Sapeca n° 38
Misto de sapo e perereca Nº 38 – Agosto/2022 Editor: Tonico Soares e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
Misto de sapo e perereca Nº 38 – Agosto/2022
Editor: Tonico Soares
e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
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Misto de sapo e perereca
Nº 38 – Agosto/2022 – Editor: Tonico Soares
e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
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MUSA DESTA EDIÇÃO
Pode-se dizer que Lída Baarová deu um passo em falso, ao amar o homem
errado. Mais de 60 filmes fizeram dela estrela na Tchecoslováquia, anos
1930, fama que chegou ao distante Brasil. Contratada pela UFA, a gigante alemã
do cinema, depois de alguns trabalhos comprou uma casa cujo vizinho era Joseph
Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. E ficaram dois anos in love, até que a
esposa traída contou ao führer e este puniu Lída, pelo fato de estrangeiros, raça
impura, não poderem se mesclar com alemães. Tentou voltar a Praga, impossível,
com a Gestapo nos calcanhares. Veio a II Guerra e conseguiu ir para a Itália, fez
filmes lá e quando Mussolini caiu, os aliados a enviaram para sua pátria, presa até
o Natal de 1946 – a mãe foi assassinada e uma irmã se suicidou. Tentou viver na
Argentina, não deu certo e voltou para a Itália, participando de alguns filmes, um
deles, Os boas-vidas, de Fellini (foto acima, à direita). Mais alguns anos (e filmes),
encerrou a carreira, indo para a Áustria, morrendo em 2000, aos 86.
Depósito de Pães Nossa Senhora do Rosário
A distinta senhora é invocada até para fins pecuniários e tive um colega no
Rio cujo sonho era abrir uma Agência de Propaganda Nossa Senhora Aparecida.
Voltando ainda mais no tempo, meu pai, ao retornar de uma costumeira viagem a
Cataguases, contou que abriram cá um depósito de pães, para revenda do produto.
Pode ser o mesmo e mudou de ramo por terem aberto padarias no pedaço.
Outra senhora, esposa do Pelota, disse: “Eu cozinho pros fregueses como se
fosse pros meus filhos”. Pelota era outro bar da área, em que se comia melhor, abria
aos domingos e num deles um italiano de BH, com seu namorado, un bel ragazzo,
recitou-me versos de Dante. Fechou e mudou, e só sobrou o Depósito, onde marco
ponto. Minha cota, hoje, é de duas cervas e, no frio, “um bocado de gim” (evoé!
Chico Buarque). Mas houve tempo em que me sentava ao balcão do bar do Augusto,
na avenida, via o Jornal Nacional e só saía de madrugada. Aí, já chegava
calibrado ao bar do Kim. Como se sabe, dormi lá uma noite, juntando duas mesas,
no que fui ao banheiro e ele, mais chapado que eu, fechou a casa.
Acordei pelas dez da manhã, abri uma cerveja e comi um salgado. Resolvido
o problema do jejum, bati na porta e alguém ouviu, expliquei minha situação e ele
foi à casa do proprietário, que me libertou. Algumas vezes, Kim e eu ficávamos
biritando até o amanhecer, aí íamos rebater no português, ali perto. Eu estava recém-retornado
do Rio, onde também fechei e abri bares, me sentia bem, as cidades
eram menos violentas, qual o problema? Agora, a idade não ajuda, além de ter
ouvido um brontossauro dizer que “depois das dez é a lei do cão”.
Não mais italianos dantescos, o máximo, recentemente, foi um colombiano,
para quem falei que a luz que nos ilumina é de propriedade de uma conterrânea
dele (dona da Energisa) e, para ficar em sua língua, lembrei uma história contada
por Mário Lago, que Sapeca já contou. Rememoremos: disse o Lago que trabalhava
num teatro do Rio em que a atração maior era uma rumbeira e um dia Pepe, o
marido dela, pediu aumento do salário, justificando: “Hay que mejorar el sueldo,
porque el público viene al teatro solamente por el culo de mi mujer”.
O colombiano riu às bandeiras despregadas e foi caçar mulher, no celular.
Também no DP, dia desses quem riu fui eu, quando o garçom abraçou e deslizou
suavemente a mão até a região glútea de um rapaz delicado, e este falou: “Entra na
fila, porque a procura tá maior do que a oferta”. E ali, uma já com seus trinta e
reticências chegou-se à mesa de um cara, pediu meia cerveja e informou: “Agora
eu vou trabalhar na zona, lá, pelo menos, eu tenho a freguesia garantida”.
Mulher de programa, na Vila, é o que não falta. Idem, educação: sempre que
alguém precisa de uma cadeira para ir bebericar em outra mesa, e na minha tiver
uma desocupada, pede licença, o que Roberta Close não fez, no Rio. Belíssima até
de biquíni, como a vi outra vez, na praia, ainda pré-cirurgia, o que é complicado:
peito e piroca, na mesma pessoa, não combinam, mas há quem goste e um pai de
família confessou que ser penetrado por um pedaço de carne, com dois outros batendo
nas costas é um prazer inenarrável. Confere, pois dizem que a preferência
por travestis é majoritariamente exercida por homens mal casados.
É o que digo, e Tobias Mendes faria coro: bar é a maior invenção da humanidade,
espaço democrático, sem arengas domésticas, feito praia. E vi numa delas
um tico do monte de Vênus de uma celebridade: Isabel do vôlei. “O que é bonito é
pra ser mostrado”, diria uma garota sapeca, também do Rio. Assim seja.
