

Foram dias difíceis? “Sim, mas hoje estou<br />

um bocado melhor.”<br />

De uma forma ou de outra, os ciclones<br />

afectaram cerca de 2 milhões de pessoas<br />

em Moçambique e há 100 mil que<br />

foram realojadas em áreas de reassentamento<br />

onde ainda permanecem — espaços<br />

longe das zonas de cheias, onde receberam<br />

tendas, abrigos provisórios, e onde<br />

ONG garantem serviços básicos de saúde,<br />

apoio alimentar e outros de âmbito social.<br />

Eugénio António vive na área de reassentamento<br />

de Mutua, a cerca de 60 quilómetros<br />

da cidade da Beira. Um terreno onde<br />

não havia nada. Agora, há 72 áreas como<br />

esta onde o governo doou parcelas de terreno<br />

aos sobreviventes dos ciclones, para<br />

poderem transformar a tenda provisória<br />

em habitação fixa (ainda com materiais<br />

precários) com “machamba” (horta) que<br />

garanta produção agrícola de subsistência.<br />

Com o seu lote e o posto de carregamento<br />

solar, no local onde nasce o mercado da<br />

nova aldeia, alimenta a esperança de um<br />

novo recomeço para a sua vida. “Gostaria<br />

de voltar a ter um salão” de corte de<br />

cabelo. Para já, mostra um aparador de<br />

cabelo junto às fichas triplas onde carrega<br />

os telemóveis. “Às vezes, quando me pendem,<br />

ainda ‘descabelo’ algumas pessoas.”<br />

Mais abaixo, outro exemplo de empreendedorismo:<br />

Estrela Yuba, 24 anos, mostra<br />

um fogareiro de barro como uma obra de<br />

arte: fazer fogo requer três paus de lenha,<br />

mas com esta nova peça “basta acender<br />

um e já está”. Um grupo de 20 mulheres<br />

realojadas em Mutua passou a ganhar a<br />

vida a fabricar “fogões melhorados”, fogareiros<br />

aliados do combate às mudanças<br />

climáticas para prevenir novos ciclones.<br />

Consomem menos floresta, são mais eficientes<br />

e, mais importante para Estrela,<br />

“dão dinheiro” para comprar comida<br />

e o que mais for preciso para a família.<br />

A ideia de negócio, tal como a de Eugénio,<br />

teve o impulso do Programa das Nações<br />

Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).<br />

“Ajudamos a criar algum emprego,<br />

fazer com que a população faça crescer<br />

algo”, refere Ghulam Sherani, dirigente do<br />

PNUD. O programa apoia-se em organizações<br />

locais para tentar virar a página:<br />

dá dinheiro e treino, ouve o que os residentes<br />

querem fazer e indica os projectos<br />

mais seguros, por exemplo recomendando<br />

a criação de patos em vez de galinhas, por<br />

serem mais resilientes e mais bem pagos<br />

no mercado local. A ideia era de Joaquim<br />

Tom, 32 anos, casado com seis filhos em<br />

casa, aficcionado das aves que trocou<br />

de bom grado a banca de comerciante,<br />

no bairro da Praia Nova, pela criação<br />

de patos. “Eu antes já estava a processar<br />

isso no meu coração, mas lá onde vivia<br />

era uma zona insegura”, confidencia. Por<br />

muito precário que ainda seja o bairro de<br />

Mutua, Ghulam Sherani acredita que será<br />

TER COMIDA AINDA É UMA BATALHA<br />

A desnutrição está quase sempre presente<br />

em Moçambique: a falta de alimentos<br />

diversificados faz com que<br />

metade da população moçambicana<br />

sofra de desnutrição crónica. Mas o<br />

ciclone Idai agravou o cenário no Centro<br />

do país, com perda de campos e<br />

mantimentos, e a desnutrição crónica<br />

passou a desnutrição moderada ou<br />

severa, um nível que reflecte carências<br />

maiores. “Já tenho muitos casos<br />

que estão curados”, conta Madalena<br />

Chuarira, 26 anos, técnica dos Médicos<br />

do Mundo que trabalha em conjunto<br />

com a UNICEF nos cuidados de<br />

saúde prestados aos cerca de 2300<br />

habitantes da área de reassentamento<br />

de Ndeja. O segredo é um suplemento<br />

alimentar entregue às mães em pequenos<br />

pacotes.<br />

Um ano depois do Idai, ter comida<br />

continua a ser uma batalha diária que<br />

quase todos os moçambicanos dizem<br />

que só pode ser vencida com uma<br />

“machamba” — o nome dado às hortas<br />

para produção de alimentos. Há ajuda<br />

humanitária (em géneros ou cheques<br />

alimentares), mas essa chega a cada<br />

vez menos pessoas. A falta de fundos<br />

já obrigou o PAM a reduzir o apoio: em<br />

vez dos habituais 40 quilos de milho ou<br />

arroz entregues por mês a cada família<br />

como produto base para agregados<br />

vulneráveis, desde Fevereiro passaram<br />

a ser distribuídos 20 quilos para cada,<br />

especificou Espinola Caribe, chefe do<br />

PAM na cidade da Beira. “Temos problemas<br />

sérios de fundos. Temos uma<br />

necessidade de 48 milhões de dólares<br />

para podermos continuar a assistir<br />

1,3 milhões de pessoas.” “Estamos<br />

a bater às portas”, acrescentou, uma<br />

vez que, sem essa verba, 525 mil pessoas<br />

“estarão fora do programa, por<br />

falta de fundos”, desde Março. Apesar<br />

de os ciclones já terem acontecido há<br />

um ano, é pouco tempo para as famílias<br />

recuperarem os seus rendimentos<br />

e recuperarem o acesso a comida, referiu<br />

Espinola Caribe.<br />

Há um grupo específico a apoiar: 10<br />

mil crianças com subnutrição severa a<br />

moderada que o Programa Alimentar<br />

Mundial (PAM) e o Fundo para a Infância<br />

das Nações Unidas (UNICEF) contam<br />

apoiar este ano com suplementos<br />

alimentares em Moçambique, a par de<br />

15 mil grávidas e lactantes.<br />

abril <strong>2020</strong> | 59


ECONOMIA IDAI UM ANO DEPOIS<br />

CONSTRUIR MELHOR:<br />

A habitação de Bill<br />

Malissane é um exemplo<br />

de construção mais<br />

resiliente<br />

sempre melhor que os locais de origem<br />

de quem acolhe, oriundos de bairros de<br />

lata e zonas de risco.<br />

AINDA NÃO É O CENÁRIO IDEAL<br />

“Estou melhor, aqui é o meu espaço, não<br />

estou a pagar renda”, conta Rabica Andrade<br />

no reassentamento de Mandruzi, onde<br />

integra um grupo de mulheres que produzem<br />

tapetes — uma das actividades<br />

de rendimento dinamizadas pelas organizações<br />

que estão a apoiar a consolidação<br />

destas novas aldeias. Mas são espaço<br />

aonde ainda há muito por fazer, diz Mira<br />

Vilanculo em Mutua. “Estamos a chorar<br />

por energia e por um mercado” onde se<br />

possa ter “outro caril”, ou seja, produtos<br />

e ingredientes que complementem a ajuda<br />

alimentar humanitária, baseada em arroz<br />

e milho. “Com um mercado podíamos<br />

ter um repolho ou uma banana, laranja<br />

ou tangerina”, que para já ficam só na<br />

ementa de sonho.<br />

Nas áreas de reassentamento é comum<br />

haver a ambição de construir uma boa<br />

casa porque as actuais, quando já não são<br />

tendas, ainda misturam lonas e caniço,<br />

barro e pedaços de madeira, finas coberturas<br />

de zinco, à vista, nada que imponha<br />

respeito a uma tempestade. Já se fazem<br />

testes e divulgação de técnicas de construção<br />

resilientes. A habitação de Bill Malissane,<br />

na vila de Dondo, ficou a céu aberto<br />

durante o ciclone Idai é uma das casas-<br />

-piloto da ONU-Habitat para demonstrar<br />

técnicas de reconstrução resiliente.<br />

“Aqui vivem oito pessoas”, refere, ao mostrar<br />

as técnicas de construção usadas para<br />

reforçar a cobertura. O título numa das<br />

paredes, “Casa Amor de God”, também<br />

reflecte esperança nos princípios de Building<br />

Back Better (BBB), ou seja, voltar a<br />

construir melhor. Mas ainda é uma excepção<br />

e a maioria das que se fazem continua<br />

a ser precária.<br />

Num “cenário ideal” todos deviam ter<br />

“uma boa casa, mas estamos em Moçambique,<br />

um dos países mais pobres em<br />

África. São necessários muitos recursos”<br />

que não estão disponíveis, resume Ghulam<br />

Sherani. “Por isso, tentamos fazer o<br />

melhor possível com os recursos disponíveis<br />

para estas pessoas recomeçarem<br />

as suas vidas”, conclui. Um ano depois,<br />

estar longe de zonas de risco de inundação<br />

e fixar residência em zonas seguras é<br />

o primeiro (e único) passo, a reconstrução<br />

de sonho poderá vir a seguir.<br />

O período chuvoso de 2018/2019 foi<br />

dos mais severos de que há memória em<br />

Moçambique: 714 pessoas morreram,<br />

incluindo 648 vítimas de dois ciclones (Idai<br />

e Kenneth) que se abateram sobre Moçambique.<br />

O ciclone Idai atingiu o Centro de<br />

Moçambique em Março, provocou 603<br />

mortos e a cidade da Beira, uma das principais<br />

do país, foi severamente afectada.<br />

O ciclone Kenneth, que se abateu sobre o<br />

Norte do país em <strong>Abril</strong>, matou 45 pessoas. b<br />

* Serviço especial da Lusa para a <strong>EXAME</strong> Moçambique.<br />

60 | Exame Moçambique


abril <strong>2020</strong> | 61


GLOBAL COMÉRCIO<br />

TRUMP<br />

ADMITE TARIFAS<br />

AO BRASIL<br />

A ameaça de Donald Trump de impor tarifas ao Brasil<br />

abre uma nova frente de disputas comerciais.<br />

O proteccionismo tenta compensar o dólar alto.<br />

E satisfazer a base eleitoral de Trump<br />

FILIPE SERRANO<br />

P<br />

ode ter sido apenas mais<br />

uma jogada do Presidente<br />

Donald Trump para obter<br />

vantagens para os Estados<br />

Unidos, como já o fez com<br />

diversos países para forçar a assinatura<br />

de acordos. Mas o anúncio feito através<br />

da sua conta no Twitter, em Dezembro,<br />

de que o governo norte-americano deve<br />

impor tarifas de importação sobre o aço<br />

e o alumínio brasileiro e argentino, colocou<br />

definitivamente o Brasil na rota das<br />

políticas comerciais proteccionistas que<br />

são a marca do governo Trump. Se de<br />

facto forem impostas pelos Estados Unidos<br />

(o que não havia acontecido até este<br />

texto ser concluído), as tarifas serão um<br />

duro golpe tanto para o sector siderúrgico<br />

quanto para o governo do Presidente Jair<br />

Bolsonaro. Desde que assumiu a Presidência,<br />

Bolsonaro julgava ter acesso privilegiado<br />

à Casa Branca, e o Brasil, inclusive,<br />

abriu mão do status preferencial de país<br />

emergente na Organização Mundial do<br />

Comércio a pedido dos Estados Unidos,<br />

em troca de uma promessa de apoio americano<br />

à sua entrada na Organização para<br />

a Cooperação e Desenvolvimento Económico<br />

— algo que ainda não ocorreu.<br />

Não é a primeira vez que Trump ameaça<br />

o Brasil. Em 2018, o país já havia sido prejudicado<br />

quando o governo norte-americano<br />

decidiu impor tarifas de importação<br />

de 25% sobre o aço e de 10% sobre o alumínio,<br />

com o argumento de que a dependência<br />

das importações desses produtos<br />

era uma ameaça à segurança nacional<br />

devido à sua relação com a indústria de<br />

armamento. Mas o efeito das tarifas foi<br />

minimizado porque o Brasil, bem como<br />

a maioria dos países que exportam aço e<br />

alumínio para os Estados Unidos, conseguiu<br />

negociar uma isenção da tarifa em<br />

troca de uma quota para as importações.<br />

Também no ano passado, Trump mencionou<br />

numa entrevista que o Brasil e a<br />

Índia tinham impostos de importação<br />

elevados que prejudicavam as empresas<br />

americanas, e sugeriu que fosse feito algo<br />

para modificar a situação. A ameaça, no<br />

entanto, não se confirmou e foi esquecida.<br />

O que surpreende agora no anúncio<br />

de Trump pelo Twitter é não só o modo<br />

inesperado como foi feito, mas o facto<br />

62 | Exame Moçambique


UM CONSUMIDOR VORAZ<br />

Os Estados Unidos dependem das<br />

importações de aço para suprir a sua procura<br />

interna, e o Brasil é o seu maior fornecedor<br />

Produção, consumo e importação de aço<br />

nos Estados Unidos (em milhões de metros cúbicos<br />

por ano)<br />

120<br />

100<br />

80<br />

60<br />

40<br />

20<br />

Produção Consumo Importações<br />

2009 2011 2013 2015 2017 2019 (1)<br />

Importações de aço dos Estados Unidos,<br />

por país de origem (em milhões de metros cúbicos<br />

por ano)<br />

Outros<br />

24 19<br />

Brasil<br />

GETTY<br />

Itália<br />

3<br />

Vietnam 3<br />

Taiwan 3<br />

Alemanha 4<br />

Japão<br />

4<br />

5<br />

Rússia<br />

9<br />

10<br />

15 Canadá<br />

México<br />

Coreia do Sul<br />

BOLSONARO E TRUMP:<br />

A imposição de tarifas seria um<br />

revés para o Presidente brasileiro<br />

REUTERS<br />

39% é quanto cresceram<br />

as importações de aço brasileiro<br />

pelos Estados Unidos em 2019 (1)<br />

(1)<br />

Até Junho Fonte: Global Steel Trade Monitor<br />

(International Trade Administration)<br />

de o Presidente apontar o dedo directamente<br />

ao Brasil como um culpado pelo<br />

mau desempenho das empresas norte-<br />

-americanas no comércio mundial.<br />

O Presidente alega que o Brasil manipula<br />

o câmbio para manter o real desvalorizado<br />

e as suas exportações competitivas — prática<br />

que não é verdadeira. De acordo com<br />

as palavras de Trump, tal isso dificulta aos<br />

agricultores e às indústrias dos Estados<br />

Unidos a exportação dos seus produtos.<br />

Na tentativa, no início, de agradar aos<br />

produtores rurais — uma das suas bases<br />

eleitorais — que perderam mercado para<br />

o Brasil desde que os Estados Unidos<br />

entraram numa guerra comercial com a<br />

China, Trump pode acabar por prejudicar<br />

a indústria de aço brasileira e também<br />

a norte-americana. O Brasil é um<br />

importante fornecedor de aço aos Estados<br />

Unidos, especialmente de produtos<br />

semiacabados. A indústria de siderurgia<br />

norte-americana depende das importações<br />

para suprir a procura interna, que<br />

é maior do que a sua produção. E o Brasil<br />

tem nisso um papel importante. De<br />

todo o aço importado pelos americanos<br />

em 2019, quase um quinto tem origem<br />

no Brasil, segundo dados do Departamento<br />

de Comércio dos Estados Unidos.<br />

É a maior participação entre os países que<br />

vendem aço aos norte-americanos, um<br />

comércio que somou 2,5 mil milhões de<br />

dólares até Outubro de 2019.<br />

Agora, um ponto no qual Trump tem<br />

razão é que a valorização do dólar prejudica<br />

as exportações norte-americanas.<br />

No entanto, a cotação da moeda está elevada<br />

não por causa de uma suposta manipulação<br />

do câmbio nos outros países, mas<br />

pelo facto de a própria economia norte-<br />

-americana estar a crescer. Os Estados<br />

Unidos estão a viver a mais longa expansão<br />

económica de que se tem registo. São<br />

quase onze anos consecutivos de crescimento<br />

ininterrupto, um recorde. E, ao<br />

contrário das previsões de um arrefecimento<br />

em 2019, os números do terceiro<br />

trimestre de 2019 mostram que o produto<br />

interno bruto americano prossegue uma<br />

expansão em torno de 2% ao ano. Isto<br />

não significa que o temor de uma desaceleração<br />

norte-americana tenha ficado<br />

para trás. Mas num momento em que<br />

abril <strong>2020</strong> | 63


GLOBAL COMÉRCIO<br />

METALURGIA:<br />

O Brasil é hoje o maior<br />

exportador de aço para<br />

os Estados Unidos<br />

ECONOMIA EM ALTA, DÓLAR EM ALTA<br />

O bom momento da economia norte-americana tem feito o dólar valorizar no mundo. Mas, no Brasil, a taxa já foi mais alta, considerando a inflação<br />

Variação do PIB dos Estados Unidos<br />

(em %, sobre o mesmo trimestre do ano anterior)<br />

Previsão 4ºTrim<br />

4,0 350<br />

3,0<br />

2,0<br />

1,0<br />

0<br />

Empregos criados nos Estados Unidos<br />

(em milhares por mês)<br />

250<br />

150<br />

50<br />

0<br />

Cotação do dólar no Brasil ajustada à inflação 1<br />

(em reais)<br />

Jan<br />

Out<br />

2016 2017 2018 2019 2018 2019<br />

1994 2007 2019<br />

(1)<br />

Dólar Ptax do Banco Central. Ajustado ao IPCA Fontes: U.S. Bureau of Economic Analysis e Economatica.<br />

