Sapeca 37
Misto de sapo e perereca Nº 37 – Julho/2022 Editor: Tonico Soares e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
Misto de sapo e perereca Nº 37 – Julho/2022
Editor: Tonico Soares
e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
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Sapeca
Misto de sapo e perereca
Nº 37 – Julho/2022 – Editor: Tonico Soares
e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
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MUSA DESTA EDIÇÃO
Nélia Paula – Nasceu em Buenos Aires, mudou-se para Niterói, fugiu de casa e morou
sozinha por 50 anos, morrendo no Retiro dos Artistas, aos 71. Única ex-vedete
que vi: bela e esbelta senhora num vestido leve, em tom bege, vindo por uma calçada
de Copacabana com andar gracioso, salto alto, aquele ar de mulher incensada
com o perfume Chanel nº 5. Ela havia feito uma aparição no (ruinzinho) filme Bububu
no bobobó e voltou a sentir aquele gosto da fama ao interpretar Amparito Hernández,
na novela Roque Santeiro. Personagem
que ganhou até música, gravada por
Cauby Peixoto e a atriz voltou a atuar em boates,
pálido sucesso de fim de carreira, vaga
lembrança de décadas remotas, os áureos tempos
do teatro rebolado. Profissão de vedete era
comparada à da puta e, no dizer de Elvira Pagã
(belo sobrenome), “foi uma orgia só”. Elas
apostavam alto: Virgínia Lane foi amante do
presidente Getúlio Vargas, que lhe deu uma
fazenda e Angelita Martinez encantou Garrincha
e o presidente João Goulart. Outras famosas:
Luz del Fuego (vivia numa ilha, pelada e
enrolada em cobras), Mara Rúbia, Zélia Hoffman,
Carmen Verônica, Renata Fronzi, A-
nilza Leone, Íris Bruzzi, mulheres a dar com o
pau. Dona das mais belas coxas do Brasil,
Nélia era a que mais deixava os marmanjos
babando na gravata. Como diria o safado comediante
Zé Trindade, “agora, olha de novo
pra dar uma conferida no material”:
1
.
Entre um compromisso e outro no “estrangeiro”, um gole d’água de montanha do Rio.
Maestro soberano
A foto de Tom Jobim com Frank Sinatra foi tirada durante a gravação de um
dos dois discos que fizeram juntos. Com Gal Costa, durante uma turnê, quando
se apresentaram também em Los Angeles. Ele deu as costas para Hollywood
literalmente, pois já havia se recusado a compor a trilha sonora de um filme.
Preferiu ganhar menos numa produção inglesa, porque foi mais com a cara do
cara que fez a encomenda (“parecia um mineiro”) e também musicou filmes no
Brasil. Morou em L. A. e em Nova Iorque, cumprindo compromissos, não vendo
a hora de voltar à sua casa cercada de árvores no bairro Jardim Botânico e ir
ao próprio, estudar espécies vegetais e piar passarinho. Também à boemia sem
luxo, onde o vi duas vezes: no Veloso – bar que mudou de nome para Garota de
Ipanema –, de onde ele e Vinicius contemplavam seu doce balanço, a caminho
do mar e Churrascaria Plataforma, para uma comida leve, em geral, peixe. Hábitos
simples, para quem fora hóspede de Sinatra, por conta dos ditos discos.
Dava entrevistas, evitando repórteres chatos que mal sabiam quem ele era, dizendo
coisas como “Estou de mulher nova, filho novo, depois a gente conversa
mais”. Ou “Tô doido pra chegar em casa e ouvir o novo disco do Milton Nascimento,
que tá uma maravilha”. Ou “Não vou dar mais entrevista, porque cito
Drummond o tempo todo, cito certo e o jornalista escreve errado, e não quero
que o poeta pense que ando errando os versos dele por aí”. A propósito, falava
com orgulho dos seus “seis maiores”: na música, Villa-Lobos, Pixinguinha e
Ary Barroso; na literatura, Euclides da Cunha, Guimarães Rosa e Drummond.
“Eu respeito muito os meus maiores”, acrescentou. Sobre os que acusavam a
bossa nova de ser “barriga de aluguel” da música americana, respondia que sua
maior influência foi Debussy, que também influenciou os músicos de jazz.
Não bastasse o talento, foi considerado o homem mais bonito do Rio, em
1958. Acidente de percurso, poderia dizer. Tem no Google o vídeo A música
segundo Tom Jobim, de Nelson Pereira dos Santos, em que ele recebe em casa
alguns craques do meio musical, para homenagear outros craques. Recomendo.
2
SOLIDÃO UNIVERSAL
Drauzio Varella (Folha de São Paulo)
Estamos sós no universo. Ainda que exista vida num planeta distante, encontrarmos
um ser semelhante a nós, com quem sejamos capazes de nos comunicar,
é altamente improvável. Os hominídeos que nasceram nas savanas da África,
há 6 milhões de anos, foram frutos de adaptações a mudanças ambientais e eventos
aleatórios que jamais se repetiriam em outro corpo celeste na ordem cronológica
em que ocorreram aqui.
Para não recuarmos até as intempéries envolvidas nas origens da vida, há
mais de 3 bilhões de anos, vamos partir de uma época muito mas recente, quando
surgiram os mamíferos, conforme descreveram os paleontólogos Stephen Brussat
e Zhe Xi Luo. As primeiras criaturas semelhantes aos mamíferos não esperaram a
extinção dos dinossauros para nascer (como se imaginava), surgiram há 210 milhões
de anos, época em que os cinco continentes ainda estavam unidos, a Pangeia.
