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Sapeca n°34

Misto de sapo e perereca Nº 34– Dezembro/2021– Editor: Tonico Soares e-mail: ajaimesoares@hotmail.com

Misto de sapo e perereca
Nº 34– Dezembro/2021– Editor: Tonico Soares
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Sapeca

Misto de sapo e perereca

Nº 34 – Fevereiro/2022 – Editor: Tonico Soares

e-mail: ajaimesoares@hotmail.com

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MUSA DESTA EDIÇÃO

Grace Kelly – Bem-nascida, quis ser atriz e tomou providências, uma delas,

deixar de ser virgem, um tabu, na época. E logo chegou ao topo, ao ser contemplada

com o Oscar. Num banquete durante o Festival de Cannes, o príncipe de

Mônaco, então um dos solteiros mais cobiçados do mundo, a pediu “em noivado”,

com a condição de que deixasse o cinema. Pedido atendido. Na verdade, as

finanças do principado iam mal, tendo o trilionário Onassis tentado comprá-lo e

com ele o título de príncipe. Não conseguindo, sugeriu ao nobre casar-se com

uma estrela de cinema. Aí, os refletores apontaram para Mônaco e choveram investimentos,

tendo o próprio Onassis erguido lá um mega complexo hoteleiro. E

Grace interpretou o papel com a elegância de sempre, até morrer num acidente.

Deixou os filhos Albert, atual governante, Caroline e Stéphanie, elas, objeto do

desejo de dez entre dez homens do planeta. A caçula esnobou a realeza e a burguesia,

casando-se com seu segurança. Depois , caiu nos braços de um trapezista.

1


Pelas Minas Gerais

Foto: Altamir Soares

Prefeitura Municipal de Cataguases – Prédio em linhas harmônicas,

estilo neoclássico, projeto de Agostinho Horta Barbosa, concluído em 1893, financiado

pelo coronel João Duarte Ferreira, no valor de 63 mil e 500 contos de

réis, pagáveis em prestações sempre difíceis de receber, que posteriormente foram

transformadas em títulos municipais. Bonito, imponente, sem ser original, de

qualquer forma, melhor deixá-lo de pé, para não ser substituído por algo feioso,

como ocorreu com o Cineteatro Recreio e a antiga igreja matriz, malgrado as boas

intenções das autoridades. O neoclássico, com variações art nouveau, adentrou

o século vinte, contido pelo modernismo e sua variante art dèco, simplificando o

traço, até para economizar matéria-prima, caso da Bauhaus, uma escola de desenho

industrial que optou pela função, mais que pelo ornamento, na Alemanha

derrotada na Primeira Guerra Mundial. Em linhas gerais, a arquitetura moderna

relaxou, na maioria dos casos, com a presença massacrante de prédios “caixotescos”

(tipo caixotes empilhados), como disse o pintor Luiz Sérgio França.

Diamantina. O Clube da Esquina se

acerca de Juscelino Kubitscheck, natural

da cidade. Na época, o vi chegando

ao seu banco, Denasa, ao lado da Candelária,

no Rio, chamado de “presidente”

por um passante e retribuindo com o

sorriso que era sua marca. Fiquei alegro

ma non troppo, porque não aprovei os

cabelos pintados de sua excelência. Meses

depois, que merda, a notícia de que

fora vítima de um acidente suspeito.

Mais um, no sinistro boletim de ocorrências

da ditadura. Vade retro, Satanás.

2


DE PARIS A CHICAGO

Beauvoir e Algren, duas páginas do mesmo livro, até certo ponto.

Menino, vi o trailer de O homem do braço de ouro e fiquei doido pelo filme,

que era impróprio para menores. De qualquer forma, não entenderia e tive de

me contentar com o tema musical de Elmer Bernstein, que ouvi depois até num

strip-tease na Casa Branca, famoso puteiro de Cataguases. Só o vi há pouco e

então saquei porque “braço de ouro” no título: ele tocava bateria e era invencível

no jogo de cartas. Vítima de gangues e de heroína aplicada na veia, uma tragédia

dos tempos modernos, com um Frank Sinatra surpreendentemente bom ator. Só

toma jeito por teimosia da mulher que o ama de verdade, a esposa é mau caráter.