Forró Pelado. Massarandupió, na Bahia, recebeu a 5ª edição de forró onde ninguém
entra de roupa e é proibido dançar "armado". Evento familiar, direcionado a
casais adeptos do naturismo, embora aceite solteiro(a)s. Exige-se respeito. Um turista
disse que a praia é muito ruinzinha, o que significa pouco frequentada por
gente de fora e a ideia foi posta em prática com o objetivo de reverter esse quadro,
o que é válido. Menos para quem não tem vocação para anjinho, feito eu, animal
sempre no cio, como toda a humanidade, essa raça ainda em estágio evolucionário.
Vale lembrar que Cataguases já teve campo de nudismo, em fins do século 19, ideia
de Osório Duque Estrada, o letrista do Hino Nacional. “Deitado eternamente em
berço esplêndido”, ele escreveu. E botando pra foder, acrescento.
VOCÊ SABE O QUE É UM CARALHO?
Helder Primo – Guia de Turismo (resumido)
Nos anais da Academia Portuguesa de Letras, “caralho” era o nome da
cesta no alto dos mastros das caravelas, de onde os vigias perscrutavam o horizonte
em busca de sinais de terra à vista ou algum navio pirata. A palavra foi
também muito usada nas Cantigas de Escárnio e de Maldizer como sinônimo
de pênis, até que chegou a Contrarreforma e cortou a onda. Aquele caralho, além
de útil, era considerado lugar de castigo para marujos que cometiam infração e
eram enviados lá para cima; ficavam tão enjoados que acabavam se regenerando.
Daí, a expressão “Mandar para o caralho”. Também em outras situações:
quantas vezes, ao apreciar uma coisa que muito te agrade, não exclamaste “Isto
é do caralho!”. Se te aborreceres com alguém, vais mandá-lo para o caralho,
certamente. Também são muito comuns as expressões “É boa pra caralho”,
“Esse lugar é longe pra caralho”. Se um comerciante perde dinheiro, exclama:
“Estamos a ir pró caralho!”. Quando se encontra alguém que há muito tempo
não se vê, pergunta-se: “Onde, caralho, te meteste?”. Pois bem, leitor: que tenhas
um dia muito feliz, um dia do caralho! Um caralho de abraços para ti e a
partir deste momento poderemos dizer caralho, ou mandar alguém para o caralho,
com um pouco mais de cultura e autoridade académica.
Dez andares vazios
O coronel João Duarte trouxe três italianas junto com Catarina Zauza.
Uma se casou com um espanhol e teve o filho Isidro, o do Hotel Villas. Outra,
com um milionário e deixou uma fortuna em ações para o hospital. Da outra,
não sei. O hotel, por sinal, foi legado pelo coronel, assim como o Teatro Recreio
e outra dinheirama em ações, para o dito estabelecimento. Segundo um ex-funcionário,
ações que possibilitaram a construção daquele prédio que nunca vai
ser totalmente ocupado, pois bastariam três pavimentos, com rampas em vez de
elevadores, cuja manutenção não sai barato. O resto das ações ficaria para cobrir
eventualidades. Segundo o informante, havia o plano de instalar lá uma faculdade
de medicina, ainda assim, dez andares a mais é espaço pra caralho e o
mesmo informou que o cara que movimentava a grana deve ter dado uma gorda
mordida, levando seu quinhão. E perdeu tudo o que tinha, bem-feito. Lembrete:
essas doações nada têm a ver com a Fazenda da Fumaça, doada por Norberto
Custódio Ferreira em caráter inalienável, ou seja, inegociável.
Bombas no rio Pomba
Eu soube também que, ao construir o novo sistema de água potável, lá
por 1920, Cataguases importou bombas da Inglaterra, instaladas no rio Pomba,
diante da entrada para o Leonardo, em atividade até depois do ano 2000. Devem
ter comprado outras, talvez nacionais, ou seja, das multinacionais. Um século
atrás, porém, o rio era quase limpo, livre de resíduos industriais e muito menos
cocô boiando. Este, vá lá, é matéria orgânica, os outros podem ser até cancerígenos.
O tratamento de esgotos da Copasa só vai resolver o problema local e o
rio vem recolhendo sujeira desde Santa Bárbara do Tugúrio, Mercês, Rio
Pomba, Piraúba, Guarani, Descoberto, Astolfo Dutra e Dona Euzébia, o que não
é pouca porcaria. Quero dizer com isso que o ideal seria consumirmos água de
alguma represa, que tal a Usina Maurício? Com certeza, mais saudável: depois
de utilizada para fins energéticos, sendo a eletricidade uma energia limpa, parte
da água teria uma segunda utilidade, em pias, chuveiros, privadas, lavagem de
carro etc. Em Juiz de Fora a água vem de represas e li que em Nova Iorque,
também. Nesta, vão buscar longe, água da montanha, da melhor qualidade. Só
bebo mineral, bem mais leve e sem o gosto da filtrada, é só comparar. Ao cozinhar,
porém, vai de filtrada mesmo. Nas oropa, bebe-se á-gua da torneira ou do
chafariz, desde etruscas eras, levada do alto pelos aquedutos, quando não havia
bombas e tubulações. E hoje moradores e turistas abastecem seus cantis na rua
e vão bebendo durante as caminhadas, naquele clima de festa comum às cidades
turísticas. Aqui, melhor ficar com a mineral.
