11.09.2022 Views

Sapeca n° 39

Nº 39 – Setembro/2022 – Editor: Tonico Soares e-mail: ajaimesoares@hotmail.com

Nº 39 – Setembro/2022 – Editor: Tonico Soares
e-mail: ajaimesoares@hotmail.com

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Misto de sapo e perereca

“Sou útil inda brincando” (Mestre Valentim)

Nº 39 – Setembro/2022 – Editor: Tonico Soares

e-mail: ajaimesoares@hotmail.com

___

___

MUSA DESTA EDIÇÃO

Mae West – Atriz e escritora de apenas onze filmes e oito livros, tendo atuado

mais em teatro, virou um mito hollywoodiano. Inspirou até quadro de Salvador

Dalí. Uma de suas peças, de 1926, sobre uma puta do porto, chama-se Sex, o que

explica tudo. Tão ousada que os jornais se recusaram a lhe dar publicidade, ainda

assim, teve 375 apresentações em Nova Iorque. Outra peça a levou à cadeia por

oito dias. Em 1928, descobriu Cary Grant e, ao olhar para sua braguilha, perguntou:

“Você está com um revólver no bolso ou só entusiasmado com a minha presença?”.

E retocava os roteiros dos filmes, para realçar sua sensualidade. Outras

frases suas: “Ama o teu próximo – se ele for alto, moreno e bonitão, será muito

mais fácil.” • “Entre dois pecados, eu escolho um que ainda não cometi.” • “Eu sou

solteira porque nasci assim”. • “Uma mulher só precisa de quatro animais na vida:

uma raposa no armário, um tigre na cama, um Jaguar na garagem e um burro para

pagar tudo isso.” • E a mais famosa de todas: “Quando sou boa, sou ótima, mas

quando sou má, sou melhor ainda”. Só a vi num filme, já bem idosa.


Santo sempre ajudou a vender tudo

e entre bebidas lembro os aperitivos St.

Rémy e St. Raphael, o licor Fra Angelico

e cá entre nós o conhaque São João

da Barra. Voltando à Europa, os vinhos

Lacryma Cristi e Châ-teuneuf du Pape.

Este, de região da França que possui lei

que proíbe circulação e pouso de OV-

NIs e naves alienígenas sobre seu território,

cuja penalidade é o confisco da

nave. Os vereadores devem ter votado

bêbados.

Projeto de restauração do dito cujo, pela arquiteta cataguasense

Mariela Salgado Lacerda de Oliveira. A ideia de

preservar o letreiro, melhorando-o, foi manêra, pode crer.

Resta torcer para que tudo dê certo e Cataguases volte a

sorrir, numa comédia. Sem pipoca, que nunca comi em cinema

algum, não entendo o porquê desse hábito.


Achei este reclame (me amarro em termos antigos) e repasso. A seguir, dois

casos de intolerância. Antes, o mais famoso em Cataguases, que eu saiba, ocorreu

há mais de cem anos, quando quiseram linchar o pastor metodista Felipe Revale

(hoje, nome de rua) e até o padre intercedeu por ele. Também por ser metodista, o

Colégio Granbery, de JF, cá se estabeleceu e teve que se escafeder.


Ilha de Cataguases (Angra dos Reis)

A Ilha de Cataguases é capaz de encantar a todos os amantes de praias. Com

águas rasas e transparentes, é o lugar ideal para relaxar durante o passeio de

barco. A vegetação esconde até algumas pitangueiras, que cobrem o chão de frutas

vermelhas e maduras. Para estar na ilha mais vazia, o ideal é fugir dos passeios de

escuna e dos finais de semana, quando está quase sempre lotada de visitantes. O

nome deve se referir aos índios cataguás (que nunca estiveram cá) e sugiro aos que

enjoaram de se sentir em casa em Piúma e Guarapari que vão se sentir na mesma

para os lados de Angra. Penso que a gente viaja é pra sair de casa, mas a maioria

quer é continuar vizinha do vizinho, mesmas comidas, mesmas conversas.

Da DesciclopédiA

(resumido)

Cataguases (em internetês: ktá) é mais uma das cariocas cidades mineiras

da Zona da Mata. A cidade é conhecida pela exportação de estudantes para Jizdi-

Fora. O povo de Cataguases orgulha-se de seus "ilustres extrangeiros", como Oscar

Niemeyer, Cândido Portinari e Burle Marx. Estavam de férias e resolveram viajar

para pescar. Acabaram escolhendo o rio Pomba, onde pescaram meia dúzia de peixes

tresolhudos (com os cumprimentos da Indústrias Químicas Cataguases). Fulos,

os três foram até um boteco na Avenida Astolfo Dutra, point dos playboys da cidade

(os que ainda não foram estudar em JizdiFora), para encher a cara. Bêbados,

teriam rabiscado coisas num guardanapo. Tais rabiscos foram posteriormente utilizados

para a construção do Colégio Cataguases e outros edifícios, ou painéis

como As Fiandeiras, que acabaram atribuídos ao trio.

Vale salientar que a cidade possui um cidadão filho da puta ilustre. É o Zezé

Linguiça, conhecido também como Gastão Zeca Diabo pela sua pão-durice e beleza.