12<br />

8<br />

4<br />

0<br />

2,42 reais | 26/7/2011<br />

10,82 reais | 22/10/2002<br />

4,25 reais<br />

a economia mundial desacelera, e os países<br />

ricos da Europa Ocidental e o Japão<br />

continuam com um crescimento muito<br />

baixo, os Estados Unidos tornaram-se uma<br />

espécie de ilha de prosperidade. Para os<br />

investidores internacionais, que procuram<br />

um lugar seguro e com bons retornos,<br />

os Estados Unidos acabam por ser o<br />

destino mais natural para os investimentos.<br />

“Nas últimas semanas assistimos a<br />

um novo optimismo para com a economia<br />

norte-americana, depois da confirmação<br />

de que não estamos a caminhar<br />

rumo a uma recessão e de que o crescimento<br />

pode continuar. Isto tem levado<br />

ao reforço do dólar”, diz Gregory Daco,<br />

economista-chefe para os Estados Unidos<br />

da consultora britânica Oxford Economics.<br />

Daí que o dólar tenha valorizado<br />

não só em relação ao real, mas também<br />

a uma série de moedas pelo mundo fora.<br />

É um novo cenário que, segundo os especialistas,<br />

tende a estender-se. “Bem ou<br />

mal, neste mundo em desaceleração os<br />

Estados Unidos ainda têm um crescimento<br />

melhor. Pelo que o dólar ganha<br />

valor globalmente face a outras moedas e<br />

o real está no mesmo barco das que desvalorizam”,<br />

diz o economista Alexandre<br />

Schwartsman, ex-director de assuntos<br />

internacionais do Banco Central.<br />

Num ano em que o Presidente Trump<br />

vai disputar a reeleição, o dólar valorizado<br />

prejudica uma das suas principais<br />

promessas: reduzir o défice da balança<br />

comercial dos Estados Unidos. No Twitter,<br />

Trump tem aumentado as críticas ao<br />

presidente do Banco Central norte-americano,<br />

Jerome Powell, devido ao dólar<br />

valorizado. Contra Powell, Trump não<br />

pode fazer muito, além de tweetar. Já em<br />

relação ao Brasil... b<br />

64 | Exame Moçambique


abril <strong>2020</strong> | 65


GLOBAL DESPORTO<br />

FLAMENGO<br />

SEMPRE?<br />

Campeão brasileiro<br />

e vencedor da Taça<br />

Libertadores, o clube<br />

rubro-negro do Rio de Janeiro<br />

pode ser o primeiro bilionário<br />

do futebol brasileiro.<br />

A questão (para as outras<br />

equipas): haverá um domínio<br />

financeiro e desportivo do<br />

clube mais popular do Brasil<br />

nos próximos anos?<br />

LUCAS AMORIM<br />

Já deve ter ouvido falar no<br />

avançado Gabigol ou no técnico<br />

português Jorge Jesus.<br />

Os dois são os maiores nomes<br />

do Flamengo, campeão brasileiro<br />

de futebol com um recorde de pontos<br />

e também da Libertadores da América,<br />

principal torneio de futebol do continente.<br />

Jesus e Gabigol são símbolos do<br />

bem que a boa gestão pode fazer. Clube<br />

mais bem administrado do país e campeão<br />

em facturação e lucros, o Flamengo<br />

é também agora o melhor em campo.<br />

O capitalismo salvou o Flamengo. Agora<br />

falta salvar o futebol brasileiro. A guinada<br />

no Flamengo começou em 2013, quando<br />

uma equipa formada por executivos com<br />

experiência em grandes empresas assumiu<br />

a gestão do clube. A meta era reduzir<br />

a dívida, então a maior entre os clubes de<br />

futebol do país, acima dos 700 milhões<br />

de reais (cerca de 144 milhões de dólares),<br />

e impulsionar o marketing para fazer<br />

da equipa mais popular do Brasil a campeã<br />

em receitas.<br />

A receita passou de 273 milhões de reais<br />

(56 milhões de dólares), em 2013, para 652<br />

milhões (134 milhões de dólares), nos primeiros<br />

nove meses de 2019 — um valor<br />

que, alavancado pelos títulos, pode alcançar<br />

a emblemática marca de mil milhões<br />

de reais (mais de 200 milhões de dólares).<br />

Os sistemáticos prejuízos converteram-se<br />

num superavit acumulado de 630<br />

milhões de reais (perto de 130 milhões<br />

de dólares) no período, segundo dados<br />

de Amir Somoggi, sócio da consultora<br />

Sports Value, especializada em finanças<br />

do desporto. São números que farão<br />

o Flamengo fechar 2019 como a equipa<br />

que mais factura no Brasil, à frente do<br />

Palmeiras, que facturou 688 milhões de<br />

reais (142 milhões de dólares) em 2018.<br />

A distância para os maiores clubes europeus<br />

continua grande: Barcelona e Real<br />

Madrid facturam mais de 700 milhões<br />

de euros. Mas o Flamengo já está mais<br />

perto de clubes tradicionais na Europa,<br />

como o Atlético de Madrid e o Borussia<br />

Dortmund, que facturam na casa dos 300<br />

milhões de euros. O que falta para o Flamengo<br />

entrar de vez nesse grupo? Claudio<br />

Pracownik, presidente da corretora Genial<br />

Investimentos e presidente da comissão<br />

66 | Exame Moçambique


GABIBOL, ÍDOLO<br />

DO FLAMENGO: Mais de<br />

129 milhões de dólares<br />

de superavit desde 2013<br />

de finanças do clube, resume o dilema<br />

rubro-negro. “Para o Flamengo tornar-<br />

-se o Barcelona, o Vasco precisa tornar-<br />

-se o Real Madrid”, diz. É uma referência<br />

aos dois rivais espanhóis que disputam<br />

tanto os títulos dentro de campo quanto<br />

o troféu de mais rico do mundo. “Temos<br />

de trabalhar para melhorar o futebol brasileiro.<br />

Ninguém paga para ver um mau<br />

espectáculo”, afirma Pracownik. “E sem<br />

grandes espectáculos não vamos atrair<br />

os maiores jogadores da Europa.”<br />

Apesar de o Brasil ser o berço de alguns<br />

dos maiores jogadores em actividade, os<br />

20 clubes da primeira divisão facturaram,<br />

juntos, apenas mil milhões de euros em<br />

2018, face a 5,4 mil milhões de euros do<br />

campeonato inglês, 3,2 mil milhões do<br />

alemão e 3,1 mil milhões do espanhol.<br />

D.R.<br />

O Brasil tem um trunfo em relação às<br />

principais ligas europeias: a competitividade.<br />

Neste século, Palmeiras, Santos,<br />

Corinthians, São Paulo, Flamengo,<br />

Cruzeiro, Fluminense e Athletico Paranaense<br />

foram campeões, uma rotatividade<br />

sem precedentes entre os grandes<br />

torneios do mundo. O desafio agora —<br />

para as demais equipas — é evitar que o<br />

sucesso de Flamengo e Palmeiras, campeão<br />

em 2018, faça esses clubes descolarem<br />

da concorrência, algo que poderia<br />

fazer do Brasil uma combinação perigosa<br />

de baixo orçamento com baixa competitividade.<br />

Segundo um estudo da Sports Value, as<br />

receitas dos 20 principais clubes do país<br />

estão entre as mais bem distribuídas do<br />

mundo. Palmeiras e Flamengo facturam,<br />

em conjunto, o equivalente a 24% do total<br />

dos clubes da primeira divisão. Em Inglaterra,<br />

a parcela dos dois principais é de<br />

23%, o que faz com que o país tenha não<br />

só o campeonato mais rico como também<br />

o mais disputado da Europa. Manchester<br />

United, Manchester City, Chelsea, Arsenal<br />

e Leicester já foram campeões neste<br />

século e o Liverpool lidera actualmente<br />

o campeonato inglês. Em França, por sua<br />

vez, o Paris Saint-Germain, dono de um<br />

terço da receita, ganhou seis dos últimos<br />

sete campeonatos. Em Itália, a Juventus,<br />

com um quarto da receita, é octacampeã.<br />

O sucesso financeiro não garante bons<br />

resultados em campo. O Palmeiras, depois<br />

de ser campeão em 2018, afundou-se em<br />

problemas em 2019 e demitiu o técnico<br />

Mano Menezes e o director de futebol<br />

Alexandre Mattos no início de Dezembro<br />

do último ano. Em Inglaterra, o campeão<br />

de receitas, o Manchester United,<br />

não vence um campeonato desde 2012.<br />

O Arsenal, equipa mais rentável do país<br />

neste século, não ergue uma taça desde<br />

2003. Mas, quando uma boa gestão financeira<br />

consegue formar uma equipa acima<br />

da média, o campo pode retroalimentar<br />

as receitas, dando origem a um círculo<br />

virtuoso difícil de ser batido. Depois de<br />

contratar o técnico espanhol Josep Guardiola<br />

em 2013, por exemplo, o Bayern de<br />

Munique não voltou a perder o campeonato<br />

nacional e duplicou as receitas, para<br />

DE FORA PARA DENTRO<br />

A boa gestão financeira permitiu<br />

ao Flamengo investir mais em futebol<br />

Receita total (em milhões de reais)<br />

273<br />

2013<br />

Custo do Departamento de Futebol<br />

(em milhões de reais)<br />

180<br />

2013<br />

170 147 201 352 351 439<br />

Superavits<br />

(em milhões de reais)<br />

-20 64 130 153 159 46 75<br />

2013<br />

Dívida<br />

(em milhões de reais)<br />

757 698 579 461 335 470 567<br />

2013<br />

347<br />

Fontes: Sports Value.<br />

356<br />

510<br />

2016<br />

2016<br />

2016<br />

2016<br />

649 652<br />

543<br />

Set/2019<br />

Set/2019<br />

Set/2019<br />

Set/2019<br />

690 milhões de euros. É o sonho dos adeptos<br />

do Flamengo — mas não é necessariamente<br />

o melhor para o clube.<br />

Campeonatos que são vencidos sempre<br />

pela mesma equipa acabam por perder o<br />

interesse, não só por parte dos adeptos,<br />

mas também dos patrocinadores. A forma<br />

mais simples de impulsionar a competição<br />

é dividindo mais igualitariamente<br />

abril <strong>2020</strong> | 67


GLOBAL DESPORTO<br />

as receitas. As ligas norte-americanas de<br />

futebol americano, de basquete e de basebol<br />

são modelos globais. Os contratos de<br />

transmissão são negociados em conjunto<br />

e divididos igualitariamente, e todos as<br />

equipas recebem mesmo percentagens<br />

das vendas de produtos dos adversários<br />

em lojas oficiais. Os campeonatos ainda<br />

estabelecem limites de salários a serem<br />

pagos por uma mesma equipa e distribuem<br />

igualmente os direitos de contratação dos<br />

jovens universitários mais promissores.<br />

São artifícios que permitiram, por exemplo,<br />

à equipa canadiana Toronto Raptors<br />

ser campeã da última temporada da liga<br />

de basquetebol NBA pela primeira vez<br />

na História.<br />

Nos mais importantes campeonatos de<br />

futebol do mundo, a principal ferramenta<br />

para fomentar o equilíbrio são as negociações<br />

de direitos de transmissão. Para<br />

tentar quebrar o domínio do Real Madrid<br />

e Barcelona, a liga espanhola reformulou<br />

os seus critérios em 2015 mantendo fixa<br />

a parcela anual de 140 milhões de euros<br />

dos gigantes e elevando as parcelas dos clubes<br />

menores de 15 milhões de euros para<br />

60 milhões. Outra medida eficaz é a adopção,<br />

pela UEFA, entidade que rege o futebol<br />

europeu, de instrumentos de fair-play<br />

financeiro, limitando as despesas e dificultando<br />

a injecção artificial de dinheiro<br />

por grandes investidores. A adopção formal<br />

de um modelo empresarial, como o<br />

empregado pelo campeão da Série B do<br />