Filme baseado em romance de Nelson Algren, que manteve um demorado

affair com Simone de Beauvoir. Em 1947, ela passou uma temporada nos Estados

Unidos e, em Chicago, conheceu o escritor. Logo, uma paixão, das boas, os

aproximou. Das boas, porque houve identificação de corpos e mentes, coisa de

gente adulta. Ela, chorando e contra a vontade dele, teve que voltar à França, onde

tinha inúmeros compromissos e continuaram entre idas e vindas por 17 anos.

O maior dos compromissos era Jean-Paul Sartre, de quem ela nunca se separou,

apesar de só terem morado juntos, pra valer, depois de mortos, no mesmo túmulo.

Fidelidade maior não há, ainda que livres para amar a quem lhes aprouvesse.

Inclusive, o primeiro romance escrito por ela, A convidada, é sobre Olga,

sua aluna, pela qual se apaixonou. Sartre, idem, sem sucesso e ficou com Wanda,

irmã de Olga, a quem sustentou pelo resto da vida. O mesmo fez Simone com

Olga, até que ela se casou com Jacques-Laurent Bost, antigo amante da Beauvoir.

Tudo civilizadamente. E voltemos a Algren, a quem Simone se dirigia em cartas,

dizendo: “Nelson, meu amor”. As viagens de avião eram demoradas e na primeira

carta, ao se separarem a primeira vez, ela conta que durou 23 horas e ainda

teve um dia ocupadíssimo. Compensou a fadiga dormindo 14 horas, só acordando

uma vez, para pensar nele e chorar um pouco. E prosseguiu: “De tanto chorar,

3


estava tão feia essa manhã que, ao cruzar com Camus na rua, ele me perguntou se

eu não estava grávida: segundo ele, minha cara não deixava dúvidas!”.

“...ao cruzar com Camus na rua”

Coisa corriqueira para eles, mal sabendo que, de certo modo, cada passo

que dessem entraria para a história. E explicou que era imprescindível voltar,

para dar continuidade às tarefas (literatura, jornalismo, palestras), pois só nelas a

vida se justifica. Dois anos depois, lançou O segundo sexo, livro que levantou a

bandeira da emancipação feminina e ao mesmo tempo confessava para Algren:

“Quero servi-lo como uma árabe''. Força de expressão, até porque ele não a subjugava,

e nenhum outro, ela sabia escolher as companhias. Livro proibido pelo

Vaticano e criticado por movimentos políticos de direita e esquerda, foi campeão

de vendas, servindo de base para as bem-sucedidas reinvindicações feministas

nas décadas seguintes, quando a mulher passou a ser vista com mais dignidade.

Com rigorosas pesquisas em diferentes disciplinas, Simone discutiu os

mitos em torno da figura feminina e rebateu teorias sobre a feminilidade elaboradas

por nomes importantes, de Aristóteles a Freud, passando por Marx e Engels.

E deu o exemplo de ser livre para muitas mulheres: comprou um apartamento

onde morava sozinha, relacionando-se com quem bem quisesse, dedicando-se

à escrita e às aulas na universidade. Poderia ter escolhido o sobrenome Sartre,

Algren, Bost ou qualquer outro, entretanto, optou por ser ela mesma.

Para ela, a mulher não é apenas vítima e a que se casa por interesse está no

mesmo nível da prostituta. E, quando o voto feminino foi liberado na França, foi

contra, dizendo que as mulheres votariam em quem o padre mandasse.