Visite o bairro Leonardo (a Rocinha de Cataguases), bairro-irmão do São


Vicente (goela-seca). O Leonardo foi o primeiro lugar onde aportaram os mauricinhos

franceses e o Barão Bartolomeu Siqueira Bueno deserbarcou com seu caiaque,

onde encontrou um monte de indiozinhos pelados, fundando o famoso Chalé

da Vila Leonardo, demolido em 1989, para virar um posto de venda de droga, aliás,

de saúde. No aprazível bairro ainda existe o Beco Fruta-Pão, com um pé da dita

que nunca dá fruta na entrada, lá fica o localizado CBFP (Comando do Beco Fruta-

Pão). O bairro possui a Rua 10, rua 10 em pessoas feias.

Cataguases é uma cidade cheia de opções de lazer e entretenimento. Apesar

de minúscula, tem um cinema fechado (ainda bem, afinal é o berço do cinema

nacional). A cidade conta ainda com mais de oito mil referências a Humberto

Mauro em museus, escolas, praças, avenidas, monumentos, banquinhas de jornais,

botecos e afins levando seu nome ou expondo imagens de seu trabalho.

Uma vez por ano, no dia da padroeira, Santa Rita, a cidade para, com direito

a quermesse e passeio de trenzinho pelas ruas do centro. Para os GLBTs, a diversão

é ficar na praça da Estação Cataguazes (com Z mesmo, quem construiu era analfabeto)

ligando para os orelhões do outro lado da rua e cantando o otário que atender.

Funciona muito! Para os playboys que costumam estudar em JisdiFora mas

que de vez em quando são obrigados por aquela avó chata, ou aquele tio engraçadão

a pôr os pés na cidade, a diversão é enche(ira)r a cara nos botecos.

Para a família, Cataguases ainda possui uma lindisssima praia, a Prainha,

muito frequentada nos meses de verão, onde o povo leva seu frango assado com

farofa para uma divertida tarde em família. Pegue ônibus pro Ana Carrara, desça

no ponto final e, com só 30 minutos mais de caminhada, chega lá! Tomando os

devidos cuidados para não morrer afogado e, na falta do nadador Max Baer, o

maior caçador de defuntos debaixo d´água, aparecer dias depois em Aracati.

A educação em "ktá" é muito boa, na base da opressão por meio das madres

do Colégio Imaculada Carmo. Nas escolas estaduais, todas são maravilhosas. O

Colégio Cataguases, onde se pode pegar uma erva estudo muito bom, com vários

professores renomados nacionalmente. Se não for pra nem um nem outro, vai pra

qualquer outra escola, que vai ficar tudo na merma merda. Cataguases possui a

Escola Coronel Vieira, entra burro e sai caveira, e o Polivalente, entra burro e sai

doente! A FIC, faculdade de alunos que não são exportados para JF.

Por conta da instalação de uma grande indústria química na cidade e que

emprega 5% da população (os outros 25% trabalham na Tecelagem Cataguases,

20% na Força e Luz e 50% estão desempregados, fumando droga ou pedindo esmola,

alegando que tem fí pra sustentá), a saúde do povo é um primor.

Na cidade se encontram dois dos mais fodas belos times de futebol do país:

Flamenguinho e Operário. No crássico municipal, 37 pessoas prestigiam o futebol

da cidade, sendo 12 pagantes. Na promessa de ser construído o Estádio Municipal,

o futebol de Cataguases se sustenta em recordações. Aquelas de 2008, quando os

estádios foram devastados pela tromba-d'água que caiu na cidade.

Se você tiver que fazer uma viagem, não venha a Cataguases, seu carro irá

quebrar antes de chegar à cidade, com o maravilhoso estado do asfalto que se encontra

na entrada pela Vila Minalda, que também enche quando chove. Se for

louco ou tiver parente aqui, Cataguases te recebe de braços abertos.


Complexo do João Duarte: banco, armazéns, serraria, fábrica

etc. Depois, na pracinha, máquina de arroz e usina de açúcar, além

da Chácara, Teatro Recreio, fazendas etc. Chegou cá analfabeto,

na condição de cozinheiro da turma que instalou a linha férrea. E

virou dono de ferrovia (ramais de Santana e Miraí) etc.

Avenida Central, depois, Coronel João Duarte, Cataguazes e por fim Astolfo

Dutra. Iniciada em 1910 pelo presidente da Câmara (cargo equivalente ao de

prefeito) João Duarte Ferreira, não levando em conta as reclamações de moradores

dos largos do Comércio (Praça Rui Barbosa) e da matriz (Praça Santa Rita), e da

Rua do Sobe e Desce (Coronel Vieira), defendendo seus imensos quintais. Pelo

mesmo motivo, a obra não começou em 1894, estando o Tenente Fortunato à frente

do Conselho Distrital (também equivalente a prefeito, sistema de governo municipal

que pouco durou). Com o aval do deputado Astolfo Dutra Nicácio, Duarte entendia

que o terreno era um bem de uso comum. Entendia também que a Câmara

tão somente poderia conceder os quintais como posse com 60 palmos de frente e

100 de fundos, de acordo com as normas estabelecidas por Guido Marlière. E assim

ficou resolvido. Em 07.09.1912 a Câmara publicou nota no jornal Cataguazes

informando que estavam à venda lotes de terreno para edificações à direita do córrego,

na avenida (por onde passava o trem, que mudou de lado depois que escavaram

o morro, abrindo outra pista). Projeto de autoria de Caetano Mauro, pai do

cineasta, como também a capela art déco do Carmo.