Algumas dezenas de milhões de anos antes, solavancos nas placas tectônicas
tinham provocado erupções simultâneas de vulcões espalhados pela Terra. A
poluição atmosférica causou uma extinção em massa que quase extinguiu a vida.
A seleção eliminou os anfíbios e répteis gigantes que dominavam o mundo. Tartarugas,
sapos, crocodilos, dinossauros e os primeiros ancestrais dos mamíferos
se aproveitaram do vazio deixado pelos antigos dominadores para ocupar novos
nichos ecológicos. Esses mamíferos primordiais já apresentavam características
que reconhecemos familiares: dentes de leite na infância, saliências e sulcos nos
molares, pelo no corpo, musculação mastigatória robusta e cérebros grandes.
Eram insignificantes comedores de insetos, pequenos como os ratos, que
mantinham hábitos noturnos, cuidado providencial para escapar dos crocodilos e
dinossauros que não paravam de aumentar de tamanho na vizinhança. Há 200 milhões
de anos, um cataclismo monumental fraturou a Pangeia em diversas áreas.
No final, os cinco continentes estavam separados. A atividade vulcânica causou
nova destruição em massa, oportunidade aproveitada pelos animais que souberam
ocupar os espaços abandonados pelos que se foram; exemplo: dinossauros.
Cerca de 145 milhões de anos atrás, uma variação anatômica foi decisiva
para a sobrevivência dos mamíferos: o encaixe dos dentes entre as arcadas superior
e inferior, inovação que ampliou a possibilidade de alimentação mais variada.
Ao redor de 100 a 120 milhões de anos, outra surpresa: apareceram as angiospermas,
plantas que dão flores e frutos acessíveis a animais com a dentição
para mastigá-las. Apesar da performance ecológica razoável, esses pequenos
mamíferos chegaram perto da extinção por culpa dos dinossauros, brutamontes
insaciáveis, acostumados a devorar tudo que viam pela frente. Foi quando um
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asteroide de 180 km de comprimento caiu no México há 66 milhões de anos. O
impacto foi tão brutal que abriu uma cratera de 1,5 km de profundidade.
O choque provocou terremotos, tsunamis com ondas de mais de cem metros
e, como sempre, a erupção dos benditos vulcões. Digo benditos porque os
dinossauros não resistiram, sobreviveram apenas os ancestrais, que dariam origem
às aves. Azar deles, sorte dos mamíferos que se espalharam num mundo
livre daqueles mastodontes. No estado do Novo México, foi desenterrado o esqueleto
de um mamífero que viveu há 63 milhões de anos. É provável que se trate
do primata mais velho já descrito, ancestral longínquo dos que desceram das
árvores nas savanas da África, há 6 milhões de anos, e começaram a andar em pé.
Imagine, você, que exista vida em outro planeta. Qual a possibilidade desses
e de milhares de outros eventos ao acaso que eliminaram tantos competidores,
para que nós estejamos aqui, nos comunicando através deste jornal? Vulcões
em erupção, placas tectônicas que se chocam nas profundezas, continentes que se
separam, árvores que dão frutos, um asteroide que provoca terremotos, tsunamis,
incêndios e poluição ambiental astronômica. Faltasse um desses fenômenos, não
haveria ninguém para contar essa história ou compor sinfonias.
São tantas e tão complexas as variações para explicar nossa existência que
fica mais fácil atribuí-la a um ser poderoso que tudo criou num passe de mágica.
Sapeca comenta: não são lendas nem hipóteses, mas fatos. Sagrada escritura é isso aí.
João Moreira Salles
Trecho de entrevista: “Cientistas nunca tiveram muita presença na nossa i-
maginação, e isso é muito triste. Em certo momento, achei que o país tinha cineasta
demais para matemático de menos. As pontes cairiam, mas seriam lindamente
filmadas. Claro, eram outros tempos. Hoje, tanto artistas quanto cientistas se
tornaram invisíveis, quando não indesejáveis. É lamentável, mas essa condição
ao menos produziu solidariedade entre esses dois campos da invenção humana.
Artistas abriram os olhos para a ciência, se dispuseram a compreender melhor
como funciona. Cientistas recorreram às humanidades para entender o que se passa.
Vejo a fuga de cérebros como um crime de lesa-pátria cometido por quem
está na origem dessa diáspora. Paulo Guedes é gravado dizendo que os Estados
Unidos são o que são porque há mais de cem anos eles investem em ciência. Estranhamente,
o que é bom para os EUA não é bom para o Brasil. Ao menos, não
para o Brasil que essa gente tem na cabeça, um país fadado a ser apenas fornecedor
de carne e soja para adulto inteligente que faz vacina, iPhone, carro elétrico,
supercondutor, inteligência artificial etc. Poucas semanas depois da gravação,
Guedes bloqueou 87% dos recursos de um fundo destinado à ciência e os entregou
a ministérios gastadores capazes de ajudar o chefe a se reeleger.
Uma guerra contra a inteligência. Diante disso, não se deve estranhar que
nossa juventude esteja correndo para o embarque internacional. Sem falar na perseguição
a cientistas que teimam em dizer que a Amazônia está prestes a virar
savana, que remédio para malária cura malária, não cura Covid. Talvez a burrice
também seja fator de expulsão desses talentos. É difícil viver no meio de idiotas”.