•••

O casal Montand-Signoret ladeado pelo casal Monroe-Miller

Outro caso França-Estados Unidos deu-se em 1960, quando Yves Montand

(nascido italiano) foi a Hollywood filmar Adorável pecadora, de George

Cukor, com Marilyn Monroe. Bateu saudade e Simone Signoret foi visitá-lo e

voltou a Paris, o que bastou para a imprensa fofocar que a explosiva loura (ela,

também casada, com o teatrólogo Arthur Miller) os havia separado. O que se sabe

é que, finda a filmagem, Montand e Marilyn ficaram duas horas no carro dela

com as cortinas fechadas (tinha esse luxo nos carros), aí ele tomou o avião e voltou

para Simone, não menos bonita e bem mais atriz, basta dizer que ganhou o

Oscar daquele ano e outros prêmios, mundo afora. E foram felizes para sempre.

4


Leni e Lina

Leni Riefhenstahl (1902-2003) forma com Lina Wertmüller talvez a maior

dupla de diretoras que o cinema produziu. De Leni, só vi os filmes do período

nazista. A luz azul, fenômeno recorrente numa montanha de cristal em noite de

lua cheia, causando transtornos a uma cidade, cenas arrepiantes de pessoas escalando

as alturas sem nenhuma ferramenta, uma das marcas de Lina, qual seja, o

poder da imagem. Multiplique-se por dez e temos algumas das cenas mais poderosas

sobre a encenação da farsa nazista, a exacerbada exaltação ao führer, por

ocasião do VI Congresso do Partido, no documentário O triunfo da vontade. Belo,

porém, revoltante e por isso saltei alguns trechos, para acabar mais depressa.

Mais deslumbrantes imagens mostram atletas como deuses modernos, colhendo

o fogo em Olympia, na Grécia, e revezando a tocha por vários países até

chegar a Berlim, para as Olimpíadas de 1936. Evento preparado para consagrar a

Alemanha como raça superior e, efetivamente, foi a vencedora, no total de provas.

A nota dissonante foi o negro estadunidense Jesse Owens ganhar quatro medalhas

de ouro, o que nenhum da “raça pura” conseguiu. No pós-guerra, Leni foi

presa, julgada e considerada apenas simpatizante do nazismo, mas só às próprias

custas conseguiu realizar outros filmes, sobre esportes. Já idosa, dedicou-se à

fotografia submarina e do cotidiano de negros do Sudão, com a qualidade de

sempre, não fosse uma artista à altura dos grandes mestres do cinema expressionista,

cuja influência pode-se constatar em inúmeros filmes, há cem anos.

Lina Wertmüller (1928-2021), italiana de origem suíça, morreu há pouco,

o que me levou a rever seus três filmes aos quais tive acesso. E que filmes. Mimi,

o metalúrgico, disse um crítico, “um verdadeiro Macunaíma siciliano, visto como

um herói cheio de defeitos, uma crítica da condição humana diante do capitalismo

selvagem”. A seguir, Amor e anarquia, passado num bordel que, disse outro

crítico, “é de alguma forma a própria Itália, com suas tantas almas, suas diferentes

culturas e diversas linguagens”. O terceiro é Pasqualino sete belezas, um sujeito

safado que faz de tudo para sair das encrencas em que ele mesmo se mete,

sempre de forma irônica e, não raro, grotesca, vizinha, estilisticamente, do grande

Pietro Germi, do Marco Bellochio de De punhos cerrados, do Ettore Scola de

Feios, sujos e malvados e do não menos estranho Marco Ferreri.

O cinema italiano na segunda metade do século vinte era uma mina de

talentos, como fora o alemão, na primeira (vários diretores continuaram, em Hollywood).

E ainda descubro nele coisas interessantes, como Estamos todos bem

(1990), de Guseppe Tornatore, mais conhecido pelo filme Cinema Paradiso. A

história de um pai (Mastroianni) que, descartado pelos filhos, resolve visitá-los

nas cidades grandes onde moram e não é propriamente bem recebido. Na mesma

situação vive uma senhora que ele conhece casualmente (Michèle Morgan), belíssima

aos 70 anos, sem o menor sinal de cirurgia plástica, um brinde para os

cinéfilos. Detalhe: na casa de uma das filhas passa na TV uma novela com Maitê

Proença. A moça participa de um desfile de modas, visto também nos bastidores,

em que uma colega amamenta o filho. Nunca pensei em ver isso num filme, em

geral, aquelas mulheres parecem de plástico, mas têm leite nos peitos e transmitem

vida. Assim como no peito combalido dos velhos ainda bate um coração.