Ilustração que poderia ser de Norman Rockwell para o filme, um delicioso retrato

do interior da América WASP (White Anglo-Saxon and Protestant)

Em fotos de festas nos distritos vejo muitos carros estacionados, gente gorda

bebendo cerveja, enormes caixas de som, que já vem gravado: coletânea de música

breganeja a mil decibéis, repetida pelo cantor ou dupla disponíveis. Voltemos no

tempo. Som de banda de música, barraquinha ofertando joguinhos em benefício da

paróquia, um balcão improvisado vendendo pão com salame. Um tocador de cavaquinho

cantando baixinho e deliciando a molecada: “Calango tango, no calango

da lacraia a muié do Zé Maria foi peidá, cagou na saia”, ou “Sá Mariquinha lá do

alto da varinha, nunca vi pica de galo, nem buceta de galinha”. Cai a tarde e, depois

de renhida disputa entre os times Arranca-toco e Quebra-canela, chega o sanfoneiro

e começa o rala-bucho. Lá pela meia-noite, um cabacinho pode ir pro beleléu,

que nem no filme Picnic, de Joshua Logan que, para o crítico Sérgio Augusto é

um Teorema desenhado por Norman Rockwell. Tudo a ver: por mais de 40 anos,

ele desenhou as capas da revista The Saturday Evening Post, cenas ingênuas da

vida cotidiana, para o deleite de dez entre dez famílias WASPs. E naquele piquenique

coletivo a moça mais bonita do lugar, destinada ao moço mais rico (agronegócio),

decide perder a virgindade com um forasteiro. Em Teorema, de Pasolini, um

forasteiro estupra toda a família, que nunca mais será a mesma. Já a produção americana

tem final feliz: a seduzida vai atrás do sedutor, mas na peça que a inspirou

ela não cria coragem e se transforma em personagem de Rockwell: uma professora

rabugenta, o resto da vida disfarçando aquele “passo em falso”. Abaixo, aquarelas

do pintor, hoje, no museu a ele dedicado.


Não dá para entender

Todo dia leio as notícias e invariavelmente

esbarro com alguém da família

real inglesa. Esse culto é saudade

da senzala, do sinhozinho e da sinhazinha

da Casa Grande (iôiô e iaiá). E vamos

lá: o príncipe Harry é o rebelde da

vez, como foi sua mãe, Lady Di. Antes

dela, sua tia-avó Margaret que, entre

outras, sassaricava com roqueiros.

Ainda antes, um tio desta, que trocou a

coroa por uma americana (Harry, idem,

mas sua alteza não é en-tronizável). E

seu pai trocou a princesa por uma coroa,

em outro sentido da palavra. E aí

está ele, o futuro rei da Inglaterra, dois

anos mais moço que eu e décadas mais

enrugado. E sobre a monarquia, a Revolução

Francesa sacou que já era caso

de guilhotina há 233 anos, mas concluí

que é a realeza que mantém a “pérfida

Albion”* no noticiário, daí, ser um

bom negócio.

*Como o poeta e diplomata francês,

de origem espanhola, Augustin Louis

Marie de Ximénèz (1726-1817) denominou

a terra de Shakespeare.

Fiquei surpreso ao saber que existe um Pasquim Bar e Prosa no bairro Casa

Verde, em São Paulo, mantendo o logotipo e capas do jornal forrando as paredes.

Nem no Rio o carioquíssimo hebdomadário, que acabou há 30 anos, deve ser mais

lembrado. Bom lugar para um chops e dois pastel, ó meu!

Fodé Mané reage à visita de Macron ao seu país. Meu lado Millôr Fernandes

logo se pôs a apurar a notícia: Fodé Mané é ex-governante e ex-diretor da

Faculdade de Direito de Bissau, investigador do Instituto Nacional de Estudos e

Pesquisa e reitor da Universidade Amílcar Cabral. Bom currículo e como é da

Guiné-Bissau (idioma oficial: português), deve saber que no Brasil seu nome soa

esquisito. Pensemos, por exemplo, no Bolsonaro ou numa outra autoridade saudando

o dito: “Com a palavra, Vossa Magnificência, o reitor Fodé Mané”.


SOU ÚTIL

INDA

BRINCANDO

Achei, no Google, show com Roberto Silva e ao final, continuei na era do rádio,

com Cyro Monteiro. Cantor por cantor, Roberto e Cyro empatavam, no repertório,

jeito de cantar, jinga malandra. Já programa por programa, curti mais o do Cyro, em

sua mesa de jantar, com Carminha Mascarenhas fazendo contracanto, Lúcio Alves, ao

violão e Sérgio Cabral (pai). Enfeitando a mesa, Elke Maravilha, na flor da idade –

estava ali porque namorava o filho do homenageado. Por sinal, Cyro, Roberto e Lúcio

eram os três maiores, para João Gilberto, depois de Orlando Silva, o “maior cantor do

mundo, no seu tempo”, frisou o baiano. Para mim, é João.