Anos Dourados & Depois
Do arquivo de Aloísio Mendonça Condé, que tive o prazer de descobrir no
Google: no antigo Clube do Remo, protegidos das intempéries por esteira de
taquara, Djalma, João Ciodaro, Gustavo, Alécio de Oliveira Reis, Chico Silva.
A cantora, com visual meio à Emilinha Borba e os demais não foram
identificados. Arquivo pequeno, mas se todo mundo fizesse o seu, muita coisa
não se perderia, neste palco iluminado que é a vida, apesar dos apagões, às
vezes, além do suportável. A propósito do Clube do Remo, agora me veio a
lembrança de que, pós-1954, quando Martha Rocha, a baiana de “belos feros
olhos verdes” (evoé! Guimarães Rosa) tirou segundo lugar no concurso Miss
Universo, toda cidade brasileira passou a eleger sua miss e Cataguases não poderia
faltar. Assim, o Remo promoveu um concurso, com a presença das misses
Espírito Santo e Volta Grande. Não sei quem ganhou, mas minhas irmãs foram
ver e ficaram encantadas. Com o evento, com o piano de Aloísio Condé, a beleza
de Geraldo Barbosa e a elegância de René Kneipp. Afora isso, só sei de miss
por aqui em 1967, nos 90 anos desta linda cidade à beira-rio plantada, quando a
nossa ganhou o título estadual, disseram que comprado. E desfilou pelas vias do
burgo modernista com faixas de boas-vindas e aplausos da multidão ufaneira,
tal qual uma globeleza. Abaixo, Aloísio, entre duas beldades.
Concurso de Rainha das Mulheres Rurais de Aracati, 2022. A de número 7
ostenta um porte de nobreza que lhe asseguraria um papel numa novela, quiçá,
um casamento com um jogador endinheirado, quesito fora de questão, pois o
júri, no caso, leva mais em conta as prendas domésticas, educação dos filhos e
coisa e tal. Gostei também da indumentária inspirada em modelos da África.
Phoenix, Arizona – Não seria mal vê-la da minha janela, de onde só avisto
coberturas de alumínio ao som de maritacas esporrentas, exceção, um dia, um belo
tucano. Phoenix fica no deserto de Sonora – lembra Sangue em Sonora, faroeste
com Marlon Brando –, região irrigada por canais abertos pelos índios muito antes
de os caras-pálidas chegarem, botando pra quebrar. Índios, como se vê, mais evoluídos
que os nossos, idem, os incas, maias e astecas. Até nisso saímos perdendo,
ainda que no fim todos tenham se ferrado, por obra e graça dos civilizados. Os
canais contribuem para a agricultura, especialmente, trigo, sob clima quente como
o nosso. Nelson Rodrigues disse que brasileiro tem complexo de vira-lata, mas
meu amigo que morou um ano e meio nos Estados Unidos não gostou de lá, fazendo
questão de ressaltar que o país dá de dez no Brasil, em matéria de belezas
naturais. Porém, “nossas praias são mais claras”, cantei, ele riu, rimos.
Ele, Paulo Henrique Souto, divulgador de produções de cinema, morto
no mês passado. Trabalhamos na Embrafilme por dez anos e ele esteve cá em Ktá
durante as filmagens de A noiva da cidade, de Alex Viany e adorou a arquitetura
do Hotel Cataguases. Acima, aparece num recorte da coluna de Joaquim Ferreira
dos Santos, no Globo. Na época, pleiteava entrar no Guinness World Records
como o ator que mais participou de filmes, fazendo “pontas” (rápidas aparições),
em quase 200 títulos. Só vi uma, no filme Cabaré Mineiro e soube de outra, com
ele dançando ao lado de Mick Jagger, do qual só sei que teve também Norma Bengell.
Trata-se de um clip gravado no Brasil, país bem curtido por Jagger, que lhe
deu um filho. E filmou aqui um longa-metragem, em 1985, Running Out of Luck,
estrelado por ele, no qual as músicas do disco são apreciadas como pequenos vídeos.
Fora Mick, destacam-se Dennis Hopper e (sempre ele) Grande Otelo.
Ruy Castro é unanimidade e vale
lembrar que o seu ídolo Nelson Rodrigues
dizia que toda unanimidade é
burra. E está em vias de entrar para a
Academia Brasileira de Letras, como
previu Augusto de Campos. Este
nunca foi unanimidade, ainda que alguns
setores mais avançados da cultura
o considerem o maior tradutor de
poesia que o Brasil já teve. Se “poesia
é o que se perde na tradução”, Augusto
consegue inverter essa assertiva
de Robert Frost. Disse e repito que a
minha geração aprendeu (sem apreender)
que a selva de Dante é tenebrosa,
quando o próprio escreveu que é selvagem.
E Augusto o resgatou. E ficou
melhor.
7
Cidadão do mundo
Anchorage, Camberra, Dar es Salaam, Port Said... Ele lia no painel do rádio,
a indicar algumas cidades que se podia sintonizar. Mais tarde, ganhou um mapa
mundi e foi descobrindo: ficam no Alaska, Austrália, Tanzânia e Egito. Locais que
visitaria, um dia, enfiou na cabeça, cantarolando a marcha apropriada:
“Tem, tem, tem um amor em cada porto,
tem, tem, tem, tem mulher e tem conforto,
quando chega a Cuba, cai nos braços da cubana,
se vai pra Nova Iorque, beija logo a americana,
repete a cena, lá em Paris,
salve o marujo, ele é que é feliz”.