Campeonato Brasileiro, o Bragantino, e<br />

defendido por um projecto de lei do deputado<br />

Pedro Paulo (DEM-RJ), é apontada<br />

por especialistas em gestão como salutar,<br />

mas não obrigatória. Entre os maiores<br />

clubes do mundo, há os cotados em<br />

bolsa, como a italiana Juventus, mas há<br />

também os que são geridos à moda tradicional,<br />

como o Barcelona. O segredo está<br />

mais na gestão do que no modelo societário<br />

do clube.<br />

Independentemente do modelo, o futebol<br />

vive uma fase de ouro nas finanças.<br />

O Manchester City, actual campeão<br />

inglês, vendeu, no final de Novembro de<br />

2019, pouco mais de 10% das suas acções<br />

ao fundo de investimento norte-americano<br />

Silver Lake, um negócio que avaliou<br />

o clube em 4,8 mil milhões de dólares.<br />

É um valor recorde na história do desporto.<br />

Em 2008, o City foi comprado<br />

por um fundo de investimento ligado<br />

ao xeque Mansour bin Zayed al Nahyan,<br />

de Abu Dhabi, por cerca de 300 milhões<br />

de dólares. Desde então, a receita aumentou<br />

seis vezes, para 500 milhões de libras.<br />

O clube ainda gastou quase 1,5 mil milhões<br />

de libras em contratações e conseguiu quatro<br />

títulos ingleses. Na sua investida para<br />

ganhar a Libertadores, o Flamengo impulsionou<br />

as despesas com o futebol — de 180<br />

milhões de reais (37 milhões de dólares),<br />

em 2013, para 351 milhões (72 milhões de<br />

dólares), em 2019. Ser campeão fica caro. b<br />

GETTY<br />

AL NAHYAN, DONO<br />

DO MANCHESTER CITY:<br />

O clube inglês valorizou<br />

16 vezes em onze anos<br />

68 | Exame Moçambique


abril <strong>2020</strong> | 69


TECNOLOGIA STREAMING<br />

MÚSICA:<br />

O DIGITAL<br />

DÁ LUCRO<br />

Pela primeira vez os serviços de streaming de música<br />

terá alcançado mil milhões de ouvintes em todo o mundo.<br />

E o seu crescimento deve fazer a indústria fonográfica<br />

duplicar de tamanho na próxima década. É uma viragem<br />

e tanto num sector que se encontrava em declínio<br />

LUCAS AGRELA<br />

ESCRITÓRIO<br />

DO SPOTIFY,<br />

NA SUÉCIA: Os serviços<br />

de streaming já representam<br />

quase metade da facturação<br />

do mercado da música<br />

No final do último milénio<br />

a imagem da indústria da<br />

música era a de um mercado<br />

em decadência. As vendas<br />

de álbuns — o pilar do seu<br />

modelo de negócios — perderam sentido<br />

depois do surgimento da música digital,<br />

distribuída e partilhada pela Internet (muitas<br />

vezes ilegalmente). Na época, poucos<br />

investidores de consciência sã colocariam<br />

as suas fichas neste segmento apostando<br />

numa recuperação. Passados mais<br />

de dez anos, o que se vê é exactamente o<br />

oposto. A receita da indústria fonográfica<br />

não apenas parou de diminuir como<br />

tem vindo a aumentar a um ritmo que<br />

não se via há muito tempo. No ano passado,<br />

as vendas globais do sector somaram<br />

19 mil milhões de dólares — quase<br />

10% mais do que em 2017 — e a tendência<br />

é para aumentarem. Até os analistas<br />

do mercado mudaram de ideias. Em 2019,<br />

o banco Goldman Sachs reviu a sua previsão<br />

e agora estima que a indústria musical<br />

terá uma facturação de 45 mil milhões<br />

de dólares em 2030, mais do dobro da que<br />

regista actualmente.<br />

A viragem é puxada pelo crescimento<br />

das aplicações de música por streaming,<br />

que oferecem um amplo acervo pelo preço<br />

de um único álbum por mês. Enquanto as<br />

vendas de CD continuaram a cair, a facturação<br />

com os serviços de streaming explodiu<br />

nos últimos anos e atingiu os 9 mil<br />

milhões de dólares em 2018, quase metade<br />

do total. Segundo um estudo recente da<br />

consultora de mercado alemã Statista,<br />

em 2019, pela primeira vez, o mercado<br />

de streaming de música terá alcançado<br />

mil milhões de ouvintes, entre assinantes<br />

e pessoas que acedem aos seus serviços<br />

gratuitamente. É um marco para um<br />

sector que vendeu uns míseros 52 milhões<br />

de CD em 2018 nos Estados Unidos, 94%<br />

menos do que os 943 milhões comercializados<br />

em 2000, segundo a associação<br />

americana que representa o sector, a Riaa.<br />

Fundada em 2008, a empresa sueca<br />

Spotify é o grande expoente e líder entre<br />

os serviços de música. Está presente em<br />

79 países e parte do segredo do seu sucesso<br />

é o modelo de negócios, que mistura<br />

assinaturas que permitem fazer o download<br />

e aceder a um acervo de mais de<br />

50 milhões de músicas, e receitas com<br />

publicidade, veiculada para os ouvintes<br />

que preferem não pagar. Os planos custam<br />

70 | Exame Moçambique


D.R.<br />

A DIGITALIZAÇÃO DÁ O TOM<br />

Em 2019, o mercado de transmissão de música<br />

via Internet chegará aos mil milhões de ouvintes<br />

no mundo<br />

Ouvintes de serviços de música on-line no mundo<br />

(em mil milhões)<br />

2017 0,9<br />

2018<br />

0,96<br />

2019<br />

1,02<br />

<strong>2020</strong><br />

1,07 (1)<br />

2021<br />

1,11 (1)<br />

2022<br />

1,14 (1)<br />

2023<br />

1,16 (1)<br />

A receita global da indústria da música gravada<br />

provinha de media física, mas o streaming de<br />

música assumiu a liderança do sector em 2017<br />

Facturação global da indústria fonográfica<br />

(em mil milhões de dólares)<br />

Media Física<br />

Streaming de Música Música Digital (2)<br />

Direitos autorais espéctaculos<br />

Outros<br />

25<br />

20<br />

15<br />

10<br />

5<br />

2001 2018<br />

0,4<br />

2,7<br />

2,3<br />

9<br />

4,7<br />

(1)<br />

Previsão (2) Excluindo streaming.<br />

Fontes: Statista e IFPI.<br />

cerca de 4 dólares. A empresa não pára<br />

de crescer. No terceiro trimestre de 2019,<br />

o número global de utilizadores atingiu<br />

os 248 milhões, 30% mais do que um ano<br />

antes. Dessa base, 113 milhões são assinantes<br />

— pouco menos do que os 158<br />

milhões de clientes do serviço de vídeos<br />

da Netfix. Os resultados financeiros do<br />

Spotify acompanharam a multiplicação<br />

dos ouvintes. A facturação foi de 1,9 mil<br />

milhões de dólares no terceiro trimestre,<br />

um aumento anual de 28%. O lucro também<br />

for maior, atingindo os 490 milhões<br />

no trimestre.<br />

Grandes empresas tecnológicas não<br />

perdem de vista uma fatia do bilionário<br />

mercado da música. A Amazon e a Apple<br />

têm aplicações de música on-line. O Apple<br />

Music foi lançado em 2015 e tem 60 milhões<br />

de utilizadores graças à força da marca<br />

e do mais de mil milhões de iPhones utilizados<br />

no mundo. Já a Amazon oferece<br />

acesso ao Amazon Music aos clientes do<br />

programa de fidelidade, o Prime. O plano<br />

de benefícios também inclui um serviço<br />

de vídeo e vantagens como entrega grátis.<br />

O acervo da Amazon é pequeno face<br />

às rivais, com 2 milhões de músicas. Por<br />

isso, a empresa tem uma segunda app,<br />

mais cara, com uma biblioteca musical<br />

parecida com a do Spotify. Para Matteo<br />

Ceurvels, analista de pesquisa da consultora<br />

eMarketer para a América Latina,<br />

o crescimento das aplicações de música<br />

acompanha a tendência dos serviços de<br />

vídeo, puxada pela Netflix. “Com o surgimento<br />

de grandes plataformas, como<br />

o Spotify, as empresas digitalizaram um<br />

amplo acervo e recomendam músicas que<br />

o utilizador tem boas hipóteses de gostar<br />

de ouvir. Vivemos hoje uma ascensão<br />

do mercado da música via Internet”,<br />

diz Ceurvels.<br />

DIRECTO AO REFRÃO<br />

A preponderância do streaming no sector<br />

musical causou impacto até na forma<br />

de compor as canções: estas têm ficado<br />

mais curtas. Cada vez que alguém ouve<br />

uma música, é gerado um valor pequeno,<br />

inferior a 1 centavo de dólar, para gravadoras<br />

e artistas. Uma música precisa de<br />

milhões de reproduções para ser lucrativa.<br />

Por isso, as músicas pop perderam<br />

as introduções longas.<br />

A banda irlandesa U2 adaptou-se ao<br />

novo modelo. Na música Where Streets<br />

abril <strong>2020</strong> | 71


TECNOLOGIA STREAMING<br />

HANS-HOLGER ALBRECHT:<br />

Lidera o maior concorrente<br />

do Spotify<br />

O executivo alemão Hans-Holger<br />

Albrecht é presidente mundial da<br />

francesa Deezer, que rivaliza com o<br />

Spotify. Com 56 milhões de músicas,<br />

a Deezer aposta em parcerias e artistas<br />

locais para crescer.<br />

Como é que as aplicações<br />

mudaram<br />

a música nos últimos anos?<br />

Foram uma das maiores revoluções<br />

do mercado. O sector voltou a crescer<br />

por sua causa. Para o consumidor,<br />

a experiência de ouvir música<br />

tornou-se mais personalizada.<br />

Qual foi o impacto das aplicações<br />

na pirataria?<br />

As aplicações surgiram das ruínas<br />

da indústria, abalada pela pirataria.<br />

Ajudaram a formalizar alguns mercados.<br />

A Suécia tinha altos índices<br />

de pirataria. Hoje tem um grande<br />

número de assinantes.<br />

D.R.<br />

UMA SAÍDA<br />

CONTRA A<br />

PIRATARIA<br />

Para o presidente da<br />

francesa Deezer, os serviços<br />

de streaming ajudaram a<br />

combater a partilha ilegal<br />

de música na Internet<br />

Porque assistimos a um aumento<br />

de interesse por podcasts?<br />

A qualidade das produções aumentou<br />

com o investimento das empresas<br />

de streaming de música. Hoje<br />

há mais espaço para os podcasts.<br />

No último ano, no Brasil, o consumo<br />

aumentou 67% na Deezer.<br />

Qual é a estratégia de expansão<br />

global da Deezer?<br />

Oferecer músicas locais. No Brasil,<br />

somos fortes com o sertanejo. Organizamos<br />

eventos e temos ainda um<br />

sistema de pagamento diferenciado<br />

para os artistas regionais. Se alguém<br />

ouve música sertaneja o dia todo em<br />

São Paulo, o dinheiro gerado [por<br />

esse assinante] vai para esses artistas.<br />

Como é feita a partição da receita<br />

com as gravadoras?<br />

Antes, pagávamos 100% da receita<br />

gerada pela reprodução de músicas.<br />

Em 2017 esse valor diminuiu para<br />

os 80%. Actualmente, está entre os<br />

60% e os 70%.<br />

Qual é o grau de importância do<br />

Brasil<br />

na estratégia da Deezer?<br />

O país está entre os três maiores mercados.<br />

Temos uma parceria de gratuidade<br />

com a operadora TIM que é<br />

Have no Name, de 1987, o vocalista Bono<br />

Vox só começa a cantar perto dos 2 minutos,<br />

entre os quase 6 de duração. Numa<br />

música deste ano dos U2, Ahimsa, com<br />

menos de 4 minutos, a introdução tem<br />

pouco mais de 10 segundos. Segundo a<br />

Associação Americana de Editores Musicais,<br />

13% do valor das reproduções de<br />