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Todo ano espio a lista dos bilionários na revista Forbes. Uns entram, uns
saem, já os ricos de verdade continuam firmes em suas posições, entre eles, os
filhos de Walther Moreira Salles. Por que faço isso? Para ter uma ideia de onde
anda o dinheiro, em grande parte desviado de seu proprietário, o povo, e dados
recentes confirmam que o país pode elevar o salário mínimo a 7.650 reais, mas
continua em 1.212. Quantia que rico paga por um jantar, não dos mais caros.
Ressurreição de Cristo, de Rafael,
doado por Walther Moreira Salles
ao Masp (Museu de Arte de São Paulo).
Rico é diferente: ao se referir a
Walther, seu filho João disse que trabalhou
em Washington, como se fosse
um trabalhinho qualquer, na verdade,
era embaixador, e dos mais notáveis
que o Brasil teve (fez o cartaz
do país lá fora, inclusive abiscoitando
Greta Garbo). O mesmo que dizer
que um dos irmãos trabalha no Itaú, só
que é um dos patrões, assim como João
e Walther Salles, que preferiram
ser cineastas. Idem, dos mais notáveis.
Laura de Vison
Descarto boate (muito barulho para nada, nem se pode conversar), mas fui
à Casanova, ambiente LGBT & Cia. Ilimitada, no Rio, único jeito de ver Carmen
Costa, que só vira num recital de música sacra, no Outeiro da Glória, eu ao lado
de Orlando Silva. Desfilou seus sucessos e arrasou ao cantar A outra, eis o final:
“Não tenho nome, trago um coração ferido, mas tenho muito mais classe do que
quem não soube prender o marido”. Rolou também um monólogo impagável do
travesti Marisa Caveira (Sapeca já comentou), números de imitações de Bethânia
(tinha um retratão dela na parede), Gal, Liza Minelli e um sketch bastante
vulgar, por Laura de Vison (ilustração acima). À noite, travesti, de dia, professor,
usando paletó abotoado para disfarçar os peitos. E assim o/a vi num supermercado,
no que a empregadinha gritou: “Dona Laura, vai detergente?”. Um senhor de
boa aparência, chamado de dona Laura, causou certa estranheza na freguesia.
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O charme da Casa Cavé
A história dos costumes situa a belle époque entre 1871 e 1914, período de paz
na Europa, findo com a I Guerra Mundial. Pois a Casa Cavé (pronuncia-se Cavê)
foi fundada antes, em 1860, por Auguste Charles Felix Cavé, um imigrante francês
e até hoje, questão de bom gosto, a confeitaria conserva o aspecto original.
Lustres, vitrais e vidros franceses, cadeiras, mesas de madeira e pintura a guache
sobre placas de vidro por Francisco Puig Domenech Colon, um imigrante espanhol
radicado no Brasil. E ilustres fregueses: Dom Pedro II, Machado de Assis,
Oswaldo Cruz, Rui Barbosa, Chiquinha Gonzaga, Olavo Bilac, Juscelino Kubitschek,
Nelson Rodrigues e muitas outras personalidades da nossa história eram
habitués do local, no centro do Rio. Sua vizinha Confeitaria Colombo, mais famosa
e até mais aristocrática, também se mantém preservada, vamos a ela depois.
Estive na Cavé em tarde chuvosa e tomei vinho do Porto, o tempo pedia.
• • •
Fundada por dois portugueses em
1894, em estilo art nouveau, a Colombo
é uma das mais belas confeitarias
do mundo. Patrimônio cultural
e artístico da cidade, sua história está
associada à história urbana carioca,
pois inspirou até marcha de carnaval:
“O velho, na porta da Colombo, é
um assombro, sassaricando”. Vale espiar
os famosos espelhos belgas (iguais
aos do Clube Comercial, na Ktá
belle époque), a cúpula, molduras e
vitrines em jacarandá, bancadas de
mármore italiano, os lustres, o piso.
É luxo só. Eu tomava guaraná
Caçula (só tinha lá) no balcão e
almocei, uma vez. Na mesa ao lado,
adivinhe quem: Ronnie Von.
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Terra em transe 50 anos
Sérgio Augusto/2017
E assim se passaram 50 anos. Em 3 de maio de 1967, Terra em Transe, de
Glauber Rocha, foi exibido no Festival de Cannes; cinco dias depois estreou no
Rio; e em 16 de maio atraiu uma multidão de cinéfilos ao Museu da Imagem e do
Som carioca para um debate memorável, o mais concorrido de sua história. O
auditório apinhado, gente em pé e sentada no chão, plateia multiplicada nas salas
contíguas. Por que tamanho interesse por uma discussão em torno de um filme?
Não era um filme qualquer, mas o primeiro de Glauber depois de Deus e o
Diabo na Terra do Sol. Além da natural expectativa gerada pelo terceiro e impactante
longa do cineasta, Terra em Transe acabara de ser liberado pela censura
e fazia uma semana que dividia a opinião do público e da crítica. Mais execrado
do que admirado, acusado de confuso, incompreensível e excessivamente alegórico,
inclusive ou sobretudo por uma ala da esquerda que exigia dos filmes políticos
uma explicitude de difícil trânsito pela censura da ditadura militar e incompatível
com as opções estéticas de Glauber.
No quadro de cotações dos críticos do jornal Correio da Manhã, Terra em
Transe levou uma saraivada de bolas pretas. No então mais prestigiado similar, o
Jornal do Brasil, a recepção foi menos negativa: apenas uma bola preta (de Ely
Azeredo) e quatro notas elevadas (de Alex Vianny, Mauricio Gomes Leite, José
Carlo Avellar e deste colunista).