Um prazer rever e ouvir a Mascarenhas, depois de décadas (recomendo Per omnia

sæcula sæculorum amen, de Miguel Gustavo). Artistas trabalham se divertindo, e

é o que eles estavam fazendo ali, felizes e, como diz a escultura de Mestre Valentim,

no Passeio Público, “Sou útil inda brincando”, que Sapeca passa a usar neste número

como slogan. O dito Passeio é uma das joias barrocas do Rio, que preserva o aspecto

que tinha na inauguração, em 1783. Bravo! Pois no Brasil cada prefeito maquia a

cidade a seu jeito, espero que o Iphan preserve a nossa.

Cyro tinha suas peculiaridades, como manter conta corrente no pipoqueiro para

usufruto da molecada da área. Outra era mandar camisa infantil do Flamengo sempre

que nascia filho de amigo, por isso era chamado de aliciador de menores e assim o fez

para Sylvia, primogê nita dê Chico Buarquê. Chico, fluminênsê doêntê,

respondeu com um samba sapeca, levando na “esportiva”, coisa de artista.

Ilmo. Sr. Cyro Monteiro (ou Receita pra virar casaca de neném)

Amigo Cyro,

muito te admiro,

o meu chapéu de tiro.

Muito humildemente,

minha petiz

agradece a camisa

que lhe deste à guisa

de gentil presente,

mas, caro nego,

um pano rubro-negro

é presente de grego,

não de um bom irmão:

nós, separados

nas arquibancadas,

temos sido tão chegados

na desolação.

Amigo velho,

amei o teu conselho,

amei o teu vermelho

que é de tanto ardor.

mas quis o verde

que te quero verde,

é bom pra quem vai ter

de ser bom sofredor.

Pintei de branco o teu preto,

ficando completo

o jogo da cor,

virei-lhe o listrado do peito

e nasceu desse jeito

uma outra tricolor.

Mas, como lembrou Cyro, na conversa, a menina virou flamenguista.


O modernismo da concha de Ubi Bava e o neoclassicismo anônimo, no calçadão.

VICENTE COSTA TEM OLHOS FOTOGRÁFICOS

Vivemos num tempo em que se pode editar um jornaleco, caso deste Sapeca,

ou uma revista, como a Chicos, do nosso amigo José Antônio Pereira, sem

sair de casa e aí está uma das contradições dos tempos modernos: podemos nos

comunicar por meios os mais diversos, até com os mais distantes países e não mais

pelo costume mais antigo e agradável, o bom e honesto bate-papo. Nos últimos

anos, devido à Covid e, mesmo sem ela, não é muito comum as pessoas se verem

com frequência. Um bom ponto de encontro eram os centros culturais.

Nos ditos cujos, eu via sempre Vicente Costa, ele, em geral, de prosa com

Pury e um dia perguntei seu nome. Ao saber, falei que adorava suas fotos, prova

de que já nos comunicávamos antes e, como eu escrevia em jornal, ele também

poderia me conhecer. Vicente tem olhos fotográficos, disse Zeantonio. Concordo:

onde bate os ditos, podemos estar certos de que dali vai sair uma bela foto. E assim

vem ocorrendo, sobretudo na referida Chicos em que a cada trimestre ele dá o ar

da graça. Fotos que precisam ser reunidas numa exposição, o que ficou difícil nesta

cidade, que pouco ou nenhum espaço concede aos seus artistas.

No Google, me deparo casualmente com ótimos fotógrafos locais, cujos nomes,

estúpido que sou, esqueço de anotar. Todos merecem divulgar seus trabalhos

e a Galeria Zequinha Mauro existia justo para esse fim: exibir fotografias. Inesquecíveis

as exposições dedicadas a ele, Pedro Comello, Daniel Facchini e outros.

Fora de lá, lembro de uma mostra supimpa de Pury no Eva Nil e, no Instituto Chica,

uma de Juca Fusco que, não sei como, consegue um efeito meio “áspero”, com um

belo resultado. Já Vicente é clássico por natureza e lembremos que clássico é o que

um dia foi moderno, até revolucionário, ou seja, eterno.

10


Nos oitent’anos caetânicos

Qualquer joia

Augusto de Campos

O que ele fez, faz, está fazendo para ou pela ou com a música popular não

há mais quem ignore. Ele explodiu a canção, levando-a a caminhos jamais palmilhados

entre nós. Revolução da Bossa-Nova (um movimento “joia”), Tropicália

(um movimento “qualquer-coisa”). Proibido proibir: sons em liberdade. Navegar

é preciso: o desconhecido. Tudo comer: antropofagia. Metapoesia e metamúsica:

nos discos e shows, a melhor crítica-em-ação da música popular feita e por fazer.

