Sapeca n° 39
Nº 39 – Setembro/2022 – Editor: Tonico Soares e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
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Em 1964, voltou à Hungria. Ainda era seu país? Em parte, sim. Mas o país
verdadeiro havia se tornado o Brasil, que o acolhera e possibilitara seu extraordinário
desenvolvimento intelectual. “Paulo sabia que a Hungria não era mais o seu
lugar”, escreve Ana Cecilia. Aposentado, passou a morar no sítio, em Nova Friburgo,
numa casa desenhada pela esposa, onde, orgulhosamente, organizou sua
“brilhoteca”, como dizia sua pequena neta. Morreu em 1992, aos 85 anos. “Seu
arquivo está lá, mas ninguém consulta”, bradou Laura. Ana Cecilia consultou.
Comenta-se que sua vida teria inspirado o romance Budapeste, de Chico
Buarque, que traça o caminho inverso ao de Paulo. Indagada se Chico teve algum
contato com a família, Laura respondeu: “Ele nunca falou, mas todo mundo percebe.
É fato conhecido. É tão fato que é a história do papai ao contrário”.
Um ótimo poema repulsivo
Nelson Ascher (Folha de São Paulo)
É num tom paradoxalmente triunfalista ("Não tive filhos, não transmiti a
nenhuma criatura o legado da nossa miséria") que, em 1881, Machado de Assis
arrematava Memórias Póstumas de Brás Cubas. Noventa anos depois, em 1971, o
poeta inglês Philip Larkin (1922-1985) encerrava simbolicamente a carreira com
um breve poema cuja última estrofe afirma e aconselha (em tradução literal) o
seguinte: "Os homens passam (ou legam) a miséria uns aos outros. (...) Não tenhas
filho algum". O texto, um dos mais citados de sua língua, é, assim, um epitáfio.
Diante de tamanha coincidência (aliás, a tradução britânica do romance machadiano,
sugestivamente intitulada "Epitaph of a Small Winner", saíra em 1968,
numa edição da Penguin), seria tentador imaginar que o poeta de lá (bibliotecário
profissional) tomara conhecimento do prosador daqui e se inspirara em seu livro.
Tal vínculo de causa e efeito, porém, nada tem de obrigatório. Operando com materiais
similares, mentes e temperamentos semelhantes chegam não raro a resultados
parecidos.
Há imagens notáveis que, de tão usadas, perdem o impacto original e até
deixam de expor claramente o que dizem, a que vieram. É o que ocorre com o sutil
oxímoro formulado pelo brasileiro e pelo inglês. Cada qual, falando de um "legado
de miséria", cria uma imagem à cuja família pertencem, por exemplo, "sua ausência
preenche uma lacuna" (atribuída a Stanislaw Ponte Preta), "a cárie (...) que
enche inteiramente o cheio de vazio" (de um poeta que desconheço) e, no limite, o
"nada que é tudo" pessoano. Nada impede, portanto, que Larkin e Machado de
Assis (ou melhor, Brás Cubas), numa destilação que, a nossos ouvidos, soa, a um
tempo, bíblica, darwiniana e psicanalítica, sintetizassem independentemente a essência
do niilismo.
Agora, consta que o inglês mesmo era pessoalmente uma figura no mínimo
desagradável, e ninguém precisa concordar com sua mensagem explícita. A maioria
das pessoas que conheço teve lá seus problemas com pai e mãe, mas sabe que
tanto o presente voluntário da vida como todo o restante superam de longe as perdas
e danos eventuais, e quem quer que os tenha perdido sempre lhes sentiu pungentemente
a falta.
Que os pais cometem erros e nos causam dificuldades desnecessárias, tampouco
é segredo. Eles, afinal, são humanos, e é deles que herdamos, sobretudo,
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