Em abril, com o filme recém-proibido pela censura por incitar a subversão
e ser irreverente com a Igreja, um manifesto assinado em Paris por Yves Montand,
Simone Signoret e toda a Nouvelle Vague aumentou a pressão sobre o governo,
e o ministro da Justiça, Gama e Silva, afinal o liberou. Numa conversa
com o cantor Roberto Carlos, o abominável Gaminha deixaria escapar que só
suspendera a proibição do filme porque nenhum dos encarregados de julgá-lo
entendera patavina do que se passava na tela. Convicto de que o público tampouco
o entenderia, o ministro exigiu apenas que o personagem de Jofre Soares, genericamente
identificado como “padre”, ganhasse um nome nos créditos.
A ida a Cannes foi outra lenha. Donatelo Grieco, chefe da Divisão Cultural
do Itamaraty, pediu a interdição do filme no festival. A direção da mostra limitou-se
a exigir uma simples autorização do governo brasileiro para exibi-lo.
Podia ser até por telegrama. Zelito Viana, diretor de produção do filme, ditou os
termos da autorização por telefone a Glauber, que a redigiu e telegrafou, desmo-
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ralizando Donatelo e encerrando a conversa. De lambujem, saiu de Cannes com
dois prêmios: o da crítica internacional (Fipresci) e o Luis Buñuel.
E finalmente chegamos ao debate histórico. Como secretário-geral do
Conselho Superior de Cultura Cinematográfica do MIS, coube a mim organizá-lo
e mediá-lo. O nome pomposo fora inventado pelo diretor do museu, Ricardo
Cravo Albim, e batizava todos os conselhos (de teatro, música etc.) responsáveis
pela distribuição anual dos troféus Golfinho de Ouro e Estácio de Sá. À minha
direita, sentaram-se Luiz Carlos Barreto (diretor de fotografia de Terra em Transe)
e o crítico Mauricio Gomes Leite; à minha esquerda, o cineasta Alberto Salvá,
Fernando Gabeira e o crítico Ronaldo Monteiro. De pé, atrás da mesa, o crítico
e historiador Alex Viany.
Quatro daqueles sete já morreram! Gabeira e Salvá eram os únicos com
uma visão negativa de Terra em Transe. Ainda faltavam dois anos para Gabeira
envolver-se com a luta armada e não sei quantos mais para ele rever sua posição,
na época bitolada por uma exagerada ênfase no conteúdo político dos filmes,
como ele próprio admitiria, ao voltar do exílio – e há dias reiterou num podcast
sobre o debate, que por esses dias estará disponível no site da revista Piauí.
Glauber não compareceu ao debate porque estava na Europa. Eduardo Escorel,
o jovem montador do filme, chegou atrasado, na companhia de Joaquim
Pedro de Andrade, e, depois de atravessarem a massa humana que lotava o auditório,
postaram-se atrás dos debatedores. Do auditório, a certa altura, emergiu a
imponente figura do psicanalista Hélio Pellegrino. Convidado por Barreto a assumir
seu lugar na mesa, Hélio deu um show. Com sua voz estentórea, contestou
os argumentos dos que reduziram o filme a um amontoado caótico de cenas,
cheio de som e fúria, significando nada para o chamado grande público. Em
1991, no décimo aniversário de morte de Glauber, Hélio retomou suas impressões
sobre o filme num arrebatado ensaio publicado no Caderno B do JB.
Uma cópia em áudio do debate permitiu que Escorel o reavaliasse e a partir
dele escrevesse uma reflexão que sairá na Piauí. Ouvi trechos, durante a gravação
do podcast acima mencionado, e uma vez mais me diverti à beça com a intervenção
do momesco Clovis Bornay. Sentado na primeira fila, à paisana, ou
seja, sem a fantasia imperial com que aparece na tela e desfilava nas passarelas
carnavalescas, Bornay confessou não haver entendido o filme nem seu papel,
meramente decorativo, descreveu em detalhes pitorescos como Glauber dirigia os
atores e reclamou do Escorel, que lhe havia cortado as melhores cenas.
Fora dali, a coisa mais engraçada gerada pela polêmica em torno de Terra
em Transe foi crônica de Nelson Rodrigues publicada no Correio da Manhã, justo
no dia do debate. Além de comparar o filme a um ideograma chinês de cabeça
pra baixo, Nelson confessou só ter gostado da cena em que “dão a palavra ao povo
e este faz uma pausa ensurdecedora” por ser, segundo ele, débil mental.
Nelson, porém, saiu do cinema “sentindo nas entranhas o seu rumor”. Depois
de uma conversa ao telefone com seu grande amigo Hélio Pellegrino, convenceu-se
de que Terra em Transe “era o Brasil” e que Glauber nos dera “um
vômito triunfal”. Aos gritos de “genial!”, em uníssono com Hélio, arrematou:
“Os Sertões de Euclides da Cunha também foi o Brasil vomitado. E qualquer
obra de arte para ter sentido no Brasil precisa ser essa golfada hedionda”.
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Contos consistentes confirmam
talento de escritor
Prefácio meio sapeca para o livro abaixo citado, a sair.