Mas é impossível pensar Caetano como “músico popular”, por mais que a

isso deva induzir uma História da Música Popular Brasileira. A imprópria ou insuficiente

chamada “música popular” – que não é só música e nem é tão popular

quanto as conotações do adjetivo fazem supor – é quase sempre uma poesia musicada.

Queiram ou não, uma modalidade de poesia. Poesia-música. Ou música-poesia.

Paradoxalmente, o texto poético, aqui, ganha o nome de “letra”.

Em outros tempos, esse gênero de poesia teve seus praticantes na área tradicionalmente

batizada de erudita. A poesia dos trovadores provençais dos séculos

12-13, toda ela feita para ser cantada e, muitas vezes, executada por seus autores.

As canções inglesas da época elizabetana, onde há notáveis poetas-músicos, como

Thomas Campion, e músicos-poetas, como o alaudista John Dowland. Dentro do

âmbito popular, um gênero que tem larga tradição e se manifesta mais instintiva e

intuitivamente, sem a cerrada elaboração dos artefatos eruditos. Nos últimos anos,

porém, essa poesia-música, antes confinada ao seu compartimento convencional,

armou-se de recursos muito mais sofisticados, cruzou as linhas e invadiu as áreas

cultas. Um fato novo, como ocorrência generalizada.

Depois da grande fase da poesia para ser vista, enfaticamente vista – a dos

anos 50 e 60 –, houve um giro, uma mudança de veículo, privilegiando a audição.

A poesia para ser ouvida, dos fins dos anos 60. Feita por poetas para serem vistos.

Quase todos, pré, para ou ex-universitários. O fato é que, a partir desse momento,

toda uma geração de poetas das camadas cultas urbanas partiu, decididamente,

para o som.

Em tal contexto, a atuação de Caetano foi tremendamente significativa. Situando-se

desde logo no grupo dos inventores, isto é, dos artistas vocacionados

para a descoberta de territórios inexplorados, Caetano não se limitou a impelir a

música popular, até então contida numa dinâmica cultural acanhada, a participar

ativamente da renovação da linguagem artística. Baiano e estrangeiro, ele foi o

nosso grande sincretista. Um novo antropófago, bárbaro e doce, capaz de ligar, em

sua música aberta, em sua poesia qualquer-coisa, as pontas das mais diversas poéticas

potencialmente vivas, de Gregório a Pastinha, de Gil a Sousândrade, do rock

a Smetak, do concreto ao Xingu.

Puxada por Caetano, a poesia-música rompeu as barreiras entre o popular e

o erudito. E se expôs, radicalmente, com todos os riscos, às largas e despreparadas

plateias do consumo, levando a um extremo limite a tensão comunicativa entre a

informação nova e o repertório coletivo de redundâncias. Vivas e vaias.

11


Mas é enganoso pensar que os seus produtos sejam meros intermediários

entre a poesia culta e o público. Os críticos que assim pretendem minimizar a sua

importância aplicam-lhe padrões exclusivamente literários, de forma simplista e

linear. Não percebem que se trata de uma arte com parâmetros próprios – ainda

que porosa, mas uma arte com parâmetros próprios – ainda que porosa às demais

–, de uma poesia-ação, que não se faz só com palavras, mas com sons, voz, corpo.

Poesia mais próxima da conversa que do verso.

Não. Se quiserem compreender esse período extremamente criativo de

nossa vida artística, os compêndios literários terão que se entender com o mundo

discográfico. Nesse novo capítulo da poesia brasileira que se abriu a partir de 1967,

tudo ou quase tudo existe para acabar em disco. “Nem todos sabem cantar. Não é

dado a todos ser maçã para cair aos pés dos outros”, cantou o bardo Iessiênin. Nos

discos de Caetano, o poeta-cantor, até o vento canta-se, compacto no tempo. Quem

vai dizer onde termina a música e começa a poesia?

O homem que aprendeu o Brasil

Resenha de Euler de França Belém (resumo)

Li e viajei na biografia de Paulo Rónai, por Ana Cecilia Impellizieri. Dele,

seu livro Não perca o seu latim muito me valeu para empregar expressões da língua,

hoje aposentado pela internet, valendo também para outros idiomas. E durante

temporada que passei no Fórum, quando, a fim de ajudar alguns estagiários que

estudavam Direito, copiei todas as expressões relativas àquela disciplina. Um deles

bolou uma capa, tirou várias cópias em xérox, grampeou e vendeu como se fosse

uma apostila. Malandrinho maneiro, não tanto quanto outro que, tranquilo, disse

que traficava, era preso, pagava fiança etc. e tal. Ambos, futuros advogados.

E vamos ao que interessa: Pál Rónai nasceu na Hungria (1907) e renasceu

Paulo Rónai no Brasil (1941). Estudante cultor de poesia e idiomas, traduzia o

poeta alemão Heine. Depois, estudou filologia e línguas neolatinas e começou a

traduzir Virgílio, Horácio, Catulo, que através dele ficaram conhecidos em húngaro.