uma canção vai para o bolso do artista.<br />

Em busca de diferenciação, a francesa<br />

Deezer, uma das maiores rivais do Spotify,<br />

segue um modelo de pagamento<br />

que contempla os artistas que não têm<br />

milhões de reproduções. “Se alguém<br />

ouve música sertaneja o dia todo em São<br />

Paulo, o dinheiro gerado [por esse assinante]<br />

vai para esses artistas”, explica o<br />

executivo alemão Hans-Holger Albrecht,<br />

presidente mundial da Deezer (entrevista<br />

ao lado). Noutras plataformas, o dinheiro<br />

das assinaturas é somado, para depois<br />

ser dividido entre os artistas de todo o<br />

mundo com base no número de reproduções.<br />

O Brasil não tem empresas relevantes<br />

no mercado global de streaming<br />

de música. A de maior renome é a gaúcha<br />

Superplayer, que oferece um serviço<br />

baseado em listas temáticas. Para Robson<br />

Del Fiol, sócio da consultora KPMG,<br />

as empresas que saíram à frente no mercado<br />

global têm grande vantagem. “É um<br />

mercado consolidado e dominado pelas<br />

plataformas estrangeiras, já têm grandes<br />

bases de utilizadores e dificilmente<br />

serão vencidas por startups”, diz Del Fiol.<br />

Para ele, até o Google tem dificuldade em<br />

fazer crescer o serviço YouTube Music,<br />

que tem 15 milhões de assinantes, uma<br />

vez que as pessoas preferem ouvir músicas<br />

nos vídeos do YouTube, de graça.<br />

No novo cenário da indústria da música,<br />

o papel das aplicações é posicionarem-<br />

-se como emissoras de rádio particulares<br />

para cada utilizador, tarefa que só<br />

pode ser realizada com a ajuda da tecnologia.<br />

“Quem conseguir entender o comportamento<br />

do consumidor e oferecer as<br />

melhores experiências vai diferenciar-se”,<br />

diz Clarissa Gaiatto, directora de transformação<br />

digital da consultora Deloitte.<br />

Na música, a media física tornou-se um<br />

nicho, e a receita, agora, vem das aplicações,<br />

cada vez mais personalizadas.b<br />

72 | Exame Moçambique


abril <strong>2020</strong> | 73


TECNOLOGIA SAÚDE<br />

MAIS DIGITAL<br />

PARA SER MAIS<br />

SAUDÁVEL<br />

A tecnologia oferece sofisticação na atenção à saúde<br />

dos mais idosos, cuja quota na população aumenta.<br />

O bem-estar prometido foi, súbita e ironicamente, abalado<br />

por um vírus desconhecido que derruba os mais velhos<br />

A<br />

população mundial nunca<br />

envelheceu tão rapidamente<br />

quanto hoje. De acordo com<br />

a Organização das Nações<br />

Unidas, a percentagem de<br />

pessoas com 65 anos será de uma para cada<br />

seis em 2050. Actualmente, é de uma para<br />

cada 11. Esta faixa etária está na mira das<br />

empresas de tecnologia, um público que<br />

procura manter-se saudável mesmo com o<br />

avanço da idade. A americana Apple transformou<br />

o relógio Apple Watch numa verdadeira<br />

central de saúde. Emite alertas em<br />

caso de queda de idosos, monitoriza exercícios<br />

físicos e oferece recursos para caminhada,<br />

como uma bússola independente do<br />

iPhone. A sul-coreana Samsung, por sua vez,<br />

conta com o relógio Galaxy Watch, compatível<br />

com telemóveis do sistema Android<br />

e com iPhones. Pode monitorizar actividades<br />

físicas e a movimentação do utilizador<br />

durante o sono. Neste novo contexto,<br />

aumenta a preocupação com a pele, e aparelhos<br />

conectados, como o Foreo UFO Mini,<br />

destacam-se. “Nos próximos cinco anos, estimamos<br />

que os dispositivos inteligentes de<br />

saúde serão cada vez mais utilizados. Assim,<br />

caminharemos para um serviço de saúde<br />

conectado”, afirma Mike Jones, analista e<br />

vice-presidente da consultora Gartner. b<br />

GALAXY WATCH<br />

O Galaxy Watch, da Samsung, é um relógio<br />

inteligente compatível com telemóveis<br />

do sistema Android e com iPhones. Permite<br />

monitorizar exercícios físicos, mostra<br />

notificações de aplicações, mede a qualidade<br />

do sono e é resistente à água.<br />

APPLE WATCH SERIES 5<br />

A nova versão do Apple Watch<br />

é uma central de saúde de pulso.<br />

Detecta o nível de ruído do<br />

ambiente, monitoriza os batimentos<br />

cardíacos e estima as calorias<br />

gastas com exercício físico. Tem<br />

um sistema de alerta de queda para<br />

os idosos, que acciona, sozinho,<br />

um contacto de emergência.<br />

74 | Exame Moçambique


FOREO UFO MINI<br />

O Foreo UFO Mini é um aplicador de máscara facial<br />

que tem uma aplicação para ajudar o utilizador<br />

a fazer o procedimento correctamente. Requer<br />

máscaras especiais, para de dia ou de noite, que<br />

são aplicadas em apenas 90 segundos.<br />

NIKE ZOOM<br />

O Nike Zoom pegasus Turbo Shield foi projectado para<br />

ser leve e confortável. Ao mesmo tempo, conta com<br />

um design resistente a diferentes situações climáticas.<br />

A sola de borracha melhora a aderência. Daí ser possível<br />

correr ou caminhar mesmo em meses chuvosos.<br />

BPM CONNECT<br />

O BPM Connect, da Nokia,<br />

é um dispositivo que mede<br />

a pressão arterial e reúne os<br />

dados numa aplicação para<br />

smartphone, facilitando a<br />

visualização dos resultados<br />

e o histórico da pressão da<br />

pessoa. Durante a medição,<br />

uma luz verde indica se<br />

a pressão está boa.<br />

THE DEWY SKIN CREAM<br />

O creme à base de arroz The Dewy Skin Cream,<br />

da japonesa Tatcha, tem efeito antioxidante<br />

e hidratante para a pele. Em alta em países como<br />

os Estados Unidos, este tipo de produto atraiu<br />

a atenção do gigante Unilever, que comprou<br />

a Tatcha por 500 milhões de dólares em 2019.<br />

abril <strong>2020</strong> | 75


BAZARKETING<br />

THIAGO FONSECA<br />

Sócio e director de Criação da Agência GOLO.<br />

PCA Grupo LOCAL de Comunicação SGPS, Lda<br />

UM ANÚNCIO<br />

PARA TODAS<br />

AS MARCAS<br />

Numa situação normal, são as<br />

marcas, as empresas, que fazem<br />

anúncios para o público. Mas este<br />

não é um momento normal. É o<br />

momento de o público fazer um<br />

anúncio para as marcas. Um briefing<br />

invertido: o que as empresas devem<br />

fazer durante esta crise. Esse briefing<br />

parece óbvio: as marcas devem comunicar<br />

as mensagens relevantes. Porque<br />

neste momento não se aplica a lógica das<br />

vendas. É um momento mais do que especial.<br />

E as marcas que entenderem isso<br />

mais rapidamente serão as que também<br />

se tornarão especiais.<br />

Sempre acreditei que o trabalho de<br />

brand building não é publicidade. É construção<br />

de percepções. E isso faz-se a médio<br />

e longo prazo. Diz-se na gíria popular<br />

que é fácil ter amigos quando tudo está<br />

bem. Mas a verdadeira amizade é testada<br />

quando há dificuldades.<br />

MARCAS VIVEM DE RELAÇÕES<br />

Como é que as marcas se devem relacionar<br />

connosco agora?<br />

A crise económica global, que já chegou<br />

devido à pandemia do novo coronavírus,<br />

é real. E já está a colocar todas as<br />

empresas, sem excepção, à prova.<br />

O que fazer? Reagir à situação imediata<br />

olhando apenas para o impacto nas<br />

vendas, ou olhar a médio prazo e ver<br />

para lá da crise?<br />

A atitude e o comportamento que as<br />

empresas tiverem agora vai ditar o futuro<br />

das suas marcas. As marcas devem<br />

vender mais do que produtos ou bens.<br />

Mais do que vender bem, devem vender<br />

o bem.<br />

São essas as marcas que sempre se tornaram<br />

as favoritas dos consumidores —<br />

as que conseguem criar laços emocionais<br />

mais fortes e ter um propósito maior.<br />

Neste momento, é preciso uma grande<br />

capacidade de adaptação rápida para<br />

ajustar, mudar as mensagens pelo bem<br />

comum.<br />

A essência do marketing é a comunicação.<br />

As marcas fazem parte do nosso<br />

dia-a-dia, não apenas nas prateleiras das<br />

lojas mas nas nossas vidas. Falam connosco<br />

desde que acordamos até irmos<br />

dormir.<br />

As marcas estão na rádio, nos jornais,<br />

nos outdoors, nas redes sociais, nos bill-<br />

76 | Exame Moçambique


oards, na televisão, em todo o lado. Estão<br />

sempre presentes. É o momento de<br />

essa presença ser usada para dar algo em<br />

troca à sociedade.<br />

A comunicação deve mudar para mensagens<br />

de prevenção em primeiro lugar.<br />

E, dependendo de quanto tempo durar<br />

este período, também devem fazer o que<br />

MAIS DO QUE VENDER<br />

BEM, AS MARCAS<br />

DEVEM VENDER O BEM<br />

sempre fizeram, vender o optimismo<br />

através dos conteúdos que têm de ser<br />

criados.<br />

Vai ser colocado a teste o futuro das<br />

empresas que afinal só estavam presentes<br />

com o único propósito de vender.<br />

As marcas mais fortes do mundo têm um<br />

propósito maior.<br />

As empresas de sucesso terão de se<br />

adaptar. Manter-se presentes nas nossas<br />

vidas de outras formas.<br />

Mais do que nunca, esta é a altura de<br />

investir.<br />

As marcas que irão crescer após a<br />

COVID-19 serão as que perceberem<br />

que este é um momento único e que vai<br />

transformar o mundo. E é por esse motivo<br />

que devem transformar a crise numa<br />

oportunidade para revelarem o seu propósito<br />

e aproximarem-se dos consumidores.<br />

Porque, afinal, os consumidores<br />

são pessoas. Seres humanos.<br />

A IMPORTÂNCIA DA COMUNICAÇÃO<br />

É tempo de investir. De usar o poder da<br />

comunicação para veicular mensagens<br />

adaptadas ao momento que estamos a<br />

enfrentar.<br />

Esta não é a altura de competirmos<br />

uns com os outros mas de ganharmos<br />

esta guerra.<br />

E, por isso, partilho, com a devida<br />

autorização, um texto de um escritor<br />

moçambicano que também é um amigo<br />

muito especial:<br />

“As grandes marcas não são as que<br />

vendem mais. São aquelas que são as<br />

mais relevantes. E a relevância vem de<br />

várias formas. Inspirem-nos e mostrem-<br />

-nos do que são capazes. Precisamos<br />

como sociedade das vossas melhores<br />

ideias e, acreditem, saberemos como vos<br />

retribuir financeiramente, quando a tormenta<br />

passar. Depois da privação, virá<br />

uma poderosa e descontrolada onda de<br />

consumo.<br />

O público saberá reconhecer quem esteve<br />

ao seu lado quando a tormenta tiver<br />

passado e for hora de matar a sede de<br />

consumo.<br />

As crises fazem parte da vida. Aprendam<br />

também vocês a fazerem parte da<br />

nossa.”<br />

As empresas que mantiverem o seu<br />

investimento em comunicação com as<br />

mensagens certas durante tempos difíceis<br />

são as que se tornam mais fortes e<br />

lucrativas. Foi a História que nos ensinou<br />

isso.<br />

Esta não é a primeira crise do mundo.<br />