Marujo, palavra mágica, o cara que conhece aqueles rincões não menos envoltos
em magia. Tinha um primo no Rio que era motorneiro de bonde, um dia, o
procurou. Natural da Serra da Neblina, como o primo, às margens da nascente de
um ribeirão, lugar onde o município de Cataguases encosta no de Miraí e no de
Guidoval, em Minas Gerais. Lugar, em si, um tanto mágico, pela altitude, clima
semelhante ao da Serra de Petrópolis. Também, pela presença das nunca vistas
onças, assim como os jacarés de um açude. Conversa do povo, ou não.
No Rio, trabalhou como copeiro de um hotel, sonhando em ser garçom de
navio, e se preparou. Fez um curso básico no Senac, que o habilitou a servir refeições
e os requintes da profissão foi adquirindo aos poucos, na prática, enquanto
estudava inglês e francês. No que surgiu a oportunidade, desapareceu do mapa e
foi singrar mares dantes navegados apenas em sua fértil imaginação.
Décadas depois, voltou para o Rio, aposentado e poliglota. Foi morar no
Posto 6, em Copacabana, passando o dia a jogar baralho com outros aposentados,
ou de conversa com os pescadores que vendiam o produto do seu trabalho no entreposto.
À noite, boemia e mulheres. Ligeiramente ruivo, era conhecido como “o
gringo” e reforçava a lenda de que fora oficial da Marinha. Dava mais status.
Um dia, saiu a nado, devolvido morto pelo mar e o laudo médico foi ataque
cardíaco. Nos preparativos para o enterro, dois amigos, em companhia de um policial,
foram apanhar roupas e sapatos para vestir o cadáver, em seu apartamento
em cima da Galeria Alasca. Viram na parede, emoldurado, um velho e encardido
mapa mundi, sem o hífen e o acento que lhe foram impostos por mais uma reforma
ortográfica. Tiraram-no da moldura, enrolaram e levaram para cobrir o caixão, à
guisa de bandeira. “Um cidadão do mundo”, deu no jornal do bairro.
8
Um pouco da Polônia, que pouco conhecemos
A Europa, cujo território é um Brasil com um Amazonas e uma Bahia a mais,
tem 50 países e fala 50 línguas, ou mais que isso, daí, vez em quando um estranha
o outro, cobiçando suas riquezas, como vemos agora a Rússia oprimindo a Ucrânia.
Acredito que vai ser sempre assim, como tem sido desde sempre.
Em tempos mais recentes, a Polônia foi dominada pela Prússia, Rússia e Áustria,
depois, Hitler e Stalin. Entanto, um país desenvolvido, economia avançada e
padrões de vida elevados. Apesar dos estragos da II Guerra, preserva grande parte
do patrimônio cultural. Para superar tantos revezes, é preciso uma cultura sólida,
capaz de produzir um Copérnico, que deu a partida para o fim do sistema geocêntrico,
com correções de Kepler e Galileu (contra a voz das autoridades eclesiásticas),
o que na Grécia já se sabia, mas a verdade custa a triunfar.
Também madame Marie Curie, sobrenome adotado do marido Pierre Joliot
Curie, com quem ela trabalhava, e Antoine Henri Becquerel, que descobriram o
rádio, um elemento dois milhões de vezes mais radioativo que o urânio. Para tanto,
conseguiram do governo austríaco uma tonelada de pechblenda (óxido de urânio)
extraída das minas de Joachimstal, localizadas na Boêmia (República Tcheca). E,
com o rádio, estava descoberta a radioatividade. Outro elemento que descobriram
foi o polônio, assim batizado em homenagem à terra dela. O marido morreu atropelado
por uma carruagem e ela, de leucemia, devido à exposição a radiações. Em
1944 foi descoberto outro elemento químico, o cúrio, nome dado em homenagem
ao casal. Tudo aquilo foi possível porque o pai dela financiou sua ida para a França,
onde pôde desenvolver o seu trabalho a contento. Países prósperos atraem cérebros
privilegiados, o que os torna ainda mais prósperos.
A Polônia também tem bom cinema e vários de seus diretores realizaram boa
parte de sua obra no exterior. A “madrinha” deles pode ser Pola Negri, primeira
atriz estrangeira a fazer sucesso em Hollywood, vide foto acima. À sua esquerda,
foto de monumento a Kieslowski, ao que tudo indica, o maior cineasta polaco, ao
lado de Skolimowski, Kawalerowicz, Wajda, Polanski, para citar apenas os mais
conhecidos. Antes deles, Rudolph Maté (melhor fotógrafo que diretor) e Alexander
Ford. Deste, vi Os cavaleiros teutônicos, um épico poético que tem uma sequência
para ficar na história: num banquete, anões pulam pra lá e pra cá em cima
da mesa, em meio a “vinhos finos, cristais” (verso de valsa de Paulinho da Viola-
Capinam). Isto posto, no velho mundo, mesmo países de menor envergadura dão
seu contributo à evolução da espécie (Portugal, Índia e Escócia são craques em
informática). Já a América Latina não fode nem sai de cima.