“O deslumbramento veio com Virgílio no dia em que logrei escandir sozinho

um hexâmetro. Comecei a encontrar prazer quase sensual naqueles versos que,

aparentemente iguais, eram de extrema variedade musical” e quando leu Balzac,

este virou seu predileto. Havia uma carreira auspiciosa para Pál Rónai, mas no

meio do caminho tinha Adolf Hitler e a extrema direita da Hungria. Preocupado,

ele tentou escapar, o que um de seus irmãos logo logrou, na Turquia.

A primeira menção à língua portuguesa foi no seu diário, em 1938 e Dom

Casmurro, de Machado de Assis, em francês, lhe despertou grande interesse:

“Uma literatura que tinha romancistas daquele porte não podia deixar de interessar-me”.

E começou a traduzir poetas portugueses e brasileiros, achando que nossa

língua parecia latim falado por banguelas. Borges também disse que o Português

é uma língua desossada, seja como for, Lúcio Cardoso afirmava que se buceta falasse,

falaria espanhol. No consulado do Brasil em Budapeste, deu aulas de francês

para o nosso cônsul, querendo vir para cá, mas as forças nazistas iam apertando o

cerco sobre os judeus. Havia a hipótese de se refugiar com a família no Paraguai,

12


porém, Rónai preferia o Brasil e continuou traduzindo, e gostou do poema A moça

da estaçãozinha pobre, de Ribeiro Couto, de quem ficou amigo.

Conseguiu publicar suas traduções e até uma antologia de poetas brasileiros,

a primeira vez que foram lidos na Hungria. Em 1940, foi preso e posto a trabalhar

como escravo. Deram-lhe uma licença e mexeu os pauzinhos a fim de se mandar

para o nosso país, o que conseguiu, com escalas. Em Portugal, ouviu a língua que

lia com facilidade, mas, falada, nada entendeu. No Rio, bebeu água de coco pela

primeira vez e deu entrevista ao jornal Correio da Manhã. Conheceu Aurélio Buarque

de Holanda e todos os bons escritores, e Drummond lhe conseguiu uma

bolsa, tendo as autoridades exigido que aportuguesasse o seu nome. Então virou

Paulo, que escrevia em jornais e começou a apresentar a literatura húngara para os

brasileiros, além de dar aulas de francês e latim, economizando tudo que podia

para trazer a família. Antes desta, a amada Magda Péter.

E Drummond conseguiu um visto para ela, porém, foi assassinada pelos

nazistas, junto com sua mãe. Paulo, é óbvio, sofreu muito. Otto Maria Carpeaux,

outro judeu exilado, também se tornou seu amigo, assim como Mário e Oswald de

Andrade, enquanto, na Europa em guerra, o pai de Paulo morria e outro de seus

irmãos desaparecia. Em 1943, ele e o dicionarista Aurélio decidiram traduzir contos

para publicar uma antologia universal, que deu na excelente coleção Mar de

Histórias, de 1945, com Paulo traduzindo do grego, latim, italiano, alemão, inglês,

russo e húngaro. Aurélio, em francês e espanhol. Paulo também coordenou a tradução

da obra completa de Balzac, chamada A comédia humana, em 17 volumes,

12 mil páginas e 7 mil notas de rodapé, tarefa para vinte tradutores.

Com a ajuda dos diplomatas Ribeiro Couto e João Guimarães Rosa saíram

vistos para o resto da família e seis membros chegaram, para alegria de Paulo, que

admirava cada vez mais o Brasil, tendo se naturalizado. Ele e Antonio Candido

foram os primeiros a perceber a grandeza de Sagarana, do citado Rosa e, numa

crítica posterior, Paulo Rónai declarou: “Rosa submeteu o idioma a uma atomização

radical, da qual só encontramos precedentes em Joyce”. E multiplicou o entusiasmo

quando saiu Grande Sertão: Veredas, colocando o autor ao lado de Machado

de Assis. Sobre Drummond, disse que ele e Rosa tornaram o Brasil mais

moderno. Entre muitos compromissos, traduziu o clássico húngaro Os meninos da

Rua Paulo, de Ferenc Molnár, um best seller, como em outras terras.

Em 1951, aos 44 anos, Paulo conheceu a arquiteta Nora Tausz, que chegara

de Fiume, na Itália (hoje, na Croácia), em 1941, dois meses depois dele. Aos 28

anos, ela falava húngaro, era inteligente e perspicaz. Os dois se casaram em 1952

e tiveram as filhas Cora, jornalista, e Laura, flautista barroca e professora de música.

Aprovado em concurso, ele passou a lecionar latim e francês no Colégio Pedro

II, e, além de traduções, escreveu os livros Escola de tradutores, Gramática completa

do francês, A tradução vivida, Como aprendi o português e outras aventuras, Não

perca o seu latim, Dicionário francês-português, Gradus primus e Gradus secundus, dos

quais sua biógrafa disse: “O estilo de Paulo é avesso a formalismos, impostações;

seu texto estabelece um contato direto com o leitor, convida a uma conversa em

que ele se coloca sempre como narrador e personagem”.