Quando recebi o livro de crônicas Fantasias de meia-pataca, respondi, por
e-mail: “Acontece que José Antonio Pereira leva jeito para escritor”. Levar jeito,
em qualquer rumo da cultura, sempre espinhoso, já é meio caminho andado. Crônicas
às vezes fantasiosas, que prefiguravam o contista que agora nos oferece
este A cidade equivocada. Instintivamente, ou não, ele escreve com “a pena da
galhofa e a tinta da melancolia”, como ensinou Machado de Assis, lição ainda
não aprendida por muitos veteranos. E não é dos que contam vantagens sobre sua
aldeia, apenas a apresenta, e seus defeitos, sem dourar a pílula.
Numa das crônicas com cara de conto há um deputado cujo sobrenome
reúne duas famílias locais, rivais e poderosas, não direi quais, porque pode dar
bode. Digamos que sejam Montecchio e Capuleto, como em Romeu e Julieta, de
Shakespeare, ou, para ficar nas Minas Gerais, Bonifácio e Bias Fortes, de Barbacena.
Zeantonio faz picadinho do deputado, enquanto o leitor se diverte.
Daquele livro para o atual, o autor amadureceu e seu primeiro conto, A
cidade equivocada, que dá título à coletânea, gira em torno de dois voluntários,
únicos que se dispuseram a “fazer quarto”, isto é, velar um defunto, no linguajar
lá da roça, no caso, um indigente de quem só sabem o apelido: Pinta Roxa. Por
acaso, tive um primo com apelido igual, que saiu de Miraí e prosperou no Paraná.
Seu homônimo falecido, ao contrário, vivia de favores, tendo tido algum estudo,
pois até cometia versos, além de rezar em latim e ofender os figurões, como uma
consciência coletiva, dizendo o que a cidade não quer ouvir.
O conto cheira a velas acesas, cachaça, fezes e urina, por conta daquele
morador de rua, que quando se banha é no chafariz, em cuja água os meninos
esvaziam a bexiga. Isso acontece em muitas cidades e, como o nosso anti-herói,
aproveitam para lavar suas roupas. A diferença é que o nosso lava o rosto com
água benta, ao acordar sob a marquise da matriz. Tem uma rixa com o sacristão,
o padre e as irmãs de caridade, como chamavam as freiras (entre outras funções,
elas trabalhavam em hospitais), além de implicar com a torre da igreja que ora
lhe parece uma bala de canhão (como também observou Marques Rebelo, no
conto Acudiram três cavalheiros), ora “o pinguelo duro do padre velho”.
O cortejo fúnebre é formado apenas pelos dois voluntários e o papadefunto.
A certa altura, surge um vereador oportunista que se bandeia para outro
cortejo, gente endinheirada, de quem com certeza obterá preciosos votos.
Pulemos para o conto seguinte, O vendedor de pirulitos, onde se lê, no
início: Ninguém o chamava pelo nome. Era, o tempo todo, “E aí, Neguinho?”,
“Vem cá, Tição!”, “Racha fora, Tiziu!”, “Passa daqui, Criolim!”.
Menino que nem conheceu o pai, morto de febre amarela, moléstia que já
foi epidemia em Cataguases, contida por aterros em áreas pantanosas; a mãe,
operária sem carteira assinada, de tuberculose, anos depois. O sindicalista José
Rosa, que se tratou dessa doença em Juiz de Fora, disse que os enfermeiros caço-
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avam quando chegava mais um daqui, o sanatório abarrotado de cataguasenses.
Os operários andavam descalços (os mais prósperos, de tamancos) e sem guardachuva,
além de subnutridos, um campo fértil para o bacilo de Koch e outras macacoas.
Segundo José Rosa, uma cabeça de boi comprada em dia de pagamento
era festa em casa. Também compravam sangue de boi, outra festa.
No restante do mês, o cardápio podia ser “angu com taioba e feijão sem
alho”, como na casa do menino e sua vó Bastiana. Ela, com “expressão de cansaço
e resignação”, a muito custo conseguiu um tabuleiro e ele foi vender pirulitos.
Não tinha muita saída, devido à concorrência, incluindo vendedores de picolé.
Tomavam seus pirulitos e ainda lhe davam uns bons cascudos, e demarcavam
seus territórios, barrando sua entrada. Um dia, milagre, um jogo de futebol em
que vendeu tudo, menos os que o porteiro lhe afanou. Alegria de pobre dura pouco,
diz o ditado, e houve um incidente, sobrevindo uma tragédia. Humano, demasiado
humano, poderia ser o título, inspirado em Nietzsche.
O terceiro conto é Entre pés, passado em loja de sapatos, onde um adolescente
consegue seu segundo emprego. E o primeiro alumbramento, por causa de
uma colega que, ao arrumar a vitrine, esbanja sensualidade. Afogueia-se também
quando tem que ajudar uma ou outra freguesa a experimentar sapatos, a mão tocando
“pelos dourados em pernas tão belas”. Logo, vai tocar outra coisa, no banheiro,
a toda pressa, o que passa a ocorrer com frequência.
Buñuel fez alguns filmes com homens tarados por pés e sapatos femininos
e em Beijos roubados, de Truffaut, o desajeitado balconista se apaixona pela mulher
do patrão, entre outros motivos, seus elegantes pés experimentando os ditos.
Casos de fetichismo, praticado em geral por adultos e torçamos para que o rapazinho
não entre nessa. No mais, um orgasmo em sonho com a colega e nisso se
resume sua vida, num tempo em que os jovens eram menos precoces. Agora, basta
dizer que ouvi uma estudante contar para outra: “Com doze anos eu perdi o
meu bebê”. Antes, nessa idade, elas ainda brincavam de boneca.