9
Mais uma entrevista (nunca é demais) com Luiz Ruffato
“Gosto de ler algo que desafie a minha inteligência, que me faça sair do
meu lugar de conforto, que me transforme.” – Ruffato, durante o Congresso
Culture e Letterature in Dialogo: identità in movimento, 12 a 14 de maio de 2016,
Università degli Studi di Perugia, Itália, segmento Tavola plenaria Narrare il
mondo in portoghese, em entrevista à investigadora Spontina Bongo.
Bongo: Como você desenvolveu a vocação de escritor?
Ruffato: Na minha casa não tinha livros. Meu pai, Sebastião, um pipoqueiro semianalfabeto,
e minha mãe, Geni, uma lavadeira de roupas analfabeta, sabiam da importância
da educação para o futuro dos três filhos, mas lutavam com muitas dificuldades
pela sobrevivência cotidiana.
Antes dos 12 anos, eu lia algumas coisas que por acaso caíam em minhas
mãos, revistas em quadrinhos, bulas de remédio, jornais que embrulhavam verduras,
até mesmo algum livro (lembro-me, por exemplo, de um título, Os últimos
dias de Pompeia, de Lord Bulwer-Lytton, avidamente consumido numa tarde de
calor, às escondidas, no quarto de uma vizinha costureira, sombrio e abafado...).
Mas, um dia, meu pai e eu estávamos trabalhando numa das praças de Cataguases,
minha cidade natal, num domingo após a missa das sete horas, quando
um senhor se aproximou e, após comprar um pacotinho de pipoca, perguntou se
eu estava estudando e onde. Meu pai respondeu que sim e declinou o nome de uma
péssima escola, em fama e ensino. Ele perguntou por que eu não estava no Colégio
Cataguases, uma ótima escola pública, onde estudava a elite econômica. Meu pai
explicou que todos os anos tentava uma vaga, mas nunca conseguia. O homem,
talvez condoído, naquele momento, pela postura humildemente decepcionada do
meu pai, falou que era diretor lá e que no ano seguinte ele garantiria minha matrícula.
E assim foi. No Colégio Cataguases as aulas eram de manhã e os colegas
estranhos. Fui designado para uma classe de repetentes (a maioria por indisciplina)
e não consegui me adaptar ao novo ambiente. Comecei então a, nos intervalos, me
afastar para os cantos. Até que um dia descobri, maravilhado, que existia um lugar
tranquilo, silencioso, pouco frequentado... E passei a fazer daquele espaço, a biblioteca,
o meu refúgio.
Só que, após me ver várias vezes por ali, sentado sem fazer nada, a bibliotecária
provavelmente pensou que eu quisesse o empréstimo de um livro, mas que,
por algum motivo, vergonha talvez, eu não tivesse coragem de me dirigir a ela.
Então, tomando a iniciativa, ela me chamou um dia, preencheu uma ficha, colocou
um livro em minha mão e disse: Leva esse, leia e me devolva daqui a tantos dias...
Eu, muito tímido, não contestei. Enrubescido, peguei a brochura, enfiei na pasta e
carreguei para casa.
Quando cheguei, a primeira coisa que meu pai perguntou, como ele fazia
sempre que aparecíamos com algo diferente em casa, foi: O que é isso, menino?
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Eu respondi, sem graça: Um livro. E ele: Onde você pegou isso, menino? Eu: peguei
não, pai, foi a moça lá que me deu... Ele: Deu? Eu: É, ela falou pra eu ler e
devolver pra ela. Ele: Se ela falou pra você ler, vai ler então!
Dias depois, levei-o de volta, e a bibliotecária perguntou, desconfiada: Leu
o livro? Respondi: Sim, senhora. E ela, exultante, falou: Que bom! Então, tome
este. Eu, obediente, levei-o para casa, li, devolvi, e ela, achando que havia conquistado
um novo leitor, passou o ano inteiro me emprestando livros. Lembro, por
exemplo, que li todos os volumes do Tesouro da Juventude...
Ao fim daquele ano, inadaptado ainda, saí do Colégio Cataguases e voltei
para o Antônio Amaro, onde, estudando à noite, retomei o trabalho durante o dia
(balconista de armarinho, operário têxtil). Mas, de alguma maneira, havia sido contaminado
pelo vírus da leitura.
Aquele primeiro livro, que não sei por que estava naquela biblioteca e muito
menos porque a bibliotecária achou que eu iria gostar, me mudou completamente.
O livro se intitulava Bábi Iar, do escritor ucraniano, à época soviético, Anatoly
Kuznetsov, e era um documentário ficcionalizado de um massacre de judeus pelo
exército alemão em Kiev.
Foi quando, pela primeira vez, tomei consciência de várias coisas ao mesmo
tempo: de que o mundo era mais amplo que eu imaginava (até então eu conhecia,
fora de Cataguases, apenas Ubá e Rodeiro, onde moravam meus parentes, e Santos
Dumont, onde meu pai permaneceu durante um ano internado num sanatório para
tuberculosos); e que neste mundo amplo havia outras línguas, outros povos, outras
religiões, outros climas, outras geografias; e que neste mundo amplo havia também
a perversidade, a violência, a estupidez extremadas – ao fim e ao cabo, descobri
que o mundo era barbárie e era civilização...
E em pleno outono cataguasense (modo de dizer, porque lá é sempre verão...)
eu senti o frio glacial da Ucrânia, e senti medo e compaixão, e percebi que
mais dia menos dia teria de deixar o conforto, ainda que precário, mas conforto,
da casa dos meus pais, da minha cidade, para, atravessando os morros que circundam
Cataguases, ver o que haveria alhures...