13


Em 1964, voltou à Hungria. Ainda era seu país? Em parte, sim. Mas o país

verdadeiro havia se tornado o Brasil, que o acolhera e possibilitara seu extraordinário

desenvolvimento intelectual. “Paulo sabia que a Hungria não era mais o seu

lugar”, escreve Ana Cecilia. Aposentado, passou a morar no sítio, em Nova Friburgo,

numa casa desenhada pela esposa, onde, orgulhosamente, organizou sua

“brilhoteca”, como dizia sua pequena neta. Morreu em 1992, aos 85 anos. “Seu

arquivo está lá, mas ninguém consulta”, bradou Laura. Ana Cecilia consultou.

Comenta-se que sua vida teria inspirado o romance Budapeste, de Chico

Buarque, que traça o caminho inverso ao de Paulo. Indagada se Chico teve algum

contato com a família, Laura respondeu: “Ele nunca falou, mas todo mundo percebe.

É fato conhecido. É tão fato que é a história do papai ao contrário”.

Um ótimo poema repulsivo

Nelson Ascher (Folha de São Paulo)

É num tom paradoxalmente triunfalista ("Não tive filhos, não transmiti a

nenhuma criatura o legado da nossa miséria") que, em 1881, Machado de Assis

arrematava Memórias Póstumas de Brás Cubas. Noventa anos depois, em 1971, o

poeta inglês Philip Larkin (1922-1985) encerrava simbolicamente a carreira com

um breve poema cuja última estrofe afirma e aconselha (em tradução literal) o

seguinte: "Os homens passam (ou legam) a miséria uns aos outros. (...) Não tenhas

filho algum". O texto, um dos mais citados de sua língua, é, assim, um epitáfio.

Diante de tamanha coincidência (aliás, a tradução britânica do romance machadiano,

sugestivamente intitulada "Epitaph of a Small Winner", saíra em 1968,

numa edição da Penguin), seria tentador imaginar que o poeta de lá (bibliotecário

profissional) tomara conhecimento do prosador daqui e se inspirara em seu livro.

Tal vínculo de causa e efeito, porém, nada tem de obrigatório. Operando com materiais

similares, mentes e temperamentos semelhantes chegam não raro a resultados

parecidos.

Há imagens notáveis que, de tão usadas, perdem o impacto original e até

deixam de expor claramente o que dizem, a que vieram. É o que ocorre com o sutil

oxímoro formulado pelo brasileiro e pelo inglês. Cada qual, falando de um "legado

de miséria", cria uma imagem à cuja família pertencem, por exemplo, "sua ausência

preenche uma lacuna" (atribuída a Stanislaw Ponte Preta), "a cárie (...) que

enche inteiramente o cheio de vazio" (de um poeta que desconheço) e, no limite, o

"nada que é tudo" pessoano. Nada impede, portanto, que Larkin e Machado de

Assis (ou melhor, Brás Cubas), numa destilação que, a nossos ouvidos, soa, a um

tempo, bíblica, darwiniana e psicanalítica, sintetizassem independentemente a essência

do niilismo.

Agora, consta que o inglês mesmo era pessoalmente uma figura no mínimo

desagradável, e ninguém precisa concordar com sua mensagem explícita. A maioria

das pessoas que conheço teve lá seus problemas com pai e mãe, mas sabe que

tanto o presente voluntário da vida como todo o restante superam de longe as perdas

e danos eventuais, e quem quer que os tenha perdido sempre lhes sentiu pungentemente

a falta.

Que os pais cometem erros e nos causam dificuldades desnecessárias, tampouco

é segredo. Eles, afinal, são humanos, e é deles que herdamos, sobretudo,

14


nossa humanidade. Aqueles que atribuem o grosso de suas limitações ou insucessos

a eles não passam de fracos, incapazes de reconhecer e assumir as próprias

responsabilidades. Salvo em casos extremos (o de gente enviada a Auschwitz ou

ao Gulag, respectivamente por Hitler ou Stálin), cabe a todo indivíduo responder,

desde muito cedo, pelo que é ou faz.

O de Larkin é, sem dúvida, um poema bem-feito e, antes de mais nada,

contundente (assim como as palavras derradeiras, note-se bem, de Brás Cubas, um

personagem que jamais deve ser confundido com seu criador), não devido à qualidade

ou agudeza de seu "insight", de sua percepção, mas a despeito da manifesta

falsidade e injustiça desta. Infelizmente, o fato é que ética e estética não costumam

andar de braços dados: bons sentimentos podem gerar versos medíocres, enquanto

ideias repulsivas às vezes rendem ótimos poemas.

Pensando bem, no entanto, o "infelizmente" acima está errado. Ótimos poemas

com mensagens detestáveis são necessários para que nunca deixemos de ter

em mente que, ao contrário do que parece dizer a urna grega de Keats, o belo e o

verdadeiro não são a mesma coisa. Um texto como "Este seja o poema" obriga-nos

a dissociar ambos, bem como o que sentimos a seu respeito. Para quê? Para aprendermos

a não ceder ao canto das sereias a ponto de acreditar em sua letra (ou viceversa),

pois, embora possa ter sido escrita por anjos ou pela serpente, ela, em nenhum

dos casos, torna nossos ouvidos automaticamente refratários à sedução da

melodia.