5


Wayne, pele amorenada para fazer Gengis Khan, já Armendáriz era moreno por natureza.

Poeira assassina

Em 1954, o lendário (porque parou de aparecer em público) produtor e

cineasta Howard Hughes contratou duzentos e tantos profissionais para realizar o

filme Sangue de bárbaros, dirigido por Dick Powell. Cenas exteriores filmadas

em locação próxima ao Arizona, a 220 km de onde, um ano antes, onze bombas

atômicas haviam sido detonadas ao ar livre, a título de experiência, como parte

da Operação Upshot-Knothole. E o vento levou o pó radioativo, que se precipitou

justamente sobre o parque de Snow Canyon, onde a equipe passou 13 semanas,

tendo a Comissão de Energia Atômica dos EUA garantido que a área era “segura

e que os envolvidos no filme estavam livres de qualquer risco”. Conversa-fiada.

Pelo sim, pelo não, 91 dos participantes contraíram câncer, dos quais 46

vieram a morrer da doença a médio prazo, entre eles, John Wayne, Agnes Moorehead,

Susan Hayward e Pedro Armendáriz, este, um famoso ator mexicanohollywoodiano.

Todos continuaram trabalhando enquanto puderam e Pedro é

visto andando com dificuldade, os rins tomados pelo câncer, no filme Moscou

contra 007, que não conseguiu terminar, substituído em algumas cenas por um

dublê. Internou-se num hospital e, prevendo o pior, levou escondido um revólver,

que disparou contra a cabeça, quando as dores tornaram-se isuportáveis.

O médico Robert Pendleton, professor de biologia da Universidade de

Utah, afirmou que "com esses números, o caso poderia ser qualificado como epidêmico.

A conexão entre radiação atmosférica e câncer em casos individuais é

praticamente impossível de se provar conclusivamente. Mas em um grupo desta

proporção, espera-se que surjam apenas 30 ocorrências... acredito que a ligação à

exposição no set de filmagem seria suficiente para levar o caso aos tribunais”.

Epílogo: Sangue de bárbaros foi eleito pela crítica uma das 50 piores fitas

de todos os tempos, mas o público gostou, sendo o 11º filme americano mais visto

no ano do lançamento. Faltou fazerem um que poderia ter como título Poeira

assassina, em que os vilões seriam os membros da Comissão de Energia Atômica.

Gostaria de ver, pois me amarro em filme “de tribunal”. Ao vivo, assisti a

dois juris no fórum de Cataguases e achei sacal, pelo fato de os advogados que vi

em cena não convencerem, como atores, apesar de terem elevado a voz e gesticulado

como tal. E as falas soaram muito sentimentais, faltou um bom roteirista.

6


Primeira sessão de cinema no Brasil,1898, o Rio visto do navio que trouxe Paschoal Segreto

da França, onde adquiriu o equipamento e deu calote nos irmãos Lumière. A primeira

fita de ficção foi Os Estranguladores, do português António Leal (1906). Veio a

1ª Guerra Mundial e sobreveio uma crise, superada aos poucos, surgindo revistas de cinema

e o primeiro grande estúdio: Cinédia. E os ciclos regionais, como o de Cataguases.