Uma coisa é certa: esta crise, como<br />

qualquer outra, vai acabar.<br />

Não deixe que ela acabe com a sua<br />

marca. b<br />

abril <strong>2020</strong> | 77


MARKETING ARTE<br />

UMA JULIETA<br />

FEMINISTA<br />

IVAN PADILLA, EM VERONA<br />

A ACTRIZ TRANS INDYA<br />

MOORE: Depoimento<br />

sobre a diversidade de<br />

raça e género no filme<br />

do calendário<br />

A visão contemporânea da personagem de William<br />

Shakespeare é o tema do Calendário Pirelli de <strong>2020</strong><br />

Na trama de William Shakespeare,<br />

Julieta, a mais romântica<br />

das personagens da<br />

literatura, começa a sua trajectória<br />

como uma adolescente<br />

ingénua e termina como uma mulher<br />

independente, corajosa, que desafia convenções<br />

e morre por convicções. Este foi<br />

o tema escolhido pelo fotógrafo italiano<br />

Paolo Roversi para o Calendário Pirelli<br />

de <strong>2020</strong>. “Quis retratar a procura de um<br />

ideal, de um sonho”, explica Roversi na<br />

entrevista concedida no Teatro Filarmónico<br />

de Verona, durante o lançamento do<br />

anuário, no início de Dezembro. “Julieta<br />

é uma mulher que junta a fragilidade à<br />

força, e timidez à rebeldia.”<br />

O nome do calendário é “À Procura de<br />

Julieta”. E Roversi, fotógrafo reconhecido<br />

pelas campanhas publicitárias de moda,<br />

procurou a sua Julieta em cada uma das<br />

nove artistas convidadas, de diferentes<br />

perfis e nacionalidades, a participar.<br />

HOJE<br />

JULIETA<br />

SERIA FEMINISTA<br />

A fragilidade está mais presente no olhar<br />

e no gesto da actriz britânica Claire Foy.<br />

A cantora chinesa Chris Lee, a actriz britânica<br />

Mia Goth e a actriz italiana Stella<br />

Roversi, filha de Paolo, parecem mais contemplativas.<br />

A cantora espanhola Rosalía<br />

e a actriz americana Emma Thompson<br />

interpretam uma Julieta mais sensual.<br />

E a força está na atitude das actrizes americanas<br />

Kristen Stewart, Yara Shahidi<br />

e Indya Moore.<br />

“Acho que sim, Julieta seria feminista<br />

hoje”, responde Yara à pergunta na conferência<br />

de imprensa do lançamento do<br />

calendário. “O feminismo é uma expressão<br />

individual, e essa é a beleza do feminismo.<br />

Cada mulher é uma. E cada uma<br />

de nós interpretou a sua Julieta.” Com 19<br />

anos, Yara é conhecida pela actuação na<br />

série Black-Ish e pelo activismo a favor da<br />

diversidade e da educação das mulheres.<br />

Quando questionada sobre o significado<br />

do amor para a sua geração, afirma: “Acho<br />

78 | Exame Moçambique


interessante ver como o poder do sentimento<br />

muda à medida que crescemos,<br />

passa de platónico a outros níveis. Os conceitos<br />

estão a redefinir-se, falamos hoje<br />

de identidade e fluidez no género, o amor<br />

está a transformar-se com isso. Vamos ver<br />

como lidaremos com a mudança.”<br />

A Pirelli conseguiu realizar um caso<br />

de marketing ao transformar uma folhinha<br />

de borracharia em obra de arte, com<br />

uma tiragem limitada — este ano foram<br />

impressos 12 mil exemplares, distribuídos<br />

apenas aos convidados. Lançado em<br />

1964, o anuário só deixou de ser publicado<br />

A PIRELLI REALIZOU<br />

UM CASO<br />

DE MARKETING<br />

de 1975 a 1983 devido à crise do petróleo.<br />

Os melhores fotógrafos do mundo são<br />

convidados a encabeçarem o projecto e<br />

têm liberdade na escolha do tema e das<br />

personagens. Apesar de a Pirelli ser uma<br />

empresa fundada em Milão, Roversi, nascido<br />

em Ravena, é o primeiro fotógrafo<br />

italiano a fotografar o calendário.<br />

Até há pouco tempo, a sensualidade<br />

dava o tom dos retratos. Nos últimos<br />

cinco anos, os temas passaram a variar.<br />

Este ano ocorreram outras duas mudanças.<br />

A primeira foi o formato. Em vez de<br />

uma folhinha para pendurar na parede,<br />

o calendário inspirou-se nos libretos de<br />

ópera — Roversi é um apaixonado por<br />

música lírica. A versão deste ano tem 132<br />

páginas, com trechos de Romeu e Julieta<br />

e 58 fotografias a cores e a preto e branco<br />

das nove artistas. A segunda novidade é<br />

que, juntamente com a versão impressa,<br />

foi lançada uma curta-metragem de 18<br />

minutos. As convidadas dão depoimentos<br />

sobre a construção da personagem<br />

para o ensaio e aparecem a posar, declamar<br />

e cantar durante as sessões de fotos.<br />

Especialmente comovente no filme é a<br />

fala da actriz Indya Moore: “Eu sou negra<br />

e sou trans. Eu sou negra de pele clara,<br />

e muita gente acha isso bonito. Eu acho<br />

bonita a pele escura. Da mesma forma, sou<br />

uma trans que não parece trans, e para<br />

CLAIRE FOY: Depoimentos<br />

sobre o amor não idealizado<br />

abril <strong>2020</strong> | 79


MARKETING ARTE<br />

A actriz norte-americana Emma Watson<br />

interpreta uma Julieta mais sensual<br />

algumas pessoas isso é ser bonito. Esse<br />

não é meu tipo de beleza.” A atriz Claire<br />

Foy, a rainha Elizabeth nas duas primeiras<br />

temporadas da série The Crown, discorre<br />

com extrema sinceridade sobre as<br />

suas decepções amorosas. “Quando era<br />

menina, tive um amor não correspondido,<br />

e isso transformou-se num hábito”, diz.<br />

A primeira experiência “foi um desastre<br />

e uma tragédia, e destroçou-me o coração.”<br />

E conclui: “Acho que tenho muitas<br />

cicatrizes para me entregar por completo.”<br />

O lançamento do Calendário Pirelli<br />

encerra sempre com uma festa black tie.<br />

Desta feita, o evento aconteceu no Giardino<br />

Giusti, um belíssimo jardim renascentista<br />

de Verona cercado por ciprestes.<br />

Na pista de dança, em contraste com o<br />

supostamente triste depoimento no documentário,<br />

Claire Foy era uma das mais<br />

animadas. Ficou até ao fim do evento<br />

com um grupo de amigas. No trabalho<br />

de Roversi com as nove actrizes e cantoras,<br />

nem Romeu faltou. Kristen Stewart<br />

aparece no filme a recitar discursos<br />

tanto de Julieta como do jovem Montecchio.<br />

“Jamais faria um papel que não estivesse<br />

escondido em algum lugar dentro<br />

de mim”, diz Kristen. “Nunca poderia<br />

encenar alguém que não fosse eu, porque<br />

tal seria uma mentira.” b<br />

A cantora chinesa Chris Lee<br />

80 | Exame Moçambique


abril <strong>2020</strong> | 81


MUNDO<br />

PLANO<br />

GABRIELA RUIC<br />

PORTO DE LOS ANGELES,<br />

NOS ESTADOS UNIDOS: O comércio<br />

dos países do G20 recuou e caminha para<br />

atingir o pior desempenho desde 2017<br />

D.R.<br />

ECONOMIA MUNDIAL<br />

MAIS UMA QUEDA NO COMÉRCIO GLOBAL<br />

O ano de 2019 foi mau para as transacções<br />

comerciais dos países do G20, que reúne<br />

as vinte maiores economias do mundo.<br />

No seu último relatório do ano sobre o<br />

comércio exterior, a Organização para a<br />

Cooperação e Desenvolvimento Económico<br />

(OCDE) ressalta que a troca de mercadorias<br />

dos países do G20 registou o terceiro<br />

trimestre consecutivo de queda. As exportações<br />

recuaram 0,7%, e as importações<br />

0,9%. A fragilidade atingiu todas as regiões,<br />

mas a retracção no terceiro trimestre foi<br />

maior na União Europeia, onde as exportações<br />

caíram 1,8% e as importações 0,4%.<br />

O fraco desempenho do bloco foi puxado<br />

pelo recuo da actividade comercial nas três<br />

maiores economias europeias: Alemanha,<br />

França e Itália. O mais recente acordo entre<br />

os Estados Unidos e a China, que reduziu<br />

parte das tarifas sobre os produtos chineses<br />

e evitou a imposição de novas barreiras<br />

entre os dois países, deverá aliviar a situação<br />

em <strong>2020</strong>. Mas a OCDE alerta que, se<br />

no quarto trimestre de 2019 for registada<br />

a quarta queda, o comércio do G20 atingirá<br />

o nível mais baixo desde 2017.<br />

O comércio teve variação negativa até ao<br />

terceiro trimestre de 2019 no bloco G20<br />

Variação trimestral do comércio Exportações<br />

nos países do G20 (em %)<br />

8<br />

6<br />

4<br />

2<br />

0<br />

-2<br />

-4<br />

-6<br />

-8<br />

-10<br />

Fonte: OCDE.<br />

Exportações<br />

Importações<br />

2012 2015 2019<br />

82 | Exame Moçambique


CHINA<br />

BEM-VISTA NA AMÉRICA<br />

LATINA<br />

A maioria da população nos principais países<br />

da América Latina avalia que os laços<br />

com a economia chinesa são positivos<br />

para os interesses locais. O resultado faz<br />

parte de um estudo do instituto americano<br />

Pew Research Center, que aferiu a opinião<br />

do público sobre a China em diversos países.<br />

Já entre os vizinhos da Ásia há mais<br />

desconfiança quanto à crescente influência<br />

chinesa.<br />

Nos emergentes, a maioria da população<br />

considera positiva a influência da China<br />

na economia<br />

Como as pessoas vêem a relação económica<br />

com a China (em %)<br />

Boa<br />

México<br />

África do Sul<br />

Argentina<br />

Brasil<br />

Turquia<br />

Japão<br />

Índia<br />

Coreia do Sul<br />

Má<br />

Fonte: Pew Research Center.<br />

76%<br />

15%<br />

70%<br />

23%<br />

66%<br />

17%<br />

58%<br />

22%<br />

49%<br />

33%<br />

43%<br />

51%<br />

39%<br />

41%<br />

32%<br />

66%<br />

BOLSONARO E TRUMP:<br />

O enfraquecimento<br />

das instituições no<br />

mundo é preocupante<br />

POLÍTICA<br />

DEMOCRACIA ENFRAQUECE NO MUNDO<br />

Ameaçada pela ascensão de governos<br />

nacionalistas apoiados por milhões de<br />

eleitores, a democracia não vive um<br />

bom momento no mundo. Devido a<br />

isso, um número maior de países está<br />

a passar por um processo de “autocratização”,<br />

quando se verifica o enfraquecimento<br />

das instituições que<br />

sustentam a democracia e limitam o<br />

poder dos governos. Pela primeira vez<br />

em quarenta anos, o número de países<br />

em processo de autocratização é<br />

maior do que o de países que estão<br />

a democratizar-se: 24 contra 21. Em<br />

2016, 415 milhões de pessoas viviam<br />

em nações em processo de autocratização.<br />

Actualmente o número é de 2,3<br />

mil milhões. Os dados são retirados de<br />

um estudo recente da Universidade de<br />

Gotemburgo, na Suécia. Os investigadores<br />

consideram que países populosos,<br />

como a Índia, os Estados Unidos e<br />

o Brasil, figuram agora no grupo das<br />

nações em “autocratização”. Por outro<br />

lado, o estudo salienta que, embora<br />

combalida, a democracia continua a<br />

ser o regime político mais difundido,<br />

presente em 99 países.<br />

Pela primeira vez em quarenta anos, há menos países a tornarem-se democracias do que<br />

autocracias<br />

Número de nações em processo de democratização ou autocratização (ano a ano)<br />