Passei a dizer para todo mundo, sem saber exatamente o que significava
isso, que queria ser escritor, para desespero da minha mãe...
Bongo: Qual é o papel da leitura na criação das suas obras?
Ruffato: Um dos meus primeiros contatos com a literatura foi com a literatura experimental...
Acho que isso me causou danos irreversíveis, porque até hoje os meus
autores preferidos são os que fazem experiências com as linguagens... Então, desde
essa época, venho lendo de maneira quase obsessiva.
Claro, no começo, como disse, de maneira absolutamente caótica: até hoje,
às vezes pego um livro e reconheço que já o havia lido um dia, sem saber... Depois,
de maneira mais organizada. Mas tento ler todos os dias. Nem sempre só coisas
que me agradam, claro, pois, como escritor profissional, muitas vezes sou obrigado
a fazer leituras profissionais, mas busco sempre ter algum prazer na leitura – prazer
estético, entenda-se, como me extasiar com a forma como um escritor conduziu
sua história, ou como um poeta constituiu imagens singulares...
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É estranho, porque a experiência da leitura, no meu caso, se desdobrou
quase concomitantemente com a necessidade de me expressar. Logo após o impacto
das primeiras coisas lidas, escrevi meu primeiro livro, aos quinze anos, um
pequeno romance, Domingo o almoço é lá em casa, que contava a história de uma
família que largava a roça pela cidade e as agruras deste deslocamento, batido à
máquina numa Hermes Baby. Ou seja, minha primeira experiência foi na prosa,
não, como seria natural, na poesia...
Bongo: Numa entrevista você declarou: "O jornalismo me deu duas contribuições
importantes: a disciplina e a certeza de que não existe inspiração, mas trabalho".
Poderia esclarecer esta afirmação? Esse foi o legado do jornalista ao escritor?
Ruffato: Nunca me considerei jornalista. Sempre estive na cozinha da redação, ou
seja, sempre trabalhei com edição. No meu caso específico, o jornalismo não contribuiu
nem prejudicou minha opção pela literatura. O que trouxe do jornalismo é
um certo olhar interessado na realidade, talvez, e com certeza, a disciplina para
trabalhar.
Bongo: Como você define o seu projeto literário?
Ruffato: Depois da experiência do romance-mosaico Eles eram muitos cavalos,
que tem como personagem principal a cidade de São Paulo, comecei a elaborar o
Inferno provisório, que recupera e amplia a proposta formal anterior, desta vez
perseguindo uma reflexão sobre a formação e evolução do proletariado brasileiro
a partir da década de 1950, quando tem início a profunda mudança do nosso perfil
socioeconômico. Em cinquenta anos, passamos de uma sociedade agrária para uma
sociedade pós-industrial – história que bem poderia ser sintetizada nos versos do
compositor Caetano Veloso: "aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína".
Projetado idealmente para cinco volumes, Inferno provisório tenta subsidiar a seguinte
inquietação: como chegamos onde estamos?
Evidentemente, essa descrição abarca apenas a superfície da narrativa. Contudo,
é o entrecruzamento das experiências "de fora" e "de dentro" dos personagens
o que me interessa. Importa-me estudar o impacto das mudanças objetivas (a troca
do espaço amplo pela exiguidade, a economia de subsistência pelo salário etc.) na
subjetividade dos personagens. Erigir essa interpenetração da História com as histórias,
acompanhar a transformação do país pelos olhos de quem verdadeiramente
a comanda, eis minha proposta.
Para concretizá-la, assumo o risco de problematizar também o conceito de
romance – como acompanhar a vertigem dos últimos cinquenta anos sem colocar
em xeque a própria estrutura da narrativa? Assim, cada volume é composto de
várias "histórias", unidades compreensíveis se lidas separadamente, mas funcionalmente
interligadas, pois que se desdobram e se explicam e se espraiam. Personagens
secundárias aqui, tornam-se protagonistas ali; personagens apenas vislumbradas
ali, mais à frente se concretizam. E a linguagem acompanha essa turbulência
– não a composição, mas a decomposição.
Bongo: Ao centro da sua obra está sempre presente, de alguma forma, a metrópole
de São Paulo, com sua precariedade. O que representa esta cidade para você e
também para a identidade brasileira?
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Ruffato: Venho de São Paulo, o sexto maior aglomerado urbano do planeta, com
cerca de vinte milhões de habitantes. Uma metrópole onde a segunda maior frota
de helicópteros particulares do mundo sobrevoa ônibus, trens e metrôs que desovam
trabalhadores em estações superlotadas; traficantes ricos instalados em suas
mansões leem nos jornais notícias sobre traficantes pobres perseguidos pela polícia
corrupta e violenta; políticos roubam em nível municipal, estadual e federal; as
vitrines dos restaurantes chiques refletem os esfomeados, os esfarrapados; rios
apodrecem em esgoto, lama, veneno; favelas enlaçam prédios futuristas; universidades
de excelência alimentam a próxima elite política e econômica, enquanto na
periferia escolas com professores mal remunerados, mal formados e mal protegidos
geram os novos assalariados.
Bongo: Como transpor o caos dessa cidade para as páginas de um livro?
Ruffato: Penso que o ficcionista deveria ser uma espécie de físico que ausculta a
Natureza para tentar compreender o mecanismo de funcionamento do Universo.