Todo oba-oba tem seu epa-epa

O livro Metrópole à beira-mar – O Rio moderno dos anos 20 é mais um

dos indispensáveis de Ruy Castro. Impossível destacar esse ou aquele trecho,

todos formidáveis, e pincei só um, que cita gente nossa ligada ao cinema (Fusco,

em outro contexto) e, de Humberto Mauro, ele diz: “Era capaz de construir planos

deslumbrantes, com enquadramentos inesperados e efeitos notáveis de luz,

mas parecia gostar tanto deles que os deixava na tela pelo dobro do tempo que

seria necessário. Não tinha noção de ritmo e seus roteiros, rurais e ingênuos, traíam

seu natural provincianismo. As plateias não o prestigiaram”. Vale lembrar

que A noiva da cidade, escrito por ele e filmado por Alex Viany, foi um fiasco

Ruy é o primeiro crítico cuja opinião concide com a minha, em relação às

fitas de Mauro e sua temática que sempre achei jequinha, mesmo quando pretende

o contrário, caso de Argila. Para começar, boa parte da ação transcorre num

castelo (em Itaipava, ex-propriedade dos avós de Martha Suplicy), o que, fora da

Europa, soa a piada, tanto que ele foi usado também em chanchadas, vi uma, com

Oscarito. Outra opinião discordante, de Cláudio Aguiar de Almeida, em A Cena

Muda, 19/5/42: “O argumento está eivado de incoerências. Celso Guimarães,

pobre operário fazedor de moringas e panelas de barro, fora educado na Itália,

possuía instalações custosas de fotografia, fizera excursões em Marajó, onde colhera

forte cabedal de observações sobre os mistérios da arte marajoara”.

Sem plateias, só doze anos depois Mauro fez outro longa, O canto da

saudade, dedicando mais tempo a documentários, com verba federal. Fez muito

pelo nosso cinema, a questão é que todo oba-oba tem seu epa-epa (diria Ivan

Lessa) e apontar falhas é mais salutar que dourar a pílula, como costuma ocorrer

por estas bandas cá de Ktá, uma postura laudatória que nem sempre reflete a realidade.

Isenção crítica é necessário e tive um trabalho sério friamente analisado por

um sujeito, a quem agradeci, dizendo que amigo é o que puxa a orelha, não o que

passa a mão na cabeça. Lembre-se que Francisco Marcelo Cabral morou com escritores

e disse que eles se engalfinhavam o tempo todo, para o bem da literatura.

7


O Brasil tem muitos castelos, dos

ricaços até gente mais humilde, como

o da foto aí, no bairro da Penha-

RJ. Imaginem o calor, lá dentro. Fato

é que, quando os portugueses cá a-

portaram, os castelos já não eram seguros,

desde que inventaram a bala de

canhão. Persiste, contudo, certa nostalgia,

e tome gótico (não tivemos I-

dade Média), chalés normandos com

telhado pontudo (aqui não cai neve)

e o neocolonial, este até os dias de

hoje. Tudo feio, chato e burro, para

citar de novo o intrépido Ivan Lessa.

De pernas pro ar

Pode parecer conto de Carlos Sérgio Bittencourt, mas é verdade. Conheci

uma loura que exercia a profissão de scort ou que outro nome tenha a mulher

que fica de pernas pro ar, na alcova de milionários. E de alto coturno, daqueles

que ocupam suítes presidenciais em hotéis 5 estrelas, mundo afora e lá recebem

mulheres “para quatrocentos talheres”, como dizia Stanislaw Ponte Preta. Certa

vez, em casa, recebeu telefonema de um árabe do ramo do petróleo dizendo que

estava com saudade, em Tóquio, e mandaria entregar em seu endereço uma passagem

para ela ir ao encontro dele. E assim se deu, até ele voltar ao seu país e

ela ao dela, com escala em Nova Iorque. No avião, conheceu um americano e

Cupido flechou os dois. Voltou ao Rio para pegar suas coisas, resolver outras e,

de novo em NY, nos braços do novo amor, com quem se casou e teve filhos. Um

dia, aconteceu quase o pior. Quase, porque o carro que o marido dirigia bateu e

ela perdeu só uma das pernas. Pernas rombudas, no passado e tanto a incomodavam

(parecem as das minhas avós alemãs) que mandara remodelar em clínica de

lipoaspiração, cujo resultado saiu melhor que a encomenda. Enquanto durou.

Filosofia sapeca

Quem dá é o homem, fique claro,

a mulher recebe. E é também ela

quem come, em sentido figurado.