Países em democratização<br />

Países em autocratização<br />

REUTERS<br />

CHINA: Boa avaliação na América<br />

Latina e desconfiança na Ásia<br />

D.R.<br />

75<br />

70<br />

65<br />

60<br />

55<br />

50<br />

45<br />

40<br />

35<br />

30<br />

25<br />

20<br />

15<br />

10<br />

5<br />

0<br />

1972 1980 1990 2000 2010 2018<br />

Fonte: Universidade de Gotemburgo.<br />

abril <strong>2020</strong> | 83


GESTÃO ENTREVISTA<br />

“O MAIOR RISCO<br />

É A INCERTEZA”<br />

Para o presidente mundial do grupo de logística DHL, Frank Appel, gerir uma empresa<br />

num cenário de instabilidade exige manter-se atento aos resultados e às estratégias<br />

de longo prazo<br />

RODRIGO CAETANO<br />

Aos primeiros sinais da guerra<br />

comercial entre os Estados<br />

Unidos e a China, os analistas<br />

passaram a monitorizar<br />

de perto indicadores dos<br />

seus impactos na economia. Para abastecer<br />

a procura por informação, em Janeiro<br />

de 2018 o grupo alemão de logística DHL<br />

lançou o Barómetro do Comércio Global,<br />

um índice baseado em dados da própria<br />

operação, a maior do mundo em segmentos<br />

como o de entrega expressa. Até<br />

Novembro, o índice acumulava uma série<br />

consecutiva de quedas ao longo do ano.<br />

Com 500 mil funcionários distribuídos<br />

por 220 países, a DHL também sente os<br />

efeitos da turbulência no comércio mundial.<br />

As receitas têm-se mantido quase<br />

estagnadas. Em 2015, as vendas anuais<br />

do grupo somavam pouco mais de 59 mil<br />

milhões de euros. De lá para cá, o avanço<br />

foi pequeno. No ano passado, a facturação<br />

atingiu os 60 mil milhões de euros.<br />

Há mais de dez anos como presidente<br />

mundial do grupo DHL, o alemão Frank<br />

Appel mantém o optimismo na crença de<br />

que as fronteiras continuarão a ser apagadas.<br />

Numa visita recente a São Paulo, no<br />

Brasil, Appel falou à <strong>EXAME</strong>.<br />

SEM CERTEZAS<br />

QUANTO AO FUTURO,<br />

AS EMPRESAS ADIAM<br />

INVESTIMENTOS<br />

O comércio global tem vindo a<br />

encolher. Até que ponto isso<br />

representa uma ameaça para os<br />

resultados da DHL?<br />

O maior risco é o cenário de incerteza,<br />

tanto no caso da guerra comercial entre os<br />

Estados Unidos e a China como na indefinição<br />

acerca do Brexit. Sem clareza sobre<br />

o que virá, as empresas adiam investimentos.<br />

Veremos a economia global desacelerar<br />

pelo facto de as empresas adiarem projectos,<br />

tanto na China como no Reino Unido.<br />

Se a China e os Estados Unidos decidirem<br />

que não gostam um do outro e instituírem<br />

mais taxas, o mercado vai adaptar-se.<br />

A conta irá para os consumidores, porque<br />

alguém tem de pagá-la. Mas a dúvida que<br />

a desaceleração gera terá passado. Não<br />

vejo um retrocesso na globalização, pelo<br />

contrário. O Mercosul e a União Europeia<br />

acabaram de assinar um acordo, só falta<br />

ratificá-lo. Claramente, observamos que<br />

os países mais desenvolvidos são também<br />

os mais ligados ao comércio global. Singapura<br />

é o melhor exemplo disso. É um<br />

país sem recursos naturais, com poucas<br />

infra-estruturas, sem educação, mas é um<br />

dos mais ricos, justamente por ser um dos<br />

mais conectados. Não conheço nenhum<br />

caso de proteccionismo que seja bem-sucedido.<br />

Fechar-se para o mundo talvez traga<br />

benefícios a curto prazo mas, com o tempo,<br />

a possibilidade de sucesso é zero.<br />

Mesmo num cenário de<br />

desaceleração, aumenta a pressão por<br />

investimentos em tecnologia no<br />

sector da logística. Como lidar com<br />

este dilema?<br />

Sou um cientista. Na altura em que me tornei<br />

Ph.D. em Neurobiologia, vi a revolução<br />

proporcionada pelo sequenciamento do<br />

ADN. Foram tempos emocionantes. Estamos<br />

a vivenciar um momento como esse<br />

na nossa indústria. Se for a uma construtora,<br />

verá um monte de robots. Mas num<br />

dos nossos depósitos ainda há, em grande<br />

parte, pessoas a trabalharem manual-<br />

84 | Exame Moçambique


FRANK APPEL,<br />

PRESIDENTE<br />

DO GRUPO DHL:<br />

“Não vejo retrocesso<br />

na globalização”<br />

GETTY<br />

mente. À medida que a tecnologia se for<br />

tornando mais barata, o nosso sector<br />

transformar-se-á. Teremos robots, drones,<br />

inteligência artificial, blockchain e por aí<br />

fora. Custa muito dinheiro pôr esses projectos<br />

em funcionamento e o nosso negócio<br />

tem margens pequenas, por isso antes<br />

não podíamos pensar em adoptar essas<br />

tecnologias. Mas esse custo está a baixar.<br />

As pessoas que hoje realizam esses<br />

trabalhos perderão o emprego?<br />

Não. Existe o mito de que a digitalização<br />

destrói empregos. É um disparate. Não sou<br />

economista, mas entendo que há apenas<br />

duas maneiras de gerar crescimento económico.<br />

Uma é ter mais pessoas a fazerem<br />

o mesmo trabalho — só que o mundo<br />

não precisa de mais pessoas. Outra é ter<br />

a mesma quantidade de pessoas a realizarem<br />

mais trabalho. A isso chama-se produtividade.<br />

Com a tecnologia, o nosso sector<br />

vai ter mais produtividade, que resultará<br />

em crescimento económico e, em consequência,<br />

mais emprego. Desde a Revolução<br />

Industrial, o mundo nunca teve tantos<br />

empregos. O que a automação faz é libertar<br />

os trabalhadores de tarefas repetitivas<br />

e permitir que produzam mais em trabalhos<br />

mais relevantes.<br />

Está há uma década à frente da DHL,<br />

mais do dobro do tempo médio de<br />

permanência de presidentes de<br />

empresas globais. Qual é o segredo?<br />

Um líder não é como um técnico de futebol,<br />

que dispõe de 90 minutos para ganhar<br />

o jogo. É preciso evoluir continuamente.<br />

Actualmente, estamos a implementar na<br />

DHL a estratégia para 2025. Um dos pontos<br />

dessa estratégia consiste justamente em<br />

investir 2 mil milhões de euros em digitalização.<br />

Pensar no longo prazo corresponde<br />

a uma das três necessidades básicas<br />

dos seres humanos. Primeiro, queremos<br />

alguém para amar e formar uma família.<br />

Segundo, queremos ser relevantes para o<br />

mundo. E, por fim, queremos ter a expectativa<br />

de que amanhã será melhor do que<br />

hoje. Precisamos dar às pessoas uma perspectiva,<br />

por isso trabalhamos com planos de<br />

seis anos. Deste modo, todos sabem aonde<br />

queremos chegar e qual é o papel que cada<br />

um desempenha nesse processo. b<br />

abril <strong>2020</strong> | 85


GESTÃO VENDAS<br />

MAIS GLOBAL<br />

MAS ACESSÍVEL<br />

A Embraco, o maior fabricante de compressores do mundo,<br />

actualizou a sua plataforma de atendimento aos clientes<br />

RODRIGO CAETANO<br />

E<br />

m 2017, os executivos da<br />

Embraco, a maior fabricante de<br />

compressores do mundo, concluíram<br />

que o sistema de atendimento<br />

ao cliente não tinha<br />

acompanhado a globalização do negócio.<br />

A expansão internacional da empresa, fundada<br />

em Joinville há 48 anos, começou na<br />

década de 1990, quando ainda fazia parte<br />

do grupo Brasmotor, na época também<br />

dono da Brastemp e da Consul. A actualização<br />

mais recente da plataforma que<br />

serve oito fábricas em cinco países havia<br />

sido feita em 1999, dois anos depois da<br />

aquisição do grupo pela americana Whirlpool.<br />

O principal ajustamento consistiu<br />

na substituição do e-mail por formulários<br />

electrónicos. No entanto, o acesso remoto<br />

continuou limitado e dependia da ligação<br />

a servidores da empresa. Estas dificuldades<br />

atrasavam o trabalho dos engenheiros<br />

que visitam os clientes, boa parte deles<br />

A EMPRESA REDUZIU<br />

O TEMPO DE RESPOSTA<br />

A RECLAMAÇÕES<br />

fabricantes de refrigeradores, para resolver<br />

problemas. O tempo entre o registo<br />

de uma reclamação e o início do atendimento<br />

era, em média, de cinco dias. Para<br />

os clientes, dependentes dos compressores<br />

para a sua produção, era uma eternidade.<br />

Em 2017, ao remodelar o sistema, o tempo<br />

de espera diminuiu para 24 horas. Veja<br />

as mudanças e os resultados da empresa,<br />

que desde Julho de 2019 está nas mãos da<br />

japonesa Nidec. b<br />

INVESTIGADORES<br />

DA EMBRACO NO<br />

BRASIL: Sistema na<br />

nuvem e integração<br />

das fábricas<br />

86 | Exame Moçambique


1<br />

UTILIZAR A NUVEM<br />

O primeiro passo do projecto para<br />

melhorar o serviço ao cliente foi<br />

a criação de uma plataforma on-line<br />

na nuvem. Os engenheiros de qualidade<br />

e as equipas de vendas acedem<br />

ao sistema através de aparelhos portáteis<br />

e adicionam fotos e vídeos do problema<br />

para facilitar o trabalho das equipas<br />

de atendimento. A cada etapa,<br />

o sistema indica os próximos<br />

passos e quem é o responsável.<br />

2<br />

COLHER IDEIAS EM TODO O MUNDO<br />

Todas as fábricas da empresa<br />

participaram no projecto, liderado<br />

pela equipa global de qualidade.<br />

Essa diversidade possibilitou o<br />

desenvolvimento de um sistema<br />

já adaptado às necessidades reais<br />

das operações. Diferentes áreas<br />

das empresas envolvidas no<br />

contacto directo com os clientes<br />

participaram no processo.<br />

É possível utilizar o sistema<br />

no idioma local.<br />

3<br />

COMBATER AS CAUSAS DOS PROBLEMAS<br />

Com a unificação de dados numa<br />

só plataforma, foi possível analisar<br />

quais eram os problemas mais<br />

recorrentes. O passo seguinte<br />

foi descobrir as causas desses<br />

problemas, de modo a permitir<br />

ajustes preventivos em diversas<br />

áreas, como design, manufactura<br />

e logística. Com estas medidas<br />

e acções de melhoria contínua,<br />

o índice de rejeição de itens<br />

nas linhas de produção<br />

dos clientes também baixou.<br />

RESULTADOS (1)<br />

• O tempo de resposta às reclamações<br />

diminuiu de cinco dias para apenas um<br />

• A percepção positiva dos clientes<br />

aumentou de 91% para 95%<br />

• O índice de rejeição de produtos<br />

nas linhas de produção caiu 30%<br />

(1)<br />

Referentes ao período de 2016 a 2019.<br />

abril <strong>2020</strong> | 87


ESPECIAL INOVAÇÃO<br />

88 | Exame Moçambique


COM O APOIO DE:<br />

INOVAR<br />

CONTRA<br />

O VÍRUS<br />

Milhares de iniciativas em todo mundo,<br />

conduzidas por todo o tipo de empresas<br />

e empreendedores, desde startups aos<br />

colossos da tecnologia, reinventam-se<br />

e inventam soluções para combater<br />

a pandemia global<br />

90<br />

96<br />

CORRIDA POR SOLUÇÕES<br />

Criatividade faz frente à pandemia<br />

CAMIÕES SEM CONDUTOR<br />

Já circulam nas estradas dos EUA<br />

GETTY<br />

abril <strong>2020</strong> | 89


ESPECIAL INOVAÇÃO<br />

As grandes crises funcionam<br />

sempre como um<br />

estímulo para que surjam<br />

ideias francamente inovadoras.<br />

Um vírus desconhecido<br />

e assassino que afecta quase<br />

todos os países do mundo é um problema<br />

a precisar de solução. Antes: de várias<br />

soluções. Como conseguir os testes mais<br />

eficazes e rápidos que permitam rastear<br />

a doença infecciosa? Como obter celeremente<br />

um medicamento específico para<br />

a combater? Como encurtar o período<br />

que normalmente a descoberta e utilização<br />

de uma vacina exige? Como fabricar<br />

mais ventiladores, indispensáveis na<br />

assistência hospitalar a doentes que atingem<br />

um estado crítico? Em suma, a prevenção,<br />

diagnóstico e combate ao novo<br />

coronavírus mobiliza cientistas de diferentes<br />

áreas do conhecimento, desde biólogos,<br />

epidemiologistas, bioinformáticos<br />

a matemáticos, em todo o mundo, que<br />

comunicam entre si através de uma rede<br />

imensa. Também a população, colocada<br />

em “distanciamento social”, isolamento ou<br />

mesmo quarentena, precisa de comunicar.<br />

Ao avançar, a COVID-19 isola as pessoas<br />

em casa, a única forma de conter a progressão<br />

do contágio, e aquelas cuja profissão<br />

o permite passam ao regime de teletrabalho.<br />

Por quanto tempo é possível manter<br />

as empresas com a esmagadora maioria<br />

dos colaboradores a funcionarem através<br />

da Internet? Ou será que a pandemia<br />

veio demonstrar que, em muitos casos, o<br />

teletrabalho não só substitui o trabalho<br />

presencial como até consegue ser mais produtivo?<br />

Não será a própria reorganização<br />

das empresas em teletrabalho, ditada pela<br />

contenção de contágio da epidemia, com<br />

simplificação de métodos e optimização,<br />

um outro caso inovador no meio do pânico<br />

do COVID-19? Em todo o caso, com o trabalho<br />

a migrar para a videoconferência, os<br />

gigantes da tecnologia colocaram já à disposição<br />