De um conto sobre a repressão da libido, vamos a outro, em que a liberação
é escancarada, chamado Devotos do Santelena. No masculino, por se tratar
de um bordel, ou rendez-vous, como ainda se dizia na época do Aero Wyllis, um
carro de luxo usado pelo frequentador ricaço. Ficava na ilha de Santa Helena,
pouco antes de onde, hoje, num aterro, tem um importante supermercado, no
bairro Beira Rio. Nome emblemático, pois remete à ilha em que Napoleão amargou
seus últimos dias. Outros puteiros da época também tinham nomes curiosos:
Casa Branca, que lembra a sede do poder, nos Estados Unidos, e Casa Rosa, quase
Casa Rosada, cuja moradora mais serelepe foi Evita Perón.
A ilha ficava bem abaixo da rua e me impressionou a precisão de detalhes
com que Zé descreve o caminho até lá. Se for imaginação sua, tanto melhor. E
vamos entrar: noite de chuva, a enchente cobre a pontezinha que dá acesso à casa,
que fica, literalmente, ilhada. E lá estão um professor, um fazendeiro, seu capataz,
três jovens e um deles só então perde a virgindade, aos 16/17 anos. E um
pastor evangélico, ali abrigado por causa do toró, que também cai na gandaia,
mas não vou entregar o ouro, deixo ao leitor o prazer de descobrir. A descrição
das putas é um prazer à parte, melhor, repito, se for fruto da imaginação.
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E passamos da zona para a casa paroquial. Antes de chegar ali, o padre
que veio de longe rever o monsenhor e a cidade, ao ver a igreja modernista de
Santa Rita, deixou escapar: “Quanta ostentação, meu Deus!”, acostumado que
estava a igrejas rústicas, algumas de chão batido e cobertas de palha de buriti, na
região do Araguaia. Mais próximas de Cristo, talvez. Isto posto, trata-se do conto
A rua da lâmpada solitária, em cujo entorno o padre vivera e amara, na juventude.
Amou a mulher errada, comprometida com um usineiro, cujos capangas por
pouco não o liquidaram. Salvou-o o referido monsenhor. Em suas recordações, o
padre revê toda a sua história e a da cidade, desde os coronéis, ascensão e queda
do plantio de café, chegada das indústrias e coisas mais, sem se dar conta de que,
ao regressar à sua terra, cometeu um erro fatal.
E chegamos ao fim, sentindo aquele gostinho de “quero mais”. No último
conto, Ah... O mundo vai acabar!, Gino, um sujeito organizado, que não abre
mão de sua rotina, súbito, vê-se dominado por Gina, uma mulher imprevisível,
que quer praticar com ele uma foda cinematográfica, no alto de uma serra e para
lá vão de carro. Antes, se conheceram num bar, estiveram juntos algumas vezes e
se beijaram até os lábios dele ficarem ardendo. Tudo nela é meio misterioso, inclusive
o marido com quem diz que mora, o que deixa Gino cabreiro, ainda que
irremediavelmente fisgado por Gina. Lá no alto, ela promove uma espécie de
piquenique, regado a vinho espumante, tudo nos trinques, só faltou o principal.
Não poderia ser diferente, num conto escrito por José Antonio Pereira.
•
Em vida, o irreverente Pinta Roxa, personagem de um
conto de Zeantonio, muito apreciaria essas fotos.
11
VARREDOR VIROU NOME DE RUA
Na virada do milênio, Henrique Frade recebeu a encomenda de levantar
biografias das gentes que deram nome às ruas, praças, becos e avenidas de Cataguases.
Algumas, ele já havia publicado no jornal oficial, mas daquela vez seria
um apanhado completo. Para isso, contou com uma pequena equipe e o objetivo
era editar um suplemento encartado no jornal, um brinde de fim de ano. Nesse
entretempo, ocorreu uma mudança radical na política, pra pior, e o projeto pifou.
Henrique digitava em programa de computador hoje extinto e o Tobias
Mendes, prestativo, como sempre, recuperou uma cópia em Word, incompleta,
por problemas técnicos, e pus-me a ler. Muita gente do século 19, sem faltar a
coronelança, pois se trata dos pioneiros da história local, incluindo muitos portugueses.
O que mais me intrigou foram uns casos de evidente puxa-saquismo, já
que, para ser nome de rua, o mínimo que se espera é que a pessoa tenha prestado
algum serviço relevante à comunidade. Refiro-me, porém, a crianças mortas até
com meses de vida, de forma que a intenção foi apenas “confortar” as famílias.
Penso que continuar seria dar bandeira demais e pararam, que nem com os
jovens, no caso, mortos por acidentes. Aí, cresceu muito o número de acidentados,
muitos deles com o “tanque” cheio de álcool ou substâncias mais nocivas e,
seja como for, eram apenas estudantes, que não tiveram tempo de exercer a cidadania.
Agora, me parece mais sério, a julgar por lista de homenageáveis que vi na
prefeitura, médico, professor e afins, a ser submetida à Câmara. E vi um boletim
sobre a mudança (renomeação de logradouro) de praça Sandoval Azevedo para
Doutor Lídio. Na verdade, Sandoval não pegou, continuando o povo a chamá-la
de Largo do Rosário, depois, Dr. Lídio. E o PT votou contra, não entendi.