Aviso no Bar Elite, lá por 1960: TEMOS YOGOURTH (coalhada búlgara)

Uma novidade, como misto quente e Banana Split. Os iniciantes no copo iam de

St. Raphael, L’apéritif de France, versão brasileira, lógico, sendo o original mais

caro que uísque. E no ano sequinte vi a primeira antena de TV, no Hotel Villas.

8


Festa de São Sebastião, Cataguarino/2022, pena que

não tem mais Paulo Fialho vestido como o próprio.

•••

Millôr realista na Flip 2014 (trechos)

Não sou otimista, mas quando digo que estamos vivendo no melhor dos

tempos, as pessoas não percebem. Um tempo de transição, mas o mundo nunca

foi tão bom. Até 1888 era possível comprar um preto na esquina e carimbá-lo

com o seu nome. Isso mudou. Porém, como disse, não sou otimista. A palavra

poderia ser realista. Entanto, não no sentido negativo, porque quando se fala realista,

em geral se quer dizer, “tá tudo fodido e eu estou vendo a realidade”. Não é

isso. Estou vendo uma realidade em que hoje, no mundo inteiro, tem muito mais

gente usufruindo os bens da vida do que jamais houve. Tem um bilhão de pessoas

passando fome, mas são seis bilhões no planeta. Tem uma classe média hoje

que, se você for muito pessimista, dá 20% da população. Você tem dois bilhões,

ou um bilhão e meio de pessoas vivendo muito bem.

Quando começam a informatizar tudo, as pessoas vão perdendo o emprego.

Mas quando você desemprega milhões de pessoas, na minha visão, ao mesmo

tempo está criando o socialismo. Ou você arranja uma maneira de distribuir melhor

os bens da terra, ou esta porra explode. Nesse momento está explodindo,

mas ou vai explodir de uma vez ou só estamos num período de transição que pode

durar 10, 20, 30 anos. Mas um período de transição.

Da geração de hoje para a minha geração, deve ter tido um aumento de

estatura de 10 centímetros. O garoto de 17, 18 anos, bem alimentado, não tem

mais cárie. A expectativa de vida, que era de 40 anos no início do século XX,

hoje é 80. Além disso, nesse período você praticamente eliminou a dor e criou

hábitos de higiene que atingem todo mundo. Eu me lembro que quando fui pra

Europa a primeira vez, em 1952, hotéis bons só tinham banheiro no corredor.

Acho que nós sempre estivemos a reboque da tecnologia. Hoje, as pessoas

sabem muita coisa porque a informação da televisão é muito grande. Você pega

um programa do Faustão, da Hebe Camargo, tem 30 milhões de pessoas vendo.

Aí é mais fácil você dizer “estão acabando com a cultura. A TV está acabando

9


com tudo”. Mentira. Essa gente que vê TV está aumentando sua capacidade de

comunicação própria. Aí você terá 1% ou 2% ou até 10%, o que é muita gente,

de pessoas que leem. No terreno prático, não no terreno subjetivo ou intelectual,

você pega a novela que eu não sei o nome, sobre o Garibaldi (Millôr se refere à

minissérie A Casa das Sete Mulheres), aquele romance não tinha vendido nada.

Mas veio a novela e ele começou a vender.

Em geral todas as revoluções que vi e estudei dão dois passos pra frente e

três pra trás. Se você pegar aquela história da revolução na URSS, que poderia

ter sido a redenção do mundo, veja no que deu. O socialismo é uma ideia tão generosa,

tão maravilhosa, essa coisa de você abrir mão de bens seus para beneficiar

gente que não é seu primo, seu irmão, sua avó, pessoas que você não conhece,

é tão generosa que não pode dar certo. Agora, o capitalismo está preso ao umbigo

do ser humano. Este quer tomar um pouco do outro, quer ter um tapete embaixo

dos pés que custa 5 mil dólares, mas não dá dinheiro pra empregada botar a filha

no colégio. Então são as circunstâncias de pressão que vão fazendo com que isso

mude. Já modificou muito, não tem dúvida.