dos utilizadores ferramentas que<br />

facilitam o trabalho à distância.<br />

O CHEIRO A APOCALIPSE QUE<br />

COBRE OS DIAS QUE PASSAM<br />

NÃO TRAVOU OS PRODÍGIOS<br />

INOVADORES<br />

O cheiro a apocalipse que cobre os dias<br />

que passam não coibiu que se multiplicassem<br />

os prodígios inovadores que a tecnologia<br />

permite. Vimos a China construir<br />

em apenas 10 dias um gigantesco hospital,<br />

dezenas de startups a criarem testes<br />

rápidos de rasteio da doença ou mesmo<br />

a mapearem o seu avanço no mundo,<br />

robots a desinfectarem carruagens do<br />

metro em Hong Kong, o e-commerce a disparar,<br />

pacientes a serem tratados em casa<br />

através de vídeo, um exemplo de telemedicina.<br />

Vimos as inovações mais simples<br />

e mais criativas, como a do improvisador<br />

que espeta um clip no isqueiro para<br />

tocar nas superfícies sem se contaminar.<br />

A chama do isqueiro derrete, após cada<br />

contacto, qualquer possível contaminação,<br />

como mostra um dos muitos vídeos<br />

que correm no WhatsApp e noutros sistemas<br />

de comunicação típicos da Internet.<br />

90 | Exame Moçambique


NOVO CORONAVÍRUS:<br />

A necessidade de<br />

inovar a vida face a um<br />

inimigo invisível<br />

Diz-se que a necessidade é a força do<br />

engenho. E é. Por toda a Europa faltam<br />

máquinas de ventilação nos hospitais, uma<br />

falha que pode ditar a morte dos doentes<br />

em estado mais crítico. Também por<br />

todo o lado, empreendedores e criativos<br />

procuram a solução com a tecnologia de<br />

que dispõem. Em Portugal, uma unidade<br />

que trabalha moldes de plástico para eventos<br />

pôs-se a produzir viseiras completas<br />

para o pessoal sanitário com a ajuda<br />

de trabalhadores domésticos. Em Itália,<br />

uma pequena empresa produziu válvulas<br />

para máquinas respiratórias através<br />

de uma impressora 3D. O know-how<br />

de uma equipa de engenheiros foi essencial<br />

para responder aos apelos desesperados<br />

das equipas médicas e para salvar<br />

vidas. Os materiais de protecção esgotam-se<br />

e o mercado torna-se fortemente<br />

especulativo. Na Catalunha, em Espanha,<br />

os habitantes de uma pequena localidade<br />

começaram a produzir em casa<br />

máscaras protectoras com tecidos disponibilizados<br />

por fábricas das redondezas.<br />

Há ideias inovadoras em todos os sectores.<br />

Na Alemanha, um estabelecimento<br />

perto de Leipzing, no Leste do país, inven-<br />

GETTY<br />

AJUDAS<br />

INOVADORAS<br />

“Quero Ajudar” é o nome de uma<br />

aplicação que reúne uma equipa de<br />

voluntários prontos a prestar serviços<br />

a quem estiver de quarentena. A crise<br />

sanitária trouxe muitos exemplos<br />

de inovação que aproveitam as<br />

possibilidades tecnológicas para lançar<br />

cadeias de entreajuda. Em “Quero<br />

Ajudar”, profissionais portugueses e<br />

brasileiros juntaram-se ao programa<br />

de aceleração de “E-commerce<br />

Experience” para criar a aplicação,<br />

uma iniciativa de uma associação<br />

sem fins lucrativos. O projecto assenta<br />

no conceito de entreajuda comunitária<br />

e tem como objectivo superar as<br />

dificuldades causadas pelo COVID-19<br />

através da união entre os grupos de<br />

risco e quem pode prestar a ajuda<br />

necessária. Trata-se de superar as<br />

dificuldades causadas pela COVID-19<br />

no dia-a-dia. Graças à iniciativa, uma<br />

equipa de voluntários presta serviços,<br />

como tomar conta de crianças<br />

ou animais de estimação, fazer<br />

deslocações necessárias, como ir<br />

à farmácia ou ao supermercado,<br />

alojamento dos que estão longe de<br />

casa, o auxílio a animais de estimação<br />

ou ainda dar apoio psicológico.<br />

abril <strong>2020</strong> | 91


ESPECIAL INOVAÇÃO<br />

tou uma maneira de os clientes irem ao<br />

bar sem saírem de casa. Estes encomendam<br />

bebidas e acompanham através de<br />

vídeo a sua preparação e distribuição.<br />

Também a indústria, parada e sem possibilidade<br />

de colocar os stocks, reconverte-<br />

-se, como acontece numa economia de<br />

OS ASSINTOMÁTICOS SÃO<br />

RESPONSÁVEIS PELA<br />

TRANSMISSÃO DA DOENÇA<br />

EM 70% DOS CASOS<br />

guerra. Fábricas nos Estados Unidos vão<br />

passar a produzir material de protecção.<br />

Na Europa, a Ferrari vai produzir ventiladores<br />

e inúmeras indústrias têxteis adaptam-<br />

-se à nova procura de máscaras cirúrgicas.<br />

Na Escócia, uma fábrica de gin produz<br />

agora álcool para higienização das mãos.<br />

TESTES MAIS RÁPIDOS<br />

A detecção de pessoas infectadas pelo<br />

vírus é fundamental para conter a sua propagação.<br />

Um estudo da Universidade de<br />

Colúmbia, nos Estados Unidos, revela que<br />

as pessoas que não apresentam sintomas<br />

— os assintomáticos — são responsáveis<br />

pela transmissão da doença em cerca de<br />

75% dos casos confirmados. No Brasil, um<br />

grupo de empreendedores decidiu reunir<br />

as principais iniciativas de startups para<br />

mitigar o impacto da doença no país. Em<br />

poucas horas foram identificadas 30 iniciativas<br />

e contactadas mais de 500 pessoas,<br />

que passaram a reunir-se no WhatsApp, no<br />

Telegram e outras redes sociais através da<br />

hashtag #StartupsVsCovid19. A Gazeta do<br />

Povo, do Brasil, relata que “uma das startups<br />

presentes no mapa é a Hi Technologies,<br />

que diagnostica o COVID-19 através<br />

de um teste sorológico que demora cerca<br />

de 10 minutos. O teste custará 25 dólares.<br />

Os aparelhos serão comercializados a partir<br />

de <strong>Abril</strong> e o teste já está disponível nas<br />

farmácias que já possuem o Hilab, um<br />

aparelho de exame de sangue instantâneo.<br />

Outra iniciativa parte da Triágil, startup<br />

de triagem médica on-line. Uma simples<br />

conversa com o chatbot ajuda a classificar<br />

as probabilidades de infecção do paciente<br />

e a gravidade da infecção pelo novo vírus.<br />

A triagem é gratuita”. A iniciativa é apoiada<br />

pela Associação Brasileira de Startups, que<br />

utilizará a sua base de 13 mil startups para<br />

procurar soluções que possam integrar a<br />

próxima versão do mapa.<br />

Também no Brasil, o Serviço Nacional de<br />

Aprendizagem Industrial (SENAI) arrancou<br />

com projectos que actuam na prevenção,<br />

no diagnóstico e no combate ao novo coronavírus.<br />

O SENAI pretende seleccionar<br />

iniciativas que possam, em até 40 dias a<br />

partir do início dos projectos, auxiliar o<br />

Brasil a enfrentar a pandemia da COVID-<br />

-19. Serão destinados 2 milhões de dólares<br />

às propostas seleccionadas. Por todo<br />

o mundo, plataformas de startups trabalham<br />

em respostas inovadoras a situações<br />

novas criadas pela pandemia, com<br />

relevo para as necessidades da medicina<br />

em temos de diagnóstico, tratamento e<br />

cura da doença (medicamentos, tecnologia<br />

em vacinas, monitorização de sintomas<br />

à distância e de grupos de risco, entre<br />

outros), cadeias de valor na Internet, para<br />

onde se mudou a quase totalidade do consumo,<br />

e sistemas de entrega, bem como o<br />

ensino à distância, informação, entretenimento<br />

e soluções de higienização para<br />

a mobilidade urbana.<br />

A GUERRA DA VACINA<br />

O tratamento provavelmente chegará primeiro,<br />

mas a existência de uma vacina é<br />

fundamental para imunizar as populações<br />

de prováveis réplicas do surto, o que<br />

se admite possa acontecer na Europa a<br />

seguir ao Verão. Enquanto a maioria das<br />

comunidades não criar anticorpos que bloqueiem<br />

a transmissão do vírus não haverá<br />

qualquer garantia de que este não volta a<br />

atacar quando retomada a vida normal<br />

ou mesmo conservando novos comportamentos<br />

de prevenção da doença. Foram<br />

as vacinas que praticamente eliminaram, ao<br />

introduzir no corpo ano versões frágeis do<br />

vírus envoltas em adjuvantes e convocar os<br />

glóbulos brancos para o combate ao intruso,<br />

epidemias que custaram milhões de vidas<br />

no passado e ainda são uma ameaça letal<br />

em boa parte do mundo, em que África se<br />

inclui, no presente. Segundo a Organização<br />

Mundial de Saúde (OMS) já existem<br />

em todo o mundo pelo menos 41 iniciativas<br />

para criar uma vacina contra o novo<br />

coronavírus. A OMS acrescenta que, no<br />

entanto, apenas uma já chegou ao estágio<br />

de testes em humanos e apresenta alguma<br />

esperança, ainda que limitada, de chegar a<br />

um produto aprovado em menos de dois<br />

anos. A OMS explica que a disputa pela<br />

vacina envolve oito estratégias diferentes<br />

de atacar o vírus.<br />

A corrida pela vacina encerra centenas<br />

de médicos e cientistas em laboratórios<br />

por todo o mundo, enquanto quase<br />

mil milhões de pessoas se encontram<br />

enfiadas em casa para se protegerem da<br />

epidemia, muitas delas em teletrabalho.<br />

Já se anunciam resultados num tempo<br />

meteórico face ao que dura normalmente<br />

VACINA: Já há testes<br />

em humanos mas<br />

deverá demorar,<br />

pelo menos, 12 meses<br />

a estar no mercado<br />

92 | Exame Moçambique


RAPIDEZ<br />

As actuais tecnologias<br />

de vacinação permitem<br />

que se saltem etapas<br />

no desenvolvimento de<br />

uma vacina, que irá surgir<br />

em tempo recorde<br />

ENTREAJUDA<br />

O isolamento social levou<br />

muitas empresas<br />

a inventarem modelos<br />

de entreajuda social<br />

para acorrer aos mais<br />

necessitados<br />

RESPOSTAS À CRISE<br />

COOPERAÇÃO<br />

Centenas de cientistas,<br />

médicos e especialistas<br />

trabalham em laboratórios<br />

de todo o mundo<br />

em contacto uns com<br />

os outros<br />

COMUNICAÇÃO<br />

Os gigantes da Internet<br />

alargam a mais utilizadores<br />

a videoconferência e<br />

serviços essenciais como<br />

a telemedicina<br />

GETTY<br />

FOI DESENVOLVIDA UMA<br />

VACINA EM TEMPO RECORDE<br />

QUE JÁ ESTÁ A SER TESTADA<br />

EM HUMANOS<br />

o processo de criação de um antídoto eficaz<br />

contra um vírus. Em dias sucessivos,<br />

16 e 17 de Março, a China e os Estados Unidos<br />

anunciaram que já dispunham de uma<br />

vacina contra o vírus SARS-CoV-2, pronta<br />

a ser testada em seres humanos. Os Estados<br />

Unidos já iniciaram mesmo os testes<br />

da vacina que desenvolveram num tempo<br />

recorde (42 dias) em 45 voluntários saudáveis.<br />

Os testes estão a ser efectuados na<br />

cidade de Seattle pela organização Kaiser<br />

Permanente, que garante não existir<br />

o risco de a vacina originar a COVID-19,<br />

pois contém um código genético inofensivo<br />

copiado do vírus que provoca a doença.<br />

A investigação, que dispensou a verificação<br />

da capacidade imunológica da vacina em<br />

animais, é financiada pelo National Institute<br />

of Health e conduzida pela empresa<br />

Moderna Therapeutics, cuja cotação deu<br />

um salto na Bolsa. Trata-se de “uma corrida<br />

contra o vírus e não contra outros<br />

investigadores”, salientou o médico John<br />

Tregoning, especialista em doenças infecciosas<br />

no Imperial College de Londres.<br />

Na China, foi o próprio Ministério da<br />

Defesa a anunciar ter desenvolvido “com<br />

êxito” uma vacina contra o novo coronavírus,<br />

estando a realizar ensaios clínicos em<br />

humanos. A vacina foi desenvolvida pela<br />

Academia Militar de Ciências e a equipa<br />

de investigação liderada pela epidemiologista<br />

Chen Wei, garantindo as autoridades<br />

chinesas que é possível avançar “com<br />

uma produção a grande escala, segura e<br />

efectiva”. Por outro lado, várias instituições<br />

chinesas estão a avançar com vários<br />

ensaios clínicos para comprovar mais<br />

vacinas que estão a ser desenvolvidas.<br />

Uma delas assenta em vectores virais da<br />

gripe e está na fase de testes em animais.<br />

abril <strong>2020</strong> | 93


ESPECIAL INOVAÇÃO<br />

DESAFIOS<br />

À INOVAÇÃO<br />

Este é um tempo para gerar soluções<br />

para um período longo de<br />

distanciamento social. A crise global de<br />

saúde pública convoca a inovação para:<br />

▸Disponibilizar uma vacina<br />

em tempo recorde<br />

▸Conseguir rapidamente testes<br />

mais rápidos e eficazes<br />

▸Arranjar maneira de aumentar<br />

a produção de ventiladores<br />

▸Propor novos métodos<br />

e organização do trabalho<br />

▸Criar cadeias de produção<br />

científica<br />

▸Criar cadeias de entreajuda social<br />

▸Aperfeiçoar a videoconferência<br />

▸Reinventar as cadeias de logística<br />

no e-commerce<br />

SUPERCOMPUTADOR:<br />

O Summit identificou<br />

substâncias que<br />

o vírus utiliza para<br />

contagiar e deixa<br />

a ciência mais perto<br />

de uma solução<br />