Bobagem também homenagear estados, Acre, Ceará... melhor ficar mais
perto, com uma rua Aracati, Glória, Sereno, também Leopoldina, Miraí, Dona
Euzébia, fica a dica. E achei supimpa “rua Sebastião Galdino”, varredor que nas
horas vagas fazia balaios, cestas e outras peças de artesanato em bambuí. Figura
pitoresca na Vila Minalda, era tratado por vô Bastião Galdino pelas crianças, às
quais retribuía o carinho. Acertaram ao dar o nome, pois varredor é um gênero de
primeira necessidade, não sendo prudente dizer o mesmo de certos figurões.
CEL. JOÃO DUARTE E DOUTOR NORBERTO:
– Comeu dous biscoutos e ficou doudo.
– Que cousa, hem!
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E C O S D O P A S S A D O
O título é o mesmo de um filme (não o de 2020, mas dos 1950/60) que vi
no Nelo e me lembro duma louraça num carro conversível, o que não faltava em
Hollywood, também de cena em que ela, deitada no sofá, chama com as mãos,
para que o galã a cubra, no sentido animal do verbo. E de um velho que usa bengala
e gesticula com a dita, para reforçar suas falas, verdadeira performance.
Lembrei dele quando tive que usar uma, em peça que, para mim, ficou nos ensaios.
Pois bem, no último Sapeca eu disse que meu repertório de coisas da roça
se esgotou. Porém, numa dessas tardes frias um senhor pediu para sorver sua
pinga, sentado à minha mesa. Apresentamo-nos: ele é de Santana, conhece meus
parentes de lá e lembrei que, em menino, ouvia o pessoal dizer que cobra vomita
o veneno numa folha, introduz a ponta do rabo na boca do neném, para não chorar,
enquanto ela mama na mãe. E ele: “Isso aconteceu sim, foi uma caninana”.
Perguntei: “E o senhor viu?”. Resposta: “Não, muié dos ôtro, cumé que eu ia vê”.
As pessoas acreditam em tudo, menos em Drauzio Varella, páginas atrás.
Outra: recebi cardápio da festa de Nossa Senhora, em Cataguarino. Arroz,
tutu à mineira, farofa, macarronada, salpicão, pernil ou frango, assados. Dispenso
salpicão, que não é daqui, virou um modismo, e a receita não é correta. E a farofa
tem que vir recheando o frango, como eu comia num restaurante do Rio. E era o
que se servia aos domingos, nas casas “ricas”. Cebola frita cheirava de longe.
Churrasco, só quando Ângelo Rocha, Eudaldo Lessa e famílias lá “acamparam”.
Tem um cara do Empoçado (antigo nome do arraial) que trata seu torrão
como se fosse uma Suíça, porém, conheci outro que ironizou a referida festa:
“Foi um arraso, hotéis e shoppings lotados, e o cantor veio de helicóptero”. Indaguei
pelo Aeroporto Urubu-rei e ele disse que está em obras, devido aos estragos
da enchente, mas vai ser reinaugurado por Bolsonaro e uma multidão de motoqueiros.
Esqueci de dizer que a melhor festa de lá (põe 70 anos nisso), foi uma
em que moças vendiam beijos, renda destinada ao cofre da igreja. Ele ia gostar.
Cataguarino é o único distrito com ponto de ônibus exclusivo, na Vila. No
que ainda tinha bares na área (o do Fernando Gama, sem mesas e banquetas, não
conta, é espanta-freguês), tempo da Isa ou do Russo, eu ia tomar uma cerva só
pra puxar conversa. Quanto mais idoso o interlocutor, tanto melhor. Exemplo:
um dia, um senhor comentava com o seu bisneto: “Eis lá diz que joga bola, mais
ganhá do Operaro e do Framenguim, nunca conseguiro”. Gosto que me enrosco.
13
Monólogo do F
Ary Toledo
(garçom chega a um freguês sentado à mesa)
Garçom: Que prazer ter o senhor de volta ao meu restaurante.
Freguês: Fala, figura.
G: Não tá me reconhecendo?
F: Fisionomia familiar.
G: Eu sou o garçom Fernando, atendi o senhor há uns tempos atrás aqui, é que
agora engordei, me chamam de Fernandão, o cabelo também caiu.
F: Foi fato. Ficou forte, fofão... floresta foi, ficaram fiozinhos fininhos e fracos
fazendo figuração no forro.
G: E o senhor, como está?
F: Forte e firme, feliz e faminto.
G: Tem uma mesa vazia lá fora.
F: Fora é frio, ficam os fumantes fazendo fumaceira forte, fico na frente, é fresquinho,
faz favor.
G: Seu nome é?
F: Francisco Freire Fernão Ferraz Fernandes Figueira Furtado Franco Ferreira de
Figueiredo Falcão, facinho de falar e fácil de fixar.
G: Já escolheu o que vai comer?
F: Favorito!
G: Qual é o favorito?
F: Filé de frango à francesa com fricassê de fubá, farofa, fritas, feijão, fatiazinha
de fígado, frito com farinha fina na frigideira, fica finíssimo. Falou, filhão?
G: E pra beber ?
F: Fisga no fundo do freezer uma fermentada fresquinha fazendo fumaça.
(garçom, após trazer a cerveja, diz)
G: De férias aqui em Frutal, seu Francisco?
F: Faturando o feijão dos filhos.
G: E de braço engessado! O que foi? Acidente de carro?
F: Foi.
G: Onde?
F: Friburgo.
G: Como foi?