Cada passo na direção deste conhecimento resulta em mudanças significativas em
sua concepção do mundo e, portanto, em uma imediata necessidade de elaborar
novos instrumentos para continuar a busca. O objeto de estudo do romancista é o
Ser Humano mergulhado no Mundo. E, assim como a Natureza, o Ser Humano
permanece indevassável: o que temos são descrições, umas mais, outras menos,
felizes, da vida em determinados períodos históricos. Também como o físico, o
ficcionista, na medida em que mudam as condições objetivas, sente necessidade
de criar ferramentas de prospecção para aproximar-se da natureza humana, muitas
vezes absorvendo avanços de outras áreas do conhecimento.
E São Paulo é isso, Canaã adubado pelo suor indígena, negro, mestiço, imigrante
– mais da metade de sua população carrega sobrenomes italianos, e descendentes
de portugueses, espanhóis, árabes, judeus, armênios, lituanos, japoneses,
chineses, coreanos, bolivianos e de mais cinquenta outras nacionalidades espalham-se
por avenidas, ruas e becos. Quando uma pessoa deixa seu torrão natal, e
essa é sempre uma decisão tomada em último caso, quando já não resta absolutamente
nenhuma outra opção, ela é obrigada a abandonar não apenas o idioma, os
costumes, as paisagens, mas todo um passado, sua história.
Como construir relatos de caráter biográfico se lidamos com personagens
sem história? Esses são os dilemas que enfrentei quando me pus a refletir sobre
como tornar a cidade de São Paulo um espaço ficcional, como trazer para as páginas
de um livro toda a sua complexidade. Lembrei-me então de uma instalação de
artes plásticas, exposta na Bienal Internacional de Artes de São Paulo de 1996 (Ritos
de Passagem, de Roberto Evangelista): centenas de calçados usados, masculinos
e femininos, de adultos e de crianças, tênis e sapatos, chinelos-de-dedo e pantufas,
botas e sandálias, sapatinhos de crochê e coturnos, caoticamente amontoados
a um canto... Cada um deles trazia impressa a história dos pés que os usaram, impregnados
pela sujidade dos caminhos percorridos.
A partir desta iluminação, percebi que ao invés de tentar organizar o caos –
que mais ou menos o romance tradicional objetiva – tinha que simplesmente incorporá-lo
ao procedimento ficcional: deixar meu corpo exposto aos cheiros, às
vozes, às cores, aos gostos, aos esbarrões da megalópole, transformar as sensações
coletivas em memória individual. Compreender que o tempo em São Paulo não é
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paulatino e sequencial, mas sucessivo e simultâneo. Assumir a fragmentação como
técnica (as histórias compondo a História) e a precariedade como sintoma – a precária
arquitetura do romance, a precária arquitetura do espaço urbano. A impossibilidade
de narrar: cadernos escolares, emissões radiofônicas, diálogos entreouvidos,
crônica policial, contos, poemas, notícias de jornais, classificados, descrições
insípidas, recursos da alta tecnologia (mensagens no celular, páginas de relacionamento
na internet), discursos religiosos, colagens, cartas... Tudo: cinema, televisão,
literatura, artes plásticas, música, teatro... Uma "instalação literária"... E a linguagem
acompanha essa turbulência – não a composição, mas a decomposição. A
cidade – cicatrizes que mapeiam meu corpo.
Bongo: Por que escolheu escrever sobre a classe média baixa, sobre o proletariado?
Ruffato: Passei um longuíssimo período afastado da escrita literária porque estava
mergulhado na comezinha sobrevivência cotidiana, e também porque estava refletindo
sobre algumas questões essenciais: para que escrever, sobre o que escrever,
como escrever?
Aliás, eu tinha, sim, uma ideia de sobre o que escrever. Me parecia lógico
que minha literatura deveria retratar o mundo que eu conhecia bem, o do trabalhador
urbano, os sonhos e pesadelos da classe média baixa, com todos os seus preconceitos
e toda a sua tragédia.
No entanto, quanto mais pesquisava, mais me dava conta de que pouquíssimos
autores brasileiros haviam se debruçado sobre este universo, talvez porque o
trabalhador urbano não suscite o glamour, por exemplo, que suscita o malandro ou
o bandido; personagens sempre presentes na ficção nacional, representados do
ponto de vista da classe média como desestabilizadores da ordem social.
Por outro lado, me dei conta de que os indivíduos oriundos da classe média
baixa, que conhecem e poderiam escrever sobre esse universo, sempre tiveram que
negar suas origens para serem aceitos na nossa sociedade, que é extremamente
hierarquizada e preconceituosa. Retrospectivamente, se pensarmos no personagem
"trabalhador urbano" (não o militante político, bem entendido) temos poucos representantes
na literatura brasileira. Talvez o único autor que tenha feito deste tema
o motivo de sua ficção seja Roniwalter Jatobá, ele mesmo, o ex-operário.
Bongo: Você crê na função política da literatura?
Ruffato: Para mim, escrever é compromisso. Compromisso com minha época, com
minha língua, com meu país. Não tenho como renunciar à fatalidade de viver no
começo do século XXI, de escrever em português e de viver num país chamado
Brasil. Estes fatores, junto com a minha origem social, conformam toda uma visão
de mundo à qual, mesmo que quisesse, não poderia renunciar. Fala-se em globalização,
mas as fronteiras entre os países caíram para as mercadorias, não para o
trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à mediocrização,
à tentativa de aplainar autoritariamente as diferenças culturais. A realidade
se impõe a mim e o que move o meu olhar é a indignação.