Um médico amigo meu me garante que daqui a 20, 30 anos a cegueira vai

ser coisa rara. Você pega lá em São Paulo, o meu amigo Glauco Mattoso está

completamente cego. Ele é um gênio, acabou de lançar um livro duca, com 300

sonetos camonianos, é maravilhoso, é um louco, né? Um louco desvairado. Mas

não é para aquela senhora ler (aponta uma mulher na outra mesa). Você dá pra

ela ler “você deve ser enrabado todos os dias”?

O setor das artes plásticas é mais controverso, ou o que tem a maior merda

evidente. Houve avanço, quando se saiu da prisão do realismo e se passou pra

cubismo, expressionismo etc. Na música, idem, e na poesia também você teve

aquela coisa da métrica etc. Mas quando você se liberta, você dá acesso a muito

mais gente, gente que entra pelo ato de audácia de fazer. Porque antigamente,

você, pra fazer um soneto, tinha que aprender. A poesia evoluiu até onde? Você

pode dizer que não vai mais fazer aqueles sonetinhos de antigamente etc. e tal,

mas e os sonetos do Augusto dos Anjos, você não vai fazer? Será que os caras

estão fazendo melhor do que aquelas coisas maravilhosas?

LETRA DE MARCHA DE CARNAVAL/1920:

Cavalheiros

Na minha casa não se racha lenha!

Damas

Na minha racha! Na minha racha!

Cavalheiros

Na minha casa não há falta d’água!

Damas

Na minha abunda! Na minha abunda!

Damas

Na minha casa não se pica fumo!

Cavalheiros

Na minha pica! Na minha pica!

•••

De Carmen Miranda a Chico Salgado, tudo

que é folião comprou na Turuna,

entre 1895 e 2020. .

10


A língua ferina de Agripino

Ruy Castro é fã de Agripino Grieco (1888-1973), cuja obra crítica não tive

o prazer de ler e dele só conheço algumas frases ásperas e espirituosas. Pelo

pouco que sei, ele não dava trégua nem se iludia com certos figurões. Um exemplo:

enumerou uma dúzia de bons escritores do Brasil de seu tempo, lembrando

que, numa abordagem que incluísse outras eras e países, aqueles nomes desapareceriam

do mapa. Ou seja, só eram importantes naquele contexto provinciano.

Estreou com o livro de poemas Ânforas e, talvez por ter o aval da Academia

Brasileira de Letras, que ele esculhambava, deixou a poesia de lado e tornouse

crítico. Crítico cítrico, pois azedava não só o chá dos “imortais” (“a sucessão

dos defuntos se opera com outros defuntos”), como tudo mais, no que nem sempre

agia certo, por exemplo, ao não aceitar Guimarães Rosa. Ninguém é perfeito.

Fixou-se no Meyer, terra de Millôr Fernandes e teve praça e escola com

seu nome. Sua biblioteca continha 40 mil títulos, que mandava encadernar, paixão

que começou na biblioteca pública de Paraíba do Sul-RJ, onde nasceu: “Os

volumes de Camilo Castelo Branco eram primeiras edições, vendidos por um

bom preço. Quando soube disso arrependi-me de não os ter roubado”. Dava para

um presídio os livros de que não gostava, jogando fora os dos acadêmicos, para

não castigar os presos duas vezes. Abaixo, um pouco de suas frases implacáveis:

• O que é um batedor de carteira senão um banqueiro apressado?

• Homero Homem: nem uma coisa, nem outra.

• Mais mentiroso que epitáfio de cemitério.

• Estilo mais engomado que irmã de caridade.

• Pitecantropo não muito ereto.

• Estava presente em espírito. Ou seja, ausência total.

• Insultavam-se mutuamente, e ambos tinham razão.

• Era um livro raro. Mais raro, entretanto, era quem o procurasse.

• O seu livro deveria ser encadernado em pele de jumento.

• Crescem cada vez mais as orelhas dos livros... e dos autores.