F: Fresco num Fiat fedorento fuleiro feio ferrugento, fazendo frescura frente o
footing falhou o freio, findou de frente na fronte do fusca, o fusca me fechando
fiquei fora da faixa, furei o farol fechado, fui em frente dum furgão.
G: Uma porrada violenta.
F: Felizmente foi fraco. O furgão ficou fixo e fervendo a fricção, fui freando. Fiz
uns ferimentozinhos, feri a fronte, a face e fraturei a falange.
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G: Tá cheio de assinatura aí no gesso, de quem é?
F: Filhos.
G: Quantos filhos o senhor têm?
F: Five! Fabinho, Flávio, Fernando, Fátima e Fabiana.
G: A Fabiana! Sua filha mais velha, estava estudando, já se formou?
F: Formou! Fez faculdade em Friburgo, formou-se em filosofia. Fiz festa de formatura
fantástica, Fabiana ficou feliz.
G: Ela até ajudava o senhor na sua indústria aqui, né? O senhor não tem uma indústria?
F: Fabriquinha...
G: De que era mesmo?
F: Fundição. Fazia forno de flandres, ferrete, ferradura, ferrolho, fechadura, faca,
foice, facão, fivela, funil, formão, fieira, fio farpado, fabricava ferramentas fundidas
em ferro forjado.
G: Ainda tem a fábrica?
F: Fechei...
G: Por quê?
F: Faliu... faltou financiamento... fator financeiro foi fundamental. Fora fiscais
federais fazendo fiscalização feroz... Fornecedores falhando, funcionários ficando
em férias forçadas, faturamento fraquíssimo... o ferro ficou faltando, fui à falência.
Foi feio o fracasso e fui forçado a fechar a firma.
G: E agora, o senhor trabalha em quê?
F: Faço feiras e festas! Feriadão de finados fui a Fortaleza, fiz a festa das felinas,
foi formidável, fui a Florianópolis, fiz o festival do figo em Floripa, fui a Franca
fazer a famosa Feira Francal, finalmente fui fiscal nas firmas franqueadas da feira
filantrópica de fomento à fundição de Frutal.
G: O senhor está morando aqui em Frutal?
F: A fim de facilitar Fabiana fixei-me em Friburgo.
G: Facilitar o quê?
F: Fica focado, Fernando! Fósforo, fosfato fixa, filho, eu falei: Faculdade Filosofia
Fabiana fazia Friburgo fiquei.
G: Onde tem aquele time fazendo sucesso no Campeonato Carioca?
F: Friburguense!
G: Torce pra ele?
F: Falhou feio! Futebol Flamengo fiquei fã fanático e fervoroso.
G: Tá mal o time, né?
F: Fase! Flazão na final não falha! Na finalíssima é fogo. Fica feito furacão, faz a
felicidade da família flamenguista fazendo fla-flu final. Faz a faixa fácil! Fluminense
é freguês. Fazendo futebol fajuto feio fraquinho fica fora facilmente fazendo
figuração, Flamengão flamejante faz a festa final!
G: Por falar em festa, teve festa aqui semana passada... O senhor foi?
F: Fui. Festa à fantasia fiquei fascinado! Fêmeas fantásticas, Fernandão, fiquei
flertando.
G: Mas o senhor não é casado?
F: Fui.
G: E a esposa, dona...
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F: Filomena. Faleceu. Fevereiro.
G: De quê?
F: Fumo.
G: Pulmão?
F: Faringe.
G: Enfizema?
F: Fibrose.
G: Fumava muito?
F: Famigeradamente.
G: Por que não falava para ela parar?
F: Falava frequentemente. Fumante é fogo. Falar que fumo é fatal fica uma fera.
Falava: Filó, fumo fissura a faringe, forma fibrose, Filó não fazia fé no que falava,
fumava feito fornalha, Fernando, foi um flagelo! Foi ficando fina fragilizada
fininha frequentemente febril, foi ficando em frangalhos, foi fatal, faleceu. Fiz
um funeral à falecida, familiar, fechado, foi uma fatalidade, ficar falando de Filozinha,
fico na fossa, Fernando!
G: O senhor perdeu uma grande esposa, é natural.
F: Foi... Filó foi figura fantástica, forte, firme, fiel, fissurada nos filhos, fêmea de
fibra, Fernando, faz falta a falecida.
G: Vamos mudar de assunto... agora que já almoçou... a sobremesa?
F: Frutas frescas: figo, framboesa flambada... fica finíssimo.
G: Perfeitamente... depois vou trazer um cafezinho da hora.
F: Falou, Fernandão.
(após o café )
G: Que tal ?
F: Formidável. Fresquinho forte e fervendo. Não ficou o famoso fraco fedido e
fino, feio e fedorento, feito em filtro furado no fundo formiga fazendo festa faz
freguês ficar furioso.
G: Seu Francisco, pra encerrar, o senhor fala tudo com F, é impressionante sua
facilidade.
F: Fato, a facilidade, falar em F é fichinha, falo fluentemente sem fazer força,
forma de falar, frases fluem facilmente fico falando de farra.
G: Então eu proponho um desafio: se o senhor falar mais quinze palavras com F
sobre o almoço não precisa pagar a conta.
F: Feito. Filé de frango à francesa fatiado em fatias finas, fritando na frigideira
ficando fiado, fico feliz e freguês fiel.
G: Se ferrou, eu contei, só deu 14.
F: Foda-se .
(e foi-se)
FIM
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