Não quero ser cúmplice da miséria nem da violência, produto da absurda
concentração de renda do país. Por isso, proponho, no Inferno provisório, uma
reflexão sobre os últimos cinquenta anos do Brasil, quando acompanhamos a instalação
de um projeto de perpetuação no poder da elite econômica brasileira, iniciado
logo após a Segunda Guerra Mundial, com o processo de industrialização
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brutal do país, com o deslocamento impositivo de milhões de pessoas para os bairros
periféricos e favelas de São Paulo e Rio de Janeiro.
O imigrante, a qualquer tempo, carrega consigo a sensação de não pertencimento,
fazendo com que a sua história pessoal tenha de ser continuamente refundada.
Partir, como disse acima, não é só desprender-se de uma paisagem, de uma
cultura. Partir é principalmente abandonar os ossos dos antepassados, imersos na
solidão silenciosa dos cemitérios, é deixar para trás uma história comum, feita de
dor e luta, de alegrias e memórias.
Rompido esse lastro, perambulamos sem saber quem somos. E se não temos
autoconsciência, se permanecemos imersos na inautenticidade, não reconhecemos
o estatuto do outro, do diferente de nós. E perdido esse reconhecimento, instaurase
a barbárie. A Arte serve para iluminar caminhos, e se ela modifica o indivíduo,
ele é capaz de modificar o mundo. Para isso, portanto, escrevo.
Bongo: Existe hoje, em sua opinião, no Brasil, a figura de um intelectual público,
que discute os problemas do País?
Ruffato: O Brasil é um país de não-leitores. Não se lê livros, nem se lê jornais.
Portanto, a figura do intelectual público, que discute os problemas do país não é
muito comum. O que tem imperado, a partir das eleições de 2010, é o aprofundamento
da importância do mundo virtual como espaço privilegiado de opiniões. Os
intelectuais brasileiros, de modo geral, não gostam de intervir no cenário político
porque estão mais preocupados com seus próprios interesses.
Bongo: Como você lidou com a repercussão do seu discurso na feira de Frankfurt,
em 2013?
Ruffato: Fiquei inicialmente chocado com a repercussão negativa em alguns setores
da inteligência brasileira. No exterior, em geral, o discurso foi compreendido
como uma contribuição à reflexão sobre a realidade brasileira e, mais ainda, sobre
a inserção do Brasil no contexto internacional. Mas muitos brasileiros rechaçaram
o discurso como algo negativo à imagem do Brasil. Ora, os dados apresentados
eram apenas um retrato objetivo (porque estatístico) do Brasil. Não gostamos de
nos ver com nossos inúmeros defeitos, mas só podemos resolver nossos problemas
após admitirmos que os temos... Três anos após o discurso, que ia contra uma ideia
ufanista de Brasil, vemos o impasse político, econômico e social em que mergulhamos.
Bongo: Este ano você venceu o Prêmio Internacional Herman Hesse de Literatura
e é a primeira vez que um escritor brasileiro o recebe. O que pensa deste reconhecimento
por parte de um país culturalmente tão distante do seu Brasil?
Ruffato: Evidentemente que fico feliz e orgulhoso, porque de alguma maneira sinaliza
que estou trilhando um caminho correto. Mas eu tenho também muita consciência
de que prêmios e outras formas de reconhecimento literário são produtos
do momento, não garantem a perpetuação da obra no tempo – isso só é garantido
pela própria obra...
Bongo: As suas obras são traduzidas em muitas línguas. O que pensa da possibilidade
de divulgação da obra de um escritor em uma língua diferente da original?
Pensa que alguma coisa pode perder-se no texto traduzido, ou que a possibilidade
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de uma tradução válida depende da habilidade do tradutor? Ou do que mais dependeria?
Ruffato: Não existe tradução, assim como não existe adaptação de uma obra literária
para outras formas de linguagem (teatro, cinema etc.) e nem mesmo apreensão
por meio de ensaios. O que existem são leituras, onde o leitor lê a partir de um
texto, mas acrescentando suas próprias experiências e expectativas, enfim, sua própria
visão de mundo. Portanto, o tradutor, adaptador ou ensaísta reconstrói a obra,
tornando-a outra. A passagem de uma para outra língua ou linguagem será melhor
ou pior por conta do original ser bom ou ruim e também por conta da releitura ser
boa ou ruim...
Bongo: Você está trabalhando em algum novo projeto agora?
Ruffato: Sempre... No momento estou tentando pôr de pé um novo romance... Mas
ainda não sei bem do que se trata... está muito no começo ainda...
M A I O
(Luiz Ruffato)
o despertador marca
o minuto perdido
por entre os dedos
na mão fechada
o despertador marca
o movimento contínuo
da passagem das nuvens
da morte inadmissível
das rosas e do sol
que se multiplica
geometricamente entre as
folhas dos pinheiros
o despertador marca
principalmente o caminho
da solidão percorrida
nas conversas modorrentas
após o almoço em família
frente à televisão o caminho
da solidão
percorrido pela fumaça
do cigarro que se
evola incondicionalmente
em direção às nuvens
o despertador marca
o minuto contido
e o peito opresso
na varanda
no quarto no quintal
o despertador marca
os limites da solidão
atravessada na garganta
doída na raiz do dente
enfiada – dedo – no ânus
a solidão implacável
que desce como um guerreiro
medieval em minha direção
neste domingo de maio
em minha casa
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