This Be The Verse

Philip Larkin

They fuck you up, your mum and dad.

They may not mean to, but they do.

They fill you with the faults they had

And add some extra, just for you.

But they were fucked up in their turn

By fools in old-style hats and coats,

Who half the time were soppy-stern

And half at one another’s throats.

Man hands on misery to man.

It deepens like a coastal shelf.

Get out as early as you can,

And don’t have any kids yourself.

Este seja o poema

Tradução: Nelson Ascher

Teu pai e mãe fodem contigo.

Que não o queiram, tanto faz.

Passam-te cada podre antigo,

além de uns novos, especiais.

Mas de cartola e fraque, outrora,

fodera-os já do mesmo modo,

gente ora austero-piegas, ora

se engalfinhando cega de ódio.

Miséria é o que legamos: fossas

num mar que só fica mais fundo.

Dá o fora, pois, tão logo possas

sem pôr nenhum filho no mundo.

Pedro Xisto

“Texto traz recado ligado ao sentimento do eu

lírico despertado pelos olhos que ele vê. Sim,

é um poema em forma do símbolo do infinito.

A figura de linguagem salta aos olhos é o paradoxo:

"encontrar o infinito". Se algo não tem

fim, então, não daria pra chegar lá. mas aqui,

na literatura, sempre dá. Podemos ler o texto

assim: ‘o infinito dos seus olhos me faz encontrar

o infinito’. ou assim: ‘encontrar o infinito

dos seus olhos me faz encontrar o infinito’. E

por aí vai. Até o infinito.” (Professor Carneiro)

15


Quando rapazote, copiei à mão Uma estação no inferno, de Rimbaud, que li

emprestado. Também, há anos, digitei no computa, de um livro, o texto abaixo, para

publicar no Cataguases. Agora o achei prontinho no Google e também Toda Poesia,

de Leminski, que comprei antes. Achei meio datado, ele foi melhor enquanto vivia.

Ernani é de Curitiba, meu ex-colega, idem, de Leminski, como conta adiante.

O polaco publicitário (por Ernani Buchmann)

Não sei bem se Paulo Leminski podia ser chamado de publicitário. Ele

mesmo não se considerava. Nunca escondeu que escrevia anúncios para sobreviver,

como muitos escritores. Aqui no Brasil, Domingos Pellegrini, Luis Fernando

Verissimo, João Ubaldo Ribeiro, Antônio Torres, Ricardo Ramos, entre outros. O

Polaco era um agitador, isso sim.

Enlouquecia a criação das agências em que trabalhou, polemizando sobre

qualquer assunto. Isso desde a P.A.Z., no início dos anos 70 à Exclam, até o final

de 1987. Era um redator diferente. Não criava para televisão, por exemplo. No

máximo, escrevia textos para locução em off. Sobre a ideia do filme, nada: alguém

que tivesse uma. Já com relação à mídia impressa, sua especialidade, matava a pau.

Foi assim ao criar o título que considerava sua melhor sacada publicitária: “A Galvão

acha fácil o imóvel que você acha difícil”. O sentido duplo do verbo, criando

o jogo de palavras, é a cara dele. Nos últimos tempos, já admitia que não conseguia

mais se concentrar.

Escrevia em pé, como se estivesse de passagem pela máquina de escrever,

naquela época em que ainda não se trabalhava em computadores. Iam longe os

anos em que trabalhava em casa, ao lado da Alice (Ruiz, também poeta) – ambos

redatores, cada um criando para uma agência diferente. Era assim que se sentia

melhor, sem precisar cumprir o doloroso ritual do expediente. Nas agências pelas

quais passou sempre conseguiu impor sua vontade de não trabalhar pela manhã,

até o mercado exigir período integral.

Foi quando o chamei para dizer que a direção da agência havia exigido que

passasse a chegar cedo. No dia seguinte, fiquei comovido. Ao entrar na minha sala,

ainda com as janelas cerradas, luz apagada, em pleno inverno, vi um vulto. O vulto

e a brasa do cigarro. Era ele, pouco depois das 8h. Deu aquela risadona mostrando

os cacos dos dentes quando acendi a luz e berrou como se estivesse num bar –

Leminski falava muitos decibéis acima: – Lá em casa o toque da alvorada é cedo!

Em seguida, puxou aquele chumaço de papel jornal com a produção poética da

madrugada. Era a rotina: passava o dia entregando seus mais recentes poemas para

avaliação, fosse quem fosse o interlocutor.

Deu conta do expediente matinal por um ou dois meses. Então desistiu. Já

sofrendo com a cirrose que viria matá-lo, nem sempre passava bem. Não era para

menos. O Polaco bebia em turnos de 24 por 24 horas, dormindo nos intervalos. Na

noite em que morreu, havia uma multidão na antessala da UTI. Quando veio a

notícia, fui ao orelhão do corredor, ligar para algumas pessoas. Comecei pelo

Solda. Não consegui falar. Nem eu disse nada, nem ele perguntou. Não precisava.

Ficamos em silêncio, acho que deixei o telefone lá pendurado. Mesmo porque pendurados

ficamos todos.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!