▸Popularizar a telemedicina<br />

▸Inventar respostas para as novas<br />

necessidades da indústria<br />

Na Alemanha, o laboratório CureVac também<br />

está a desenvolver uma vacina, que<br />

os alemães acusam os Estados Unidos de<br />

tentar comprar por uma soma avultada.<br />

No Brasil, uma investigação financiada<br />

por uma fundação é liderada pelo imunologista<br />

Jorge Kalil, que, por se encontrar<br />

em isolamento, acompanha o trabalho à<br />

distância. Na Índia, o Serum Institute tem<br />

uma vacina de vírus atenuado já em testes<br />

de segurança em animais. A inoculação<br />

de uma versão enfraquecida do vírus<br />

corresponde a um método tradicional e<br />

de eficácia comprovada, levando, contudo,<br />

o seu desenvolvimento muito mais<br />

tempo. A vacina contra o SARS-CoV-2 só<br />

deverá estar disponível dentro de um ano,<br />

constituindo os testes iniciais o primeiro<br />

de muitos procedimentos. Não chegará a<br />

tempo de travar a actual vaga pandémica,<br />

mas traduzirá uma rapidez sem precedentes<br />

na resposta a um vírus.<br />

MAIS COMUNICAÇÃO<br />

O aumento inusitado da procura conduz,<br />

invariavelmente, a ideias inovadoras.<br />

Os mais poderosos da comunicação on-line<br />

põem à disposição dos profissionais que<br />

estão, por força da pandemia, a trabalhar<br />

a partir de casa, ferramentas mais sofisticadas<br />

de comunicação. A Google decidiu<br />

disponibilizar, até 1 de Julho, a categoria<br />

avançada das videoconferências do “Hangouts<br />

Meet” a todos os clientes do “G Suite<br />

94 | Exame Moçambique


D.R.<br />

PROMESSA<br />

DE REMÉDIOS<br />

A investigação científica indica que alguns medicamentos<br />

mostraram-se eficazes no combate ao vírus pandémico<br />

LUCAS AGRELA<br />

e G Suite Education”. A chinesa Alibaba,<br />

que pontifica nos negócios on-line, abriu<br />

aos residentes na província de Hubei, onde<br />

começou o tsunami sanitário que invadiu<br />

o planeta, a utilização gratuita dos seus<br />

serviços de telemedicina. Ainda na China,<br />

outra gigante da Internet, a Baidu, estabeleceu<br />

um fundo de 35 milhões de dólares<br />

para pesquisa e desenvolvimento de cura<br />

do coronavírus, bem como para medidas<br />

de prevenção a longo prazo.b<br />

Hidroxicloroquina, cloroquina e<br />

remdesivir. São estes os medicamentos<br />

que, segundo estudos<br />

científicos, podem ser<br />

eficazes no combate ao novo<br />

coronavírus. A hidroxicloroquina é a mais<br />

promissora. O remédio é utilizado no tratamento<br />

da malária desde a década de 1930,<br />

mas também já foi usado para combater<br />

doenças como a artrite reumatóide e o lúpus.<br />

Chegou a ser substituído recentemente por<br />

outros porque o protozoário parasita plasmodium<br />

falciparum, causador da malária,<br />

tornou-se resistente à sua acção. A hidroxicloroquina<br />

podia ser utilizada para prevenir<br />

ou combater a malária. O medicamento<br />

já se havia revelado eficaz contra a SARS,<br />

uma doença respiratória aguda que surgiu<br />

na China em 2002 e pertencente ao grupo<br />

coronavírus, assim como o vírus causador<br />

da actual pandemia de COVID-19. Num<br />

estudo publicado por cientistas chineses<br />

a 18 de Março na revista científica Nature,<br />

as drogas hidroxicloroquina e remdesivir<br />

mostraram-se capazes de inibir a infecção<br />

do SARS-CoV-2 (nome do novo coronavírus)<br />

em simulação in vitro. Outro estudo<br />

realizado em França, pelo Instituto Mediterrâneo<br />

de Infecção de Marselha, publicado<br />

no periódico científico International<br />

Journal of Antimicrobial Agents, mostra<br />

que a hidroxicloroquina teve um desempenho<br />

positivo. Em alguns casos, foi utilizado<br />

também um antibiótico chamado<br />

azitromicina, que combate infecções pulmonares<br />

causadas por bactérias.<br />

Numa experiência efectuada com dois<br />

grupos, tendo um recebido o medicamento<br />

e outro não, o resultado da droga no combate<br />

ao novo coronavírus foi eficaz. O antibiótico<br />

azitromicina foi usado em conjunto<br />

com a cloroquina, como no estudo frealizado<br />

em França.<br />

Gregory Rigano é orientador de pesquisa<br />

na Universidade de Stanford, nos Estados<br />

Unidos, e co-autor de um estudo sobre o<br />

uso de hidroxicloroquina em humanos para<br />

combater o coronavírus. O estudo ainda<br />

não foi publicado, mas Rigano já concedeu<br />

uma entrevista a uma rádio americana<br />

sobre o tema. “Este será o estudo<br />

mais importante a ser lançado sobre o<br />

tema. Ponto”, disse Rigano. O bilionário<br />

Elon Musk também admite que o medicamento<br />

poderia ser eficaz contra o COVID-<br />

-19. Apesar de promissor, o medicamento<br />

ainda carece de mais testes clínicos antes<br />

de ser distribuído amplamente à população<br />

de forma segura. Por isso, Donald Trump,<br />

Presidente dos Estados Unidos, pediu que<br />

a Food and Drug Administration seja ágil<br />

com o processo de testes e aprovação do<br />

medicamento. Face à falta de aprovações<br />

clínicas do uso da hidroxicloroquina, a<br />

automedicação não é recomendada pelos<br />

médicos e investigadores. b<br />

abril <strong>2020</strong> | 95


ESPECIAL INOVAÇÃO<br />

TÊNDENCIAS GLOBAIS<br />

Em Março, com a ameaça do novo coronavírus<br />

a espalhar-se no Ocidente e os camionistas muito<br />

expostos ao risco de contágio, a TuSimple, startup que<br />

desenvolve a condução autónoma de veículos, anunciava<br />

estar a expandir o seu programa-piloto de transporte<br />

de mercadorias com a UPS para 20 viagens semanais.<br />

30%<br />

É a redução dos custos de<br />

remessas de mercadorias<br />

com a aplicação da<br />

tecnologia de condução<br />

autónoma assente em<br />

inteligência artificial da<br />

TuSimple. Um estudo da<br />

Universidade da Califórnia,<br />

da Jacobs School of<br />

Engineering e da TuSimple,<br />

com base em informações<br />

recolhidas em 122<br />

percursos, totalizando mais<br />

de 15 mil quilómetros,<br />

apurou que a condução<br />

autónoma poupa ainda 10%<br />

de combustível<br />

200m<br />

É a faixa de visão obtida<br />

pelos sensores de luz<br />

dos camiões autónomos<br />

300m<br />

É o alcance da tecnologia<br />

de radar utilizada pelo<br />

camião autónomo para<br />

classificar objectos, mesmo<br />

em condições adversas<br />

1000m<br />

É a distância coberta pelas<br />

câmaras da plataforma<br />

tecnológica dos camiões<br />

autónomos<br />

360 o<br />

É o reconhecimento<br />

do driver virtual<br />

do camião autónomo,<br />

o que permite planear<br />

com uma antecedência<br />

de 30 minutos<br />

É MUITO DIFÍCIL<br />

DIZER ÀS<br />

PESSOAS: VÁ A<br />

RESTAURANTES E<br />

IGNORE A PILHA<br />

DE CORPOS ALI AO<br />

CANTO, QUEREMOS<br />

QUE CONTINUE A<br />

GASTAR PORQUE<br />

TALVEZ HAJA UM<br />

POLÍTICO QUE<br />

PENSA QUE O<br />

CRESCIMENTO<br />

DO PIB É O QUE<br />

IMPORTA”<br />

Bill Gates<br />

LUÍS FARIA<br />

Director Executivo Exame Moçambique<br />

AS SOLUÇÕES<br />

Se não for controlada, a primeira crise global<br />

de saúde pública, transmitida por médias<br />

globais, matará milhões de pessoas. A taxa<br />

de letalidade da pandemia não é grande e é<br />

bastante selectiva, mas a doença é causada<br />

por um vírus extremamente contagioso que<br />

infectará mais de 70% da população mundial<br />

se não for contido.<br />

Crises agudas, e esta é a mais grave desde<br />

a depressão de 1919 e as duas guerras mundiais<br />

que se seguiram, obrigam a que a inovação<br />

encontre soluções para o que antes era,<br />

quanto muito, um cenário apocalíptico saído<br />

da ficção — o filme Contágio, de Steven Soderbergh,<br />

de 2011, descreve uma situação de que<br />

esta, real, poderia ter sido tirada a papel químico.<br />

Alguma força malévola inspirou-se nele?<br />

Face à pandemia terão de ser encontradas<br />

novas soluções para a nova realidade que o<br />

vírus impôs, tirar as lições devidas do impacto<br />

que está a ter na sociedade e na economia globais<br />

e fazer os necessários reajustamentos. Não<br />

houve quem deixasse de avisar. Bill Gates aproveitou<br />

o convite que lhe foi feito em 2014, pelo<br />

programa de inovação TED, para alertar para<br />

que a grande ameaça que se colocava no horizonte<br />

era a de um vírus que atingiria vastas<br />

camadas da população, chamando a atenção<br />

para a incapacidade dos sistemas de saúde para<br />

enfrentarem a catástrofe anunciada. O que se<br />

confirmou. A única saída é inovar, encontrar<br />

subitamente as soluções contra o vírus que nos<br />

persegue e que os vários sistemas instalados<br />

não foram capazes de travar. b<br />

96 | Exame Moçambique


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<strong>EXAME</strong> FINAL<br />

CELSO AMORIM<br />

EX-MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL<br />

“NINGUÉM QUER OUVIR<br />

O BRASIL”<br />

Para o ex-ministro das Relações Exteriores<br />

do Brasil, a comunidade internacional deixou<br />

de ver o país como um aliado mas<br />

como um problema<br />

D.R.<br />

Celso Amorim conhece a política externa do Brasil como<br />

poucos. Diplomata desde a década de 1960, foi ministro<br />

das Relações Exteriores nos governos de Itamar Franco<br />

(1993-1995) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011).<br />

Em entrevista à <strong>EXAME</strong>, o ex-chanceler faz um balanço crítico<br />

do primeiro ano da política externa de Jair Bolsonaro. “Nunca<br />

dantes havíamos rejeitado os valores básicos do multilateralismo<br />

e das normas internacionais”, diz.<br />

Como avalia a política externa do actual governo?<br />

É a política externa mais desastrosa que já vi na história do Brasil.<br />

Nunca dantes havíamos rejeitado os valores básicos do multilateralismo<br />

e das normas internacionais nos mais variados campos.<br />

Também nunca vi um alinhamento automático, absoluto e declarado<br />

com os Estados Unidos como agora.<br />

Quais os benefícios desse alinhamento automático?<br />

Não vejo benefício algum. Até mesmo as pessoas mais conservadoras<br />

do Itamaraty estão horrorizadas, pois isso nunca foi feito.<br />

Os Estados Unidos não respeitam um país que não se respeita.<br />

E o que vemos hoje na relação entre o Brasil e os Estados Unidos<br />

são cenas de paternalismo e desprezo.<br />

O governo Bolsonaro rompeu com a tradição diplomática?<br />

É evidente que sim. Os princípios da não intervenção e da autodeterminação<br />

dos povos, listados na Constituição como princípios<br />

básicos, sempre foram fundamentais para nós. Esses são apenas<br />

dois dos aspectos mais graves dessa ruptura.<br />

Como vê a polémica entre o governo e outros chefes de Estado<br />

quanto às queimadas na Amazónia?<br />

O problema não é a polémica, mas ser ofensivo com um chefe de<br />

Estado. Não concordo com Emmanuel Macron [Presidente de<br />

França] sobre o estatuto internacional da Amazónia. A soberania é<br />

nossa e ninguém o discute, mas, com esta, vem a responsabilidade.<br />

O nosso Presidente teve uma atitude que jamais vi nas relações internacionais.<br />

Nesse episódio, ele ultrapassou os limites da civilidade.<br />

Na sua opinião, como está a imagem do Brasil perante a comunidade<br />

internacional?<br />

As pessoas estão perplexas. O Brasil sempre foi considerado um<br />

país simpático. Só que hoje somos vistos como um problema.<br />

A Amazónia foi o caso mais gritante, mas o que fizemos noutras<br />

áreas, como as atitudes belicosas em relação à Venezuela, acabou<br />

por fazer do Brasil um país que cria problemas.<br />

Qual é, hoje, o papel do Brasil na América Latina?<br />

É pequeno. Há ventos de mudança na região e temos assistido<br />

a uma reacção popular às políticas neoliberais, como no Chile. O<br />

Brasil é um país grande e não será ignorado, mas já ninguém nos<br />

quer nos ouvir. O ministro actual quer aproximar-se de países de<br />

extrema-direita, como a Hungria, e tem atitudes hostis face a outros<br />

países, como a França. É um desvio da nossa política, baseada em<br />

pluralismo e tolerância, sem fanatismo.<br />

A América Latina está a ser palco de várias crises políticas. O<br />

que está a acontecer?<br />

As pessoas acham que podem impor uma doutrina económica e<br />

desconhecem um facto fundamental: estamos a lidar com seres<br />

humanos, não com números ou máquinas. A implementação de<br />

políticas chamadas neoliberais atingiu o limite em muitos países.<br />

Ninguém esperava a recente explosão popular no Chile. E acredito<br />

que esse sentimento chegará ao Brasil. Não sei quando, mas<br />

vai chegar. b<br />

98 | Exame Moçambique

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