• Nenhum muar ficou impune nos meus cinquenta anos de crítica literária.

Certa vez, apresentado a um casal, Agripino disse para a mulher:

– Já dorminos juntos...

Estranhamento. E ele completou:

– ... numa conferência do Pedro Calmon.

O citado Calmon, por sinal, morava num chalé de telhado pontudo no fim

da rua Santa Clara, em Copacabana e conferência, hoje, se diz palestra. Já dormi

em duas, ambas em eventos da prefeitura, razão: falar em público é para quem

sabe, e tem o que dizer. Uma das vezes, foi uma nova secretária de Assistência

Social que começou rezando o Pai Nosso e emendou com uma oração evanjeca

(o Brasil é um estado laico, pô!), seguida de um longo arrazoado, prometendo

uma gestão dinâmica, vibrante, transparente etc. etc. Puxei o maior ronco.

11


Allan Sales, o Menestrel de Cariri

da Associação dos Viciados em Cunnilingus (AVC)

Há muito eu desconhecia

Uma coisa tão gostosa

Divina e maravilhosa

Que nos dá só alegria

Renova nossa energia

Pois fique o amigo sabendo

Que pra quem vive sofrendo

E morrendo na punheta

Quem nunca chupou buceta

Não sabe o que está perdendo

É tão sadio e gostoso

Degustar, lamber a xoxota

Pois só mesmo um idiota

Acha feio e perigoso

Quem for preconceituoso

Da parada saia correndo

Quem acha um ato horrendo

Desconhece tal faceta

Quem nunca chupou buceta

Não sabe o que está perdendo

Eu mesmo já fui assim

Desconhecendo tal fato

Mas hoje eu sou é grato

Pois deram o toque pra mim

Pensava que era ruim

A seiva ficar bebendo

Pentelhos ficar comendo

Chupar grelo feito teta

Quem nunca chupou buceta

Não sabe o que está perdendo

Babacas deste Brasil!

Idiotas puritanos

Vão tomar nos vossos ânus

Vão pra puta que os pariu

Pois só mesmo um imbecil

Acaba não percebendo

Como é bom ficar lambendo

A buça de uma ninfeta

Quem nunca chupou buceta

Não sabe o que está perdendo

Sei que a igreja condena

E muitos acham um horror

Os sábios lhe dão valor

Pois sabem que vale a pena

É diversão tão amena

Quando num tamo fudendo

É como fogo ardendo

Saborear sem careta

Quem nunca chupou buceta

Não sabe o que está perdendo

Chato é tirar dos dentes

Os insistentes pentelhos

Lambendo os lábios vermelhos

Das vulvas incandescentes

Gemem mulheres ardentes

Gozando lábios mordendo

Nos buscam sempre querendo

Tal brincadeira porreta

Quem nunca chupou buceta

Não sabe o que está perdendo

Os sapatões é que adoram

Pois não possuem um pau

É um ato universal

Mas que tantos ignoram

Se as xoxotas não devoram

A todos eu recomendo

Tal prazer é bom fazendo

Encarar a cara preta

Quem nunca chupou buceta

Não sabe o que está perdendo

Até D. Pedro Primeiro

O nosso monarca luso

Era um craque nesse uso

Nisso foi um costumeiro

A marquesa por inteiro

Ele chupava tremendo

Ficava a língua doendo

De tanto fazer carrapeta

Quem nunca chupou buceta

Não sabe o que está perdendo

Na certa não é errado

Também nojento não é

Pois quem gosta de mulher

Aprecia extasiado

Aqui dou meu atestado

Por isso sigo fazendo

Chupando vou aprendendo

A deixar de ser careta

Quem nunca chupou buceta

Não sabe o que está perdendo

Aqui me despeço amigos

Pois já dei o meu recado

Chupar nunca foi pecado

Assino em baixo o que digo

Um palmo abaixo do umbigo

Há um prazer estupendo

Que é degustar morrendo

Encarar a cara preta

Quem nunca chupou buceta

Não sabe o que está perdendo

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